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Fernando Pessoa Contextualização literária -A questão da heteronímia Pessoa tem consciência de que, dentro de si, existem outros «eus» que sentem e pensam de maneira diferente. Mas não só́ sentem e pensam, como também escrevem de maneira diferente da do ortónimo. Para explicar tudo isto Fernando Pessoa decide escrever uma carta a um seu amigo, Adolfo Casais Monteiro (janeiro de 1935), na qual descreve a origem, o aspeto físico, a personalidade e a maneira de escrever de cada um dos seus três heterónimos (poetas): Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Todos eles são fruto da imaginação de Pessoa, no entanto, por serem tão diferentes, em termos literários, o poeta optou por «imaginá-los» como se fossem reais, daí que tenham «existências» especificas e individuais. «Eu vejo diante de mim, no espaço incolor, mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (...), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 {...). Este, como sabe, é engenheiro naval {...), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. Caeiro era de estatura média, e embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. ÁIvaro de Campos é alto (...), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português (...), monóculo.» Alberto Caeiro O fingimento artístico: Alberto Caeiro, o poeta bucólico -Caeiro, o poeta do campo Origem do poeta bucólico Logo no começo do poema “O guardador de rebanhos”, Caeiro declara-se pastor por metáfora, o que constitui, no fundo, o despontar daquilo que Pessoa ele mesmo considerou um «poeta bucólico de espécie complicada». De facto, na carta que dirigiu ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro, na qual explica a génese dos heterónimos, o ortónimo afirma que, certo dia, desejou criar um poeta bucólico para pregar uma partida a Sá-Carneiro, mas que essa ideia se concretizou apenas em 8 de março de 1914, quando se acercou de uma cómoda alta e escreveu «trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase», cuja autoria atribuiu a Alberto Caeiro, heterónimo que lhe suscitou a sensação de que tinha nascido o seu Mestre, tratando também de lhe inventar mais uns discípulos. Caeiro é, por isso, o Mestre de Pessoa ortónimo e dos outros heterónimos. Poeta bucólico Caeiro resulta do fingimento poético de Fernando Pessoa: foi inventado e modelado pelo ortónimo como «poeta bucólico». Ou seja, imaginariamente, Caeiro é uma figura que vive no campo, com simplicidade, sem estudos e de modo rústico, em contacto com a Natureza e longe da agitação da cidade. O que nele há de bucolismo aparece como imitação da vida dos pastores que, na chamada poesia bucólica, eram as figuras que o poeta celebrava, pela sua pureza e inocência. Atitude de contemplação/observação da Natureza e deambulismo Caeiro é um poeta deambulatório (como Cesário Verde). De facto, ele deambula livremente pela Natureza, pelo campo, observando e apreendendo instintivamente o que o rodeia e captando o real através dos sentidos, extasiado pela eterna novidade do mundo. A poesia de Caeiro visa o primado do exterior / da variedade maravilhosa do real. Relação de integração, comunhão e harmoniosa/simbiose com os elementos da Natureza e afastamento social Caeiro procura viver em plena integração e comunhão com a Natureza, aprendendo com ela a aceitar o bom e o mau, a felicidade e a infelicidade, a vida e a morte. A sua alma «conhece o vento e o sol», segue o ritmo das estações e frui «a paz da Natureza sem gente», sendo que a ausência de outros seres humanos lhe traz paz e tranquilidade. Ele procura viver em harmonia e simbiose com a Natureza, alegre e tranquilamente no seio da mãe Terra. Deste modo, atinge o verdadeiro conhecimento e a felicidade plena: «Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz”. Simplicidade e felicidade primordiais Poeta do real objetivo, observa as coisas com um olhar ingénuo e puro: “pensar é não compreender. / (…) E a única inocência é não pensar…”. No entanto, na verdade, Caeiro, o poeta da visão instintiva e natural das coisas, é um falso ingénuo e a sua aparente simplicidade resulta de uma elaborada operação mental. De facto, a simplicidade de Caeiro é posta em causa, pois, além de se apresentar como metáfora, aparenta contradizer-se: “Sou um guardador de rebanhos” ≠ “O rebanho é os meus pensamentos”. Ou seja, ele só é pastor bucólico enquanto metáfora; quando muito, deseja a