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Outubro/ 2019 Professor/autor: Dr. Jonathan M. Menezes Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de desenvolvimento institucional Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 3Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | SUMÁRIO Metodologia da Pesquisa Científi ca Unidade I - Caminhos e descaminhos do saber - Parte I Introdução..............................................................................................................................04 1. Quando saber não é o bastante...........................................................................................06 2. O "fazer" que há no "pensar"...............................................................................................13 3. O saber e a complexidade..................................................................................................23 Unidade II - Caminhos e descaminhos do saber - Parte II Introdução..............................................................................................................................29 1. O péssimo hábito da literalidade e do prejuízo................................................................30 2. Transformando inteligências e não infl ando egos..........................................................35 3. A coragem de saber apenas em parte.............................................................................44 4. Coda: sobre ser menos......................................................................................................51 Unidade III - Nas trilhas da argumentação acadêmica: por uma cultura de tolerância e diálogo Introdução................................................................................................................57 1. A construção da argumentação acadêmica...................................................................58 2. A construção de uma cultura de tolerância e diálogo...................................................69 Unidade IV - A escrita acdêmica e a prática da pesquisa Introdução..............................................................................................................................86 1. A escrita acadêmica: experiências, princípios e tipologias.............. .............................87 2. A prática da pesquisa......................................................................................................102 Resultado dos exercícios....................................................................................................115 | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA4 UNIDADE I – Caminhos e descaminhos do saber (parte 1) Introdução Há muito tempo o famoso adágio atribuído ao fi lósofo Sócrates, que dizia “só sei que nada sei”, vem sendo utilizado para signifi car muitas coisas, sendo que a principal provavelmente reside na ideia de que o saber (ou melhor, a sabedoria) começa com o reconhecimento da própria ignorância. Em outras palavras, sábio é quem tem a explícita consciência de que seu saber, por maior que seja, nunca é sufi ciente. Além de demonstrar sabedoria, isso também seria um sinal de humildade. E percebe-se que, em certa medida, essa sabedoria já se encontra há algum tempo presente em formalidades da prática acadêmica, através do reconhecimento, que se pode ver em muitos trabalhos dessa natureza, de que não se pretende ter “a última palavra sobre o assunto”, ou que esse é “apenas um ponto de vista sobre a questão”, dentre outras formas. Contudo, ao atentar para a realidade, parece-me que aqui estamos repetindo o óbvio (de que não sabemos nem damos conta de tudo) para, muitas vezes (i.e., nem sempre), ocultar a arrogância e o orgulho que se nota em relacionamentos e debates (quando eles existem) no meio acadêmico. Ou seja, temos – e aqui me dirijo a nós, acadêmicos (professores, pesquisadores, estudantes) – sido capazes de formalizar a sabedoria e a humildade do adágio socrático, sem necessariamente permitir que ela transforme nossa conduta diante de nossos estudantes e pares. Assim, enquanto na teoria nós formalizamos e celebramos a humildade, na prática temos normalizado a empáfi a. Esse, sem dúvida, é um descaminho do saber; antigo, mas ainda vivo. Não pense, porém, que a academia é responsável por todo o orgulho intelectual – que acima chamei de “empáfi a” – existente no mundo. As discussões sobre política, religião e sociedade que temos presenciado nas redes sociais nos últimos anos são uma triste amostra de que o orgulho – que Lewis (2005, p. 162) chamou de “o estado mental mais oposto a Deus que existe” –, e seus consentâneos (a competitividade, a 5Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | vaidade, a intolerância, a falta de diálogo, etc.) tem se propagado sempre que alguém faz o que Kant (1983, p. 43) chamou de “uso público da razão”. Mais importante que o debate entre ideias tem sido “provar” que a sua ideia (ou ideologia) é a versão mais bem-acabada e mais próxima da verdade possível, o que naturalmente exclui as demais. Uma humanização (e humilhação) da vida intelectual torna-se uma via mais que necessária em tempos de violência simbólica e exclusão, na sociedade e não diferente em nossos petit comitês intelectuais. Existe uma humanidade em nós que está clamando por emergir em meio a um mundo hostil a ela. Essa é a assunção básica desse curso inteiro. Exercício de reflexão Tendo em vista a assunção básica (ou pressuposto, afi rmação central) acima exposta como sendo central a este curso, eleja três palavras que, em seu ponto de vista, representem três descaminhos ou desvios presentes na vida intelectual, de acordo com a percepção que você traz dela. Justifi que. Pelas razões acima apresentadas, decidi propor duas unidades iniciais para este curso, que versam sobre caminhos e descaminhos do saber e que tentam forjar, como pano de fundo, a estrada rumo a uma teologia humilhada, isto é, o tipo de teologia que emerge do seguimento radical de Jesus, o que pressupõe o esvaziamento do anseio por poder para tentar permanecer, enquanto “seres do conhecimento” (Nietzsche), na casa do amor. Escrevi-os para esta primeira parte da disciplina, pois entendi que de nada adianta falar de métodos, técnicas e metodologia da pesquisa, sem também fomentar uma refl exão sobre que tipo de pesquisadores, intelectuais e teólogos queremos ser. O que proponho aqui, para você que está cursando essa disciplina online, portanto, é resultado de meses de conversas honestas, de refl exão e partilha com meus e minhas estudantes do primeiro ano de teologia presencial na Faculdade Teológica Sul Americana, no contexto desta mesma disciplina de Metodologia. Aqui veremos que metodologia é mais do que o domínio | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA6 de práticas e técnicas, mas signifi ca pensar sobre como eu as utilizo e por que. Objetivos da unidade 1. Reconhecer caminhos e descaminhos possíveis da vida intelectual; 2. Desenvolver uma visão teológica sobre a questão do saber e a complexidade que envolve seus usos (pensar na questão do “como”); 3. Promover a humildade e amor como antídotos contra a vaidade e o orgulho na vida intelectual do/a teólogo/a. 1. Quando saber não é o