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O conceito de angústia (Vozes de Bolso)

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CDD-198.9
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
 (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Kierkegaard, Søren
 O conceito de angústia : uma simples reflexão psicológico-
demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado
hereditário / Søren Aabye Kierkegaard ; tradução de Álvaro Luiz
Montenegro Valls. – Petrópolis, RJ: Vozes ; 2017. (Vozes de Bolso)
 
Título original: Begrebet Angest
 ISBN 978-85-326-5537-0 – Edição digital
 
1. Angústia – Aspectos religiosos 2. Cristianismo – História –
Século 19 3. Filosofia dinamarquesa 4. Kierkegaard, Søren, 1813-
1855. O conceito de angústia 5. Pecado original – História das
doutrinas – Século 19 6. Psicologia religiosa – História – Século 19
 I. Título. II. Série.
 
09-13298
Índices para catálogo sistemático:
 1. Kierkegaard : Filosofia dinamarquesa 198.9
Título original em dinamarquês: Begrebet Angest
 
© 2010, Editora Vozes Ltda.
 Rua Frei Luís, 100
 25689-900 Petrópolis, RJ
 www.vozes.com.br
 Brasil
 
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou
transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão
escrita da editora.
 
CONSELHO EDITORIAL
 
Diretor
 Gilberto Gonçalves Garcia
 
Editores
 Aline dos Santos Carneiro
 Edrian Josué Pasini
 Marilac Loraine Oleniki
 Welder Lancieri Marchini
 
Conselheiros
 Francisco Morás
 Leonardo A.R.T. dos Santos
 Ludovico Garmus
 Teobaldo Heidemann
 Volney J. Berkenbrock
 
Secretário executivo
 João Batista Kreuch
 _______________________
 
Diagramação: AG.SR Desenv. Gráfico
 Capa: visiva.com.br
 
 
ISBN 978-85-326-5537-0 – Edição digital
 
 
Editado conforme o novo acordo ortográfico.
O tempo das distinções passou, o 
 Sistema o superou. Quem ainda em 
 nossos dias o ama é um tipo raro, cuja 
 alma se prende a algo há muito tempo já 
 desaparecido. Pode ser que seja assim, 
 todavia Sócrates continua a ser quem ele 
 foi, o sábio simples, graças à sua 
 singular distinção, que ele próprio
 enunciava e realizava perfeitamente, e 
 
que somente o excêntrico Hamann
[1]
, dois 
 milênios depois, retomou com 
 admiração: “pois Sócrates foi grande
 ‘porque distinguia entre aquilo que ele 
 compreendia e aquilo que ele não
 compreendia’”.
[1]. Johann Georg Hamann (1730-1788), filósofo de Königsberg. Citação de Sokratische
Denkwürdigkeiten (1759).
Ao falecido 
 
Professor Poul Martin Møller
[2]
,
 
amante feliz do mundo grego,
 admirador de Homero,
 cúmplice de Sócrates,
 
intérprete de Aristóteles[3] –
 alegria da Dinamarca em sua Alegria pela
Dinamarca
[4]
,
 mesmo tendo “partido para longe”
 