existência simples que está associada à vida pastoril. Existência tranquila no (tempo) presente Para Caeiro, não há passado (ele considera que recordar é atraiçoar), nem futuro (pois este tempo é um campo de miragens). Assim, vive o presente, gozando cada impressão como se fosse única e original. Bucolismo como máscara poética Caeiro mascara-se de pastor-mestre inculto e iletrado, de forma a passar a imagem de um homem simples na forma original e primitiva de (vi)ver o mundo, imagem essa que esconde todo um conhecimento filosófico e cultural. Caeiro finge ser um pastor (o tal pastor-metáfora, pois, na realidade, não o é), um homem simples, que deambula pela Natureza, apreendendo instintivamente o que o exterior lhe oferece. Deste modo, a sua arte poética/criação artística é algo espontâneo e não artificial (artificialidade reacional da elaboração do texto), daí que critique os “poetas que são artistas / E trabalham seus versos / como um carpinteiro nas tábuas”, como se se tratasse de uma construção. Este fingimento tem como meta a (tentativa de) abolição do pensamento, fingindo que é um homem instintivo que vive só para fora, para o exterior. Caeiro é considerado o Mestre em consequência dos seguintes princípios poéticos: -Recusa o pensamento (que implica que se deturpe o significado das coisas que existem), a filosofia e a metafísica, a essência, acreditando o poeta apenas na aparência (captada pelos sentidos), eliminando assim a dor de pensar e alcançando a felicidade; -Sensacionismo: Caeiro substitui o pensamento, que considera uma doença, pelas sensações que colhe no exterior objetivo, defendendo que nada existe para além do que é percetível para o ser humano, para além do que é captado pelos sentidos – ou seja, devemos percecionar, conhecer e fruir o mundo através dos sentidos, sobretudo a visão, e o real se reduz à materialidade; -Aceitação serena do mundo e da realidade tal qual eles são: as coisas são o que são, resumem-se à sua aparência, não têm significados ocultos, e o poeta aceita-as como elas são, sem as questionar, sem as pensar, visto que "pensar é não compreender" (pelo contrário, o ortónimo pensa, vê para além das aparências, considerando que aquilo que vê é apenas a exteriorização de outra coisa); -Comunhão com a Natureza: o ser humano deve submeter-se às leis naturais e não deve racionalizar processos que existem naturalmente (por exemplo, as ideias de vida ou de morte, que existem enquanto verdades absolutas), daí a negação da existência de significados ocultos na Natureza – neste ponto, aproxima-se do paganismo; Caeiro sente-se deslumbrado perante a natureza e a sua diversidade (a “eterna novidade do mundo”); Caeiro é o poeta do real objetivo e do olhar ingénuo sobre o mundo: Caeiro aceita as ideias de vida e de morte sem mistérios, despojadas de reflexão, de pensamento, de subjetividade; Neopaganismo: Caeiro tem uma visão pagã da existência, resultante da comunhão com a Natureza, que passa pela descrença na transcendência e pela opção pela sensação, considerara a única verdade; Consideraque só o presente existe e deve ser vivido; Irregularidade formal (verso livre, irregularidade métrica e estrófica), «seguida» por Álvaro de Campos. -Caeiro, o homem instintivo Ao ”fingir” em Caeiro um homem instintivo que só vive para fora, levado pela mão das Estações, Pessoa obedecia ao anseio profundo de fugir à viscosidade interior, de forçar as portas do “carecer do Ser“ em que se debatia, apelando para o remédio radical: suprimir o eu, mero intervalo entre incoercíveis, abolir o pensamento, dissonância trágica do Universo, reintegrando o Homem no seio da natureza. Reflexão existencial: Alberto Caeiro, o primado das sensações Por reflexão existencial entende-se a reflexão sobre uma forma de estar no mundo, de viver a relação com ele e com os outros. Sensacionismo: a sensação sobrepõe-se ao pensamento Alberto Caeiro recusa o pensamento, o conhecimento intelectual e vive de impressões, privilegiando as sensações, sobretudo as visuais. O pensamento perturba-o, fá-lo sofrer, é fonte de enganos, não lhe permitindo conhecer o real (“Pensar é estar doente dos olhos”), por isso procura libertar-se dele, privilegiando o conhecimento sensorial da realidade. Para o poeta, o conhecimento do mundo e do real circundante faz-se através das sensações. De uma forma que se quer espontânea e natural, elas revelam uma existência que, em contacto com a natureza, dispensa a