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PRESERVAR NÃO É TOMBAR, RENOVAR NÃO É PÔR TUDO ABAIXO

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\
Rio, julho de 1985
PRESERVAR NÃO t TOMBAR,
RENOVAR NÃO t PÔR TUDO ABAIXO
Carlos Nelson F. dos Santos
GT - Estudos Urbanos: Representação e políticas pGblicas
c
Toda cidade resulta da agregação de trabalho humano a um
suporte natural. Isto quer dizer que, uma vez fundadas, as
cidades vivem se r~fazendo, jamais estão prontas. Talvez esse
enfrentamento do espaço e do tempo através de. ações sociais
se pudesse chamar com mais propriedade de história - de
história urbana pelo menos. De todas as formas, estou quase
convencido de duas coisas:
c
1) - a história do homem acaba sendo enquadrada pelos espaços
que inventou para que neles acontecesse a sua história.
Não há maneira de pensar espaço significativo desacompanhado
de história que o explique (quando se trata dos chamados
"povos sem história" substitua-se história por mito ... ).
Da mesma forma,é impossível imaginar história ou mito não
referenciadosa espaços reais ou imaginários.
2} - desde que, há uns dez mil anos atrás, a cidade s rge rra
história, coroando a revolução do neolitico, passa a ser
o lugar preferencial para realização (e percepção ... ) da
própria história.
Há cidades que param. Deixam de se transformar através dos
diálogos, nem sempre mansos, entre espaço e tempo. A rigor,
não deveriam mais ser chamadas de cidades. No dizer de Oriol
Bohigas, viram museus, cemitérios, cenários de turismo, o
que se quiser ... Não merecem mais ser consideradas centros
urbanos reais. Ele entende bem do que está falando: além de
eminente arquiteto urbanista,é cidadão de Barcelona. Justo
a Espanha foi um dos países onde, nas Gltimas décadas, houve
mais controvérsias sobre o muito que preservar e o muito que
destruir, face a novas imposições da sociedade e de suas
atividades econ6micas.
Os conceitos de cidade e mercado são daqueles imbricados desde
a origem. Não estou me referindo ao mercado das trocas
c .2.
(
ateriais e da razao prática, característico do capitalismo.
Este só tomou de assalto os meios urbanos e os submeteu às
suas lógicas em meados do século XIX. A partir daí tudo
vira mercadoria negociável por quem mais possa pagar. Não
escapam a terra e, numa esfera muito mais abstrata, as
diversas localizações intra-urbanas, valorizadas de forma
diferente no tempo pelos vários grupos que vivem nas cidades.
Meu mercado aqui e mais amplo. Para começo de história, sua
meta principal é promover, através do estabelecimento de uma
cadeia de obrigações de reciprocidade, o máximo de equilíbrio
na estrutura social. Quer redistribuir, não acumular. Em
vez da mesquinha ótica da produtividade, permite as múltiplas
ordens da criatividade. Por suposto sempre foi mais
idealizado que realizado, mas, através da história, com a
cidade e na cidade, foi se concretizando através das práticas
possíveis. Até que, por força dos indi?idua~is~os ~a c~:~_r~
desagregadora do ocidente moderno, teve seu papel a~e~~e=a~~,
foi reduzido. Ficou tudo mais fácil de usar e mais e=~c~e~~e,
é bem verdade. O preço pago, porém, foi a esquizofrenia de
que, hoje em dia, o mundo inteiro parece atacado.
. C'
A cultura burguesa praticou o feito inédito: submeteu as outras
que lhe eram contemporâneas. Na maioria dos càsos, destruiu-as
por completo. Apropriou-se de tudo, simplificando significados
complexos. O que interessava era aplainar caminhos para a
existência e operação de empresas e do estado nacional ...
Entidades totalizadoras que se esforçam por "descomplicar"
o que podem, para melhor controlar ou melhor mandar. As
cidades, indispensáveis à difusão e implantação dessas novas
ordens desde o renas cimento europeu, foram suas grandes vítimas.