bastante O saber ou conhecimento ensoberbece (dá lugar à arrogância), mas o amor edifi ca. Conhecemos bem esse texto paulino da epígrafe (1Co 8:1). Quantas vezes não o utilizamos para o despropósito de dizer que o conhecimento não vale de nada; que a razão atrapalha a fé; ou, pensando particularmente em nosso caso (que trabalhamos com educação teológica), que o sujeito se torna descrente se estuda e se aprofunda demais. Mas será que é isso que Paulo está dizendo? Se olharmos atentamente a toda a passagem (8:1-13), veremos que o conhecimento é um elemento importante aqui, mas não é o centro da questão. O centro tem a ver com uma disputa entre facções dentro da comunidadecristã sobre a licitude de comer um certo tipo de comida (aquela que era sacrifi cada aos ídolos). A existência de facções não é uma grande surpresa se considerarmos que isso aconteceu na cidade de Corinto. Corinto era uma cidade multicultural. Nela conviviam judeus, cidadãos romanos, gregos, imigrantes (sírios e egípcios); era uma verdadeira Babel sociocultural. Era também uma cidade plurirreligiosa. A adoração 7Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | monoteísta caminhava lado a lado com a politeísta (deuses greco- romanos, deuses estrangeiros, sem falar no próprio Imperador). A igreja, por sua vez, não estava alheia a essa diversidade. Era étnica (judeus e “pagãos”) e socialmente diversa – do tesoureiro da cidade ao escravo; de camponeses à gente da elite. Corinto não era Atenas, mas a classe alta nutria pretensões fi losófi cas e se orgulhava de seu conhecimento e sabedoria. A questão do texto está diretamente associada a isso. Por um lado, judeus e cristãos, agradecem a Deus pela comida; por outro, os pagãos honram aos deuses nos atos de celebração envolvendo refeição. A comunidade cristã em Corinto estava dividida entre, pelo menos, duas facções: (a) Os “fortes”, eram aqueles que diziam, acertadamente, que ídolos e deuses não eram nada, pois no fundo só há um Deus. Eram “fortes”, porque privilegiados por esse “conhecimento” e pela “liberdade” que gozavam na participação social; (b) os “fracos”, em geral, eram provavelmente pagãos recém-convertidos; em sua vida anterior, estavam acostumados com o sacrifício aos ídolos, por isso, ao ver irmãos e irmãs participando dessas refeições, sua consciência era maculada, escandalizada. Saiba mais! ‘Em uma cidade como Corinto, carne sacrifi cada representava quase toda carne disponível para consumo, já que os tempos funcionavam, na prática, como uma combinação de açougue e restaurante. Uma oferta animal era trazida e oferecida em adoração a esta ou aquela divindade e, em seguida, a família desfrutava da refeição; o que sobrava era vendido no mercado aberto. Algumas grandes comunidades judaicas em cidades como Corinto teriam ao seu próprio açougueiro kosher; em muitos casos, porém, judeus optavam por evitar totalmente | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA8 o consumo de carne, não apenas por causa de regras a respeito de sangue, mas porque evitavam a adoração pagã e tudo que a acompanhava. É neste ponto que a carta dos líderes de Jerusalém (Atos 15) talvez precisasse ser reelaborada. Paulo reiterou o teor da carta sobre moralidade sexual, e, nesse aspecto, não há margem para manobras, nem princípio de “tolerância” para opiniões diferentes. O que vemos em 1Coríntios 8–10, discutindo templos e carne sacrifi cada aos ídolos, é uma discussão sofi sticada e delicada sobre os desafi os pastorais envolvidos no tratamento de duas opiniões diferentes, chamadas por ele de “forte” e “fraco”. Esses são termos técnicos de Paulo; aqueles com consciência “forte” são os que, como ele, sabem que os ídolos não existem, de modo que a carne oferecida para eles não passa de carne, ao passo que os “Fracos” são aqueles que, depois de uma vida dedicada à adoração de ídolos, imaginam-se participando da vida de determinado deus ao comer da carne sacrifi cial, e agora não podem tocá-la sem sentirem-se arrastados de volta para o mundo sombrio da idolatria e tudo mais relacionado a esse mundo’. (Fonte: Wright, 2018, p. 283) Tudo isso chegou a Paulo, algum tempo após sua partida, em forma de bomba relógio: mais hora, menos hora, o confl ito iria explodir e se tornar insustentável. Sua preocupação pastoral e recomendações nos traz, ainda hoje, luz sobre o que fazer, como cristãos maduros e sóbrios (1Co 10:15), diante de disputas facciosas. Primeiro: Aprender a temperar nosso conhecimento com amor. Como fala a pessoas maduras, Paulo começa com um paradoxo: (a) todos temos algum conhecimento (v. 1); (b) mas quem acha que sabe, ainda não aprendeu como saber/pensar. É preciso desconfi ar do que já sabemos 9Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | e de como fazemos uso do que sabemos, porque o conhecimento infl a (ensoberbece, nos faz orgulhosos), e se torna instrumento de destruição (ser mais que os outros). E isso é muito importante: uma pessoa pode até desempenhar uma função ou realizar uma performance melhor que outra pessoa, mas isso não faz dela uma pessoa melhor. A questão não é abandonar o conhecimento, mas aprender a temperar o saber com o amor. É perguntar se o conhecimento nos faz pessoas melhores (e não apenas mais sabidas). Além disso, reconhecer que a gente só sabe em parte (1Co 13:9) é um modo cristão autêntico de habitar harmoniosamente na casa do conhecimento e na casa do amor, até que os dois formem uma só casa. Segundo: Aprender que, mais que o saber, o que importa são as pessoas. Paulo diz: eu sei, vocês sabem – o ídolo não é nada! Deus é tudo, há somente um Deus! Essa comida é igual a qualquer outra. Mas não é todo mundo que sabe disso. Portanto, saber não basta, não pode preencher tudo. “O conhecimento verdadeiro não é insensível” (TAM). Não é insensível ao outro, à pessoa, que está além do saber, o irmão e a irmã de caminhada, a quem prezamos. Na década de 1970, em O sofrimento que cura (2002), Henri Nouwen dizia lamentar ver sua igreja dividida em questões (gênero, homossexualidade). Então dizia que uma igreja dividida em questões, tende a se esquecer das pessoas. Hoje somos um país também dividido por questões (políticas, ideológicas, religiosas, sociais, etc.). Por causa dessas coisas nos tornamos inimigos de quem pensa e se posiciona de modo diferente, ao ponto de demonizar e excluir tal pessoa de nosso rol de relacionamentos. Não cristãos fazem isso; cristãos também. Jesus, o fundador e cabeça da Igreja, porém, sempre acreditou que entre nós podia e devia ser diferente: que o primeiro é o que serve; que mulheres e homens têm igual importância; que os últimos serão os primeiros; que pequeninos, pecadores, publicanos e prostitutas nos precederiam no reino dos céus; que pessoas importam mais que coisas ou questões. Resta saber se nós acreditamos em Jesus a ponto | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA10 de abraçar a sua própria fé, que vai na contramão do que a dita “fé Nele” muitas vezes se transfi gurou na história do cristianismo. Terceiro: Aprender que com grandes saberes vêm grandes responsabilidades. A começar pela responsabilidade de não colocar “em prática” tudo o que sabe; a abrir mão do “meu direito”, da “minha liberdade”. É obvio que, numa sociedade