ciência e a técnica. Assim, vive em harmonia consigo e com os outros, aceitando o mundo e a vida e sendo feliz, precisamente porque recusa o pensamento e dá primazia às sensações. Perceciona a realidade através do olhar, sem intelectualizar essa perceção, daí afirmar-se que a sua poesia é sensacionista, na medida em que substitui o pensamento (que associa a uma doença) e o sentimento (subjetivo e convencional) pela sensação. A subjetividade não existe para ele. O poeta do olhar Caeiro apreende o real através dos sentidos / das sensações, nomeadamente as visuais, recusando o pensamento. Este corresponde a uma atitude reflexiva que impede a compreensão e a uma doença da visão [“pensar é estar doente dos olhos” (Poema II)], que constitui um obstáculo à fruição do que os sentidos percecionam (nomeadamente a Natureza). Observação objetiva da realidade Caeiro valoriza a realidade exterior concreta e observável: “Creio no Mundo como num malmequer, / Porque o vejo” (poema II). Ao recusar o pensamento e ao optar pelo concreto, encontra a felicidade: “Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz”. O real é o único meio de atingir a verdade e a felicidade, desde logo porque a realidade existe sem necessidade do pensamento. Para o poeta, nada existe para além daquilo que é percetível, para além daquilo que o ser humano capta os sentidos. Rejeição do pensamento abstrato e da intelectualização Caeiro recusa o conhecimento intelectual e defende o primado das sensações. O poeta nega que a Natureza tenha significados ocultos. As coisas são o que são, resumem-se à sua aparência e àquele cabe-lhe aceitá-las como elas são, sem pensar, porque "pensar é não compreender”. O mundo é claro, evidente, simplesmente é – ser é o único valor possível. O conhecimento chega apenas através dos sentidos, nomeadamente do olhar, pois o pensamento incomoda-o, perturba-o, é fonte de infelicidade: “Pensar incomoda como andar à chuva”. «Filosofia» da antifilosofia (pensamento antipensamento) Caeiro rejeita a filosofia (bem como o conhecimento intelectual, a metafísica, a ciência) e, consequentemente, constrói uma nova filosofia: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos” (Poema II). Ou seja, ao percecionar a realidade como se fosse um simples pastor que acompanha o seu rebanho, encontra na Natureza e nas sensações uma nova filosofia de vida. Caeiro é, talvez, o heterónimo mais complexo, visto que recusar o pensamento ou qualquer tipo de filosofia é pensar e filosofar, e tentar atingir o grau zero do pensamento implica já uma complexa operação mental. De facto, a recusa da filosofia e a apologia da sensação pura constituem uma outra filosofia, pois recusar a filosofia é filosofar, tal como afirmar que não se pensa é já pensar. Aceitação do mundo Caeiro aceita o mundo e as coisas como são, relacionando-se com eles de forma harmoniosa, visto que recusa o pensamento e a abstração, privilegiando as sensações, nomeadamente as visuais. Segundo ele, devemos fazer a “aprendizagem do desaprender”, devemos aceitar a vida e a morte sem mistérios, despojados de todo o pensamento, de toda a reflexão, de toda a subjetividade. Para este heterónimo, o real é a única fonte de felicidade e de conhecimento. Também isto explica que viva em comunhão com a Natureza, aprendendo com ela, através das sensações, a ser feliz. Em suma, Caeiro, aceita o real e a vida, não problematiza a existência, contentando-se em sentir, ver e ser feliz. Linguagem, estilo e estrutura · Linguagem simples, familiar e objetiva. · Pobreza lexical. · Verso livre, geralmente longo. · Irregularidade / liberdade estrófica e métrica. · Despreocupação a nível fónico. · Adjetivação pobre e objetiva. · Pontuação lógica. · Predomínio do presente do indicativo, modo do real. · Frases simples. · Predomínio da coordenação. · Aproximação à prosa. · Metáforas e comparações originais, relacionadas com elementos naturais: "Minha alma é como um pastor", "Pensar incomoda como andar à chuva", "Escrevo versos num papel que está no meu pensamento". · Marcas de oralidade Ricardo Reis O fingimento artístico: Ricardo Reis, o poeta “clássico” Neoclassicismo: revivalismo da cultura da Antiguidade Clássica (sobretudo, a grega). -Influência greco-latina: de acordo com a sua biografia, Ricardo Reis foi educado num colégio de jesuítas, onde recebeu profundas influências da cultura greco-latina, daí poder afirmar-se que se trata de um poeta clássico, um helenista