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\ Rio, julho de 1985 PRESERVAR NÃO t TOMBAR, RENOVAR NÃO t PÔR TUDO ABAIXO Carlos Nelson F. dos Santos GT - Estudos Urbanos: Representação e políticas pGblicas c Toda cidade resulta da agregação de trabalho humano a um suporte natural. Isto quer dizer que, uma vez fundadas, as cidades vivem se r~fazendo, jamais estão prontas. Talvez esse enfrentamento do espaço e do tempo através de. ações sociais se pudesse chamar com mais propriedade de história - de história urbana pelo menos. De todas as formas, estou quase convencido de duas coisas: c 1) - a história do homem acaba sendo enquadrada pelos espaços que inventou para que neles acontecesse a sua história. Não há maneira de pensar espaço significativo desacompanhado de história que o explique (quando se trata dos chamados "povos sem história" substitua-se história por mito ... ). Da mesma forma,é impossível imaginar história ou mito não referenciadosa espaços reais ou imaginários. 2} - desde que, há uns dez mil anos atrás, a cidade s rge rra história, coroando a revolução do neolitico, passa a ser o lugar preferencial para realização (e percepção ... ) da própria história. Há cidades que param. Deixam de se transformar através dos diálogos, nem sempre mansos, entre espaço e tempo. A rigor, não deveriam mais ser chamadas de cidades. No dizer de Oriol Bohigas, viram museus, cemitérios, cenários de turismo, o que se quiser ... Não merecem mais ser consideradas centros urbanos reais. Ele entende bem do que está falando: além de eminente arquiteto urbanista,é cidadão de Barcelona. Justo a Espanha foi um dos países onde, nas Gltimas décadas, houve mais controvérsias sobre o muito que preservar e o muito que destruir, face a novas imposições da sociedade e de suas atividades econ6micas. Os conceitos de cidade e mercado são daqueles imbricados desde a origem. Não estou me referindo ao mercado das trocas c .2. ( ateriais e da razao prática, característico do capitalismo. Este só tomou de assalto os meios urbanos e os submeteu às suas lógicas em meados do século XIX. A partir daí tudo vira mercadoria negociável por quem mais possa pagar. Não escapam a terra e, numa esfera muito mais abstrata, as diversas localizações intra-urbanas, valorizadas de forma diferente no tempo pelos vários grupos que vivem nas cidades. Meu mercado aqui e mais amplo. Para começo de história, sua meta principal é promover, através do estabelecimento de uma cadeia de obrigações de reciprocidade, o máximo de equilíbrio na estrutura social. Quer redistribuir, não acumular. Em vez da mesquinha ótica da produtividade, permite as múltiplas ordens da criatividade. Por suposto sempre foi mais idealizado que realizado, mas, através da história, com a cidade e na cidade, foi se concretizando através das práticas possíveis. Até que, por força dos indi?idua~is~os ~a c~:~_r~ desagregadora do ocidente moderno, teve seu papel a~e~~e=a~~, foi reduzido. Ficou tudo mais fácil de usar e mais e=~c~e~~e, é bem verdade. O preço pago, porém, foi a esquizofrenia de que, hoje em dia, o mundo inteiro parece atacado. . C' A cultura burguesa praticou o feito inédito: submeteu as outras que lhe eram contemporâneas. Na maioria dos càsos, destruiu-as por completo. Apropriou-se de tudo, simplificando significados complexos. O que interessava era aplainar caminhos para a existência e operação de empresas e do estado nacional ... Entidades totalizadoras que se esforçam por "descomplicar" o que podem, para melhor controlar ou melhor mandar. As cidades, indispensáveis à difusão e implantação dessas novas ordens desde o renas cimento europeu, foram suas grandes vítimas. A cidade/mercado do capitalismo está longe, porem, de existir como um absoluto. Além da principal razão de ser - produtividade de mercadorias e disciplinas - continua abrigando muitas .. .3• outras vocações. Técnicos, especialistas e o status quo de um modo geral costumam classificar essa persistência como anacrônica e desviante. são desordens frente à ordem que sonham existirá um dia, perfeita e imutável. Não percebem que são os espaços fora das convenções, as atividades