capitalista, liberal, narcisista e individualista isso soa como uma tremenda heresia! Mas Paulo era “universalista” – no sentido de Alain Badiou (2009) deu ao termo (veja o Glossário abaixo) – e acreditava que, às vezes, o particular precisa ser sacrifi cado em favor do todo, muito antes disso ser tão polêmico como é hoje. E mais: ele usou seu próprio exemplo como alguém que, “mesmo livre das exigências e expectativas de todos”, tornou-se “voluntário para com todos a fi m de ganhar todo tipo de gente” (1Co 9:19, TAM). Ele não queria só falar, mas também encarnar a mensagem. UNIVERSALISMO A tese de Badiou é a de que Paulo é o fundador do “universalismo”, entendido, a grosso modo, como a produção de um sujeito ou de uma pessoa “universal”, cujo centro de orientação ético-experiencial e/ou vida, a partir do evento do Cristo ressurreto, não se limitaria mais a sua particularidade (étnica, religiosa ou de gênero, etc.), mas à sua nova identidade em Cristo, vide toda a discussão em torno de Gálatas 3:28, que é o texto das cartas paulinas mais citado por Badiou. Segundo ele, “Paulo mostra detalhadamente como um pensamento universal, partindo da proliferação mundana das alteridades (o judeu, o grego, as mulheres, os homens, os escravos, os livres etc.), produz um Mesmo e o Igual (não há mais nem judeu nem grego etc.)”. Assim, “a produção da igualdade,a revogação, no pensamento, das diferenças” seriam, para Badiou, “os signos materiais do universal” (Badiou, 2009, p. 127). O “Mesmo” nesse 11Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | caso, porém, não signifi ca “uniforme” nem uma proposta de supressão das diferenças. Pelo contrário, se a “proliferação mundana das alteridades”, como chamou ele, tem demonstrado historicamente que as diferenças geram rivalidades, criando um eu- separado ou coletivos sectários, a nova identidade ou humanidade em Cristo, por outro lado, diz: essas diferenças existem, não se trata de aboli-las, mas de ressignifi cá-las a partir do encontro: do “eu” com Cristo, consigo e com o próximo. Deste encontro nasce um “Nós” em Cristo Jesus, que é a Igreja, a reinvenção do povo de Deus, a expressão concreta desse universalismo. Trata-se, ainda mais, de um retorno à ideia de ser humano independente de suas vinculações tribais. Todos são simplesmente humanos em Cristo. Desse modo, sua recomendação foi: já que o ídolo não é nada; já que comer ou deixar de comer não nos faz mais próximos de Deus, nem melhores que ninguém, é o seguinte: abram mão! Não sacrifiquem as pessoas mais fracas por causa do seu conhecimento e da sua liberdade, não! Porque se vocês macularem isso, se vocês ferirem essas pessoas, ao próprio Cristo estarão fazendo. Então, podemos perguntar: como é a que a gente pode fazer isso, Paulo? É simples, ele disse, vocês têm que agir de modo semelhante a Jesus (Cf. Fp 2:5-11). Em outras palavras, na contramão de um mundo infl ado e tão cheio de si; na contramão de religiosos que só querem se encher do sobrenatural de Deus; na contramão de suas teologias, ideologias, e causas partidárias: ESVAZIEM-SE! Num mundo dividido em facções, hoje oro para que não nos esqueçamos de Jesus; nem de que naquela cruz todo direito e toda liberdade foram redimidos, mas também esvaziados. Que o saber, ainda mais o teológico, deve existir para ajuntar e edifi car, e não para dividir. Se vier a dividir, como ocorreu com Jesus, que não seja pela nossa soberba, mas pelo incômodo gerado por nosso testemunho e nossa obediência a Ele. | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA12 Exercício de Aplicação Agora leia o texto comentado acima, de Paulo em 1Coríntios. Fique com ele um tempo, refl ita; em seguida, responda à pergunta proposta logo abaixo: Quanto à pergunta sobre a comida sacrifi cada a ídolos, sabemos que todos temos conhecimento a esse respeito. Contudo, o conhecimento traz orgulho, enquanto o amor fortalece. Se alguém pensa que sabe tudo sobre algo, ainda não aprendeu como deveria. Mas quem ama a Deus é conhecido por ele. Então, o que dizer quanto ao alimento oferecido a ídolos? Bem, todos nós sabemos que, na verdade, o ídolo nada vale neste mundo, e que há somente um Deus. Sim, é fato que existem os que são chamados de deuses, por assim dizer, nos céus e na terra, e há pessoas que adoram muitos deuses e muitos senhores. Para nós, porém, há somente um Deus, o Pai, por meio de quem todas as coisas foram criadas e para quem vivemos. E há somente um Senhor, Jesus Cristo, por meio de quem todas as coisas foram criadas e por meio de quem recebemos vida. No entanto, nem todos sabem disso. Alguns estão acostumados a pensar que os ídolos são de verdade, de modo que, ao comer alimentos oferecidos a eles, imaginam que estão adorando deuses de verdade, e sua consciência fraca é contaminada. Não obtemos a aprovação de Deus pelo que comemos. Não perdemos nada se não comemos, e se comemos, nada ganhamos. Contudo, tenham cuidado para que sua liberdade não leve outros de consciência mais fraca a tropeçarem. Pois, se alguém vir você, que diz ter um conhecimento superior, comer no templo de um ídolo, acaso não será induzido a contaminar a própria consciência ao ingerir alimentos oferecidos a ídolos? Assim, por causa do seu conhecimento superior, um irmão fraco pelo qual Cristo morreu acaba se perdendo. E quando vocês pecam contra outros irmãos, incentivando-os a fazer algo que eles consideram errado, pecam contra Cristo. Portanto, se aquilo que eu como faz um irmão pecar, nunca mais comerei carne, pois não quero fazer meu irmão tropeçar. (1 Coríntios 8:1-13, NVT) 13Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | O que Paulo quis dizer com “o conhecimento traz orgulho, enquanto o amor fortalece” que pode ser aplicado para nossa vida? a) É preciso desprezar o conhecimento para não haver orgulho. b) O que conta é amar sem se preocupar com adquirir conhecimento. c) O importante é estar certo, sem preocupar com o que os outros pensam. d) É necessário temperar o conhecimento com amor. 2. O “fazer” que há no “pensar” Examinem todas as coisas. Fiquem com o que é bom. No tópico anterior, escolhi falar sobre a simplicidade da vida, de nossas escolhas, do modo como lidamos com o conhecimento que temos, da ideia de temperá-lo com amor, das pressões externas por produtividade, do anseio interno pelo poder. Entretanto, é preciso que se diga em alto e bom som: simplicidade não é simplismo, muito menos burrice. Explico: a moderação, como diz Eclesiastes, em tudo é boa ou “quem tema a Deus, evita os extremos” (Ec 7.18). Isso signifi ca, em nosso caso, que conhecimento sem simplicidade (e tudo o que ela agrega) vira cinismo, e o cinismo é autodestrutivo: só enxerga mazela em tudo e todos; não leva a nada. Mas simplicidade sem conhecimento vira pura ingenuidade, e logo somos enganados, levados de um lado para o outro como boiada. Portanto, nem o desprezo injuriado a tudo e a todos, nem a aceitação passiva e inquestionada parecem ser caminhos de sabedoria. Melhor é examinar tudo com cuidado. É sobre isso que, a meu ver, Paulo está falando no texto citado na epígrafe acima (ver: 1Ts 5:19-22). Trata-se de um chamado ao discernimento. Um chamado comunitário para examinar as profecias (não confunda com predições futuras, pois se trata da pregação