e latinista. -Nos seus poemas, transmite ensinamentos (uma filosofia de vida) para os indivíduos saberem enfrentar as adversidades da vida e do mundo. -Entre essas adversidades contam-se a fugacidade do tempo e da vida, a velhice, a doença, a certeza da morte, a ação inexorável do Destino (Fado) e outras situações que acarretam o sofrimento e a dor. -Assim, Reis procura a sabedoria dos antigos (gregos e latinos) para resolver os seus problemas e evitar a dor e o sofrimento, sendo influenciado por duas escolas filosóficas gregas (o Estoicismo e o Epicurismo) e pelo poeta latino Horácio. - Principais influências da cultura clássica em Ricardo Reis Neopaganismo: -Reaparecimento dos antigos deuses na arte ou na literatura – adoção de uma visão pagã do mundo, em que o Homem vive em comunhão com a Natureza e em que existem deuses, uma mitologia e o Fado/Destino e aqueles estão presentes no seio da Natureza; -Renascimento da essência pagã, pela eliminação da racionalidade abstrata e pela rejeição da metafísica ocidental; cosmovisão hierarquizada e ascendente dos seres: animais, homens, deuses e Fado, que a todos preside Epicurismo: -Procura da felicidade e do prazer relativos; -Atitude imperturbável e de distanciação face aos males que atormentam a existência humana (passagem do tempo, morte, etc.): ataraxia – ausência de perturbação ou inquietação; -Altivez e indiferença (egoísmo epicurista) – abdicação voluntária; -Fruição tranquila do momento presente (carpe diem), de uma felicidade suave e tranquila dos prazeres serenos e moderados; -Aceitação de uma vida simples, sem grandes ambições e em contacto com a Natureza – aurea mediocritas; -Aceitação do Destino, da morte e das contrariedades da vida; -Perceção direta da realidade e do ciclo da Natureza. Estoicismo: -Aceitação racional das leis do Tempo e do Destino; -Resignação perante a frágil condição humana e o sofrimento; -Culto da contenção, da autodisciplina, do autodomínio na vida e na escrita e despojamento dos bens materiais; -Culto da abdicação voluntária e da indiferença perante as paixões e os sentimentos intensos e compromissos, como forma de evitar ceder à força dos impulsos; -Buscada apatia (a = ausência de + pathos = sofrimento), um estado de indiferença e de ausência de sofrimento e dor como forma de o indivíduo enfrentar com determinação as contrariedades, a doença e a morte; -Procura, também, da ataraxia. Horacianismo: -Visão estoico-epicurista da existência; -Perceção aguda da transitoriedade do tempo, da brevidade da vida e da inevitabilidade da morte e do Destino; -Inutilidade do esforço e da indagação sobre o futuro; -Carpe diem: fruição moderada do momento e entrega moderada ao prazer; -Culto da aurea mediocritas (preferência por uma vivência calma num local recatado, em contacto com a Natureza); -Presença do locus amoenus (lugar aprazível); -Autodomínio que evita as paixões e aceitação voluntária do Destino. Reflexão exetencial: a consciência e a encenação da mortalidade -Consciência da efemeridade da vida, da inexorabilidade do Tempo e da inevitabilidade da Morte. Reis tem uma consciência aguda de que a vida é efémera e transitória, de que o Tempo passa de forma célere e de que qualquer ato humano é pequeno e infrutífero perante estas realidades. Receia a velhice e a morte, que é inevitável. Além disso, está consciente de que o Homem é débil perante forças maiores que o oprimem. Assim, angustiado por tudo isto e pela noção de um Destino inexorável, procura na sabedoria dos antigos um remédio para os seus males, nomeadamente para a dor da caducidade e o peso da Moira cruel. Que remédio é esse? Trata-se da aceitação com altivez do Destino que lhe é imposto e que lhe proporcione a indiferença face à morte. Reconhecendo que a vida de cada um, não obstante ser instável e contingente, é o único bem em que podemos, até certo ponto, firmar-nos, souberam construir a partir dele uma felicidade relativa, encarando com lucidez o mundo. -Tragicidade da vida humana. O ser humano é uma vítima indefesa do Destino e está sujeito à passagem do Tempo, que inevitavelmente traz o envelhecimento, a doença e a morte a uma vida que é efémera. Consciente de que qualquer esforço é inútil, renuncia e busca a aceitação calma do Destino. Em suma, a vida é fugaz, a morte é certa, o Destino comanda-nos, daí que devamos recusar compromissos afetivos (“Desenlacemos as mãos”) e sociais (“Antes magnólias amo / Que a glória e a