sempre “recordado no verão dinamarquês”[5]
–
 minha admiração, minha saudade,
 
está dedicado
 este escrito.
[2]. P.M. Møller (1794-1838), poeta, professor e tradutor, foi professor de moral de SK na
Universidade de Copenhague e pode ser considerado seu grande amigo, mentor e
inspirador [N.T.].
[3]. Moller traduziu o De Anima de Aristóteles. – Nos Diários (Pap. VB 46) a dedicatória
ainda acrescentava aqui as afetuosas expressões: “min Ungdoms Begeistring; min Begyndens
Fortrolige; min tabte Ven; min savnede Lœser”, ou seja: “entusiasmo de minha juventude;
confidente de meus começos; meu amigo perdido; leitor de quem sinto falta”, expressões
que estariam deslocadas na pena de um pseudônimo [N.T.].
[4]. Alusão ao poema de Møller: “Glœde over Danmark” [N.T.].
[5]. No esboço inicial que se encontra nos Diários (Pap. VB 46), a próxima linha da
dedicatória apresentava outra redação, extremamente pessoal, que SK guardou para si, ao
responsabilizar o pseudônimo Vigilius Haufniensis pelo livro: “min Opvaagnens mægtige
Basune; min Stemnings forønskede Gjenstand”, ou seja: “poderosa trombeta do meu despertar;
objeto desejado de meu ânimo”. Cf. a observação final da n. 3 [N.T.].
Sumário
Prefácio
Introdução – Em que sentido o objeto da nossa ponderação é uma tarefa que interessa à
Psicologia, e em que sentido ele, depois de ter sido a tarefa e o interesse da Psicologia,
aponta justamente para a Dogmática
Caput I Angústia como pressuposição do pecado hereditário e como explicando de modo
retroativo, na volta à sua origem, o pecado hereditário
§1 Indicações históricas a respeito do conceito de “pecado hereditário”
§2 O conceito de “o primeiro pecado”
§3 O conceito de inocência
§4 O conceito de queda
§5 O conceito de angústia
§6 Angústia como pressuposição do pecado hereditário e como explicando de modo
retroativo, na volta à sua origem, o pecado hereditário
Caput II Angústia na progressão do pecado hereditário
§1 Angústia objetiva
§2 Angústia subjetiva
Caput III Angústia como consequência deste pecado que consiste na ausência da
consciência do pecado
§1 Angústia da falta de espírito
§2 Angústia dialeticamente determinada no sentido de destino
§3 Angústia dialeticamente no sentido de culpa
Caput IV Angústia do pecado ou angústia como consequência do pecado no indivíduo
§1 Angústia diante do mal
§ 2 Angústia diante do bem (o demoníaco)
Caput V Angústia como o que salva pela fé
Posfácio
Prefácio
Segundo o meu conceito, quem quiser escrever um livro fará bem
em pensar de vários modos a respeito do tema sobre o qual quer
escrever. Também não fará mal se, tanto quanto possível, tomar
conhecimento do que já foi escrito sobre o mesmo tema. Se por
acaso no caminho encontrar um indivíduo[6] que já tratou exaustiva e
satisfatoriamente um ou outro aspecto, fará bem em se alegrar, assim
como o amigo do noivo o faz quando está presente e ouve a voz do
noivo. Se fizer isto no maior silêncio e com a euforia apaixonada do
enamorado que busca sempre a solidão, nada mais lhe faltará. Que
escreva, pois, o livro de uma penada, como o pássaro canta sua
canção, e, se houver alguém que daí retira proveito ou alegria,
quanto mais, tanto melhor; que o publique, então, sem cuidados e
preocupações, sem atribuir-se tanta importância, como se estivesse
dando uma conclusão para todas as coisas ou como se todas as
gerações da terra fossem abençoadas com esse livro. Cada geração
tem sua tarefa e não precisa incomodar-se tão extraordinariamente,
tentando ser tudo para as anteriores e as posteriores. A cada
indivíduo na geração, tal como a cada dia, basta o seu tormento, e
basta que cada um cuide de si mesmo, e não é preciso abranger toda
a contemporaneidade na sua preocupação patriarcal, nem fazer
iniciar uma nova era e nova época com esse livro, e menos ainda
com os fogos de Ano-Novo de seus votos ou as promessas de longo
prazo que a sua pena sugere, ou com a indicação de suas garantias
baseadas em valores duvidosos. Nem todo aquele que tem as costas
encurvadas é por isso um Atlas, ou se tornou um por carregar um
mundo; nem todo o que diz: Senhor! Senhor!, entra só por isso no
Reino dos Céus; nem todo o que se oferece como fiador de toda a
sua época prova, com isso, que é uma pessoa de confiança capaz de
avalizar por si mesmo; nem todo o que exclama: Bravo, schwere
Noth, Gottsblitz bravíssimo, já compreendeu, só por isso, a si mesmo
e sua admiração.
No que toca à minha humilde pessoa, confesso com toda a
sinceridade que como autor sou um rei sem terra, mas também, em
temor e muito tremor, um autor sem quaisquer pretensões. Se a
alguma nobre inveja ou zelosa crítica parecer uma demasia que eu
use um nome em latim, então com alegria passarei a chamar-me
Christen Madsen[7], desejando acima de tudo ser considerado como
um leigo que decerto especula, mas no entanto encontra-se bem fora
da especulação, embora eu seja grande devoto em minha crença na
autoridade, tal como o romano era tolerante em seu temor a Deus.
No que toca à autoridade humana, sou um adorador de fetiches, e
adoro com igual piedade seja quem for, desde que me seja bem
anunciado com rufar de tambores que é a este que eu devo adorar,
que é ele a autoridade e o Imprimatur este ano. A decisão está acima
de meu entendimento, querela aconteça por sorteio ou por votação
com bolas brancas e pretas, quer a dignidade faça rodízio e o
indivíduo ocupe o cargo como autoridade da mesma forma que um
representante dos cidadãos periodicamente faz parte de uma
comissão de arbitragem.
Nada mais tenho a acrescentar, a não ser desejar a cada um que
compartilha de meus pontos de vista, assim como a cada um que não
compartilha deles, a cada um que há de ler este livro, assim como
àquele a quem bastará o prefácio – um bem-intencionado Passe bem!
Copenhague. 
 Mui respeitosamente, 
 Vigilius Haufniensis
[6]. en Enkelt [N.T.].
[7]. Madsen foi um carpinteiro, pregador leigo, líder popular do movimento do despertar
religioso, preso em 1821 por seus discursos fortes e suas críticas à Igreja. Morreu na prisão
em 1829, antes do veredicto que o condenou a uma multa [N.T.].
Introdução
Em que sentido o objeto da nossa ponderação é
uma tarefa que interessa à Psicologia, e em que
sentido ele, depois de ter sido a tarefa e o
interesse da Psicologia, aponta justamente para a
Dogmática Que cada problema científico tenha,
dentro do vasto âmbito da ciência, seu lugar
determinado, sua medida e seus limites e,
justamente por isso, sua harmônica ressonância
no conjunto, sua legítima consonância naquilo
que o todo exprime, essa noção é não apenas
um pium desiderium[8] a enobrecer o homem da
ciência com uma exaltação entusiasta ou
melancólica, é não só um dever sagrado que o
amarra ao serviço da totalidade e o força a
renunciar à anarquia e ao prazer de,
aventurosamente, perder de vista a terra firme;
mas serve ao mesmo tempo ao interesse de toda
consideração mais específica, porque basta uma
delas esquecer o lugar a que pertence, para
imediatamente – o que a ambiguidade da
linguagem costuma exprimir com segura justeza
pela mesma palavra – esquecer-se de si própria,
tornar-se uma outra, adquirir a suspeitosa
aptidão de poder tornar-se não importa o quê.
Por falta de chamada à ordem científica, por não
haver o cuidado de se impedir que os problemas
singulares[9] passem a acotovelar-se uns com os
outros para chegar primeiro num baile de
máscaras, alcança-se, às vezes, um certo brilho
do espírito, surpreende-se às vezes os outros
dando a acreditar que já se captou aquilo de
que, no entanto, ainda se está muito longe,
produz-se às vezes uma concordância com
palavras ocas sobre realidades diferentes. Este
ganho, entretanto, cedo ou tarde tira desforra,
assim como todas as aquisições ilegais, que não
garantem a posse nem no domínio civil nem no
científico.
Assim, quando se intitula a última sessão da Lógica: “a
Realidade”[10], obtém-se com isso a vantagem de parecer que, já na
Lógica, atingiu-se o que há de mais alto ou, se preferirmos, o mais
baixo. A perda, porém, salta aos olhos; pois nem a Lógica nem a
realidade são bem servidas com isso. A realidade não sai ganhando,
pois a contingência, que é um elemento essencialmente
copertencente à realidade, a Lógica jamais poderá deixar infiltrar-
se[11]. Nem a Lógica fica bem servida com isso; pois, se ela pensou a
realidade efetiva, então acolheu em si algo que ela não pode
assimilar[12], e chegou a antecipar o que ela deve tão somente
predispor[13]. O castigo é evidente: que toda e qualquer reflexão
sobre o que é a realidade efetiva fica dificultada, sim; talvez, por
algum tempo, impossibilitada, porque, por assim dizer, a palavra
precisará de algum tempo para refletir bem sobre si mesma, tempo
para esquecer o erro. – Assim, quando na Dogmática a fé é chamada
o imediato sem qualquer outra determinação obtém-se a vantagem de
se convencer todo mundo da necessidade de não ficar parado na fé,
sim, pode-se arrancar tal concessão[14] até mesmo do crente
ortodoxo, porque ele talvez não tenha descoberto prontamente o
equívoco, de que isso não tem sua razão no que vem depois, mas sim
naquele πρω τον ψευδος[15]. A perda é inegável, pois a fé perde ao ser
assim despojada do que lhe pertence legitimamente: sua
pressuposição histórica; a Dogmática perde por vir a iniciar, não
onde tem seu início, dentro de um início preliminar. Em vez de
pressupor[16] um início preliminar, ela o ignora e inicia sem mais
nem menos[17], como se fosse a Lógica; pois esta sim é que começa
justamente pelo que a mais sutil abstração produziu de mais volátil,
ou seja: o imediato. O que então, pensado logicamente, é correto,
que o imediato é eo ipso suspenso[18], torna-se, na Dogmática,
disparate; pois a quem ocorreria a ideia de permanecer no imediato
(sem nenhuma outra determinação), se este é abolido[19] exatamente
no mesmo instante em que o nomeiam, assim como um sonâmbulo
desperta no mesmo instante em que seu nome é mencionado? –
Assim, quando, às vezes, em investigações quase que apenas
propedêuticas, encontra-se a palavra reconciliação, utilizada para
designar o saber especulativo, ou a identidade do sujeito
cognoscente e do conhecido, o subjetivo-objetivo, etc., então se vê
facilmente, é claro, que o respectivo autor é um homem de espírito, e
que graças a essa expressão engenhosa já explicou todos os enigmas,
sobretudo para todos aqueles que nem mesmo na ciência empregam
a cautela que se observa afinal na vida quotidiana, de escutar
exatamente os termos de um enigma antes de decifrá-lo. Caso
contrário, adquire-se o mérito incomparável de com essa explicação
ter lançado um novo enigma: como poderia ocorrer a alguém que
isso devesse ser a explicação? Que o pensamento tem em geral
alguma realidade[20] era a pressuposição de toda a filosofia antiga e
da Idade Média. Com Kant, essa pressuposição tornou-se duvidosa.
Suponhamos agora que a filosofia de Hegel tenha conseguido,
verdadeiramente, perpassar com seu pensamento a skepsis[21] de Kant
(embora isso permaneça uma grande questão, apesar de tudo quanto
Hegel e sua escola, com o lema[22] “o método e a manifestação”,