evangélica), interrogar e denunciar o mal onde quer que ele exista, não perder o ânimo diante das | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA14 pressões externas, manter-se identifi cado com o Espírito a fi m de reter apenas o que é bom, e não se deixar coagir por outros “espíritos” (no caso de seu contexto específi co, podia ser Roma, os ditames da sociedade, a perseguição religiosa, etc.) e ser levado a pensar como eles. Quem pratica o discernimento tende a pensar com e não como o outro. Voltarei a esse ponto adiante. É uma tentação num mundo convulsionado pela informação rápida e disponível num piscar de tela de um smartphone, contentar-se com o mero dado, aceitar como veio sem querer saber mais, ater-se às manchetes do dia, ouvir e acolher apenas o que lhe agrada sem se importar muito com signifi cado e com refl exão. Aliás, se você não sabe, o Facebook já tem feito isso com maestria por você: seleciona, sobretudo, as notícias e postagens que te interessam, que concordam com seu pensamento, que se conformam com seus desejos e “ideais”. Com isso, ele nos diz todos os dias: você não precisa aceitar o diferente, você não tem de lidar com o incômodo, não precisa se escandalizar com o pensamento contrário, com o abjeto e indesejável colega de “direita” ou de “esquerda”, pois vamos fazer de tudo para criar um pequeno universo virtual de coisas e pessoas parecidas com você, prontinho para você só curtir ou compartilhar. E olha só: se alguém fi car espezinhando você, basta acionar o dispositivo de “block” e a paz reinará de novo! O Facebook quer nos dar o mundo ideal: o que mais se parece conosco. Contudo, nem toda paz é boa para se conservar, como bem nos alertou O Rappa. O conforto tem um preço e ele se chama “alienação”, que é a ação de transformar-se em alguém alienado, alheio, separado, distinto, distante; um quase alienígena em seu próprio contexto. A alienação pode até trazer comodidade, aliviar perturbações, evitar problemas; seu produto fi nal, porém, é o emburrecimento e o embrutecimento.E assim, emburrecidos e embrutecidos, quando colocados em coletivos ou em redes sociais, tendemos a tratar os outros (em especial, os mais diferentes de nós), quase naturalmente e sem peso na consciência, com burrice, rudeza e brutalidade; em alguns casos, como um peso morto 15Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | e, em outros, como um mal a ser extinto. Outro efeito da alienação em nosso tempo é que ela tem institucionalizado o ódio. E feito com que, em nome do combate ao “politicamente correto”, joguemos no lixo valores importantes como a compaixão, a generosidade, a bondade, a tolerância, o bem comum. Para nós, teólogos/as, eu arrisco dizer que esse é o lugar e o momento certo. Essa é a hora de fazer teologia, porque a melhor maneira de aprender teologia, para além dos livros e leituras (embora amando-os e apreciando-os), é quando estamos de ouvidos abertos e atentos ao mundo, e ao que o Espírito está fazendo no mundo, mesmo quando ele está partido e convulsionado como o nosso. A isso John Stott (1998) chamou de “ouvir duas vezes” (ao Espírito e ao mundo). Se não aprendermos a fazer teologia com os ouvidos, jamais aprenderemos a fazê-la bem com as palavras, e a convertê-la com efi cácia em vida. Por isso gostaria de tomar as recomendações de Paulo à comunidade de Tessalônica há mais de dois mil anos, para pensar no “fazer” que há no “pensar” teologicamente. Exercício de Fixação Conforme dito há pouco, nem toda paz é boa, no sentido de todos pensarem da mesma forma, rápida e sem refl exão, agregando somente o que lhe é favorável. Qual é a consequência disso? a) Discussões que geram crescimento. b) Alienação, emburrecimento e embrutecimento. c) Confronto que pode resultar em mudança de mente . d) Aprendizado com a experiência. Primeira recomendação: examinar tudo. A palavra grega no original é dokimázō, isto é, examine, julgue, prove, investigue. Não tome as coisas como óbvias, nem tire conclusões precipitadas, mas prove e discirna. | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA16 Se colocarmos uma comida na boca de um bebê pela primeira vez ele fará uma expressão estranha, e aquela expressão signifi ca que ele está provando. Não dá para saber se é bom ou ruim se não testar, se não examinar. O coração do sábio, diz Salomão (em Pv 18:15) está ávido por conhecer e, por isso, está sempre aprendendo. Então, a recomendação é clara: não acredite em tudo o que vê, nem rejeite só porque o outro disse que não presta, mas prove; não apenas o modo alheio (de agir ou pensar), mas pondo o seu próprio à prova. Pedro Demo (1995) disse que “quem não sabe pensar, acredita no que pensa. Quem sabe pensar questiona o que pensa”. O pensador será um transgressor por natureza quando aprender a transgredir mais o que ele propriamente ou impropriamente pensa que ao pensamento alheio. Saiba mais! Em meu livro Humanos, graças a Deus (2018), discuto a natureza da “transgressão”, que para mim é antes de tudo “transgressão de si”. Por isso decidi compartilhar alguns trechos aqui do capítulo 5: ‘Transgredir tem sido uma das tônicas do que tenho escrito em meu blog nos últimos anos – se meus escritos fazem jus ao uso da palavra, deixo ao leitor para que avalie. A mim, transgredir tem o sentido de um ato ou modo de ser-pensar em que me ponho programática ou despretensiosamente a quebrar as regras, as normas estabelecidas (e simplesmente seguidas sem questionamento), de transpassar o ato contínuo, obediente, impensado, de rebanho; é a força motriz que nos impele a sair do conforto, a não se acomodar com o status quo, a contestar certos valores, a aprender a receber com o mesmo contentamento tanto os presentes e dádivas como os golpes e até marretadas da vida. Escrever é transgredir! A escrita, para mim, é uma espécie de divã, um 17Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | lugar da permissão para transgredir a mim mesmo. E, como disse certa vez em uma aula meu mestre e amigo Gabriel Giannattasio: o que é a transgressão senão a transgressão de si? Ora, transgredir o outro é uma prática comum, corriqueira e, de certo modo, confortável. O desconforto gerado pela transgressão deve ir além daquele que o outro pode sentir, mas o que eu me permito sofrer ao transgredir a mim mesmo. Sem desconforto e dor, não há crescimento. Transgredir a si mesmo implica em escancarar as portas do eu, retirar todas as máscaras (ou as que são possíveis de retirar, até para nós mesmos), desfazer-se de toda e qualquer postura cênica e ser, assim, franco consigo mesmo, dando respostas honestas a perguntas honestas, parafraseando Francis Schaeffer. É colocar-se sob suspeita constante, suprimindo o medo paralisante frente aos possíveis resultados da suspeita. Esses últimos anos têm sido tempo em que me tenho colocado sob suspeita, e questionado muitas de minhas motivações, escolhas, sentimentos, pensamentos, posturas. Até que ponto posso afi rmar que sou aquilo que tenho tentado demonstrar/provar ser, a mim mesmo e aos outros? O quanto de dissimulação há em minhas palavras? Quais são as motivações escondidas por trás deste ou daquele modo de agir/pensar? Começo a perceber que minha pretensa transgressão vai muito além de ser honesto, ao ponto de