A cidade/mercado do capitalismo está longe, porem, de existir
como um absoluto. Além da principal razão de ser - produtividade
de mercadorias e disciplinas - continua abrigando muitas
.. .3•
outras vocações. Técnicos, especialistas e o status quo de
um modo geral costumam classificar essa persistência como
anacrônica e desviante. são desordens frente à ordem que
sonham existirá um dia, perfeita e imutável. Não percebem
que são os espaços fora das convenções, as atividades
econômicas fora de controle e as relações sociais fora dos
modelos aceitos oficialmente que permitem e viabilizam seus
ideais de ordem. Em síntese, só pode haver um positivo às
custas de muitos negativos. Aqui no Brasil então, país de
poucos recursos e inúmeros problemas no cenário urbano que
deu um salto espetacular em noventa anos, só algumas áreas
chegam mais perto do ideal. Fazem-no, entretanto, às custas
de outras que espoliam. A regra ~ que nos bairroscêntricos
se promova a concentração de benesses urbanísticas para uso
cada vez mais exclusivo dos mais ricos e das atividades ais
nobres. O resto, a maioria das pessoas e de suas açoes,
vai se distribuindo como pode em espaços tanto mais pobres
e desprovidos quanto mais diferenciados dos núcleos cheios
de privilégios.
Usei a expressao diferenciados em lugar de distantes porque o
contraste se deve a fatores que podem incluir ou não
descontinuidade física. Estar longe das áreas centrais e
condição suficiente mas não necessária ou única de separação
e segregaçao. Há favelas em muitas cidades brasileiras que,
do ponto de vista da localização, ocupam posições invejáveis.
Periferias e subúrbios .parecem o "habitat natural" para as
camadas de menor renda e para os negócios de menor prestígio.
Em muitos casos, porem, basta virar uma esquina da avenida
de maior movimento para encontrar casarões velhos transformados
em cabeças-de-porco, hospedarias, oficinas ... No quintal de
edifícios com ótima aparência podem existir barracos e
construções precárias. Isto sem falar nos bairros chamados
decadentes, que costumam cercar a área mais central das
.·é ....
/'
\
.4.
maiores cidades. Extensões contínuas de casaria antigo,
ruas, praças •.. que o governo costuma ver corno resíduos, corno
enclaves que já não servem para nada. Daí, passa a
considerá-Ias corno reservas que, assim que for possível, sera
preciso pôr abaixo e reconstruir nos padrões desejáveis.
Nas cidades o espaço fala. Cheios e vazios, edificações e
logradouros, público e privado formam um código. As muitas
articulações possíveis dos diversos elementos em cada sítio
constituem urna linguagem peculiar. Da perspectiva analítica,
o fenômeno não ~ muito fácil de registrar e entender. Os
produtos arquitetônicos e urbanísticos por si mesmos permitem
poucas precisões, são ambíguos; talvez excessivamente
po~ticos. Mas, ~ aí que reside sua maior força - nessa
resistência à fragmentação. Os conjuntos urbanos cost~am ter
grande poder expressivo. são sínteses fortes. _es ~~a
quem conhece pouco uma determinada cidade é fáci =aze:::
demarcações a partir de balizamentos sumários. Hab í.t.uaz'+se
a um território desconhecido implica classificar lugares:
onde há confusão; onde há calma; onde se t-rabalha; onde há
segurança i onde vão os ricos; onde se adquirem bens úteis ou
sup~rfluos ... e" assim por diante.
A síntese espacial urbana tira das relações metafóricas sua
maior eficiência. Os lugares, por serem corno são, dizem de
urna só vez urna porção de coisas para um monte de gente.
Apresentam conformações cumulativas. Estão no presente, mas
podem demonstrar corno já foi e corno, talvez, será. Assim,
não só COM-formam. Também IN-formam. Disse, um pouquinho
antes, que na cidade o espaço fala. Fala de quê? De uma
organização econômica, sem dúvida. Esta, por sua vez, se
refere a uma estruturação social que se realiza atrav~s de
um modo de vida característico. A última expressão, pode,
sem favor, ser substituída por cultura. A cultura ~ constituída
" o,' .'f' c,:
c
c
c
. 5.
por esses milhares de obviedades que todo mundo tem de saber,
se deseja sobreviver, se não quiser ser um Kaspar Hauser(*),
incapaz de dizer de onde veio e a que veio no ambiente em
que deveria se sentir à vontade. Pois é, participar de uma
cultura é "estarem casa" dentro dela. Isto cor responde a
dominar uma certa quantidade de códigos classificatórios que,
quanto mais gerais e abrangentes sejam,mais básicos são. Entre
os conhecimentos básicos que permitem a convivência de
milhares de pessoas e interesses, nos espaços tão reduzidos
das cidades modernas, está a atribuição de um mínimo de
significados coincidentes a uma coleção de lugares ordenados
segundo convenções que, para os membros daquele grupo, são
referências estruturais.