econômicas fora de controle e as relações sociais fora dos modelos aceitos oficialmente que permitem e viabilizam seus ideais de ordem. Em síntese, só pode haver um positivo às custas de muitos negativos. Aqui no Brasil então, país de poucos recursos e inúmeros problemas no cenário urbano que deu um salto espetacular em noventa anos, só algumas áreas chegam mais perto do ideal. Fazem-no, entretanto, às custas de outras que espoliam. A regra ~ que nos bairroscêntricos se promova a concentração de benesses urbanísticas para uso cada vez mais exclusivo dos mais ricos e das atividades ais nobres. O resto, a maioria das pessoas e de suas açoes, vai se distribuindo como pode em espaços tanto mais pobres e desprovidos quanto mais diferenciados dos núcleos cheios de privilégios. Usei a expressao diferenciados em lugar de distantes porque o contraste se deve a fatores que podem incluir ou não descontinuidade física. Estar longe das áreas centrais e condição suficiente mas não necessária ou única de separação e segregaçao. Há favelas em muitas cidades brasileiras que, do ponto de vista da localização, ocupam posições invejáveis. Periferias e subúrbios .parecem o "habitat natural" para as camadas de menor renda e para os negócios de menor prestígio. Em muitos casos, porem, basta virar uma esquina da avenida de maior movimento para encontrar casarões velhos transformados em cabeças-de-porco, hospedarias, oficinas ... No quintal de edifícios com ótima aparência podem existir barracos e construções precárias. Isto sem falar nos bairros chamados decadentes, que costumam cercar a área mais central das .·é .... /' \ .4. maiores cidades. Extensões contínuas de casaria antigo, ruas, praças •.. que o governo costuma ver corno resíduos, corno enclaves que já não servem para nada. Daí, passa a considerá-Ias corno reservas que, assim que for possível, sera preciso pôr abaixo e reconstruir nos padrões desejáveis. Nas cidades o espaço fala. Cheios e vazios, edificações e logradouros, público e privado formam um código. As muitas articulações possíveis dos diversos elementos em cada sítio constituem urna linguagem peculiar. Da perspectiva analítica, o fenômeno não ~ muito fácil de registrar e entender. Os produtos arquitetônicos e urbanísticos por si mesmos permitem poucas precisões, são ambíguos; talvez excessivamente po~ticos. Mas, ~ aí que reside sua maior força - nessa resistência à fragmentação. Os conjuntos urbanos cost~am ter grande poder expressivo. são sínteses fortes. _es ~~a quem conhece pouco uma determinada cidade é fáci =aze::: demarcações a partir de balizamentos sumários. Hab í.t.uaz'+se a um território desconhecido implica classificar lugares: onde há confusão; onde há calma; onde se t-rabalha; onde há segurança i onde vão os ricos; onde se adquirem bens úteis ou sup~rfluos ... e" assim por diante. A síntese espacial urbana tira das relações metafóricas sua maior eficiência. Os lugares, por serem corno são, dizem de urna só vez urna porção de coisas para um monte de gente. Apresentam conformações cumulativas. Estão no presente, mas podem demonstrar corno já foi e corno, talvez, será. Assim, não só COM-formam. Também IN-formam. Disse, um pouquinho antes, que na cidade o espaço fala. Fala de quê? De uma organização econômica, sem dúvida. Esta, por sua vez, se refere a uma estruturação social que se realiza atrav~s de um modo de vida característico. A última expressão, pode, sem favor, ser substituída por cultura. A cultura ~ constituída " o,' .'f' c,: c c c . 5. por esses milhares de obviedades que todo mundo tem de saber, se deseja sobreviver, se não quiser ser um Kaspar Hauser(*), incapaz de dizer de onde veio e a que veio no ambiente em que deveria se sentir à vontade. Pois é, participar de uma cultura é "estarem casa" dentro dela. Isto cor responde a dominar uma certa quantidade de códigos classificatórios que, quanto mais gerais e abrangentes sejam,mais básicos são. Entre os conhecimentos básicos que permitem a convivência de milhares de pessoas e interesses, nos espaços tão reduzidos das cidades modernas, está a atribuição de um mínimo de significados coincidentes a uma coleção