admitir, sem reservas, quem sou. É preciso também encarar-se de frente. Trata-se de uma luta em frente ao espelho, todos os dias. E uma luta para não terminar como Narciso: sozinho e emocionalmente entorpecido perante a própria imagem... (...) Percebo, enfi m, que transgredir a si mesmo passa pela desconfi ança do óbvio, do dado, do ponto pacífi co; é mergulhar profundamente na realidade de quem somos, por mais penosa e desagradável que seja. Este também é um (pretensioso, talvez) convite permanente que farei ao leitor ao longo deste livro’. (Fonte: Menezes, 2018, pp. 26-28) | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA18 Segunda recomendação: não desprezar. Exoutheneo é o termo grego aqui utilizado, que insta a não tratar com desdém, com desprezo, nem ridicularizar ou rejeitar desqualifi cando. No texto ele se refere à profecia ou à pregação (5:20). Considere que cada recomendação está ligada à anterior: não desprezar é o ato conseguinte de examinar. Quantas vezes não desprezamos sem provar? Quantas vezes não provamos e, logo em seguida, desprezamos? Mas Paulo diz: antes prove e não despreze logo de cara. É possível julgar, fazer a crítica devida, apropriar-se do que for possível, sem desprezo nem desconsideração ao outro. O Espírito pode estar realizando seu trabalho naquela pessoa, mesmo que eu não concorde com nada do que ela diz, ou com sua forma. Muita gente desempenha seu papel de modo sincero e bem-intencionado. E Deus continua utilizando quem Ele quer e como quer. Então, não pense que você é “a nata” de Deus. Porque Deus escolhe os que não são, e fala pelos meios menos convencionais. Texto de apoio Mais uma vez, a sabedoria paulina nos é tremendamente útil nesta refl exão: A mensagem da cruz é loucura para os que se encaminham para a destruição, mas para nós que estamos sendo salvos ela é o poder de Deus. Como dizem as Escrituras: “Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes”. Diante disso, onde fi cam os sábios, os eruditos e os argumentadores desta era? Deus fez a sabedoria deste mundo parecer loucura. Visto que Deus, em sua sabedoria, providenciou que o mundo não o conhecesse por meio de sabedoria humana, usou a loucura de nossa pregação para salvar os que creem. Pois os judeus pedem sinais, e os gentios buscam sabedoria. Assim, quando pregamos que o Cristo foi crucifi cado, os judeus se ofendem, e os gentios dizem que é tolice. Mas, para os que foram chamados para a salvação, tanto 19Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | judeus como gentios, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. Pois a “loucura” de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, e a “fraqueza” de Deus é mais forte que a força humana.Lembrem-se, irmãos, de que poucos de vocês eram sábios aos olhos do mundo ou poderosos ou ricos quando foram chamados. Pelo contrário, Deus escolheu as coisas que o mundo considera loucura para envergonhar os sábios, assim como escolheu as coisas fracas para envergonhar os poderosos. Deus escolheu coisas desprezadas pelo mundo, tidas como insignifi cantes, e as usou para reduzir a nada aquilo que o mundo considera importante. Portanto, ninguém jamais se orgulhe na presença de Deus. Foi por iniciativa de Deus que vocês estão em Cristo Jesus, que se tornou a sabedoria de Deus em nosso favor, nos declarou justos diante de Deus, nos santifi cou e nos libertou do pecado. Portanto, como dizem as Escrituras: “Quem quiser orgulhar-se, orgulhe-se somente no Senhor”. (1Co 1:18-31, NVT – grifos meus) Terceira recomendação: preservar o bom. O “bom” aqui é kalos, ou o que é próprio, bonito, valioso. O que vale a pena ser preservado? Segundo que critério? Paulo não responde a essas perguntas. Considerando, porém, a quarta recomendação (que veremos a seguir), o bom aqui é resultado de uma decisão, baseada no discernimento, no bom senso, no ouvido atento ao Espírito, na sensibilidade à luz da Palavra. Paulo está sendo, portanto, prudente: antes ele disse “não despreze”, e agora está dizendo, grosso modo, para que não aceitemos tudo sem critérios, desleixadamente. A aceitação acrítica é também uma forma sutil de desprezo, como quando alguém te diz algo importante e você responde com um desdenhoso “tá bom” – que, no fundo, quer dizer “não estou nem aí para isso”! O teólogo que escuta mais do que fala será capaz de ser rigoroso e terno, sensível e criterioso, tudo ao mesmo tempo numa atitude própria de quem não separa o coração do ato de pensar, tornando-se o que C. S. Lewis chamou de “homem sem peito”. | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA20 Homens sem peito Recordando disse Lewis em A abolição do homem: “Numa batalha, não são os silogismos que vão manter os relutantes nervos e músculos em seus postos na terceira hora de bombardeio. O mais rude sentimentalismo... em relação a uma bandeira, país ou regimento será bem mais útil” (Lewis, 2005, p. 22). Para Lewis, além de “cerebrais” (racionais) e “viscerais” (passionais), precisamos de “homens de peito” (íntegros, magnânimos na atitude, no sentimento), pois o peito é o elemento intermediário que transforma o homem em homem (e a mulher em mulher, para utilizar a linguagem inclusiva), enquanto, “pelo intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal” (Lewis, 2005, p. 23). O que tudo isso me leva a pensar? As “ideias boas” e bem articuladas, em si, podem convencer, mas não transformam, não geram “homens de peito”, na acepção de Lewis, no máximo, homens que, para fi ns mais “sublimes”, correm o risco de ignorar a parte do meio, pois, como reitera ele (ora se referindo a certos racionalistas de sua época), “não é o excesso de pensamento que os caracteriza, mas uma carência de emoções férteis e generosas. Suas cabeças não são maiores que as comuns: é a atrofi a do peito logo abaixo que faz com que pareçam assim” (Lewis, 2005, p. 23). Quarta recomendação: não apague o Espírito. Apagar aqui é sbennumi, que também signifi ca “extinguir” ou “suprimir”. Como alguém pode extinguir o Espírito de Deus? Não podemos extingui-lo da vida. Mas podemos extingui-lo de nós mesmos, calando-lhe a voz, ignorando a direção (ou caminhando na contramão) do vento. Já disse que toda boa teologia começa antes com o ouvir que com o falar, e na prática de ouvir a oração é indispensável. Karl Barth (2003, p. 101) disse que a oração é “o primeiro e fundamental ato do trabalho teológico”. Não se trata apenas 21Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | de dobrar os joelhos (embora Barth também diga que quem não dobra os joelhos, não pode se levantar), mas de deixar com que Deus dobre nosso espírito, envergue nossa vida, realize seu trabalho em nós, subtraindo- nos de nós mesmos, e fazendo sua luz brilhar ali no espaço em que só resta Ele: falando, agindo, nos interpelando. Espera-se que essa abertura ao Espírito se converta numa abertura ao outro, ao diferente e ao novo. De acordo com João Batista Libanio, normalmente nossa rejeição ao novo tem a ver com uma insegurança e um medo inconscientes. Onde atua o Espírito, porém, ali há liberdade (2Co 3:17) e, como expressa Libanio, “a abertura para o novo só é possível na liberdade”. Ele também defende a ideia de que essa abertura ou fechamento ao diferente também se confi gura como