Muito bem. Se, nos espaços urbanos, as formas físicas fa ~
das formas econ6micas e das sociais, n~o haverá d'f:c~:-a~es
de tradução? Termos irredutíveis, tempos e objeti -os
diversos, divergentes até? Há sim. A melodia não e
harmônica, nem cantam todos no mesmo diapasão. De um Cill po
para outro existeIn superposições, é verdade, mas são abundantes
os desencontros e as autonomias. Creio mesmo que nessas
fal tas de pr ec ís ào o contradi tórias se estabeleçam os domínios
de um quarto código, indispensável para que nas cidades
coexistam, com o mínimo de desgaste(os outros três. As falhas,
as brechas, os brancos são o território dos entendimentos
políticos. Nosso, modelo urbano - a polis ocidental dos
cidadãos e de suas assembléias representativas e equalizadoras -
exige que existam. Eles servem para explicar o ininteligível,
(*) célebre personagem que surge na sociedade alemã do século
XIX, já adulto,sem ter sido devidamente socializado.
A procedência desconhecida e a falta de domínio dos códigos
de comportamento criam em torno dele um clima insuperável
de desconfiança e mal-estar.
c - -
G..-.. '•. .6 .
conciliam a intolerância das óticas exclusivas, tornam a
ambigüidade útil. Mais do que isso:. fazem dela um
instrumento de acertos. Quando o coro de mil vozes consegue
o encontro da assembl~ia, tenta se afinar, se ajeita para dar,-
chance aos timbres mais fracos, respeitando as limitações e
racionalidades da maioria e permitindo os solos na hora certa.
Há outras possibilidades tamb~m: criar uma falsa e fácil
disciplina da exclusão; fazer com que quase todos se calem e
conceder o privil~gio de expressão a um grupo que pode tudo.
Quando esse excesso de autoritarismo acontece, ~ raro que os
resultados sejam bons para as cidades, não importando a
beleza ou o alcance das vozes. Já diziam os homens da
idade-média que o ar urbano era bom porque nele se respirava
liberdade. Percebiam bem duas coisas naqueles tempos:
1) - que a melhor maneira de viver consistia em reafir ar as
semelhanças e corr.p.reend er as diferenças e __con í - nt, ::;-.:.e
equivalia a trocar experiências); 2) - que a liber a-e es~a-a
embutida nas ações de todos os dias e que nelas se re'is~=a-a.
(
Pensar na cidade e no que expressa a partir de suas formas e
lugares e ser MORFO-lógico. Um entendimento (um conhecer ... )
tão bom como outro qualquer, com a vantagem de ser muitíssimo
acessível. Os espaços urbanos são livros abertos, que a
cada instante dizem aos que estão neles não só onde estão,
mas quem são e quem são os outros. Uma jornada comum, que
implica deslocamentos, passagens por ambientes dos mais
privados aos mais públicos, ida a lugares onde se produz,
se consome, se circula, se descansa, equivale a uma carga
informativa das mais completas. A diversidade complementar
de atividades é a matéria-prima da idéia de cidade. Faz com
que se modelem determinadas expressões físicas enquanto se
estampa, se expõe e ~ transformada através delas.
., :.,' '"•• .7 .
..
(
Eis porque, quanto maior a diferenciação de lugares e de
edificações no meio urbano, melhor. Mais do que isso: tudo
o que facilite intercâmbio, mistura e reformulação é .bem-vindo.
Graças a Deus, começam a ser superados os tempos em que
pensadores e executivos consideravam que o melhor a fazer
era separar, organizar e deixar transparente. O lé-com-lé
e o cré-com-cré das tentativas de zoneamento das cidades
brasileiras ao longo do século XX só produziu empobrecimentos
e ruturas. Com os pretextos da renovação, do progresso, da
higiene, das razões do mercado, da circulação, etc. foram
quebradas continuidades,sob todos os pontos de vista (exceto
o do arbítrio de minorias) expressivas e desejáveis. Urbanistas
e arquitetos chegam ao final de quase noventa anos de
"revoluções" goradas bastante desencantados. Já perceberam
que foram coniventes. Com as técnicas e ideologias "ino adorasn
que trouxeram para ca ajudaram a destruir o i~~eC" :?e~á--e=-.