de lugares ordenados segundo convenções que, para os membros daquele grupo, são referências estruturais. Muito bem. Se, nos espaços urbanos, as formas físicas fa ~ das formas econ6micas e das sociais, n~o haverá d'f:c~:-a~es de tradução? Termos irredutíveis, tempos e objeti -os diversos, divergentes até? Há sim. A melodia não e harmônica, nem cantam todos no mesmo diapasão. De um Cill po para outro existeIn superposições, é verdade, mas são abundantes os desencontros e as autonomias. Creio mesmo que nessas fal tas de pr ec ís ào o contradi tórias se estabeleçam os domínios de um quarto código, indispensável para que nas cidades coexistam, com o mínimo de desgaste(os outros três. As falhas, as brechas, os brancos são o território dos entendimentos políticos. Nosso, modelo urbano - a polis ocidental dos cidadãos e de suas assembléias representativas e equalizadoras - exige que existam. Eles servem para explicar o ininteligível, (*) célebre personagem que surge na sociedade alemã do século XIX, já adulto,sem ter sido devidamente socializado. A procedência desconhecida e a falta de domínio dos códigos de comportamento criam em torno dele um clima insuperável de desconfiança e mal-estar. c - - G..-.. '•. .6 . conciliam a intolerância das óticas exclusivas, tornam a ambigüidade útil. Mais do que isso:. fazem dela um instrumento de acertos. Quando o coro de mil vozes consegue o encontro da assembl~ia, tenta se afinar, se ajeita para dar,- chance aos timbres mais fracos, respeitando as limitações e racionalidades da maioria e permitindo os solos na hora certa. Há outras possibilidades tamb~m: criar uma falsa e fácil disciplina da exclusão; fazer com que quase todos se calem e conceder o privil~gio de expressão a um grupo que pode tudo. Quando esse excesso de autoritarismo acontece, ~ raro que os resultados sejam bons para as cidades, não importando a beleza ou o alcance das vozes. Já diziam os homens da idade-média que o ar urbano era bom porque nele se respirava liberdade. Percebiam bem duas coisas naqueles tempos: 1) - que a melhor maneira de viver consistia em reafir ar as semelhanças e corr.p.reend er as diferenças e __con í - nt, ::;-.:.e equivalia a trocar experiências); 2) - que a liber a-e es~a-a embutida nas ações de todos os dias e que nelas se re'is~=a-a. ( Pensar na cidade e no que expressa a partir de suas formas e lugares e ser MORFO-lógico. Um entendimento (um conhecer ... ) tão bom como outro qualquer, com a vantagem de ser muitíssimo acessível. Os espaços urbanos são livros abertos, que a cada instante dizem aos que estão neles não só onde estão, mas quem são e quem são os outros. Uma jornada comum, que implica deslocamentos, passagens por ambientes dos mais privados aos mais públicos, ida a lugares onde se produz, se consome, se circula, se descansa, equivale a uma carga informativa das mais completas. A diversidade complementar de atividades é a matéria-prima da idéia de cidade. Faz com que se modelem determinadas expressões físicas enquanto se estampa, se expõe e ~ transformada através delas. ., :.,' '"•• .7 . .. ( Eis porque, quanto maior a diferenciação de lugares e de edificações no meio urbano, melhor. Mais do que isso: tudo o que facilite intercâmbio, mistura e reformulação é .bem-vindo. Graças a Deus, começam a ser superados os tempos em que pensadores e executivos consideravam que o melhor a fazer era separar, organizar e deixar transparente. O lé-com-lé e o cré-com-cré das tentativas de zoneamento das cidades brasileiras ao longo do século XX só produziu empobrecimentos e ruturas. Com os pretextos da renovação, do progresso, da higiene, das razões do mercado, da circulação, etc. foram quebradas continuidades,sob todos os pontos de vista (exceto o do arbítrio de minorias) expressivas e desejáveis. Urbanistas e arquitetos chegam ao final de quase noventa anos de "revoluções" goradas bastante desencantados. Já perceberam que foram coniventes. Com as técnicas e ideologias "ino adorasn que trouxeram para ca ajudaram a destruir o i~~eC" :?e~á--e=-. c Entre as muitas novidades urbanísticas de que fornos após~o=- s no início do século está a idéia da preservação