abertura ou fechamento diante de Deus, “que se manifesta ao ser humano como diferente, como o outro, como totalmente outro”. Em resumo: toda “boa” teologia começa com uma escuta atenta, em atitude de oração; mas também tem a ver com uma abertura, prontidão e suscetibilidade crítica para receber o diferente. Jean-François Lyotard em The inhuman, diz que “estar preparado para receber aquilo que a mente não está preparada para pensar é o que merece ser chamado de pensamento” (Lyotard, 1988, p. 73). E também afi rma que todo pensamento (do impensável) envolve dor. Explicando: estamos acostumados com o “já-pensado” e é mais habitual e confortável lidar com esse conjunto de saberes e práticas que estão conformados ao “já-pensado” (Lyotard, 1988, p. 20). No entanto, não há nenhum desafi o em pensar o que já foi pensado – na verdade, é até um contrassenso ao discernimento sobre o qual venho falando. O desafi o é receber e lidar com o não-pensado. E o não-pensado dói, porque muitas vezes entra em choque com o que já havíamos pensado antes – ou alguém em nosso lugar. Por isso, retornando a um argumento anterior, pensar o já-pensado é pensar como – conforme sempre pensamos, aprendemos e aceitamos; já pensar o não-pensado é pensar com, isto é, pensar junto, ao mesmo tempo, não apenas aceitando, mas também ajudando a construir esse novo jeito de pensar. | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA22 A última recomendação de Paulo não é menos importante: abster-se do mal. De “toda forma” de mal (ponēros, i.e., o ato mal, a malevolência, a maldade pura e simples). Jogar fora tudo o que tenha essa feição malevolente. É discernir o mal e afastar-se dele. Pois o pensamento que se reveste do mal é o pensamento que fere todas as recomendações anteriores. E a melhor forma de abstenção do mal, como Jesus nos ensinou, é usar e oferecer o bem como moeda de troca. E não apenas pregar o bem, mas personifi cá-lo. Nisso consiste a vocação da teologia: que ela seja um pensar no qual também se imponha um fazer. E que esse fazer gere frutos, e que esses frutos sejam dignos de arrependimento. Exercício de Fixação Para recapitular o chamado ao discernimento feito por Paulo aos Tessalonicenses, quais são as recomendações feitas pelo apóstolo em 1Ts 5:19-22? a) Examinar tudo, rejeitar o que é fraco, preservar o que é bom, não apagar o Espírito, abster-se do que é diferente. b) Examinar tudo, não desprezar, preservar o que é bom, não apagar o Espírito, abster-se do mal. c) Examinar o que te interessa, não desprezar, preservar o que é bom, não apagar o Espírito, fugir do mal. d) Examinar tudo, não desprezar, preservar o que é bom, não apagar o Espírito, abster-se do que é diferente. 23Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | 3. O saber e a complexidade Vocês falam como especialistas. Até parece que, quando morrerem não sobrará ninguém para ensinar outros a viver. (Jó 12:1, TAM) Nesse tópico falarei sobre os desafi os que a complexidade da vida traz ao saber, e o transpassar desses limites por quem acha que o saber (teológico) tem resposta para tudo, pode sistematizar tudo, e até mesmo possui presciência sobre a vida, sobretudo a dos outros. Para tanto, utilizarei como estudo de caso aqui Jó e seus “amigos”, aos quais chamarei aqui de “doutores destino” – em clara alusão ao personagem “Doutor Destino” das histórias em quadrinho da Marvel, cujacaracterística principal é o orgulho exacerbado. Não fi ca difícil, portanto, identifi car o alvo principal de minhas preocupações aqui: o chamado “orgulho intelectual”. O livro de Jó é como uma grande peça teatral, com personagens marcantes assumindo falas em diferentes atos. Não se trata de um livro doutrinário ou sistemático, mas de uma poderosa e inquietante parábola sobre a vida e o sofrimento humanos. O enredo conhecemos bem: Jó, um homem íntegro e fi el a Deus, tinha uma vida próspera e era um dos homens mais importantes de todo o Oriente. Indo prestar contas ao Eterno, Satanás coloca a integridade e fi delidade de Jó em cheque, dizendo que ele se portava assim porque tudo ia bem com ele. “Retire tudo o que ele tem, e veremos onde vai parar essa fi delidade!”. O Eterno, então, permitiu que tudo lhe fosse retirado, porém, sem nenhuma consequência fatal. E assim se fez, tudo na vida de Jó entrou em colapso como num efeito cascata: primeiro foram os bens materiais, depois a família e, por fi m, a saúde de Jó. E nada de Jó pecar. Vieram seus amigos (Elifaz, Bildade e Zofar), que permaneceram a seu lado em silêncio, velando-lhe o profundo sofrimento durante setes dias e sete noites. Ao fi nal daquele tempo, Jó, não suportando mais a dor e miséria absurdas em que caíra, quebrou o silêncio e começou a amaldiçoar o dia de seu nascimento, questionar a razão de ser de sua existência e a despejar toda a sua revolta em Deus, colocando em pauta a questão do “sofrimento do justo”, tema recorrente nos livros de sabedoria do AT. | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA24 Sua indagação central foi: por que Deus permitiu que eu, um homem reto e bom, viesse a sofrer tamanho revés, tamanha miséria e a experimentar tão grande amargura na vida, a ponto de desejar a própria morte? Onde foi que eu errei para que a morte invadisse minha vida dessa maneira? Como o infortúnio lhe atingiu de modo certeiro e avassalador, Jó não tinha em quem descontar, de modo que o alvo mais natural nesse caso era o Eterno, a quem ele servia e era fi el. “Por que, Deus!? Por que eu? Por que dessa forma tão cruel?”. Quando o infortúnio e as más notícias batem à porta, as respostas tendem a sair logo correndo pela janela. A sensação de solidão e abandono é recorrente. E quem mais poderia suportar-nos nessa hora senão o Eterno? Os “amigos”, porém, não entenderam assim, e logo também saíram das sombras e do silêncio, bancando os paladinos de Deus, mas de fato desempenhando o papel de “advogados do Diabo”. Sabe aquele grupo que liga as antenas logo que vê alguém falando de Deus e não perde a oportunidade de pular no pescoço de quem quer que possa estar dizendo algo que venha “machucar Deus” (ou o Deus de sua ortodoxia ou de sua teologia)? Esses foram os “amigos” de Jó. Eles foram capazes de fi car em silêncio compreensivo só enquanto o amigo igualmente permanecera em silêncio, como se sua dor fosse menos “doída” e (para eles) menos escandalosa porque silente. Mas quando ele passou a gritar e a lamentar, eles saíram da condição de amigos para a de juízes e “doutores destino”, sabedores do que Deus pensa e porque as coisas acontecem como acontecem, implementando uma lógica própria: a de causa e efeito. A teologia dos amigos de Jó, como bem notou Caio Fábio em seu livro O enigma da graça (2002), é a “teologia moral de causa e efeito”. Para eles, a vida de pessoas verdadeiramente inocentes e íntegras não pode acabar em desgraça, porque elas não semeiam isso; quem semeia bondade só colherá bondade. Para eles, somente “aqueles que cultivam o mal e semeiam a desgraça colhem exatamente isso”, como disse Elifaz (Jó 4:8). Segue-se que o problema de Jó e a situação em que se encontrava 25Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | tinha uma causa ou razão certa: é porque ele estava em pecado, e é porque não era justo nem