c
Entre as muitas novidades urbanísticas de que fornos após~o=- s
no início do século está a idéia da preservação de sitios e
monumentos urbanos. De repente/arquitetos e outros
intelectuais notáveis (e sonhadores ... ) descobriram que até
já tínhamos alguma história e que ela se exibia, sem proveito,
através de edificações desprezadas, caindo aos pedaços ou
(pensavam ... ) conservadas por milagre. ~ tempo de estranhos
surtos nacionalistas carregados de internacionalismo, tudo
bem encaixado no grande sonho do pais jovem, empenhado em
realizar seu grande futuro e em fixar alguma identidade que
lhe irradiasse um passado pouco valorizado. Da descoberta à
prática bastou um passo. Os pioneiros partiram para a cruzada,
bem sucedida, aliás, corno quase tudo em que se meteram.
Era um campo de idéias articuladas que visavam e lograram uma
virada de cabeças na elite e depois no conjunto da sociedade
brasileira: arte moderna, arquitetura e urbanismo racionalistas,
nova música, nova literatura e ... nova interpretação de
velharias.
·-, .'
;.... -.
.8.
As novidades fizeram boa carreira dos anos trinta para ca.
Hoje já existe alguma consciência sobre o assunto. Quando
se pensa em preservar, alguém logo aparece falando em
patrimônios e tombamentos. Também se consagrou a crença de
que cabia ao governo resguardar o que valia a pena. Como?
Através de especialistas que teriam o direito (o poder-saber)
de analisar edifícios e pronunciar vereditos. Esses técnicos
praticariilln uma espécie de ação sacerdotal. Atribuíam
caráter distintivo a um determinado edifício e logo tratavam
de sacralizá-lo frente aos respectivos contextos profanos.
Como ninguém é seguro o suficiente para inventar rituais a
partir do nada, trataram de seguir o caminho mais fácil:
impuseram as suas mãos sobre o que, por outras razões, já
estava consagrado. Não foi muito difícil declarar dignos de
preservação conventos, mosteiros, igrejas, palácios, fortalezas,
sedes de fazenda ... De raro em raro ~~a pequena co str ~ãs
antiga justificada como "curiosa": capelinhas, casas rurais,
hesitantes exceções confirmadoras da regra cômoda. Os
símbolos do poder não eram, por natureza, distintos? Não
foram propostos como contrapontos desde o começo? Não
explicitavam quem mandava? Para não comprometer a nobreza
das boas intenções com estes aspectos menos excelsos,
decidiu-se esfriá-Ios com a antigüidade. Quanto mais perto
do século XVII ou XVI melhor, porque assim as relações entre
a forma e aqueles outros códigos ficavam mais amenizadas.
Não é por outra razão que, ainda há bem pouco tempo, era
difícil provar o valor de edificacões do século XIX. No
nosso próprio século então, só o que já nascesse sob o signo
da eternidade, isto é, como expressão definitiva e irrecorrível
da transcendência do poder.
Nessas considerações não entravam dúvidas sobre o que moradores
e usuários valorizavam nos espaços que constituíam seu dia-a-dia.
Não interessavam os mecanismos criadores de significado em
•9.
sentido amplo, obrigatoriamente sociais. Também não causava
maiores preocupaçoes a escalada crescente de uniformizações
físicas e funcionais de seções inteiras dos territórios
urbanos. Os especialistas deviam achar que tamanhas
vulgaridades não estavam no seu alvo nem eram de sua alçada.
Não perceberam, talvez pelas condições do momento e por
estarem absorvidos pelas importantes tarefas que praticavam,
que ai residiam os mais insidiosos fatores. Os que levavam
as cidades a se descaracterizar e geravam decadência.
c As cidades brasileiras no século XX cumprem a função de diques.Têm de absorver e dar destino às vagas de migrantes. são
escolhidas como as sedes favoritas das aventuras do capital
e dos programas de governo. são maltratadas à exaustão e o
mau-exemplovem de cima. Sofrem grandes reviravoltas. =s
provas de desamor, observáveis em todas as partes, _ã e--ê:..-
espantar ninguém. são fáceis as explicações para q~e= =~~
for hipócrita. A ausência de surpresa não deve, poré=,
implicar desinteresse: a falta de afetividade pelos lugares
e pelo que representam é um caminho reto para a pobreza
cultural. As pessoas ficam desorientadas quando não conseguem
mais entender a" linguagem espacial que vivem no quotidiano
e que lhes diz que, neste presente particular, há passados
respeitáveis e futuros esperançosos. Ficam perigosamente
desorientadas; perdem um dos mais importantes parâmetros
morais.