de sitios e monumentos urbanos. De repente/arquitetos e outros intelectuais notáveis (e sonhadores ... ) descobriram que até já tínhamos alguma história e que ela se exibia, sem proveito, através de edificações desprezadas, caindo aos pedaços ou (pensavam ... ) conservadas por milagre. ~ tempo de estranhos surtos nacionalistas carregados de internacionalismo, tudo bem encaixado no grande sonho do pais jovem, empenhado em realizar seu grande futuro e em fixar alguma identidade que lhe irradiasse um passado pouco valorizado. Da descoberta à prática bastou um passo. Os pioneiros partiram para a cruzada, bem sucedida, aliás, corno quase tudo em que se meteram. Era um campo de idéias articuladas que visavam e lograram uma virada de cabeças na elite e depois no conjunto da sociedade brasileira: arte moderna, arquitetura e urbanismo racionalistas, nova música, nova literatura e ... nova interpretação de velharias. ·-, .' ;.... -. .8. As novidades fizeram boa carreira dos anos trinta para ca. Hoje já existe alguma consciência sobre o assunto. Quando se pensa em preservar, alguém logo aparece falando em patrimônios e tombamentos. Também se consagrou a crença de que cabia ao governo resguardar o que valia a pena. Como? Através de especialistas que teriam o direito (o poder-saber) de analisar edifícios e pronunciar vereditos. Esses técnicos praticariilln uma espécie de ação sacerdotal. Atribuíam caráter distintivo a um determinado edifício e logo tratavam de sacralizá-lo frente aos respectivos contextos profanos. Como ninguém é seguro o suficiente para inventar rituais a partir do nada, trataram de seguir o caminho mais fácil: impuseram as suas mãos sobre o que, por outras razões, já estava consagrado. Não foi muito difícil declarar dignos de preservação conventos, mosteiros, igrejas, palácios, fortalezas, sedes de fazenda ... De raro em raro ~~a pequena co str ~ãs antiga justificada como "curiosa": capelinhas, casas rurais, hesitantes exceções confirmadoras da regra cômoda. Os símbolos do poder não eram, por natureza, distintos? Não foram propostos como contrapontos desde o começo? Não explicitavam quem mandava? Para não comprometer a nobreza das boas intenções com estes aspectos menos excelsos, decidiu-se esfriá-Ios com a antigüidade. Quanto mais perto do século XVII ou XVI melhor, porque assim as relações entre a forma e aqueles outros códigos ficavam mais amenizadas. Não é por outra razão que, ainda há bem pouco tempo, era difícil provar o valor de edificacões do século XIX. No nosso próprio século então, só o que já nascesse sob o signo da eternidade, isto é, como expressão definitiva e irrecorrível da transcendência do poder. Nessas considerações não entravam dúvidas sobre o que moradores e usuários valorizavam nos espaços que constituíam seu dia-a-dia. Não interessavam os mecanismos criadores de significado em •9. sentido amplo, obrigatoriamente sociais. Também não causava maiores preocupaçoes a escalada crescente de uniformizações físicas e funcionais de seções inteiras dos territórios urbanos. Os especialistas deviam achar que tamanhas vulgaridades não estavam no seu alvo nem eram de sua alçada. Não perceberam, talvez pelas condições do momento e por estarem absorvidos pelas importantes tarefas que praticavam, que ai residiam os mais insidiosos fatores. Os que levavam as cidades a se descaracterizar e geravam decadência. c As cidades brasileiras no século XX cumprem a função de diques.Têm de absorver e dar destino às vagas de migrantes. são escolhidas como as sedes favoritas das aventuras do capital e dos programas de governo. são maltratadas à exaustão e o mau-exemplovem de cima. Sofrem grandes reviravoltas. =s provas de desamor, observáveis em todas as partes, _ã e--ê:..