virtude”) para chegar à morte de mãos vazias e sem dor. -A vida como «encenação» da hora fatal (previsão e preparação da morte): despojamento de bens materiais, negação de sentimentos excessivos e de compromissos. Reis, consciente do fluir inexorável do tempo, aceita a efemeridade da vida, bem como a inevitabilidade da morte. Numa atitude epicurista e estoica do equilíbrio interior pela busca de um prazer relativo, o poeta sustenta que a própria vida deve ser encarada como encenação da morte, através da autodisciplina, da abdicação, da renúncia a compromissos afetivos e sociais, da aceitação calma e serena da vida, da submissão ao Destino e da aceitação da inevitabilidade da Morte. -Intelectualização de emoções e contenção de impulsos. A filosofia de Reis resume-se num epicurismo triste. Para ele, cada indivíduo deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros e procurando apenas o que lhe agrada e apraz. Deve renunciar às emoções violentas: o poeta racionaliza as emoções e recusa o seu valor, face à realidade que descobre, através do pensamento. O Homem deve buscar o mínimo de dor e, sobretudo, a calma e a tranquilidade, abstendo-se de esforços e da atividade útil. Deve procurar dar-se a ilusão da calma, da liberdade e da felicidade, coisas inatingíveis, pois, quanto à liberdade, os próprios deuses – também eles comandados pelo Destino – não a têm; quanto à felicidade, não a pode viver quem está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive angustiado, sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo. A obra de Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplina para obter uma calma qualquer. Epicurista, o homem de sabedoria conquista a autonomia interior na estrita área de liberdade que lhe restou. Essa conquista começa por um ato de abdicação, por uma atitude de autodisciplina. O primeiro objetivo é submeter-se voluntariamente ao Destino, que deste modo cumprimos altivamente, sem um queixume. O homem sábio chega mesmo a antecipar-se ao próprio Destino, aceitando livremente a morte. O segundo objetivo é depurar a alma de instintos e paixões que nos prendem ao transitório, alienando a nossa vida. A ataraxia, note-se, não implica para Epicuro ausência de prazer, mas indiferença perante todo o prazer que nos compromete, colocando-nos na dependência dos outros ou das coisas. Além disso, os prazeres epicuristas são tipicamente espirituais, como a leve recordação melancólica dos bons momentos do passado. -Vivência moderada do momento (o presente como único tempo que nos é concedido). Na esteira da Antiguidade clássica, Reis confessa a Lídia que prefere o presente precário a um futuro que teme porque o desconhece. A sabedoria consiste precisamente em gozar o presente (carpe diem) de forma moderada, pois o futuro é uma incógnita e a vida é efémera. -Preocupação excessiva com a passagem do Tempo e com a inelutável Morte (apesar do esforço empreendido na construção da máscara poética). Reis é um epicurista triste: faz a apologia do gozo comedido, do carpe diem e da suprema indiferença, de acordo com o Epicurismo. Por outro lado, apela à fortaleza de ânimo para enfrentar o fatalismo da morte e a dor de viver, segundo o Estoicismo. Estes princípios têm como finalidade atingir a (pouca) felicidade que é permitida aos seres humanos: viver «sem desassossegos grandes», aceitando as leis do Destino, e aguardar a morte de forma serena e digna. A efemeridade da vida e a inevitabilidade da morte são temáticas obsessivas e geradoras de grande angústia que o poeta procura superar através do domínio da emoção pela razão, isto é, pela intelectualização das emoções. É uma lição de não-vida: não amar para não sofrer, não desejar para não ser desiludido, não questionar para não encontra o vazio. Linguagem, estilo e estrutura Linguagem culta, erudita e latinizante Estilo e forma complexos espelham o conteúdo. Tom didático e moralista (conselhos expressos no imperativo ou no conjuntivo com valor exortativo). Tom coloquial na presença de um interlocutor. Preferência pela composição poética em ode. Regularidade estrófica, rítmica e métrica (versos predominantemente decassilábicos e hexassilábicos). Ausência de rima (versos soltos). Predomínio de construções sintáticas subordinadas e com influência da sintaxe latina (alteração da ordem padrão dos constituintes sintáticos) Privilégio do presente do indicativo e uso frequente da primeira pessoa do plural; utili zação