A versao mais pragmática da afetividade pelo espaço - a demanda
por condições mínimas de habitabilidade - aparece bem clara
em várias cidades do Brasil. Em que pese a notoriedade
presente, o assunto não é novidade. Já no início do século XX,
no Rio de Janeiro, por exemplo, havia muitas sociedades de
amigos de bairros pobres pressionando o governo por melhorias.
No passado próximo, algumas lutas de favelados e de associações
'. I.
c
''te -' .10.
de vizinhos se fizeram notórias. Mais ainda porque aconteceram
em épocas nada propícias. Tais movimentos já mereceram
vários estudos. Relativa novidade são as organizações de
moradores de classe média e alta. Estão, junto com as
organizações dos de menos recursos, se alastrando por todo o
país. Sugerem a politização geral dos habitantes das cidades
a partir da temática dos respectivos quotidianos. O caminho
apontado se apóia em dois extremos: de um lado há uma retomada
de individualidades - os grupos sociais se reconhecem através
da identificação de um espaço que lhes serve de base comum;
do outro há uma tendência, bastante embrionária, à conquista
coletiva de direitos universais de cidadania.
Frente a tais mobilizações, aragem renovadora nas cansativas
articulações poli ticas que parecem eternas, .cabem al.qur s
questionamentos àsidéias assentadas. Na verdade, ~á ~ã~ ~
tão prioritário tombar edifícios monumentais. "in ~ sabe
o que fazer com eles e começa a ficar difícil inventar e
conservar tantos museus. Muito mais urgente é manter as
cidades vivas, oxigenar a sua água, em vez de trocá-Ia de
vez, deixando apenas os peixes e alguns enfeites fixos no
aquário. Os urbanistas começam a duvidar de ações
revolucionárias que viram tudo de pernas para o ar, mas que
deixam intocada a sua capacidade de designar, de decretar
sim ou não. Começam a entender o que Gaudi queria dizer com
"ser original é voltar às origens".
Do jeito que vem sendo praticada, a preservação é um estatuto
que consegue desagradar a todos: o governo fica responsável
por bens que não pode ou não quer conservar; os proprietários
se irritam contra as proibições, nos seus termos injusta:
de uso pleno de um direito; o público porque, com enorme
bom-senso, não consegue entender a manutenção de alguns
pardieiros, enquanto assiste à demolição inexorável e pouco
-. .11.
inteligente de conjuntos inteiros de ambientes significativos.
s~ que peçam suas opiniões, acabam com os meios de
transporte convencionais e que ainda servem bastante, para
substituí-los por·outros"modernosll e lIeficientesll logo
superados, incapazes de cumprir o prometido. Ou deixam que
sistemas ótimos se deteriorem a ponto de parecer lógica sua
erradicação. ~ bem o que aconteceu com as redes de bondes
no início dos sessenta. O exemplo dos transportes é só urna
tentativa de ilustração. Como o bonde, podem sumir a estátua
que funcionou durante décadas corno referência, as árvores,
a praça inteira. Em seu lugar (nem há mais curiosidade ou
esperanças ... ) vem sempre coisa pior ou mais feia. Assim,
vão-se embora o bar favorito, o cinema que alinhavava pessoas
e grupos diferentes, a calçada onde se realizavam as
intermediações rituais casa/rua, os edifícios onde se podia
trabalhar e mozar ao mesmo tempo. são substituídos "-a
geografia de fantasmas e nostalgias. A violência é tão
explícita que, mesmo contra todas as chances e nos momentos
menos propícios, houve gente que nao se conformou. Partiu
para a briga contra as fantasias mentirosas de renovação
urbana, enfrentou as onipotentes razões do mercado e os
arbítrios políticos, travestidos de argumentos técnicos
irrespondíveis. Em alguns casos registraram-se ganhos
heróicos, tamanha a desproporção entre os contendores. Talvez
por este filão possam se encontrar novos argumentos e novas
maneiras de preservar.
De preservar ou de renovar. Os americanos dizem urban renewal
means negro removal. Aqui a mesma frase poderia ser usada,
desde que se trocasse negro por pobre. Os planos de "renovação
urbana" não deslocam apenas os condenados pelo "crimell de
estarem ocupando lugares tornados bons demais para eles.
Carregam junto uma quantidade enorme de hábitos culturais e
de atividades econômicas, julgados tão desprezíveis que nem
i..
