Cap´ıtulo 1 A Pre´-Histo´ria Da Antropologia: a descoberta das diferenc¸as pelos vi- ajantes do se´culo e a dupla resposta ideolo´gica dada daquela e´poca ate´ nos- sos dias A geˆnese da reflexa˜o antropolo´gica e´ contemporaˆnea a` descoberta do Novo Mundo. O Renascimento explora espac¸os ate´ enta˜o desconhecidos e comec¸a a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espac¸os.1 A grande questa˜o que e´ enta˜o colocada, e que nasce desse primeiro confronto visual com a alteridade, e´ a seguinte: aqueles que acabaram de serem desco- bertos pertencem a` humanidade? O crite´rio essencial para saber se conve´m atribuir-lhes um estatuto humano e´, nessa e´poca, religioso: O selvagem tem uma alma? O pecado original tambe´m lhes diz respeito? –questa˜o capital para os missiona´rios, ja´ que da resposta ira´ depender o fato de saber se e´ poss´ıvel trazer-lhes a revelac¸a˜o. Notamos que se, no se´culo XIV, a questa˜o 1As primeiras observac¸o˜es e os primeiros discursos sobre os povos ”distantes”de que dispomos proveˆm de duas fontes: 1) as reac¸o˜es dos primeiros viajantes, formando o que habitualmente chamamos de ”literatura de viagem”. Dizem respeito em primeiro lugar a` Pe´rsia e a` Turquia, em seguida a` Ame´rica, a` A´sia e a` A´frica. Em 1556, Andre´ Thevet escreve As Singularidades da Franc¸a Anta´rtica, em 1558 Jean de Lery, A Histo´ria de Uma Viagem Feita na Terra do Brasil. Consultar tambe´m como exemplo, para um per´ıodo anterior (se´culo XIII), G. de Rubrouck (reed. 1985), para um per´ıodo posterior (se´culo XVII) Y. d’Evreux (reed. 1985), bom como a coletaˆnea de textos de J. P. Duviols (1978); 2) os relato´rios dos missiona´rios e particularmente as ”Relac¸o˜es”dos jesu´ıtas (se´culo XVII) nc Canada´, no Japa˜o, na China, Cf., por exemplo, as Lettres Eˆdifiantes et Curieuses de la Chine par des Missionnaires Je´suites: 1702-1776, Paris reed. Garnier-Flammarion, 1979. 25 26 CAPI´TULO 1. A PRE´-HISTO´RIA DA ANTROPOLOGIA: e´ colocada, na˜o e´ de forma alguma solucionada. Ela sera´ definitivamente resolvida apenas dois se´culos mais tarde. Nessa e´poca e´ que comec¸am a se esboc¸ar as duas ideologias concorrentes, mas das quais uma consiste no sime´trico invertido da outra: a recusa do es- tranho apreendido a partir de uma falta, e cujo corola´rio e´ a boa conscieˆncia que se tem sobre si e sua sociedade;2 a fascinac¸a˜o pelo estranho cujo corola´rio e´ a ma´ conscieˆncia que se tem sobre si e sua sociedade. Ora, os pro´prios termos dessa dupla posic¸a˜o esta˜o colocados desde a me- tade do se´culo XIV: no debate, que se torna uma controve´rsia pu´blica, que durara´ va´rios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que opo˜e o dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera. Las Casas: ”A`queles que pretendem que os ı´ndios sa˜o ba´rbaros, responderemos que essas pessoas teˆm aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem pol´ıtica que, em alguns reinos, e´ melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou ate´ superavam muitas nac¸o˜es e uma ordem pol´ıtica que, em alguns reinos, e´ melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou ate´ superavam muitas nac¸o˜es do mundo conhecidas como policiadas e razoa´veis, e na˜o eram infe- riores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e ate´, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tambe´m a Inglaterra, a Franc¸a, e algumas de nossas regio˜es da Espanha. (...) Pois a maioria dessas nac¸o˜es do mundo, sena˜o todas, foram muito mais pervertidas, irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudeˆncia e saga- cidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. No´s mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extensa˜o de nossa Espanha, pela barba´rie de nosso modo de vida e pela depravac¸a˜o de nossos costumes”. Sepulvera: ”Aqueles que superam os outros em prudeˆncia e raza˜o, mesmo que na˜o se- jam superiores em forc¸a