do gerúndio com valor aspetual imperfetivo. Recursos expressivos predominantes: anástrofe, metáfora, aliteração, apóstrofe. Álvaro de Campo O fingimento artístico: Álvaro de Campos, o poeta da modernidade Rutura com os cânones literários aristotélicos e com o lirismo subjetivo tradicional: representante insubmisso e rebelde das vanguardas do início do séc. XX. Deliberada postura provocatória e transgressora da moral, com o propósito de escandalizar e chocar. Futurismo: apologia da civilização contemporânea moderna, industrial e tecnológica. Sensacionismo: exacerbação e simultaneidade das sensações: a sensação como método cognitivo da realidade. Apologia da vertigem sensorial — «sentir tudo de todas as maneiras» —, congregando em si toda a complexidade sensitiva. Concatenação no momento presente de todos os tempos e de todos os génios do passado. Tensão, insatisfação e frustração perante a incapacidade de abarcar a totalidade das sensações. -Futurismo Rompe com a tradição estética anterior. · Apologia da civilização contemporânea moderna, industrial e tecnológica. · Ideais excessivos e chocantes, que chegam a defender a violência e a guerra. -Sensacionismo Produzum novo real, através dos vários modos de sentir. · Exacerbação e simultaneidade das sensações. · A sensação como método cognitivo da realidade. É através do processo sensorial que se atingirá a compreensão do mundo. Não existe uma realidade propriamente dita; apenas as sensações, diversas e fragmentadas permitem a perceção de «pedaços» do real. Na demanda de conhecer e apreender o cosmos, desdobra-se em diversas maneiras de sentir (as sensações permitem-nos «viajar» tanto exterior como interiormente). Movimento artístico de vanguarda, que pôs em causa toda a arte, as tradições e conceções do passado, celebrando a vida moderna e o futuro - Modernismo. O imaginario épico: a exaltação do moderno Matéria épica — a exaltação do Moderno:Exaltação da civilização cosmopolita e da Modernidade enquanto nova era do progresso humano. Elogio do cosmopolitismo; Exaltação eufórica da máquina, da força, da velocidade, da agressividade, do excesso; Integração de todos os tempos e de todo o progresso num poema; Emoção violenta e «pujança da sensação», com pendor épico; a nova poesia como expressão da civilização moderna. Poder da força da sensação, da emoção, aliadas a uma construção poética inovadora; Superior capacidade de «construção e desenvolvimento ordenado de um poema», como expressão da civilização moderna. o arrebatamento do canto O cântico reflete a grandiosidade da matéria épica; Poema extenso, com versos livres e longos; Estilo esfuziante e torrencial; ritmo estonteante; Êxtase discursivo: abundância de recursos expressivos: onomatopeias, empréstimos, neologismos, interjeições, pontuação expressiva... Reflexão existencial: sujeito, consciência e tempo; nostalgia da infância Consciência dramática da identidade fragmentada. Ceticismo perante a realidade e a passagem do tempo. Angústia existencial, solidão, abulia, cansaço e morbidez. Introspeção e pessimismo — dor de pensar. A náusea, a abjeção e o «sono» da vida quotidiana. Evasão para o mundo da infância feliz, irremediavelmente perdido. Linguagem, estilo e estrutura O discurso de Álvaro de Campos: Cariz eufórico, excessivo, dinâmico, apesar de processualmente repetitivo. Estilo abúlico e sonolento. (em consonância com temáticas intimistas e introspetivas). Multiplicidade da civilização mecânica e pluralidade de sentimentos e sensações do eu lírico Criação emotiva e espontânea, independentemente do seu estado de espírito. A forma espelha o conteúdo da mensagem poética. Verso livre e, normalmente, longo. Irregularidade estrófica, rítmica e métrica. Ausência de rima (versos soltos). Linguagem simples, objetiva, prosaica, onomatopeias, neologismos, empréstimos, topónimos e antropónimos. Inclusão de vários registos de língua (do literário ao calão). Vocabulário concreto (sobretudo do campo lexical da Mecânica e da Indústria). Construções sintáticas nominais, gerundivas, infinitivas e, por vezes, presença de frases atípicas, experimentais. Privilégio do presente do indicativo. Recursos expressivos predominantes: aliteração, anáfora, apóstrofe, enumeração, gradação e metáfora. Nas composições intimistas, o fôlego modernista e épico decai num estilo abúlico, deprimido, aproximando-se do registo poético do ortónimo.
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