fizeram para esconder o que Schelling reconheceu mais abertamente
com o lema “a intuição intelectual e a construção”: que havia um
novo ponto de partida) e admitamos, pois, que numa forma superior
tenha reconstruído o antecedente, de modo que o pensamento não
tenha realidade em virtude de uma pressuposição: será, então, a
realidade do pensamento, assim conscientemente obtida, uma
reconciliação? Com tudo isso, afinal, não se fez mais do que levar a
Filosofia até o ponto de onde anteriormente se iniciava, naqueles
tempos de outrora quando justamente a reconciliação tinha uma
enorme importância[23]. Tem-se uma terminologia filosófica antiga e
respeitável: tese, antítese e síntese. Escolha-se uma mais moderna, em
que a mediação ocupe o terceiro lugar; será que isso vai representar
um progresso assim tão extraordinário? A mediação tem duplo
sentido; pois designa, de uma só vez, a relação entre os dois termos e
o resultado da relação, aquilo em que eles se relacionam
mutuamente como aqueles que se relacionaram mutuamente; ela
designa o movimento, mas também o repouso. Se isto é uma
perfeição, somente um exame dialético muito mais profundo da
mediação o demonstrará, mas desgraçadamente continuamos a
aguardá-lo. Que se suprima então a síntese e se fale em mediação,
tudo bem. Porém a engenhosidade exige mais, que se diga
reconciliação. Qual é a consequência disso? Não se beneficiam suas
investigações propedêuticas, pois essas ganham naturalmente com
isso tão pouco quanto a verdade em clareza ou uma alma humana
em beatitude, só por receberem um título. Em contrapartida,
confundem-se radicalmente duas ciências: a Ética e a Dogmática,
sobretudo porque, após ter-se introduzido sub-repticiamente a
palavra reconciliação, dá-se também a entender agora que Lógica e
λογος (o dogmático) se correspondem, e que a Lógica é a própria
doutrina do λογος. A Ética e a Dogmática disputam entre si a
reconciliação, num confinium fatal. O arrependimento e a culpa
trazem a rebenque e espora, eticamente, a reconciliação, enquanto
que a Dogmática, na receptividade à reconciliação oferecida, possui a
imediatidade historicamente concreta com a qual inicia seu discurso
no grande diálogo da ciência.Qual será então a consequência? Que a
linguagem provavelmente será forçada a um longo ano sabático, em
que se deixarão palavras e pensamentos repousar, para que se possa
recomeçar pelo início. – Emprega-se na Lógica o Negativo como
aquela força estimuladora que põe movimento em tudo. E, afinal,
movimento a gente tem de ter na Lógica, não importa como, custe o
que custar, por bem ou por mal. O negativo ajuda então, e, se ele
não adiantar, ajudam os trocadilhos e outros recursos de linguagem,
até porque o próprio negativo se tornou um jogo de palavras[24]. Na
Lógica, nenhum movimento deverá vir a ser; porque a Lógica é, e
todo o Lógico apenas é[25], e essa impotência do Lógico é a passagem
da Lógica ao devir, onde existência e realidade aparecem. Quando a
Lógica se aprofunda então na concreção das categorias, tudo
permanece sempre idêntico ao que já era desde o início. Qualquer
movimento, se por um instante se quiser usar essa expressão, é um
movimento imanente, o que num sentido mais profundo não é
nenhum movimento – do que é possível convencer-se facilmente
quando se considera que o próprio conceito de movimento é uma
transcendência, que não pode encontrar lugar na Lógica. O negativo
é, aí, a imanência do movimento, é o evanescente, é o superado. Se
tudo acontece dessa maneira, então absolutamente nada acontece, e
o negativo se torna um fantasma. Contudo, justamente para fazer
que algo aconteça na Lógica, o negativo transforma-se em algo mais:
torna-se aquele que produz o seu contrário, quer dizer, não mais
uma negação, mas uma “contraposição” (ContraPosition). Então o
negativo deixa de ser o silêncio do movimento imanente, tornando-
se este “necessário Outro” de que a Lógica decerto poderá ter grande
necessidade para fazer deslanchar o movimento, mas de modo
nenhum é o negativo. Quando se deixa a Lógica para passar à Ética,
então se reencontra aqui este infatigável negativo, sempre em ação
em toda a filosofia hegeliana, e tem-se a surpresa de descobrir que
aqui o negativo é o mal. Agora a confusão vai a todo vapor: não há
mais limites para a engenhosidade, e a afirmação de Madame de
Staël-Holstein acerca da filosofia de Schelling – que esta dá a um
homem que a tenha estudado espírito para toda a vida – vale em toda
a sua plenitude para a de Hegel. Bem se vê quão ilógicos têm de ser
os movimentos na Lógica, uma vez que o Negativo é o mal; e quão
antiéticos na Ética, uma vez que o mal é o Negativo. Ele é demais na
Lógica, de menos na Ética, não combina em parte alguma, deve-se
combinar com os dois lados. Se a Ética carece de outra
transcendência, ela é então essencialmente uma Lógica, e, se a
Lógica deve ter tanta transcendência quanto se faz necessário para a
Ética por uma questão de decência, ela não é mais Lógica.
Talvez esta análise esteja prolixa demais com relação à sua
localização (com relação ao assunto que trata está longe de ser
demasiado longa), mas de modo algum é supérflua, dado que os
pontos particulares foram escolhidos com alusão ao tema deste
escrito. Os exemplos são de ordem geral, mas o que acontece no
maior pode repetir-se no pormenor, permanecendo semelhante o
equívoco ainda quando os efeitos perniciosos sejam menores. Quem
tem pretensões de escrever o Sistema tem sua responsabilidade no
que toca ao mais graúdo, mas quem escreve uma simples monografia
também pode e deve ser fiel no pormenor.
O presente escrito estabeleceu como sua tarefa tratar o conceito
“angústia” de um ponto de vista psicológico, de modo a ter in
mente
[26] e diante dos olhos o dogma do pecado hereditário. Neste
sentido, tem a ver também, embora tacitamente, com o conceito de
pecado. O pecado, contudo, não é um assunto de interesse
psicológico, e querer tratá-lo nesta perspectiva redundaria em
colocar-se ao serviço de uma engenhosidade mal compreendida. O
pecado ocupa seu lugar determinado, ou melhor, não ocupa lugar
algum, e é isto justamente a sua determinação. Quando ele é tratado
fora de seu lugar próprio, fica adulterado, pois que assim vem a
enquadrar-se num prisma de reflexão que não é essencial. Seu
conceito fica alterado e com isso ao mesmo tempo se perturba
aquela sua atmosfera[27], que, como a atmosfera justa corresponde ao
conceito correto[28] e, em vez da perseverança de uma atmosfera
verdadeira, obtém-se a farsa fugaz das atmosferas falsas. Assim,
quando o pecado é tratado na Estética, tem-se uma atmosfera de
leviandade ou de melancolia[29], pois a categoria em que aí se situa o
pecado é a da contradição, e esta é ou cômica ou trágica. A
atmosfera fica, por conseguinte, alterada; pois a atmosfera que
corresponde ao pecado é a da seriedade. Também o seu conceito
fica alterado, porque, quer se torne cômico, quer trágico, o pecado
se torna um subsistente ou algo que não é superado senão de
maneira não essencial, ao passo que o seu conceito exige que seja
efetivamente vencido[30]. Num sentido mais profundo, o cômico e o
trágico não têm nenhum inimigo, salvo algum espantalho que faça
rir ou chorar. – Quando o pecado é tratado na Metafísica, a
atmosfera fica sendo a da equidade e do desinteresse[31] dialéticos,
que analisam o pecado como aquilo que não consegue opor
resistência ao pensamento. O conceito fica alterado, pois é claro que
o pecado deve ser vencido, mas não como aquilo a que o
pensamento não possa emprestar vida, e sim como algo que existe e,
como tal, concerne a todos. – Quando o pecado é tratado na
Psicologia, então a sua atmosfera fica sendo a tenacidade
observadora, o destemor de alguém que espiona; não vem a ser,
porém, aquela seriedade que nos leva a vencê-lo pela fuga. O
conceito se transforma num outro, pois o pecado se torna um
estado. Mas o pecado não é um estado. Sua ideia consiste em que
seu conceito seja superado incessantemente. Como estado (de
potentia
[32]) o pecado não é, ao passo que de actu ou in actu[33], é e
volta a ser. A atmosfera da Psicologia seria a de uma curiosidade que
antipatiza, porém a atmosfera correta é a da resistência intrépida da
seriedade. A atmosfera da Psicologia é a da angústia descobridora e
em sua angústia ela copia os contornos do pecado, apavorando-se
mais e mais ante o desenho que ela própria faz aparecer. Quando é
tratado dessa maneira, o pecado se transforma no mais forte, pois a
Psicologia se relaciona com ele de modo propriamente feminino. É
certo que aquele estado tem a sua verdade, e é certo que um tal
estado surge com maior ou menor intensidade na vida de qualquer
homem, antes que apareça a Ética; porém, com tal tratamento o
pecado não vem a ser aquilo que é, e sim mais, ou menos do que
isso.
Por isso, sempre que se vir o problema do pecado sendo
examinado, poder-se-á logo verificar pela atmosfera se o conceito é o
correto. Sempre que se fala do pecado como, por exemplo, de uma
doença, de uma anomalia, de um veneno, de uma falta de harmonia,
estará falseado também o conceito.
A rigor, o pecado não tem seu lugar em nenhuma ciência. Ele é
objeto daquela pregação em que fala o indivíduo, como o indivíduo
que se dirige ao indivíduo. Em nosso tempo, a importância das
ciências faz os pastores de bobos, transformando-os em uma espécie
de sacristãos de professores que também servem à ciência e
consideram que pregar está abaixo de sua dignidade. Não
surpreende, portanto, que o sermão tenha decaído, no consenso
geral, em nível de uma arte muito pobre. Pregar, entretanto, é a mais
difícil de todas as artes, e é propriamente aquela arte que Sócrates
elogia: a de saber dialogar. É óbvio que para isso não será preciso
que algum dos fiéis responda, nem tampouco haverá qualquer
vantagem em se introduzir alguém como interlocutor. O que
Sócrates a rigor criticava nos sofistas, segundo sua famosa distinção
de que estes decerto sabiam falar, mas não dialogar, era que podiam
dizer muitas coisas sobre qualquer assunto e, não obstante, careciam
do momento da apropriação. A apropriação é justamente o segredo
do diálogo.
Ao conceito do pecado corresponde a seriedade. A ciência em
que o pecado estaria mais perto de encontrar lugar seria decertoa
Ética. Entretanto, isso tem lá sua grande dificuldade. A Ética ainda é
uma ciência ideal, não somente no sentido em que todas as ciências
o são. Ela quer introduzir a idealidade na realidade efetiva; mas seu
movimento não consiste, inversamente, em elevar a realidade à
idealidade[34]. A Ética mostra a idealidade como tarefa, e pressupõe
que o homem esteja de posse das condições. Com isso, a Ética
desenvolve uma contradição, justamente ao tornar nítidas a
dificuldade e a impossibilidade. Vale para a Ética o que se diz da Lei,
que é uma disciplinadora que, ao exigir, com sua exigência apenas
julga, nada cria. Só a Ética grega constituía uma exceção, e isso
porque ela não era uma Ética no sentido mais rigoroso, mas
conservava um momento estético. Isso se manifesta claramente em
sua definição de virtude, e no que Aristóteles exprime tantas vezes,