íntegro como reivindicava ser. De fato, a sabedoria bíblica atesta que “não há uma única pessoa perfeita no mundo; nenhuma que seja pura e sem pecado” (Ec 7:20). A retidão de Jó indicava um caminho de obediência, mas não uma vida sem pecado. Inteiramente diferente, porém, é dizer que ele caiu nessa situação porque era pecador; se assim fosse, como explicar a situação de tantas pessoas que vivem em pecado, mas não sofrem o mesmo tipo de consequência? O problema do sofrimento do justo é, portanto, consentâneo ao da prosperidade do ímpio. De mais a mais, com um raciocínio tão simplista baseado na lei do “toma lá, dá cá” (alguém só recebe aquilo que realmente merece), os conselhos não poderiam ser menos molestos do que os que foram por eles apresentados, como os de Zofar a Jó: é o seguinte, você pecou, fez besteira e isso é um fato, do contrário não poderia estar na situação em que está. Então, abra o coração para Deus e peça ajuda; se você abandonar o mal, limpar das mãos o pecado, “você poderá encarar o mundo sem sentir vergonha e andar seguro sem medo nem culpa. Você esquecerá das suas angústias: elas não passarão de vagas lembranças”. E mais: “o sol vai raiar e brilhar para você, e toda sombra será dispersa ao romper da manhã” (Jó 11:13-16). Simples assim. Praticamente uma fórmula mágica! Ora, a resposta de Jó não poderia ser outra e provavelmente ocorreria a qualquer ser humano sensível, e se revela no sentimento de traição e desamparo: “Alguém desesperado pelos amigos deveria ser amparado, mesmo que desistisse de confi ar no Todo-poderoso ...). Vocês apontam o que há de errado em minha vida, mas respondem à minha angústia com conversa fi ada (Jó 6:14, 26). A resposta honesta de Jó me lembra das considerações de C. S. Lewis em seu livro A anatomia de uma dor, escrito por ele em seu período de luto pela morte de sua esposa. Ali Lewis revela que em sua busca por Deus | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA26 em meio a luto, tudo o que conseguiu encontrar foi “uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio” (Lewis, 2006, p. 31). Também assevera que a dor não diminui nem o tormento vai embora com consolos molestos, por mais bem-intencionados que sejam, nem com “evasivas”, discursos com ornamentação rebuscada ou explanações teológicas de toda sorte. Em sua experiência, o luto não é menor porque alguém diz que sua esposa “está melhor porque está com Deus”. E conclui acertadamente que, “quando você está lidando com Deus, é possível cometer toda sorte de equívocos” (Lewis, 2006, p. 66). Jó podia (e tinha, de certo modo, permissão para) estar equivocado porque ele falava de um lugar equívoco, o lugar da dor excruciante. Como cobrar bom senso e “doutrina reta” de alguém nessa situação? Mas o equívoco dos “amigos” foi maior, pois falavam de Deus priorizando a retidão da letra e não a singeleza do coração. Se o coração for duro, insensível e indolente, a letra, mesmo quando reta, será letra morta e também, como diria Paulo, letra que mata. Não é à toa que Jesus não veio chamar gente (que se acha) justa e reta, mas pecadores ao arrependimento. Usando a metáfora de Brennan Manning (2005, p. 73-74), ele não veio para a elite espiritual e teológica, o pessoal da “auréola apertada”, mas para os maltrapilhos, isto é, a turma da “auréola torta”. Só quem passa pela grande miséria – ou que ao menos reconhece sua miséria – pode também passar pelo grande arrependimento. Exercício de aplicação De acordo com o que foi lido sobre o saber e a complexidade, qual é a virtude de Jó que é fundamental para nossa vida intelectual e se relaciona com os objetivos de nossa unidade? a) Retidão b) Sabedoria c) Superação d) Honestidade 27Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | Para concluir, uma oração Gostaria de terminar minha refl exão sobre esses dois casos orando assim: Que Deus me ensine a fazer teologia a partir do lugar da incompletude, da falta e, por isso, do arrependimento. Que Ele me livre dos consoladores molestos, sim! Mas que me livre,sobretudo, de me tornar um; que afaste de mim o orgulho intelectual. Pois não há risco mais óbvio que o de nos tornamos apenas mais uma variação ou versão sofi sticada daquilo que mais abominamos. Por essa razão, ainda fi co com o bom senso advindo da Palavra de Deus, que me instrui aqui e acolá a evitar a frivolidade dos caminhos fáceis e a leviandade das respostas prontas, cujo convite é o do discernimento, da coragem e do enfrentamento da vida e suas intempéries, com confi ança e esperança no Deus de amor, sabedor de que Ele caminha com a gente, desde as montanhas mais altas aos vales mais escuros; das avenidas iluminadas aos becos da existência, sem que saibamos exatamente o “como” nem o “porquê”. Assim, que o orgulho intelectual, o péssimo hábito religioso da literalidade e do pré-juízo, bem como o seu famigerado gosto por repetições, não mais nos impeçam de encontrar Deus no lugar improvável, no aparentemente escuso e no inesperado. Pois teologia e fé que não se deixam surpreender por Deus são coisas tremendamente enfadonhas e pouco frutíferas; de novo, meras repetições. | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA28 Referências BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. BARTH, Karl. Introdução à teologia evangélica. 8ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2003. KANT, Immanuel. Perpetual peace and other essays. Indianapolis: Hackett, 1983. LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LYOTARD, François. The inhuman. Refl ections on time. Cambridge: Polity Press, 1988. MENEZES, Jonathan. Humanos, graças a Deus! Em busca de uma espiritualidade encarnada. 2ª ed. São Paulo: Recriar, 2018. NOUWEN, Henri. O sofrimento que cura. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2002. PETERSON, Eugene. A Mensagem. A Bíblia em linguagem contemporânea. São Paulo: Vida, 2011. STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. Como ser um cristão contemporâneo. São Paulo: ABU Editora, 1998. WRIGHT, N. T. Paulo: uma biografi a. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2018. 29Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | UNIDADE II – Caminhos e descaminhos do saber (parte 2) Introdução Na primeira unidade, tratei de uma questão delicada e importante: a ética da vida intelectual, principalmente aplicada ao contexto de formação de novos/as teólogos e teólogas cristãos/cristãs. Utilizei como mote principal o famoso dito atribuído ao fi lósofo Sócrates “só sei que nada sei”, tanto para dizer que esta é uma assunção necessária, quanto para contestar a apropriação apenas formal, no contexto acadêmico, da sabedoria nela explícita. Lidei com os temas da arrogância, orgulho intelectual e a disputa por poder como os principais descaminhos do saber e da vida intelectual. Para fechar essa primeira parte do curso, uma introdução à vida intelectual, nesta unidade defenderei que a humanização (e humilhação) do intelectual torna-se uma via mais que necessária em tempos de egotismo exacerbado, violência simbólica e exclusão. Através dos dois últimos pontos que a seguir apresento, desejo fomentar a construção e vivência de uma teologia humilhada, isto é, o tipo de teologia que emerge do seguimento radical de Jesus, o que pressupõe