f´ısica, aqueles sa˜o, por natureza, os senhores; ao contra´rio, pore´m, os preguic¸osos, os esp´ıritos lentos, mesmo que tenham as forc¸as f´ısicas para cumprir todas as tarefas necessa´rias, sa˜o por natureza ser- 2Sendo, as duas variantes dessa figura: 1) a condescendeˆncia e a protec¸a˜o, paternalista do outro: 2) sua exclusa˜o 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 27 vos. E e´ justo e u´til que sejam servos, e vemos isso sancionado pela pro´pria lei divina. Tais sa˜o as nac¸o˜es ba´rbaras e desumanas, estranhas a` vida civil e aos costumes pac´ıficos. E sera´ sempre justo e conforme o direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao impe´rio de pr´ıncipes e de nac¸o˜es mais cultas e humanas, de modo que, grac¸as a` virtude destas e a` prudeˆncia de suas leis, eles abandonem a barba´rie e se conformem a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse impe´rio, pode-se impoˆ-lo pelo meio das armas e essa guerra sera´ justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que na˜o teˆm essas virtudes”. Ora, as ideologias que esta˜o por tra´s desse duplo discurso, mesmo que na˜o se expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro se´culos apo´s a poleˆmicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3 Como sa˜o estereo´tipos que envenenam essa antropologia espontaˆnea de que temos ainda hoje tanta dificuldade para nos livrarmos, conve´m nos determos sobre eles. 1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos ho- mens como um fato, e sim como uma aberrac¸a˜o exigindo uma justificac¸a˜o. A antigu¨idade grega designava sob o nome de ba´rbaro tudo o que na˜o par- ticipava da helenidade (em refereˆncia a` inarticulac¸a˜o do canto dos pa´ssaros oposto a` significac¸a˜o da linguagem humana), o Renascimento, os se´culos XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto e´, seres da floresta), opondo assim a animalidade a` humanidade. O termo primitivos e´ que triun- fara´ no se´culo XIX, enquanto optamos preferencialmente na e´poca atual pelo de subdesenvolvidos. Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto e´, para a natureza to- dos aqueles que na˜o participam da faixa de humanidade a` qual pertencemos e com a qual nos identificamos, e´, como lembra Le´vi-Strauss, a mais comum 3Essa oscilac¸a˜o entre dois po´los concorrentes, mas ligados entre si por um movimento de peˆndulo ininterrupto, pode ser encontrada na˜o apenas em uma mesma e´poca, mas em um mesmo autor. Cf., por exemplo, Le´ry (1972) ou Bu↵on (1984). 28 CAPI´TULO 1. A PRE´-HISTO´RIA DA ANTROPOLOGIA: a toda a humanidade, e, em especial, a mais caracter´ıstica dos ”selvagens”.4 Entre os crite´rios utilizados a partir do se´culo XIV pelos europeus para julgar se conve´m conferir aos ı´ndios um estatuto humano, ale´m do crite´rio religioso do qual ja´ falamos, e que pede, na configurac¸a˜o na qual nos situamos, uma resposta negativa (”sem religia˜o nenhuma”, sa˜o ”mais diabos”), citaremos: • a apareˆncia f´ısica: eles esta˜o nus ou ”vestidos de peles de animais”; • os comportamentos alimentares: eles ”comem carne crua”, e e´ todo o imagina´rio do canibalismo que ira´ aqui se elaborar;5 • a inteligeˆncia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles falam ”uma l´ıngua inintelig´ıvel”. Assim, na˜o acreditando em Deus, na˜o tendo alma, na˜o tendo acesso a` linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem e´ apreendido nos modos de um bestia´rio. E esse discurso so- bre a alteridade, que recorre constantemente a` meta´fora zoolo´gica, abre o grande leque das auseˆncias: sem moral, sem religia˜o, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem conscieˆncia, sem raza˜o, sem objetivo, sem arte, sem pas- sado, sem futuro.6 Cornelius de Pauw acrescentara´ ate´, no se´culo XVIII: ”sem barba”, ”sem sobrancelhas”, ”sem peˆlos”, ”sem esp´ıritosem ardor para com sua feˆmea”. ”E´ a grande glo´ria e a honra de nossos reis e dos espanho´is,