,,
.12.
sao levados em conta. A conseqüência são destruições em
muitos planos. Nas áreas transformadas/os antigos moradores
não encontram mais onde ficar. Pior: não têm mais chance de
localização equivalente. O bairro ou setor urbano onde foi
realizada a renovação fica privado de serviços, pequenos
negócios, oferta de trabalhadores, segurança. Tudo isto
corresponde a uma perda econômica real. Não vejo argumento
de maior peso, capaz de sensibilizar mais os que tomam
decisões. No entanto, nada. Talvez porque só se percebe e
avalia o que aconteceu depois de totalmente acontecido,
quando já não há mais volta.
(
Espaços centenários ou bicentenários são substituidos sem
parar nas cidades brasileiras. Suportavam bem todo tipo de
uso. Os novos são inferiores, mesroo no caso excepcio aI de
serem b&~ desenhados. A razão é simnles: excl e= a -~S~~=~
especializam, isolam e tornam as variações difíceis. ~á
situações mais graves, quando, onde antes havia quar~e~r-es
e bairros carregados de vitalidade, são criados apenas -az~ s
e estacionamentos.
As áreas imediaiamente periféricas aos centros das cidades
grandes foram as maiores vitimas. Teorias de urbanismo,
pouco testadas, ajudaram a implantar uma politica de terras
arrasadas. Imaginava-se que, abrindo claros, a pujança e a
valorização de núcleos hipercongestionados iriam se alastrar.
Crença ingênua, pois as leis do crescimento urbano não
correspondem ao dos vegetais no trópico. Apenas surgiram
estoques de baldios, favoráveis a complicadas obras no sistema
viário, que atrairam maior número de veiculos para o centro.
Os vazios, provocados através de demolições e alterações
completas dos tecidos urbanos, favoreceriam a expansao
imobiliária com os conseqüentes acréscimos nas densidades e
as mudanças do uso do solo.
,
•
.13 .
..
As ógicas que presidem o crescimento das cidades são outras.
O Brasil viu urna coleção de fracassos urbanos a partir de
expectativas que não se cumpriram. A violência das
intervenções criou valores concentrados muito altos. A
solvabilidade é lenta. O capital especializado não se
motivou. Preferiu investir em lugares onde externalidades
já existentes e demanda social efetiva-garantiam lucros mais
rápidos. Resultado: centros cheios de "zonas cinza" e
"brancos", perigosos e contaminadores, ótimos exportadores
de decadência para tudo o que estiver em volta~
( O Rio de Janeiro, desde o início do século, se constitui em
um triste exemplo. Sofreu tantas experiências e parece que
ninguém se dispôs a aprender com elas! A Av. Preso Vargas,
aberta nos anos trinta, ainda está cheia de terrenos
desocupados. No mesmo período, ali, ~em ju ti I a ~:~
Branco se "renovava" sem parar. Corno e por que o c :::::~as-=-e
e o paradoxo? Antes que alguém buscasse respostas, =c~a:::
desenhados e executados projetos ameaçadores_ para os ba_rr s
circunvizinhos: Lapa, Catumbi, Estácio, Cidade Nova, angue,
Zona Portuária ... Alguns desses lugares deixaram de existir,
foram apagados não so do mapa, mas também da vida afetiva,
social e econômica-de milhares de cariocas. A justificativa
não deixa de ser terrível: não prestavam mais; compensava
eliminá-los. Lá havia riquezas arquitetônicas, simbólicase
materiais (parece que estas pelo menos deviam ser mais
comoventes na nossa cultura ... ). Foram declaradas
desimportantes. No seu lugar existem agora hectares e hectares
de estacionamentos e arremedos de auto-estradas. Para nao
ficar de rodeios, e pouco. ~ nada, se comparado com o que
havia antes.
(
"--
Vinte anos de observação profissional das mais notáveis cidades
brasileiras enchem-me de melancolia. O Rio, Belo Horizonte,
~. .14.
..•.
.'r ••.•.
(
Salvador, são Paulo ... só podia ter sido assim? Deve ser a
pergunta que todos os meus compatriotas, especialistas ou
não, devem fazer, desde que gostem de cidades. Passados os
delírios do desenvolvimento, da construção do futuro a
qualquer preço, já podemos fazer o balanço dos preços que
pagamos de verdade. Um dos mais altos. foi a alienação e a
indiferença em relação aos ambientes onde se passa a vida
da maioria. Já somos 70% de brasileiros urbanizados. Destes,
dois terços têm de usar juntos uns poucos centros e
aglomerações (não mais do que cinqüenta). Aposto que, em
quase todos, houve retrocessos: o espaço está pior, a habitação
mais precária, os transportes mais deficientes, os serviços
mais elitizados ...