- espantar ninguém. são fáceis as explicações para q~e= =~~ for hipócrita. A ausência de surpresa não deve, poré=, implicar desinteresse: a falta de afetividade pelos lugares e pelo que representam é um caminho reto para a pobreza cultural. As pessoas ficam desorientadas quando não conseguem mais entender a" linguagem espacial que vivem no quotidiano e que lhes diz que, neste presente particular, há passados respeitáveis e futuros esperançosos. Ficam perigosamente desorientadas; perdem um dos mais importantes parâmetros morais. A versao mais pragmática da afetividade pelo espaço - a demanda por condições mínimas de habitabilidade - aparece bem clara em várias cidades do Brasil. Em que pese a notoriedade presente, o assunto não é novidade. Já no início do século XX, no Rio de Janeiro, por exemplo, havia muitas sociedades de amigos de bairros pobres pressionando o governo por melhorias. No passado próximo, algumas lutas de favelados e de associações '. I. c ''te -' .10. de vizinhos se fizeram notórias. Mais ainda porque aconteceram em épocas nada propícias. Tais movimentos já mereceram vários estudos. Relativa novidade são as organizações de moradores de classe média e alta. Estão, junto com as organizações dos de menos recursos, se alastrando por todo o país. Sugerem a politização geral dos habitantes das cidades a partir da temática dos respectivos quotidianos. O caminho apontado se apóia em dois extremos: de um lado há uma retomada de individualidades - os grupos sociais se reconhecem através da identificação de um espaço que lhes serve de base comum; do outro há uma tendência, bastante embrionária, à conquista coletiva de direitos universais de cidadania. Frente a tais mobilizações, aragem renovadora nas cansativas articulações poli ticas que parecem eternas, .cabem al.qur s questionamentos àsidéias assentadas. Na verdade, ~á ~ã~ ~ tão prioritário tombar edifícios monumentais. "in ~ sabe o que fazer com eles e começa a ficar difícil inventar e conservar tantos museus. Muito mais urgente é manter as cidades vivas, oxigenar a sua água, em vez de trocá-Ia de vez, deixando apenas os peixes e alguns enfeites fixos no aquário. Os urbanistas começam a duvidar de ações revolucionárias que viram tudo de pernas para o ar, mas que deixam intocada a sua capacidade de designar, de decretar sim ou não. Começam a entender o que Gaudi queria dizer com "ser original é voltar às origens". Do jeito que vem sendo praticada, a preservação é um estatuto que consegue desagradar a todos: o governo fica responsável por bens que não pode ou não quer conservar; os proprietários se irritam contra as proibições, nos seus termos injusta: de uso pleno de um direito; o público porque, com enorme bom-senso, não consegue entender a manutenção de alguns pardieiros, enquanto assiste à demolição inexorável e pouco -. .11. inteligente de conjuntos inteiros de ambientes significativos. s~ que peçam suas opiniões, acabam com os meios de transporte convencionais e que ainda servem bastante, para substituí-los por·outros"modernosll e lIeficientesll logo superados, incapazes de cumprir o prometido. Ou deixam que sistemas ótimos se deteriorem a ponto de parecer lógica sua erradicação. ~ bem o que aconteceu com as redes de bondes no início dos sessenta. O exemplo dos transportes é só urna tentativa de ilustração. Como o bonde, podem sumir a estátua que funcionou durante décadas corno referência, as árvores, a praça inteira. Em seu lugar (nem há mais curiosidade ou esperanças ... ) vem sempre coisa pior ou mais feia. Assim, vão-se embora o bar favorito, o cinema que alinhavava pessoas e grupos diferentes, a calçada onde se realizavam as intermediações rituais casa/rua, os edifícios onde se podia trabalhar e mozar ao mesmo tempo. são substituídos "-a geografia de fantasmas e nostalgias. A violência é tão explícita que, mesmo contra todas as chances e nos momentos menos propícios, houve gente que nao se conformou. Partiu para a briga contra as fantasias mentirosas de renovação urbana, enfrentou as onipotentes razões do mercado e os arbítrios políticos, travestidos de argumentos técnicos irrespondíveis. Em alguns casos registraram-se ganhos heróicos, tamanha a desproporção entre os contendores. Talvez por este filão possam se encontrar novos argumentos e novas maneiras de preservar. De preservar ou de renovar. Os americanos dizem urban renewal means negro removal. Aqui a mesma frase poderia ser usada, desde que se trocasse negro por pobre. Os planos de "renovação urbana" não deslocam apenas os condenados pelo "crimell