mas também na Ética a Nicômaco, com uma adorável ingenuidade
grega: que a virtude por si só não torna o homem feliz e contente,
mas ele precisa ter ainda saúde, amigos, bens nesta vida, ser feliz em
sua família. Quanto mais ideal é a Ética, tanto melhor. Ela não deve
deixar-se transtornar pela conversa oca dos que afirmam que de nada
adianta exigir o impossível; pois dar ouvidos a tais conversas já é não
ético, é algo para o que a Ética não tem tempo nem oportunidade. A
Ética nada tem a ver com o pechinchar, e por esse caminho não se
chega à realidade. Se esta deve ser alcançada, então o movimento
todo tem de ser refeito. Esta propriedade da Ética de ser assim ideal
é o que conduz à tentação de, em seu estudo, usar categorias ora
metafísicas, ora estéticas, ora psicológicas. Mas a Ética precisa
naturalmente ser a primeira de todas a resistir às tentações, e por
isso também é impossível alguém conseguir escrever uma Ética sem
ter de reserva categorias inteiramente diferentes.
O pecado então só pertence à Ética na medida em que é nesse
conceito que ela encalha, mediante o arrependimento[35]. Se a Ética
acolher o pecado, acabou-se a idealidade dela. Quanto mais
permanece em sua idealidade – e contudo jamais se torna tão
desumana a ponto de perder de vista a realidade, mas se relaciona
com ela ao querer colocar-se como tarefa para cada homem de modo
a querer convertê-lo no homem verdadeiro e total, no homem κατ᾽
εξοχην[36] – tanto mais ela retesa a dificuldade. Na luta para realizar a
tarefa da Ética, o pecado se mostra não como algo que pertence só
por acaso a um indivíduo casual, mas o pecado se retrai sempre mais
profundamente como um pressuposto sempre mais profundo, como
um pressuposto que recai sobre cada indivíduo[37]. Agora está tudo
perdido para a Ética, e a Ética contribuiu para a perda total.
Apareceu uma categoria que se situa completamente fora de seu
domínio. O pecado hereditário[38] torna tudo ainda mais desesperado,
isto é, eleva a dificuldade[39], porém não com o auxílio da Ética e sim
por intermédio da Dogmática. Assim como todo o conhecimento e
toda a especulação dos Antigos baseavam-se na pressuposição de que
o pensamento tinha realidade, assim também toda a Ética antiga
baseava-se na pressuposição de que a virtude era realizável. A skepsis
do pecado é completamente estranha ao paganismo. O pecado era
para a sua consciência ética o que o erro era para o seu conhecer:
uma exceção isolada que nada prova.
Com a Dogmática começa a ciência que, ao inverso daquela
ciência assim chamada ideal stricte[40], parte da realidade efetiva. Ela
inicia com o real efetivo, para elevá-lo à idealidade[41]. Não nega a
presença[42] do pecado; ao contrário, ela o pressupõe e o explica ao
pressupor o pecado hereditário. Como, porém, é raro a Dogmática
ser estudada pura, muitas vezes encontrar-se-á o pecado hereditário
incluído dentro de seus limites, de tal modo que a originalidade
heterogênea da Dogmática já não salta aos olhos, mas fica confusa, o
que também acontece quando se encontra nela um dogma sobre os
anjos, sobre as Sagradas Escrituras, etc. A Dogmática não deve,
portanto, explicar o pecado hereditário, mas explicá-lo em
pressupondo-o, à semelhança daquele turbilhão sobre o qual a Física
especulativa grega falou diversas coisas, como algo de movente que
nenhuma ciência conseguia apreender.
Que é bem assim que se passam as coisas no que tange à
Dogmática, conceder-se-me-á quando outra vez se arranjar tempo
para compreender o mérito imortal de Schleiermacher nessa ciência.
A gente o abandonou há bastante tempo, quando se preferiu Hegel,
e contudo Schleiermacher era, no belo sentido grego da palavra, um
pensador, que só falava daquilo que sabia, enquanto que Hegel,
apesar de todas as suas excelentes qualidades e a sua colossal
erudição, em tudo o que produziu está mais e mais a lembrar que
era, na acepção alemã do termo, um professor de filosofia de um
alto nível, na medida em que precisava explicar tudo à tout prix[43].
A nova ciência inicia, pois, com a Dogmática, no mesmo sentido
em que a ciência imanente inicia com a Metafísica. Aqui a Ética torna
a encontrar o seu lugar como aquela ciência que tem a consciência
que a Dogmática possui sobre a realidade como tarefa para a
realidade. Esta Ética não ignora o pecado, e a idealidade dela não
consiste no exigir idealmente, mas sua idealidade consiste na
consciência penetrante da realidade, da realidade do pecado, porém,
bem entendido, não com leviandade metafísica ou concupiscência
psicológica.
Vê-se facilmente a diferença do movimento, e que a Ética da qual
agora falamos pertence a uma outra ordem de coisas. A primeira
Ética encalhava na pecaminosidade do indivíduo[44]. Longe de poder
explicar esta última, a dificuldade tinha de tornar-se ainda maior e
eticamente mais enigmática à medida que o pecado do indivíduo se
expandia em pecado de toda a geração. Veio então a Dogmática e
auxiliou com o pecado hereditário. A nova Ética pressupõe a
Dogmática, e com essa o pecado hereditário, de que se serve em
seguida para explicar o pecado do indivíduo, enquanto ao mesmo
tempo institui como tarefa a idealidade, porém não no movimento
de cima para baixo, mas de baixo para cima.
Aristóteles, como se sabe, empregou a denominação πρωτη
ϕιλοσοϕια[45] e com isso designou primeiramente o metafísico,
embora incluísse aí ao mesmo tempo uma parte daquilo que
segundo nossos conceitos pertenceria à Teologia. É perfeitamente
natural que no paganismo a Teologia tivesse de ser estudada aí; trata-
se da mesma carência de reflexão profunda sobre o infinito que fazia
com que o Teatro, no paganismo, fosse na realidade uma espécie de
culto divino. Se se quiser agora abstrair daquela ambiguidade, poder-
se-á então conservar a denominação, e compreender por πρωτη
ϕιλοσοϕια[46] a totalidade científica que se poderia chamar de
pagã[47], cuja essência é a imanência ou, dito em grego, a
reminiscência, e por secunda philosophia compreender aquela cuja
essência é a transcendência ou a repetição[48].
O conceito de pecado não tem, portanto, a rigor, sua morada em
nenhuma ciência; só a segunda Ética pode tratar de sua
manifestação, não de sua origem. Se qualquer outra ciência quer
tratar do pecado, o conceito torna-se confuso. Assim se daria, para
nos aproximarmos do nosso projeto, se a Psicologia quisesse fazê-lo.
Aquilo que a Psicologia deve ter por objeto há de ser algo de
estável, que permanece numa tranquilidade em movimento, não algo
de instável, que constantemente se produz a si mesmo ou é
reprimido. Mas o elemento estável, de onde surge constantemente o
pecado, não por necessidade (pois um devir necessário é um estado,
como, por exemplo, é um estado toda a história da planta), mas com
liberdade, esse elemento permanente, essa pressuposição
disponente[49], a possibilidade real do pecado, este é um objeto para
o interesse da Psicologia. O que pode ocupar a Psicologia, e aquilo
com que ela pode ocupar-se é: como o pecado pode surgir, e não:
que ele surge. Ela pode em seu interesse psicológico levar a coisa tão
longe que é como se o pecado já existisse; mas o ponto seguinte,
quer dizer, que ele esteja aí, é qualitativamentediferente disso. De
que modo então aquela pressuposição se mostra como se alastrando
sempre mais ante a contemplação e a observação psicológicas
cuidadosas, isto é do interesse da Psicologia, sim, a Psicologia
gostaria de, por assim dizer, entregar-se à ilusão de que, com isso, o
pecado já está aí. Mas esta última ilusão é a impotência da Psicologia,
que mostra que a Psicologia já se exauriu.
Que a natureza humana tem de ser tal que ela torne o pecado
possível é totalmente verdadeiro, do ponto de vista psicológico, mas
querer fazer dessa possibilidade do pecado a sua realidade efetiva
provoca indignação na Ética e soa como uma blasfêmia para a
Dogmática; pois a liberdade nunca é possível; logo que ela o é, é real,
no mesmo sentido como se disse numa filosofia mais antiga que, se a
existência de Deus é possível, ela é necessária.
Logo que o pecado é realmente posto, a Ética apresenta-se
imediatamente e segue então cada um de seus passos. Como ele
surgiu, é uma questão que não preocupa a Ética a não ser na medida
em que ela tem certeza de que o pecado entrou no mundo como
pecado. Mas, menos ainda que com seu surgimento, preocupa-se a
Ética com o “Stilleben”[50] da sua possibilidade.
Se se quiser agora indagar mais aproximadamente em que
sentido e em que medida a Psicologia persegue seu objeto na
observação, então é evidente do que antecede e por si mesmo: que
toda observação da realidade do pecado, enquanto pensado, é
irrelevante e pertence à Ética, mas não como objeto de observação;
pois a Ética nunca é simples observadora – antes acusa, julga, age.
Além disso, segue do que foi dito, como por si mesmo, que a
Psicologia não tem a ver com os detalhes da realidade empírica, a
não ser na medida em que esta permanece exterior ao pecado. É
verdade que, como ciência, a Psicologia nunca pode ocupar-se
empiricamente com o detalhe que lhe serve de base, embora este
detalhe possa receber sua representação científica, quanto mais
concreta a Psicologia se tornar. Em nosso tempo, essa ciência, posto
que tenha mais do que qualquer outra o direito de se embriagar com
a multiplicidade borbulhante da vida, entregou-se ao jejum e ao
ascetismo como um autoflagelante. Não é por culpa da ciência, mas
dos que a cultivam. Em relação ao pecado, pelo contrário, todo o
conteúdo da realidade efetiva lhe está vedado, só a sua possibilidade
lhe pertence ainda. Para o pensamento ético, como é natural, jamais
se apresenta a possibilidade do pecado, e a Ética não se deixa fazer
de boba nem perde tempo com uma tal investigação. Em
contrapartida, a Psicologia ama-a e senta-se a copiar os contornos, a
calcular os ângulos da possibilidade, e, como Arquimedes, tampouco
se deixa perturbar.
Contudo, enquanto se aprofunda na possibilidade do pecado, a
Psicologia está, sem o saber, a serviço de uma outra ciência que só
aguarda que ela acabe para, por seu turno, começar os trabalhos,
ajudando a Psicologia nas explicações. Esta não é a Ética; pois a Ética
nada tem a ver com aquela possibilidade. Ela é, pelo contrário, a
Dogmática, e aqui reaparece o problema do pecado hereditário.
Enquanto a Psicologia sonda a possibilidade real[51] do pecado, a
Dogmática explica o pecado hereditário, isto é, a possibilidade ideal[52]
do pecado. Contrariamente, a segunda Ética nada tem a ver com a
possibilidade do pecado nem com o pecado hereditário. A primeira
Ética ignora o pecado, a segunda inclui a realidade efetiva do pecado
nos seus domínios, e aqui outra vez só com a ajuda de um mal-
entendido a Psicologia pode intrometer-se.
Se o exposto acima estiver correto, facilmente se verá com que
direito chamei o presente escrito uma reflexão psicológica, e como,
na medida em que esta reflexão toma consciência do seu lugar na
Ciência, ela pertence à Psicologia, e tende por sua vez para a
Dogmática. Chamou-se a Psicologia a doutrina do espírito subjetivo.
Aprofundando-se um pouco mais essa noção, ver-se-á que,