Considero os núcleos, as areas de maior concentração e
movimento das grandes cidades, os casos mais dra=-,á~.:..cs.
Verticalizados em alguns pontos, cheios
de remendos desfiguradores do tecido urbano, transformados
~~ desnorteantes colchas de retalhos ... e envolvidos por
escombros, vazios e bairros antigos cuja decad~ncia ~
provocada. O pior mesmo são os vazios, ruins em todos os
sentidos. At~ porque excitam os governantes/sempre ansiosos
por preenchê-los com as obras faraônicas que tanto nos
deliciam. Não sou um conservacionista rançoso e reacionário.
Isto contraditaria minhas opiniões sobre o que mant~m as
cidades vivas, sobre a mistura, a complementaridade e o mercado
de todos os intercâmbios possíveis. Cidades, com as humildes
necessidades dodia-a-dia, com as negociações milim~tricas
que têm de sustentar, podem e devem ser constituldas por
contrapontos e descontinuidades. Entendo a excepcional idade ,
a sacralidade mesma do monumento. Ele, por~m, só cumprirá
bem a sua função se resultar de um diálogo entre os que estão
no poder e a massa dos cidadãos. Tal harmonia já existiu em
determinados níveis da representatividade urbana brasileira.
,A..:
• r ~. .15 ...
c
'05 ce tros coloniais, carregados de religiosidade, igrejas
de ordens, capelas, oratórios faziam as vezes de marcos que,
co ti uando o casario homogêneo, quebravam-lhe o ritmo.
Preenchiam os vazios, conferiam dramaticidade a espaços.
Se sobrepunham a fundos que se estruturavam para e a partir
de sua diferença. Explicavam e aliviavam as monotonias da
igualdade. Perdeu-se tal ciência. Ela anda ausente das
modernas realizações do urbanismo brasileiro,' cheias de
evocações individualistas e desagregadoras. Soluções egoístas,
que apostam no divórcio e que não querem saber de nada de
diferente por perto de cada edificação, tornada um mundo
isolado, uma mensagem magnífica por si mesma. Brasília ou
a Av. Chile no Rio são assim ..
Renovação urbana so e aceitável se feita em ritmo paulati .0.
Se respeitar o timing da simbiose espaço/população/a~~'i~a~~=
compatíveis. O mesmo poderia dizer a respeito de preser:açã .
Para falar a verdade, com o respeito devido às nossas Ouro
Pretos e Paratis, prefiro ver as cidades fora do boião de
formol, correndo os riscos que, mais cedo ou mais tarde,
teremos de entender como nossos riscos. Conheço alguns casos
onde se realizaram, sem estardalhaço, os melhores sonhos dos
técnicos do Patrimônio Histórico. Como, por exemplo, em um
restinho de rua que sobrou da demolição do bairro do Catumbi
no Rio e que chamávamos de a rua azul. Aí, em duas quadras
fronteiriças, havia correres de casas que foram sendo
reconstruídas durante mais de cento e cinqüenta anos.
Edifícios térreos que foram ganhando acréscimos, águas furtadas,
segundos e terceiros andares. Em alguns pontos as fachadas
foram modificadas: frontões acrescentados, ornamentos
art-nouveau, geometrismos art-decór, pergolados modernos.
Não era incomum que nas partes superiores aparecessem estilos
ao gosto dos anos cinqüenta e sessenta. O que era
extraordinário é que os ritmos se preservaram. Onde havia
. ":-, .•.•.
• .16 .
arcos de portadas de granito embaixo, se fazia uma varanda
co arcos de alvenaria por cima. Onde corriam molduras e
platibandas, elas eram repetidas em versões atualizadas. Os
cheios e vazios eram renovados ou reproduzidos, mantidas as
proporções de antes. Sendo as paredes mais velhas revestidas
de azulejos azuis e brancos, o padrão foi perpetuado através
do tempo. Quem teve menos recursos pintou nessas cores.