de estarem ocupando lugares tornados bons demais para eles. Carregam junto uma quantidade enorme de hábitos culturais e de atividades econômicas, julgados tão desprezíveis que nem i.. ,, .12. sao levados em conta. A conseqüência são destruições em muitos planos. Nas áreas transformadas/os antigos moradores não encontram mais onde ficar. Pior: não têm mais chance de localização equivalente. O bairro ou setor urbano onde foi realizada a renovação fica privado de serviços, pequenos negócios, oferta de trabalhadores, segurança. Tudo isto corresponde a uma perda econômica real. Não vejo argumento de maior peso, capaz de sensibilizar mais os que tomam decisões. No entanto, nada. Talvez porque só se percebe e avalia o que aconteceu depois de totalmente acontecido, quando já não há mais volta. ( Espaços centenários ou bicentenários são substituidos sem parar nas cidades brasileiras. Suportavam bem todo tipo de uso. Os novos são inferiores, mesroo no caso excepcio aI de serem b&~ desenhados. A razão é simnles: excl e= a -~S~~=~ especializam, isolam e tornam as variações difíceis. ~á situações mais graves, quando, onde antes havia quar~e~r-es e bairros carregados de vitalidade, são criados apenas -az~ s e estacionamentos. As áreas imediaiamente periféricas aos centros das cidades grandes foram as maiores vitimas. Teorias de urbanismo, pouco testadas, ajudaram a implantar uma politica de terras arrasadas. Imaginava-se que, abrindo claros, a pujança e a valorização de núcleos hipercongestionados iriam se alastrar. Crença ingênua, pois as leis do crescimento urbano não correspondem ao dos vegetais no trópico. Apenas surgiram estoques de baldios, favoráveis a complicadas obras no sistema viário, que atrairam maior número de veiculos para o centro. Os vazios, provocados através de demolições e alterações completas dos tecidos urbanos, favoreceriam a expansao imobiliária com os conseqüentes acréscimos nas densidades e as mudanças do uso do solo. , • .13 . .. As ógicas que presidem o crescimento das cidades são outras. O Brasil viu urna coleção de fracassos urbanos a partir de expectativas que não se cumpriram. A violência das intervenções criou valores concentrados muito altos. A solvabilidade é lenta. O capital especializado não se motivou. Preferiu investir em lugares onde externalidades já existentes e demanda social efetiva-garantiam lucros mais rápidos. Resultado: centros cheios de "zonas cinza" e "brancos", perigosos e contaminadores, ótimos exportadores de decadência para tudo o que estiver em volta~ ( O Rio de Janeiro, desde o início do século, se constitui em um triste exemplo. Sofreu tantas experiências e parece que ninguém se dispôs a aprender com elas! A Av. Preso Vargas, aberta nos anos trinta, ainda está cheia de terrenos desocupados. No mesmo período, ali, ~em ju ti I a ~:~ Branco se "renovava" sem parar. Corno e por que o c :::::~as-=-e e o paradoxo? Antes que alguém buscasse respostas, =c~a::: desenhados e executados projetos ameaçadores_ para os ba_rr s circunvizinhos: Lapa, Catumbi, Estácio, Cidade Nova, angue, Zona Portuária ... Alguns desses lugares deixaram de existir, foram apagados não so do mapa, mas também da vida afetiva, social e econômica-de milhares de cariocas. A justificativa não deixa de ser terrível: não prestavam mais; compensava eliminá-los. Lá havia riquezas arquitetônicas, simbólicase materiais (parece que estas pelo menos deviam ser mais comoventes na nossa cultura ... ). Foram declaradas desimportantes. No seu lugar existem agora hectares e hectares de estacionamentos e arremedos de auto-estradas. Para nao ficar de rodeios, e pouco. ~ nada, se comparado com o que havia antes. ( "-- Vinte anos de observação profissional das mais notáveis cidades brasileiras enchem-me de melancolia. O Rio, Belo Horizonte, ~. .14. ..•. .'r ••.