quando chega ao problema do pecado, ela precisa primeiro
transmudar-se em doutrina do espírito absoluto. Aí se situa a
Dogmática. A primeira Ética pressupõe a Metafísica, a segunda a
Dogmática, mas também a complementa de tal maneira que aqui,
como em toda parte, a pressuposição vem à tona.
Tal era a tarefa da introdução. Esta pode estar correta ainda que
a reflexão sobre o conceito de angústia possa estar inteiramente
incorreta. Se é este o caso, há que se mostrar.
[8]. desejo devoto, propósito bem-intencionado [N.T.].
[9]. enkelte Problemer
[10]. Alusão à Lógica de Hegel, talvez referindo-se à lógica da Enciclopédia, ao final da
doutrina da essência [N.T.]. Em ambos os textos de Hegel, porém, Die Wirklichkeit é o título
da terceira e última seção do segundo livro, referente à lógica da essência, e não é
propriamente “a última seção da Lógica” [N.T.].
[11]. A questão da Tilfœldighed (contingência, casualidade, acaso, sorte, acontecimento
fortuito, em alemão Zufall) já está em Aristóteles, conforme ensinava P.M. Møller, mas
aparece também em H.L. Martensen, no seu comentário ao Curso de Lógica oferecido por
J.L. Heiberg na Escola Militar Real [N.T.].
[12]. assimilere
[13]. prœdisponere
[14]. Concession
[15]. Próton pseudos: falsidade primeira, erro primordial [N.T.].
[16]. prœsupponere
[17]. frisk vœk [N.T.].
[18]. er hœvet [N.T.].
[19]. er ophævet, outras traduções: superado, anulado, suprassumido; em alemão aufgehoben
[N.T.].
[20]. Realitet [N.T.].
[21]. dúvida, ceticismo [N.T.].
[22]. Stikordet [N.T.].
[23]. Betydning pode ser traduzida tanto por importância quanto por significação [N.T.].
[24]. Exempli gratia: Wesen ist, was ist gewesen [essência é o que foi]; ist gewesen é um tempus
prœteritum de Seyn, ergo Wesen é das aufgehobne Seyn [o ser superado], o Seyn que foi. Isso é
um movimento lógico! Se alguém se desse ao trabalho de apreender e recolher na Lógica
hegeliana (tal como ela é em si mesma e com os melhoramentos de escola) todos os
diabinhos e duendes fictícios que, como aprendizes apressados, auxiliam no avanço do
movimento lógico, uma época posterior ficaria talvez estupefata ao descobrir que o que
então será tido por chistes caducos desempenhava noutros tempos um grande papel na
Lógica, não a título de notas explicativas marginais ou observações espirituosas, mas como
elementos diretores do movimento, tornando a Lógica de Hegel um prodígio e dando ao
pensamento lógico pés para andar, embora ninguém se apercebesse disso, pois a admiração
lançava uma espécie de manto sobre o vagonete, como na ópera o boneco Lulu entra
correndo sem que se veja o mecanismo. O movimento na Lógica, tal é o grande mérito de
Hegel, em comparação com o qual nem valerá a pena mencionar o mérito inesquecível que
Hegel teve e tantas vezes desdenhou, preferindo correr atrás do incerto: o mérito de haver
justificado, de várias maneiras, as determinações categóricas e sua respectiva ordenação.
[25]. A eterna expressão da Lógica consiste no que os Eleatas, por um mal-entendido,
transferiram para a existência: nada surge [opkommer], tudo é.
[26]. no espírito, em mente [N.T.].
[27]. Stemning: tonalidade afetiva, atmosfera ou estado de ânimo, estado de espírito [N.T.].
[28]. Que também a ciência, do mesmo modo como a poesia e a arte, pressupõe uma
atmosfera tanto no que produz como no que recebe, que um erro na modulação é tão
perturbador quanto um erro no desenvolvimento do pensamento, foi completamente
esquecido em nosso tempo, no qual a gente já se esqueceu completamente da interioridade
e da determinação da apropriação, devido à alegria por toda a magnificência que se julga
possuir, ou a isso se renunciou por avidez, tal como aquele cão que preferiu a sombra à
presa. Mas todo erro engendra seu próprio inimigo. O erro do pensamento tem para além
dele a dialética, a omissão ou a falsificação da atmosfera têm para além de si o cômico,
como inimigo.
[29]. Letsindig og Tungsindig. Jogo de palavras dinamarquês, algo como: ânimo ligeiro e ânimo
pesado [N.T.].
[30]. overvundet [N.T.].
[31]. Ligelighed og Uinteresserethed [N.T.].
[32].potencialmente [N.T.].
[33]. como realidade atual ou como efetividade [N.T.].
[34]. Se se considerar isso mais de perto, ter-se-á uma boa oportunidade de perceber quão
espirituoso é, afinal, intitular a última seção da Lógica “a Realidade”, dado que nem mesmo
a Ética alcança esta. A Realidade com a qual a Lógica se encerra não significa, portanto, no
sentido da realidade, nada mais do que o Ser com o qual ela inicia.
[35]. No que toca a este ponto, encontrar-se-ão várias observações em Temor e tremor,
publicado por Johannes de Silentio (Copenhague, 1843). Aí, o autor leva várias vezes a
idealidade desejada pela Estética a encalhar na idealidade exigida pela Ética, a fim de fazer
surgir desses embates a idealidade religiosa como aquela que é justamente a idealidade da
realidade efetiva, e por isso tão desejável quanto a da Estética e não impossível como a da
Ética, mas de tal maneira que esta idealidade irrompe no salto dialético e na atmosfera
positiva do “eis que tudo é novo!” bem como na atmosfera negativa que é a paixão do
absurdo, à qual corresponde o conceito da “repetição”. Ou bem toda a existência está
acabada na exigência ética, ou então a condição é encontrada, e a vida e a existência toda
recomeça do início, não por uma continuidade imanente com o anterior, o que seria uma
contradição, mas por força de uma transcendência que separa da primeira existência a
repetição por um abismo, de tal modo que seria apenas linguagem figurada se se dissesse
que a anterior e a posterior se relacionam mutuamente tal como a totalidade dos seres vivos
que se encontra no mar se relaciona com a dos ares e da terra, muito embora de acordo
com a opinião de alguns naturalistas aquela totalidade, na sua imperfeição, deva prefigurar
(prœformere) prototipicamente tudo o que a outra revela. Com referência a essa categoria,
pode-se comparar A repetição, de Constantin Constantius (Copenhague, 1843). Verdade se
diga que esse livro é um livro engraçado; como, aliás, o desejou o autor; mas este é o
primeiro, que eu saiba, a haver captado com energia “a repetição” e a tê-la descoberto no
vigor expressivo que tem o seu conceito para explicar a relação entre o étnico [pagão] e o
essencialmente cristão [det Christlige], ao indicar o ápice invisível e esse discrimen rerum
[ponto crítico] em que ciência se bate contra ciência até que a nova ciência apareça. O que
ele descobriu, porém, voltou a escondê-lo, disfarçando o conceito sob os gracejos da
representação correspondente. O que o teria levado a isso é difícil de dizer, ou melhor, de
compreender; pois ele próprio declara que escreve assim “para que os hereges não o
compreendam”. Como ele só quis ocupar-se do assunto estética e psicologicamente, tudo
precisava ser disposto humoristicamente, e o efeito é alcançado fazendo-se que esta palavra
ora signifique tudo, ora a coisa mais insignificante de todas, e a passagem ou, mais
corretamente, o constante cair das nuvens, é motivado por sua contrapartida burlesca. No
entanto, ele nos indicou de maneira bastante precisa a questão toda, à p. 34: “A repetição
constitui o interesse da Metafísica, e também aquele interesse no qual a Metafísica encalha; a
repetição é a senha/solução em qualquer concepção ética; a repetição é a conditio sine qua
non de todo e qualquer problema dogmático”. A primeira frase contém uma alusão à
sentença de que a Metafísica é desinteressada, como Kant o dizia do estético. Tão logo
aparece o interesse, a Metafísica se esquiva. Por isso a palavra interesse está grifada. Na
realidade efetiva todo o interesse da subjetividade vem à tona, e então a Metafísica encalha.
Se a repetição não é posta, a Ética transforma-se num poder que obriga e é por isso,
provavelmente, que ele diz que a repetição é a senha/solução na concepção ética. Quando a
repetição não é posta, a Dogmática nem pode existir; pois na fé começa a repetição, e a fé é
o órgão para os problemas dogmáticos. – Na esfera da natureza, a repetição está em sua
inabalável necessidade. Na esfera do espírito, a tarefa não consiste em se extrair da
repetição uma mudança, e procurar sentir-se mais ou menos bem sob a repetição, como se o
espírito estivesse numa relação apenas exterior com as repetições do espírito (segundo as
quais o bem e o mal alternariam como verão e inverno), mas a tarefa consiste em converter
a repetição em algo de interior, na tarefa própria da liberdade, no seu supremo interesse, se
ela verdadeiramente pode, enquanto tudo à volta se modifica, realizar a repetição. Aqui
desespera o espírito finito. Foi o que Constantin Constantius indicou retraindo-se ele
mesmo, e deixando a repetição irromper no jovem em virtude do religioso. Por isso
Constantin diz várias vezes que a repetição é uma categoria religiosa, transcendente demais
para ele, o movimento por força do absurdo, e se lê na p. 142 que a eternidade é a
verdadeira repetição. De tudo isso o Sr. Prof. Heiberg [*] nada percebeu; porém, com o seu
saber que é extremamente elegante e claro como sua “dádiva de ano-novo”, bondosamente
desejoso de auxiliar aquela obra a se tornar uma insignificância de muito bom gosto e
elegante, levando com a maior importância a questão até o ponto onde Constantin começa,
levando até o ponto em que, para lembrar um livro recente, o Esteta de Enten-Eller [**] já a
trouxera em Vexeldriften [***]. Se Constantin se sentisse realmente lisonjeado de poder
gozar da honra singular que o coloca numa companhia inegavelmente tão seleta, então, na
minha opinião, após escrever o livro ele deveria ter-se tornado – como diríamos – um
maluco estratosférico; mas se, por outro lado, um autor como ele, que escreve para ser mal-
entendido, se esquecesse de si mesmo e não tivesse ataraxia suficiente para avaliar como
lucro que o Prof. Heiberg não o tenha entendido, então outra vez seria um maluco
estratosférico. E isso decerto eu não preciso temer; pois a circunstância de que até agora
nada respondeu ao Prof. Heiberg indica suficientemente que ele se compreende a si
próprio.
[*] Dramaturgo e crítico de arte que publicava um anuário – de nome Urânia – no início de
cada ano [N.T.].
[**] A Alternativa I. [N.T.].
[***] Um dos ensaios da 1ª parte de Enten-Eller, Cultura alternada: título que indica a divisão
dos campos de cultivo em vista à aplicação de culturas alternadas [N.T.].
[36]. por excelência [N.T.].
[37]. en Forudsœtning, der gaar ud over Individet tem duas traduções possíveis: uma
pressuposição que ultrapassa o indivíduo (qui dépasse l’individu; that goes beyond the
individual; die über das Individuum hinausgeht) ou então: um pressuposto que recai sobre o
indivíduo (no sentido de acarretar consequências em prejuízo deste, como, p. ex., num
divórcio que traz prejuízos para os filhos, que os faz sofrer) [N.T. por sugestão de Else
Hagelund].
[38]. A rigor, a expressão usada sempre por SK é “pecado hereditário”, que nós costumamos
chamar pecado original [N.T.].
[39]. hæver Vanskeligheden pode significar: levanta a dificuldade, aumenta-a, supera-a, e até