Quem pôde mais usou azulejos mesmo, incluindo prosaicos
azulejos de banheiro e cozinha. O resultado é bonito,
comovente. Os moradores conseguiram manter o "espírito" de
sua rua,sem deixar nunca de lhe dar contribuições. Como o
fizeram? Vivendo nela e gostando do que possuíam. Eram
todos descendentes de açorianos, alguns há cinco ou seis
gerações no Brasil. Faziam a sua festa do Divino durante
quarenta dias, todos os anos. Memória, festa, casa, rua,
família, vida armavam um campo único de sign':'=':'caG.~=.
,
\
1!: pena que, em geral, quando se pensa em "preservar' '-a a~ea
urbana qualquer, tudo o que se invente logo implique err ~~~aY
aquela gente pobre que está lá, encardindo, incomodando.
Ninguém pensa que seções inteiras de nossas cidades não estari~
ai/em pé,se não fossem usadas por hotéizinhos, oficinas,
lojinhas, prostitutas, bares, depósitos, manufaturas, clubes
e associações, cabeças-de-porco ... Pardieiros sim, mas vivos,
funcionando. Se alguém quiser saber a diferença, deixe uma
casa nova em folha vazia, sem uso nenhum por uns cinco anos.
Virará uma ruína. Temos de agradecer, portanto, as camadas
mais pobres. Há quase duzentos anos são os maiores guardiães
do nosso patrimônio. Já é tempo de tentar retribuir-lhes o
favor, dignificando os espaços em que vivem e trabalham, sem
espoliá-los.
As soluções possíveis sao muitas. No Brasil quase todas são
apenas hipóteses. Um bom caminho seria o uso do estatuto
-. "-.
,~ ..., .17.
da oreservacao ambiental. Este instrumento seria um desafio
b >
c
para os urbanistas que deveriam buscar propostas físicas,
j rídicas e fiscais que harmonizassem sítios e edificações
preexistentes com novas obras. Usando a preservação
ambiental, teriam de levar em consideração os laços entre os
espaços e as atividades econômicas e sociais que já suportam,
antes de pensar no que se deseja para o futuro. Teriam,
portanto, de observar com cuidado como é a vida onde querem
intervir e entrar no seu fluxo. Isto significa enorme
contato com moradores e usuários, esclarecendo-os, levando-os
a descobrir e cultivar os valores do lugar, permitindo que
participem das decisões.
Uma última observação: todos sabem que nossos problemas
habitacionais são sérios. As tentativas oficiais de resol er
c.
a moradia dos mais pobres e mesmo da classe mêd í.a _e-"'~~~- a
um impasse. As cidades estão cheias de bairros ze 3 :-':'S
consti tuem um excelente estoque, na maioria dos casos 0- u so ,
Destruí-Io equivale a destruir riqueza, prática absurda e-
um país onde sequer sao produzidas casas suficientes para
atender ao acréscimo da demanda. Arquitetos e engenheiros
podem encontrar'nesse campo terreno fértil para experimentaçces.
Palacetes e mansões podem ser desmembrados internamente como
edifícios de apartaffientos. Casinhas mínimas podem ser
intercomunicadas, segundo padrões não convencionais, resultando
unidades maiores. Vilas e avenidas particulares podem ser
reabilitadas. Os pátios internos podem ser desimpedidos,
virando praças públicas ou semipúblicas, integradas ao
desenho do bairro, servindo a atividades de trabalho e de
lazer. Naturalmente juristas e financistas terão também de
contribuir para resolver os problemas de propriedade, de
empréstimos, de relações entre senhorios e inquilinos ... E os
governos municipais e estaduais terão de estar muitodispostos.
<'
(
.18.
Exist~ experiências exitosas no estrangeiro que podem servir
de exemp_o. Aqui mesmo já foram tentadas algumas.
o que disse a respeito de habitação também se aplica a outros
fins. Há usos institucionais que cabem muito bem em
edifícios ou quarteirões recuperados. Secretarias, institutos,
universidades ... Ah, se em lugar dos isolados e inviáveis
centros administrativos e cidades universitária~ de que nossas
capitais estão cheias, tivéssemos as unidades soltas,
entremeadas com outras construções em bairros velhos que
valesse a pena conservar! Desde que haja cuidado em nao criar
guetos, e ótimo conjugar muitos usos (trabalho, lazer,
residência) em uma única área. O que é de todo indesejável e
que as soluções urbanísticas sempre gerem conflito, agridam
a paisagem e a arquitetura remanescente de outras épocas e
prejudiquem a população. Que sejam, em suma , violê __ci as,
produtos bem ou mal-intencionados de insensibilida~e ~~~~~a~.
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