•. ( Salvador, são Paulo ... só podia ter sido assim? Deve ser a pergunta que todos os meus compatriotas, especialistas ou não, devem fazer, desde que gostem de cidades. Passados os delírios do desenvolvimento, da construção do futuro a qualquer preço, já podemos fazer o balanço dos preços que pagamos de verdade. Um dos mais altos. foi a alienação e a indiferença em relação aos ambientes onde se passa a vida da maioria. Já somos 70% de brasileiros urbanizados. Destes, dois terços têm de usar juntos uns poucos centros e aglomerações (não mais do que cinqüenta). Aposto que, em quase todos, houve retrocessos: o espaço está pior, a habitação mais precária, os transportes mais deficientes, os serviços mais elitizados ... Considero os núcleos, as areas de maior concentração e movimento das grandes cidades, os casos mais dra=-,á~.:..cs. Verticalizados em alguns pontos, cheios de remendos desfiguradores do tecido urbano, transformados ~~ desnorteantes colchas de retalhos ... e envolvidos por escombros, vazios e bairros antigos cuja decad~ncia ~ provocada. O pior mesmo são os vazios, ruins em todos os sentidos. At~ porque excitam os governantes/sempre ansiosos por preenchê-los com as obras faraônicas que tanto nos deliciam. Não sou um conservacionista rançoso e reacionário. Isto contraditaria minhas opiniões sobre o que mant~m as cidades vivas, sobre a mistura, a complementaridade e o mercado de todos os intercâmbios possíveis. Cidades, com as humildes necessidades dodia-a-dia, com as negociações milim~tricas que têm de sustentar, podem e devem ser constituldas por contrapontos e descontinuidades. Entendo a excepcional idade , a sacralidade mesma do monumento. Ele, por~m, só cumprirá bem a sua função se resultar de um diálogo entre os que estão no poder e a massa dos cidadãos. Tal harmonia já existiu em determinados níveis da representatividade urbana brasileira. ,A..: • r ~. .15 ... c '05 ce tros coloniais, carregados de religiosidade, igrejas de ordens, capelas, oratórios faziam as vezes de marcos que, co ti uando o casario homogêneo, quebravam-lhe o ritmo. Preenchiam os vazios, conferiam dramaticidade a espaços. Se sobrepunham a fundos que se estruturavam para e a partir de sua diferença. Explicavam e aliviavam as monotonias da igualdade. Perdeu-se tal ciência. Ela anda ausente das modernas realizações do urbanismo brasileiro,' cheias de evocações individualistas e desagregadoras. Soluções egoístas, que apostam no divórcio e que não querem saber de nada de diferente por perto de cada edificação, tornada um mundo isolado, uma mensagem magnífica por si mesma. Brasília ou a Av. Chile no Rio são assim .. Renovação urbana so e aceitável se feita em ritmo paulati .0. Se respeitar o timing da simbiose espaço/população/a~~'i~a~~= compatíveis. O mesmo poderia dizer a respeito de preser:açã . Para falar a verdade, com o respeito devido às nossas Ouro Pretos e Paratis, prefiro ver as cidades fora do boião de formol, correndo os riscos que, mais cedo ou mais tarde, teremos de entender como nossos riscos. Conheço alguns casos onde se realizaram, sem estardalhaço, os melhores sonhos dos técnicos do Patrimônio Histórico. Como, por exemplo, em um restinho de rua que sobrou da demolição do bairro do Catumbi no Rio e que chamávamos de a rua azul. Aí, em duas quadras fronteiriças, havia correres de casas que foram sendo reconstruídas durante mais de cento e cinqüenta anos. Edifícios térreos que foram ganhando acréscimos, águas furtadas, segundos e terceiros andares. Em alguns pontos as fachadas foram modificadas: frontões acrescentados, ornamentos art-nouveau, geometrismos art-decór, pergolados modernos. Não era incomum que nas partes superiores aparecessem estilos ao gosto dos anos cinqüenta e sessenta. O que era extraordinário é que os ritmos se preservaram. Onde havia . ":-, .•.•. • .16 . arcos de portadas de granito embaixo, se fazia uma varanda co arcos de alvenaria por cima. Onde corriam molduras e platibandas, elas eram repetidas em versões atualizadas. Os cheios e vazios eram renovados ou reproduzidos, mantidas as proporções de antes. Sendo as paredes mais velhas revestidas de azulejos azuis e brancos, o padrão foi perpetuado através do tempo. Quem teve menos recursos pintou nessas cores. Quem pôde mais usou azulejos mesmo, incluindo prosaicos azulejos de banheiro e cozinha. O resultado é bonito, comovente. Os moradores conseguiram manter o "espírito" de sua rua,sem deixar nunca de lhe dar contribuições. Como o fizeram? Vivendo nela e gostando do que possuíam. Eram todos descendentes de açorianos, alguns há cinco ou seis gerações no Brasil. Faziam a sua festa do Divino durante quarenta dias, todos os anos. Memória, festa, casa, rua, família, vida armavam um campo único de sign':'=':'caG.