resolve-a. Pode ser sinônimo de ophœver, que corresponde à Aufhebung hegeliana [N.T.].
[40]. estritamente [N.T.].
[41]. hæve det op, como no alemão “hebt es auf” (cf. Aufhebung), com vários sentidos [N.T.].
[42]. tilstedevœrelse: a presença de fato, a existência real, o estar aí neste lugar [N.T.].
[43]. a qualquer preço [N.T.].
[44]. den Enkeltes Syndighed, pois o autor aqui e neste contexto não diz Individ [N.T.].
[45]. Filosofia primeira [N.T.].
[46]. Schelling lembrava essa denominação aristotélica em favor da sua distinção entre
filosofia negativa e positiva. Por Filosofia Negativa entendia a Lógica, isto era bastante claro;
em compensação, para mim era menos claro o que ele entendia propriamente pela positiva,
salvo, evidentemente, que a Filosofia Positiva era aquela que ele próprio pretendia fornecer.
No entanto, não é oportuno alargar-me mais sobre este ponto, pois só posso argumentar
com a minha impressão pessoal.
[47]. den ethniske, literalmente: a étnica [N.T.].
[48]. Constantin Constantius recordou-oao indicar que a imanência encalha no “interesse”.
Só mediante este último conceito aparece propriamente a realidade efetiva.
[49]. disponerende [N.T.].
[50]. a paisagem, como natureza morta; literalmente: “vida parada”, “vida em repouso”
[N.T.].
[51]. reale Mulighed [N.T.].
[52]. ideelle Mulighed [N.T.].
Caput I
Angústia como pressuposição do pecado
hereditário e como explicando de modo
retroativo, na volta à sua origem, o pecado
hereditário
§1 Indicações históricas a respeito do conceito de “pecado
hereditário”
Será este conceito idêntico ao conceito do primeiro pecado, do
pecado de Adão, da queda? Por vezes isso foi entendido assim, é
verdade, e por isso a tarefa de explicar o pecado hereditário foi
identificada com a de explicar o pecado de Adão. Como o raciocínio
topava aqui com dificuldades, buscou-se um desvio. Contudo, para
explicar-se alguma coisa, arranjou-se uma pressuposição fantástica,
em cuja perda consistiria a consequência da queda. Obteve-se então
a vantagem de que qualquer um admitiria de bom grado que um tal
estado, assim como descrito, não se encontra mais no mundo, porém
olvidou-se que a dúvida era uma outra: se tal estado tinha mesmo
existido, o que seria o mínimo necessário para se perdê-lo. A história
da humanidade ganhou um início fantástico: Adão foi colocado
fantasticamente do lado de fora, o sentimento piedoso e a fantasia
obtiveram o que demandavam, um prelúdio devoto; o pensamento,
porém, não ganhou nada. De uma dupla maneira Adão foi mantido
fantasticamente do lado de fora. A pressuposição era uma dialético-
fantástica, sobretudo no catolicismo (Adão perdeu donum divinitus
datum supranaturale et admirabile
[53]). [Ou] ela era uma pressuposição
histórico-fantástica, sobretudo na Dogmática federal[54], que
dramaticamente perdeu-se numa concepção de fantasia sobre o
comportamento de Adão como plenipotenciário de toda a espécie
humana. Ambas as explicações nada explicam, naturalmente, já que a
primeira explica em eliminando o que ela mesma havia inventado; a
segunda apenas inventa algo que nada explica.
O conceito de pecado hereditário é de tal modo diferente do
conceito de primeiro pecado, que o indivíduo participa daquele
apenas pela sua relação com Adão e não pela sua relação primitiva
com o pecado? Neste caso, mais uma vez, de modo fantástico Adão é
posto para fora da história. O pecado de Adão, neste caso, é uma
coisa mais que passada (plus quam perfectum). O pecado hereditário é
o presente, é a pecaminosidade, e Adão o único em quem esta não
teria ocorrido, pois veio a ser por meio Ele. A gente aí não se
empenhava por explicar o pecado de Adão, mas o que se queria
explicar era o pecado hereditário em suas consequências. Tal
explicação, porém, não é relevante para o pensamento. Daí se
compreende perfeitamente que um escrito simbólico declare a
impossibilidade da explicação, e que esta declaração acompanhe sem
contradição a explicação. Os artigos de Esmalcalde ensinam
expressamente: peccatum hœreditarium tam profunda et tetra est corruptio
naturae, ut nullius hominis ratione intelligi possit, sed ex scripturœ
patefactione agnoscenda et credenda sit
[55]. Esta declaração é bem
compatível com as explicações, pois nessas não se apresentam tanto
definições racionais como tais, mas o sentimento piedoso (de
tendência ética) enfuna as velas de sua indignação[56] contra o
pecado hereditário, assume o papel de acusador e agora só se
preocupa, numa paixão quase feminina, com uma exaltação de moça
apaixonada, tornando cada vez mais repulsiva a pecaminosidade e a
si mesma, de modo que não haja palavra suficientemente dura para
designar a participação do indivíduo nela[57]. Se se quiser ter uma
visão geral das diferentes confissões, sob este ponto de vista, aí
apresenta-se uma gradação, em que a profunda religiosidade
protestante conquista a vitória. A Igreja grega designa o pecado
hereditário como ῾αμάρτημα προτοπατορικον[58]. Ela não possui nem
ao menos um conceito, visto que esta expressão é apenas uma
indicação histórica que não indica o presente, como é próprio de um
conceito, porém apenas o historicamente terminado. Vitium
originis
[59] (Tertuliano) já é um conceito, mas a forma linguística
permite, contudo, que o elemento histórico seja concebido como o
preponderante. Peccatum originale (quia originaliter tradatur[60],
Agostinho) indica o conceito, que fica mais nitidamente definido
com a distinção entre peccatum originans e originatum[61]. O
protestantismo rejeita as definições escolásticas (carentia imaginis dei;
defectus justitiae originalis
[62]) assim como também que o pecado
hereditário fosse uma poena (concupiscentiam poenam esse non peccatum,
disputant adversarii. Apolog. A.C.
[63]
) e então começa o clímax
entusiástico: vitium, peccatum, reatus, culpa[64]. Só o que importa é a
eloquência da alma contrita, e por isso se pode, às vezes, deixar
passar um pensamento inteiramente contraditório junto com o
discurso sobre o pecado hereditário (nunc quoque afferens iram dei iis
qui secundum exemplum Adami peccarunt). Ou então aquela eloquência
preocupada não dá nenhuma importância ao pensamento, mas
profere o terrível a respeito do pecado hereditário (quo fit, ut omnes
propter inobedientiam Adœ et Hevæ. in odio apud deum simus. Form.
Conœ), que, porém, tem bastante cautela para protestar contra o
pensar tal coisa, visto que, se o pensássemos, então o pecado se
tornaria, afinal de contas, a substância do homem[65]. Tão logo
desaparece o entusiasmo da fé e da contrição, não se pode mais ser
ajudado por tais definições, que só fazem facilitar ao astuto
racionalismo escapar ao reconhecimento do pecado. Mas o precisar-
se de outras definições é, contudo, uma prova duvidosa da perfeição
da época, bem no mesmo sentido que o necessitar de outras leis que
não sejam draconianas.
O fantástico, que se mostrou aqui, repete-se, de modo
inteiramente lógico, num outro ponto da Dogmática, na Redenção.
Ensina-se que Cristo deu plena satisfação pelo pecado hereditário.
Mas como se passam as coisas com Adão? Afinal, ele introduziu o
pecado hereditário no mundo. O pecado hereditário não seria nele
um pecado atual? Ou o pecado hereditário significa a mesma coisa
para Adão como para qualquer um do gênero humano? Neste caso,
o conceito se anula. Ou teria sido toda a vida de Adão o pecado
hereditário? O primeiro pecado não teria engendrado nele outros,
isto é, pecados atuais? O erro supracitado mostra-se aqui mais
nitidamente: pois Adão é exilado para fora da história de maneira
tão fantasiosa, que ele acaba por ser o único que é excluído da
redenção.
Como quer que se apresente o problema, logo que Adão fica
excluído de maneira fantástica, tudo se confunde. Explicar o pecado
de Adão é, portanto, explicar o pecado hereditário, e de nada
adianta uma explicação que queira explicar Adão, mas não o pecado
hereditário, ou queira explicar o pecado hereditário, mas não Adão.
A razão mais profunda de tal impossibilidade está naquilo que é o
essencial da existência humana; que o homem é individuum e, como
tal, ao mesmo tempo ele mesmo e todo o gênero humano, de
maneira que a humanidade participa toda inteira do indivíduo[66], e
o indivíduo participa de todo o gênero humano[67]. Se não
sustentarmos isso, terminaremos por cair ou no singularismo[68] dos
pelagianos, dos socianianos, dos filantropos[69], ou então no
fantástico. O prosaísmo do entendimento consiste em que o gênero
humano se dissolve numericamente num eterno einmal ein (1x1). O
fantástico está em que Adão goza da honra bem-intencionada de ser
superior a toda a humanidade ou da duvidosa honra de estar fora do
gênero humano.
A cada momento as coisas se passam de tal modo que o indivíduo
é ele mesmo e o gênero humano. Esta é a perfeição do homem vista
como estado. Ao mesmo tempo isso é uma contradição; mas uma
contradição é sempre expressão de uma tarefa; mas uma tarefa é
movimento; mas um movimento para o mesmo como tarefa que foi
dada como o mesmo é um movimento histórico. Portanto, o
indivíduo tem história;mas se o indivíduo tem história, o gênero
humano também a tem. Qualquer indivíduo tem a mesma perfeição,
justamente por isso os indivíduos não se apartam uns dos outros
como números, tampouco como o conceito de gênero humano se
torna um fantasma. Todo e qualquer indivíduo é essencialmente
interessado pela história de todos os outros, sim, tão essencialmente
como pela sua própria. A perfeição em si mesma consiste, pois, em
participar completamente na totalidade. Nenhum indivíduo é
indiferente à história do gênero humano, e nem esta é indiferente à
história do indivíduo. Enquanto a história do gênero humano
progride, o indivíduo principia sempre da capo, porque ele é ele
mesmo e o gênero humano, e aí de novo a história do gênero
humano[70].
Adão é o primeiro homem, ele é ao mesmo tempo ele mesmo e o
gênero humano. Não é por uma questão de beleza estética que nós
nos fixamos nele; nem é em virtude de um sentimento de
magnanimidade que aderimos a ele, para não deixá-lo, por assim
dizer, em dificuldade, como sendo o responsável por tudo; não é
também em virtude do entusiasmo da simpatia ou da persuasão da
piedade que nos resolvemos a dividir com ele a culpa, como a
criança deseja ser culpada junto com o pai; nem será em virtude de
uma forçada compaixão, que nos ensina a aguentar o que, no fim das
contas, temos mesmo que aguentar; mas é em virtude do
pensamento que nós o seguramos. Qualquer tentativa, portanto, de
explicar o significado de Adão para o gênero humano como caput
generis humani naturale, seminale, foederale
[71]
, para lembrarmos
expressões dogmáticas, confunde tudo. Ele não é essencialmente
diferente do gênero humano; pois nesse caso o gênero humano nem
existiria; ele não é o gênero humano, pois aí nem haveria o gênero
humano: ele é ele mesmo e o gênero humano. Por isso, aquilo que
explica Adão, explica o gênero humano, e vice-versa.
§2 O conceito de “o primeiro pecado”
Conforme conceitos tradicionais, a diferença entre o primeiro
pecado de Adão e o primeiro pecado de qualquer homem é esta: o
pecado de Adão condiciona a pecaminosidade como consequência, o
outro primeiro pecado[72] pressupõe a pecaminosidade como
condição. Se assim fosse, então Adão ficaria realmente fora do
gênero humano, e este começaria não com ele, mas teria um começo
fora de si mesmo, o que contraria qualquer conceito.
Que o primeiro pecado signifique algo diferente de um pecado
(isto é, um pecado qualquer, como tantos outros), algo diferente de
um só pecado[73] (isto é, nº 1 em relação ao nº 2), entende-se
facilmente. O primeiro pecado é a determinação qualitativa, o
primeiro pecado é o pecado. Esse é o segredo do primeiro, e seu
escândalo para o entendimento abstrato, que acredita que uma vez
vale tanto quanto nenhuma, mas várias vezes já seria alguma coisa, o
que está inteiramente invertido, visto que ou várias vezes querem
dizer cada uma por si tanto quanto a primeira, ou todas reunidas
valem até menos. Por isso, é uma superstição quando na Lógica se
pretende que com a continuidade de uma determinação quantitativa
surja uma nova qualidade; trata-se de uma reticência imperdoável
sempre que, ainda que não se esconda que as coisas não sucedem
exatamente assim, se oculta, no entanto, a consequência disso para
toda a imanência lógica, afirmando-o inclusive no movimento lógico,
como o faz Hegel[74]. A qualidade nova surge com o primeiro, com o
salto, com a subitaneidade do enigmático.
Se o primeiro pecado significa numericamente um só pecado (no
singular), então daí não se origina nenhuma história, e o pecado não
adquire história nem no indivíduo nem no gênero humano; pois a
condição para isso é a mesma, o que não significa que, enquanto
história, a da humanidade coincida com a do indivíduo, nem aquela
do indivíduo seja a da humanidade, a não ser no sentido de que a
contradição exprime sempre a tarefa.
Com o primeiro pecado, entrou o pecado no mundo. Exatamente
do mesmo modo vale isso a respeito do primeiro pecado de qualquer
homem posterior, que com este o pecado entra no mundo. Dizer,
contudo, que não existia pecado antes do pecado de Adão, é uma
reflexão não apenas inteiramente casual e sem relevância no que
concerne ao pecado em si, como também totalmente destituída de
significado e de direito de tornar maior o pecado de Adão ou menor
o primeiro pecado de qualquer outro ser humano. É justamente uma
heresia lógica e ética que se queira dar a aparência de que a
pecaminosidade em um homem se determine quantitativamente a tal
ponto que por fim, por generatio cœquivoca[75], surge o primeiro
pecado num homem. Isto não acontece, tampouco quanto Trop –
embora fosse um mestre a serviço da determinação quantitativa –
chegou a tornar-se com auxílio desta um Licenciado. Que os
matemáticos e os astrônomos se socorram, se puderem, com as
grandezas infinitesimalmente minúsculas: na vida tal coisa não serve
nem para alguém obter um diploma, muito menos para explicar o
espírito! Se o primeiro pecado de qualquer homem posterior
surgisse assim da pecaminosidade, seu primeiro pecado só seria
determinado de modo não essencial como o primeiro, e o que
possuísse de essencial apenas lhe viria – se tal coisa pudesse ser
pensada – do número de ordem que lhe fosse dado num fundo
comum decrescente do gênero humano. Mas as coisas não se passam
desse modo, e é tão tolo, tão ilógico, tão antiético, tão anticristão
pretender a dignidade de ser o primeiro inventor, quanto pretender
afastar alguma coisa de si, tentando não pensar em algo quando se
diz que apenas se fez o que toda a gente também fez. A presença da
pecaminosidade em um ser humano, a força do exemplo, etc., tudo
isso não passa de determinações quantitativas que nada explicam[76],
a não ser que se suponha que um único indivíduo é todo o gênero
humano, em vez de se aceitar que cada indivíduo é ele mesmo e o
gênero humano.
A narrativa do Gênesis sobre o primeiro pecado tem sido,
sobretudo em nosso tempo, considerada de maneira um tanto
quanto negligente como um mito. Isso tem um bom motivo, já que o
que foi posto em seu lugar era justamente um mito, e ainda por cima
um mito ruim, pois, quando o entendimento decai no mítico,
raramente daí resulta algo além de conversa fiada. Aquela narrativa é
a única concepção dialeticamente consequente. Todo o seu
conteúdo[77] está concentrado propriamente nesta proposição: o
pecado entrou no mundo por meio de um pecado. Se não fosse assim, o
pecado teria entrado como algo de casual, que seria melhor não
tentar explicar. A dificuldade para o intelecto constitui precisamente
o triunfo desta explicação, sua consequência lógica profunda está em
que o pecado se pressupõe a si mesmo, que ele entra no mundo de
tal maneira que, ao ser, já é pressuposto. O pecado entra, portanto,
como o súbito, isto é, pelo salto; mas este salto põe ao mesmo tempo
a qualidade; mas, quando a qualidade é posta, no mesmo instante o
salto está voltado para dentro da qualidade e é pressuposto pela
qualidade, e a qualidade pelo salto. Isto é um escândalo para o
intelecto, ergo isto é um mito. Em compensação, ele mesmo inventa
um mito que nega o salto e explana o círculo como uma linha reta, e
aí tudo se passa naturalmente. Fica fantasiando como teria sido o
homem antes da queda do pecado e, à medida que o entendimento
vai conversando sobre isso, a projetada inocência torna-se, conversa
vai, conversa vem, pouco a pouco pecaminosidade... e então, então
de repente ela está aí. O discurso do entendimento nesta ocasião
bem pode ser comparado às recitações dos jogos infantis, com os
quais a criançada se diverte, do tipo: “um faz; dois fazem; três
fazem... nove fazem; des-fazem [...]” e aí está então, e se originou da
maneira mais natural a partir do que vinha antes. Se o mito do
intelecto pudesse significar realmente alguma coisa, deveria ser que a
pecaminosidade antecede ao pecado. Porém, se isso é verdadeiro no
sentido de que a pecaminosidade veio ao mundo por algo diferente
de um pecado, então o conceito está abolido. Mas se a
pecaminosidade adentrou o mundo com o pecado,então é que este
a antecedeu. Esta contradição é a única dialeticamente consequente,
que dá conta tanto do salto quanto da imanência (isto é, a imanência
posterior).
Com o primeiro pecado de Adão, o pecado entrou, portanto, no
mundo. Esta afirmação, que é a comum, contém, entretanto, uma
reflexão totalmente exterior que por certo contribuiu muito para o
surgimento dos equívocos que pairam por aí[78]. Que o pecado
entrou no mundo é bem verdade; mas não é deste modo que isso
concerne a Adão. Expresso de maneira bem estrita e correta, há que
dizer que, com o primeiro pecado, a pecaminosidade penetrou em
Adão. De nenhum outro homem posterior nos ocorrerá dizer que,
por seu primeiro pecado, a pecaminosidade tenha entrado no
mundo, e, contudo, ela entra no mundo através dele[79] de modo
semelhante (quer dizer, de um modo que não é essencialmente
diferente); pois, expresso de modo estrito e correto, a
pecaminosidade só está no mundo na medida em que é introduzida
pelo pecado.
O motivo que levou muita gente a se exprimir de outro modo a
respeito de Adão é só um: que a consequência da relação fantástica
de Adão com o gênero humano tem de se mostrar por toda parte.
Seu pecado é o pecado hereditário. Afora isso, nada mais se conhece
a respeito dele. Mas o pecado hereditário, visualizado em Adão, é
apenas aquele primeiro pecado. Será, então, Adão o único indivíduo
que não tem história? Neste caso, o gênero humano viria a começar
com um indivíduo que não é indivíduo, com o que ficariam abolidos
ambos os conceitos, de gênero e de indivíduo. Se qualquer outro
indivíduo do gênero humano pode, por sua história, ter importância
para a história do gênero, Adão também a terá; porém, se a
importância de Adão advém tão somente daquele primeiro pecado,
o conceito de história é assim abolido – quer dizer, a história teria
acabado no instante em que começou[80].
Já que a humanidade então não recomeça com cada indivíduo[81],
a pecaminosidade do gênero humano adquire decerto uma história.
Esta avança, entretanto, em determinações quantitativas, enquanto o
indivíduo participa dela no salto qualitativo. O gênero humano não
começa, portanto, do início com cada indivíduo – pois assim não
haveria de maneira alguma o gênero humano –, porém cada
indivíduo recomeça com o gênero humano.
Quando se quer então afirmar que o pecado de Adão fez entrar
no mundo o pecado do gênero humano, com isso ou se tem em
mente algo de fantástico, com o que se elimina todo e qualquer
conceito, ou se pode com o mesmo direito afirmá-lo de qualquer
indivíduo que com seu primeiro pecado faz entrar a pecaminosidade.
Arranjar um indivíduo que deve estar fora do gênero humano para
inaugurar o gênero humano é um mito do entendimento, do mesmo
modo que fazer começar a pecaminosidade de qualquer outro jeito
que não pelo pecado. Com isso só se consegue retardar o problema,
que naturalmente se voltará ao homem nº 2, ou melhor, ao homem
nº 1, já que o nº 1, a rigor, passou a ser o nº 0.
O que, com frequência, engana e auxilia a desencadear todo tipo
de representações imaginárias, é a relação de geração, como se o
homem posterior fosse essencialmente diferente do primeiro pela
descendência. A descendência é apenas a expressão para a
continuidade na história da humanidade, que se move sempre por
determinações quantitativas e por isso de nenhum modo é capaz de
produzir um indivíduo; pois uma espécie animal jamais produzirá
um indivíduo, ainda que se conserve ao longo de milhares e milhares
de gerações. Se o segundo homem não tivesse descendido de Adão,
seria, não o segundo homem, mas uma repetição vazia, e por isso
nem se teria tornado humanidade e tampouco indivíduo. Cada Adão
avulso teria sido uma estátua por si só, e por isso apenas
determinável por meio de uma determinação indiferente, isto é, a
numérica, num sentido ainda mais imperfeito do que quando os
órfãos de uniforme azul eram designados pelo seu número. Na
melhor das hipóteses, cada um em particular teria podido ser ele
mesmo, jamais ele mesmo e o gênero humano; não teria história, tal
como um anjo não tem história: só é ele mesmo, e não toma parte
em história nenhuma.
Não é preciso nem dizer que esta concepção não incorre em
nenhuma forma de pelagianismo, o qual faz cada indivíduo
representar a sua pequena história em um teatro particular, sem se
preocupar com o gênero humano; pois a história da humanidade
prossegue tranquilamente em seu caminho, ao longo do qual
nenhum indivíduo começa no mesmo ponto em que o outro
começou, enquanto que cada indivíduo começa do começo e, no
mesmo instante, está lá onde ele deveria começar na história.
§3 O conceito de inocência
Vale aqui, como em toda parte, que, se em nossos dias se quiser
encontrar uma definição dogmática, há que começar por esquecer o
que Hegel descobriu para socorrer a Dogmática[82]. Sente-se uma
certa estranheza diante de teólogos, que todavia, de resto,
pretendem permanecer mais ou menos ortodoxos, ao vê-los
introduzir neste ponto a observação favorita de Hegel, de que a