~=. , \ 1!: pena que, em geral, quando se pensa em "preservar' '-a a~ea urbana qualquer, tudo o que se invente logo implique err ~~~aY aquela gente pobre que está lá, encardindo, incomodando. Ninguém pensa que seções inteiras de nossas cidades não estari~ ai/em pé,se não fossem usadas por hotéizinhos, oficinas, lojinhas, prostitutas, bares, depósitos, manufaturas, clubes e associações, cabeças-de-porco ... Pardieiros sim, mas vivos, funcionando. Se alguém quiser saber a diferença, deixe uma casa nova em folha vazia, sem uso nenhum por uns cinco anos. Virará uma ruína. Temos de agradecer, portanto, as camadas mais pobres. Há quase duzentos anos são os maiores guardiães do nosso patrimônio. Já é tempo de tentar retribuir-lhes o favor, dignificando os espaços em que vivem e trabalham, sem espoliá-los. As soluções possíveis sao muitas. No Brasil quase todas são apenas hipóteses. Um bom caminho seria o uso do estatuto -. "-. ,~ ..., .17. da oreservacao ambiental. Este instrumento seria um desafio b > c para os urbanistas que deveriam buscar propostas físicas, j rídicas e fiscais que harmonizassem sítios e edificações preexistentes com novas obras. Usando a preservação ambiental, teriam de levar em consideração os laços entre os espaços e as atividades econômicas e sociais que já suportam, antes de pensar no que se deseja para o futuro. Teriam, portanto, de observar com cuidado como é a vida onde querem intervir e entrar no seu fluxo. Isto significa enorme contato com moradores e usuários, esclarecendo-os, levando-os a descobrir e cultivar os valores do lugar, permitindo que participem das decisões. Uma última observação: todos sabem que nossos problemas habitacionais são sérios. As tentativas oficiais de resol er c. a moradia dos mais pobres e mesmo da classe mêd í.a _e-"'~~~- a um impasse. As cidades estão cheias de bairros ze 3 :-':'S consti tuem um excelente estoque, na maioria dos casos 0- u so , Destruí-Io equivale a destruir riqueza, prática absurda e- um país onde sequer sao produzidas casas suficientes para atender ao acréscimo da demanda. Arquitetos e engenheiros podem encontrar'nesse campo terreno fértil para experimentaçces. Palacetes e mansões podem ser desmembrados internamente como edifícios de apartaffientos. Casinhas mínimas podem ser intercomunicadas, segundo padrões não convencionais, resultando unidades maiores. Vilas e avenidas particulares podem ser reabilitadas. Os pátios internos podem ser desimpedidos, virando praças públicas ou semipúblicas, integradas ao desenho do bairro, servindo a atividades de trabalho e de lazer. Naturalmente juristas e financistas terão também de contribuir para resolver os problemas de propriedade, de empréstimos, de relações entre senhorios e inquilinos ... E os governos municipais e estaduais terão de estar muitodispostos. <' ( .18. Exist~ experiências exitosas no estrangeiro que podem servir de exemp_o. Aqui mesmo já foram tentadas algumas. o que disse a respeito de habitação também se aplica a outros fins. Há usos institucionais que cabem muito bem em edifícios ou quarteirões recuperados. Secretarias, institutos, universidades ... Ah, se em lugar dos isolados e inviáveis centros administrativos e cidades universitária~ de que nossas capitais estão cheias, tivéssemos as unidades soltas, entremeadas com outras construções em bairros velhos que valesse a pena conservar! Desde que haja cuidado em nao criar guetos, e ótimo conjugar muitos usos (trabalho, lazer, residência) em uma única área. O que é de todo indesejável e que as soluções urbanísticas sempre gerem conflito, agridam a paisagem e a arquitetura remanescente de outras épocas e prejudiquem a população. Que sejam, em suma , violê __ci as, produtos bem ou mal-intencionados de insensibilida~e ~~~~~a~. página branco para correçõesb.pdf Untitled
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