destinação do imediato é a de ser anulado, como se imediatidade e
inocência fossem inteiramente idênticas. Hegel, de modo bem
consequente, volatilizou tanto cada conceito dogmático a ponto de
fazê-lo levar uma existência reduzida como expressão espirituosa[83]
do lógico. Que a imediatidade deva ser abolida, para dizê-lo não se
precisaria de Hegel, nem este adquiriu, de modo algum, um mérito
imortal por tê-lo dito, pois, pensado logicamente, isso nem sequer é
correto, já que o imediato não tem que ser abolido, posto que nunca
está aí. O conceito de imediatidade tem seu lugar na Lógica, mas o
conceito de inocência na Ética, e cada conceito deve ser tratado a
partir da ciência a que pertence, quer o conceito pertença à ciência e
nesta se desenvolva, quer venha a ser exposto ao ser pressuposto.
Ora, é antiético dizer que a inocência deva ser superada, pois,
ainda que o fosse no instante em que viesse a ser mencionada, a ética
não permite esquecer que a inocência não pode ser anulada senão
pela culpa. Se alguém fala, pois, da inocência como de algo imediato,
e com a rudeza indiscreta da lógica deixa desaparecer esta coisa
volátil, ou com a sensibilidade da estética comove-se por ela ter sido
e ter desaparecido, está sendo apenas geistreich, esquecendo-se do
essencial.
Portanto, como Adão perdeu a inocência pela culpa, assim a
perde todo e qualquer homem. Se não foi pela culpa que a perdeu,
tampouco foi a inocência o que perdeu, e se ele não era inocente
antes de tornar-se culpado, então jamais se tornou culpado.
No que concerne à inocência de Adão, não há falta de toda sorte
de fantásticas representações, quer tenham adquirido uma dignidade
simbólica em tempos nos quais o veludo do púlpito da Igreja bem
como o do começo do gênero humano estavam menos gastos do que
agora, quer tenham vagabundeado de modo mais aventureiro, como
suspeitas descobertas da poesia. Quanto mais se vestia Adão com
roupagem fantasiosa, mais se tornava inexplicável que pudesse pecar
e mais horrível ficava o seu pecado. Ele tinha, entretanto,
desperdiçado numa única jogada toda a glória, e, a este respeito,
apelava-se, segundo a hora e a oportunidade, para o sentimentalismo
ou para a blague, para a melancolia ou para a leviandade, ficava-se
historicamente contrito ou fantasticamente animado – mas não se
captava o essencial da questão em termos éticos.
Quanto à inocência dos homens posteriores a Adão (isto é, de
todos, exceto Adão e Eva), tinha-se uma noção um pouco mais
modesta. O rigorismo ético negligenciava o limite da ética e era
bastante honesto para crer que os humanos não aproveitariam a
ocasião para escapulir-se do todo, logo que os subterfúgios se
tornassem tão fáceis; a frivolidade não se dava conta de nada. Mas é
só pela culpa que se perde a inocência; cada homem perde a
inocência essencialmente da mesma maneira que Adão o fez, e não
interessa à ética fazer de todos os homens, exceto Adão,
espectadores da culpabilidade, aflitos e interessados – mas não
culpados; nem interessaà Dogmática fazer de todos eles
espectadores interessados e simpatizantes da redenção – mas não
redimidos.
Se tão frequentemente se tem desperdiçado o tempo da
Dogmática e da Ética e o seu próprio para refletir sobre o que teria
sucedido se Adão não tivesse pecado, isso só mostra que se traz
consigo uma disposição de ânimo incorreta e portanto também um
conceito incorreto. O inocente jamais teria a ideia de perguntar
dessa maneira, mas o culpado peca quando pergunta assim; pois
pretende em sua curiosidade estética ignorar que ele mesmo
introduziu a culpabilidade no mundo e ele mesmo perdeu a
inocência pela culpa.
A inocência não é, pois, como o imediato, algo que deva ser
anulado, cuja destinação é ser anulado, algo que para falar
propriamente não existe, e que só vem a existir pelo fato de ser
anulado, isto é, vem a existir como aquilo que existia antes de ser
anulado e que, agora, está anulado[84]. A imediatidade não é
suprimida pela mediatidade, mas, assim que esta aparece, eliminou
no mesmo instante a imediatidade. A supressão do imediato é, pois,
um movimento imanente à imediatidade, ou é um movimento
imanente à mediatidade em sentido inverso, pelo qual esta
pressupõe a imediatidade. A inocência é algo que se anula por uma
transcendência, justamente porque ela é algo (ao contrário, a
expressão mais correta para o imediato é a que Hegel usa para o
puro ser, é nada), e, por isso, quando a inocência é anulada por uma
transcendência, surge daí algo de completamente diferente,
enquanto que a mediatidade é precisamente a imediatidade. A
inocência é uma qualidade, é um estado que pode muito bem
perdurar, e por isso a pressa lógica para vê-la anulada não significa
nada, enquanto que na Lógica, ao contrário, seria conveniente
apressar-se um pouco mais, porque se chega sempre tarde demais,
por mais rápido que se ande[85]. A inocência não é uma perfeição
que se deva desejar de volta, pois desejá-la já é tê-la perdido, e aí é
um novo pecado perder tempo com desejos. A inocência não é uma
imperfeição, na qual não se possa permanecer, pois sempre se basta
a si mesma, e aquele que a perdeu, da única maneira pela qual pode
ser perdida, isto é, pela culpa, e não talvez como gostaria de tê-la
perdido, não terá decerto a ideia de elogiar sua própria perfeição à
custa da inocência.
A narração do Gênesis também dá, agora, a verdadeira explicação
da inocência. Inocência é ignorância[86]. Não é, absolutamente, o ser
puro do imediato, mas é ignorância. Quanto ao fato de que esta,
observada de fora, apareça como destinada ao saber, é algo que não
tem nada a ver com a ignorância.
É bem evidente que esta concepção não incorre em nenhum
pelagianismo. O gênero humano tem sua história; nesta, a
pecaminosidade tem sua determinidade quantitativa contínua, mas
invariavelmente a inocência só se perde pelo salto qualitativo do
indivíduo. É bem verdade que esta pecaminosidade, que progride no
gênero humano, pode mostrar-se no indivíduo, que com seu ato a
assume, como uma disposição maior ou menor, mas este é um mais
ou um menos, um determinar quantitativo, que não constitui o
conceito de culpa.
§4 O conceito de queda
[87]
Ora, se a inocência é ignorância, então pode parecer que há uma
diferença entre a inocência de Adão e a de qualquer homem
posterior, na medida em que a culpabilidade do gênero em sua
determinidade quantitativa está presente na ignorância do
indivíduo[88], e pelo ato deste se mostra como[89] culpabilidade dele.
A resposta já está dada: que um mais não constitui uma qualidade.
Poderia também parecer que se tornou mais fácil de explicar de que
modo o homem posterior perdeu a inocência. Isto, entretanto, é só
aparência ilusória. A mais alta de todas as determinações
quantitativas não explica melhor o salto qualitativo que a mais baixa:
se posso explicar a culpa num homem posterior, posso explicá-la
igualmente bem em Adão. Por causa do hábito, mas sobretudo por
causa da irreflexão e da estupidez ética, pode parecer que a primeira
explicação seja mais fácil que a última. Gostaríamos de nos esquivar
da insolação da consequência lógica a apontar verticalmente sobre a
nossa cabeça. Haveria que conformar-se com a pecaminosidade,
suportá-la junto, etc., etc. Não há por que se incomodar: a
pecaminosidade não é uma epidemia que se propague como a
varíola do gado, e “toda boca seja fechada”[90]. É bem verdade que
uma pessoa pode dizer, com profunda seriedade, que nasceu na
miséria e que sua mãe a concebeu em pecado; mas, a rigor, só
poderá afligir-se com razão quando ela mesma tiver trazido o pecado
ao mundo e colocado tudo sobre seus ombros, pois é uma
contradição pretender entristecer-se esteticamente pela pecaminosidade.
O único que, inocente, entristeceu-se pelo pecado, foi Cristo, mas
Ele não se afligiu por este como um destino com o qual precisava
conformar-se, mas se entristeceu como aquele que livremente elegeu
carregar os pecados do mundo inteiro e sofrer o seu castigo. Isto não
é nenhuma determinação estética, porque Cristo era mais do que um
mero indivíduo[91].
Inocência é, então, ignorância; mas como se perde a inocência?
Não é meu propósito enumerar aqui repetitivamente todas as
hipóteses engenhosas e absurdas com as quais filósofos e
elaboradores de projetos, que só por curiosidade se interessaram
pelo grande assunto humano que se chama pecado, sobrecarregaram
o começo da história. Em parte, porque não desejo esbanjar o tempo
dos outros contando aquilo com que perdi meu tempo para
aprender; em parte, porque tudo isso está fora da história, na zona
crepuscular onde bruxas e elaboradores de projetos disputam uma
corrida montados em cabos de vassoura e espetos de linguiça.
A ciência que tem a ver com a explicação é a Psicologia que,
contudo, só é capaz de explicar o rumo da explicação[92] e sobretudo
deve cuidar de não dar a aparência de querer explicar o que
nenhuma ciência explica, e que tão somente a Ética avança um
pouco mais na explicação ao pressupô-la recorrendo à Dogmática. Se
tomarmos a explicação psicológica e a retomarmos várias vezes, e a
partir daí acharmos que não é inverossímil que o pecado tenha vindo
ao mundo realmente desta maneira, já teremos confundido tudo. A
Psicologia tem de permanecer dentro de seus limites, e aí sua
explicação poderá ter sempre sua importância.
Uma explicação psicológica da queda, desenvolvida com correção
e clareza, encontra-se na Exposição do conceito paulino de doutrina, de
Usteri[93]. Agora, a teologia se tornou tão especulativa que despreza
essas coisas, pois é muito mais cômodo, naturalmente, explicar que o
imediato tem de ser abolido e ainda mais cômodo o que, às vezes, faz
a Teologia quando, na hora decisiva da explicação, ela se torna
invisível aos olhos de seus adoradores especulativos. A exposição de
Usteri tende a demonstrar que foi justamente a proibição de não
comer da árvore da ciência o que fez nascer o pecado de Adão. Ela
não desdenha, de jeito nenhum, o ético, mas reconhece que este por
assim dizer não faz senão predispor o que surge do salto qualitativo
de Adão. Não pretendo avançar mais nesta exposição, assim como
ela está dada. Todo mundo a leu ou pode ler, afinal de contas,
diretamente no seu autor[94].
O que falta a essa explicação é que não quer ser inteiramente
psicológica. Isto não constitui naturalmente nenhuma censura, pois
não era esse o seu intento, tendo colocado como objetivo
desenvolver a doutrina de São Paulo e apoiar-se nos elementos
bíblicos. Mas nesse aspecto a Bíblia tem produzido frequentemente
efeitos nocivos. Quando começamos uma investigação, temos já na
cabeça certas passagens clássicas, e a explicação e o saber aos quais
chegamos consistem num arranjo dessas passagens, como se o todo
nos fosse inteiramente estranho. Quanto mais natural, tanto melhor,
embora estejamos dispostos a confrontar no maior respeito a nossa
explicação com o juízo da Bíblia e, caso este não combine com
aquela, tratar então de procurar uma nova explicação. Não
chegaremos assim à posição arrevesada de precisarmos entender a
explicação

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