o esvaziamento do anseio por poder para tentar permanecer na casa do amor. Que o Senhor nos guie em sabedoria, e mantenha nossas mentes e ouvidos abertos para aprender com sua Palavra. Objetivos da unidade 1. Compreender os problemas que o que chamo de “péssimo hábito da literalidade e do prejuízo” pode acarretar para a vida intelectual; 2. Identifi car benefícios do que Paulo chama de “renovação do entendimento” ou metanoia para a vida cristã e a vida intelectual; 3. Reconhecer o lugar e a importância da consciência no exercício da fé e para a convivência humana; 4. Desenvolver, ao menos inicialmente, a coragem de ser e de saber em parte. | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA30 1. O péssimo hábito da literalidade e do prejuízo Um dos grandes descaminhos do saber se encontra no que chamo aqui de “péssimo hábito da literalidade e do pré-juízo”. Pois, como já insisti anteriormente, tomar as coisas como dadas, tal como emergem na superfície, pode comprometer o juízo e a interpretação que oferecemos sobre as situações, os objetos de estudo, e as pessoas. O desafi o aqui é desconfi ar do dito e de meus pressupostos inicias sobre ele; é indagar sobre os possíveis “não-ditos” ou “mal-ditos” subjacentes nos ditos. Em suma, nem tudo é sempre tão óbvio quanto pode parecer. Ilustro com uma história. Certa vez, um pastor conhecido cantou a música “Epitáfi o”, dos Titãs, junto com sua banda em um dos cultos de sua igreja, e tomou esta decisão pois a letra desta música tinha muito a ver com a refl exão endereçada por um outro pastor convidado para trazer a mensagem pregada naquele domingo. Em seguida, publicou um trecho em vídeo daquele momento em sua conta no Instagram, e (como já era de se esperar) foi execrado por uma massa de “irmãos” (digo com certa relutância, em relação aqueles que julgam e condenam em nome da fé), não só por cantar uma música “secular” num culto cristão, mas por ser esta uma canção cujo refrão diz: “O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”. Sem entrar em mais detalhes ou no mérito (que não vêm ao caso), duas questões me preocupam nesse exemplo, sobre as quais quero comentar aqui. A primeira questão nasce do mui antigo dualismo sagrado versus secular. O pressuposto, nesse caso, é: existe música “do mundo” e existe “música de Deus”. Na igreja a gente só pode ouvir e cantar música de Deus (isto é, gospel), nunca do mundo. Escuto esse discurso sectário desde que me conheço como cristão, mas para mim ele nunca fez sentido (falo apenas por mim aqui, que fi que bem claro!). Explico. Porque tem música que se diz ser “pra Deus”, mas que simplesmente não consigo cantar (ou sequer suporto ouvir), porque fere meus ouvidos de tão ruim no conjunto letra, teologia e a melodia. Pode até comover, mas não muda um centímetro da vida; fala de Deus, mas só para massagear o ego. 31Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | Além disso, não me fazem pensar, não mexem com minhas entranhas, não me instam a olhar para o próximo, ao micro e macro ambientes que me cercam, a relacionar a Palavra com as questões do cotidiano, a adorar a Deus e celebrar a vida em comum-unidade, até porque centram-se quase inteiramente no indivíduo e seus problemas particulares. Como diz a canção “É proibido pensar”, de João Alexandre, “são sempre variações do mesmo tema, meras repetições” – e me pergunto até quando insistiremos em repetir e variar, em segregar e não pensar, em vociferar e não dialogar? Certas coisas parecem ser insuperáveis no meio religioso em que vivemos. Em contrapartida, tem tanta música feita por gente “do mundo” que consegue fazer o que falta a muitas canções cristãs: cantar as belezas divinas, sem necessariamente falar o nome de Deus, e retratar os dramas da vida humana e os gemidos da criação. Para citar só um exemplo dentre tantos: “Sol de primavera”, de Beto Guedes, é uma canção “do mundo” que pode ser entoada como hino a Deus, pois fala de dor, fraternidade e esperança, sobre semear a boa nova, sobre andar a segunda milha com quem chora, sobre aprender a viver e ser melhor. (É óbvio que tem muita música cristã que também faz isso com competência, mas esse tópico não é sobre elas). Pensando melhor (e aqui a/o convido a refl etir também): eu sou de Deus e eu faço parte do mundo; o mundo é de Deus (embora boa parte dele seja tomado pelo maligno), e todas as coisas boas nele existentes são fruto de Sua Graça; atributos invisíveis, como disse Paulo; imagem e semelhança do Criador. Se eu respiro, ando, vivo, canto, choro, sofro e me alegro dando ações de graças “em tudo”, não tenho razão alguma para perder tempo com dualismos religiosos infantis. Logo, não existe música de Deus versus música do mundo; existe música boaversus música ruim, e para todos os gostos. Portanto, discernir é preciso; segregar não é preciso. Agora, se não gosta ou não aprova; se para você esse tipo de fazer não convém a sua forma de fé (o que deve ser respeitado, sem dúvidas), ao menos não julgue nem discrimine quem vivencia sua fé com liberdade e gratidão – o que não tem nada a ver com “do jeito que bem entende ou quer” (se tem dúvidas sobre o que liberdade e gratidão | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA32 signifi cam biblicamente, releia o que escrevi sobre “essa tal liberdade” na unidade 1. O que digo aqui não deve ser colocado em choque com o que disse lá). Somente Deus conhece e examina o coração, lugar por excelência do louvor. Exercício de aplicação Em 1João 3.30, lemos: “E, ainda que a consciência nos condene, Deus é maior que nossa consciência e sabe todas as coisas”. É sobre esse texto que refl ete o podcast acima. Diante do que foi discutido até aqui e desse podcast, responda: “Que frutos o exercício da honestidade, um exame do coração e da consciência, pode trazer para a vida intelectual”? Acesse o AVA e ouça o Podcast para fazer o exercício! A segunda (e central) questão diz respeito ao péssimo hábito da literalidade e do pré-juízo. A música “Epitáfi o”, dos Titãs, parece-me ser apropriada para uma refl exão sobre essa vida que vivemos. “Epitáfi o” nada mais é que aquela inscrição da lapide do túmulo no cemitério. Geralmente ali se escreve aquilo que a pessoa foi, uma qualidade dela. Exemplo: “Aline, esposa fi el, mãe dedicada, mulher irrepreensível”. A música, porém, inverte isso e apresenta uma lista de coisas que a pessoa queria ter feito, mas não fez. Em suma, é como se ela dissesse: “Eu queria e devia ter vivido melhor, curtido intensamente os momentos singulares da vida, mas não consegui”. Fala de ideais de vida possíveis, mas de um lugar de impossibilidade: o instante da morte. Embora tratemos a morte com extrema recusa, estranhamento e medo muitas vezes, ela tem uma função pedagógica: lembrar-nos sobre como temos vivido e que valor damos à vida e às pessoas a quem mais amamos. A poesia dos Titãs, porém, chama atenção a dois problemas pelo menos (um prático e outro teórico) – que, por sua vez, não anulam a meu ver sua beleza poética e 33Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | sua utilidade para a refl exão, nem a torna necessariamente “proibida” de se cantar na igreja. Primeiro, mostra que, nos últimos instantes de vida, quando não há mais nada a ser feito, alguém lamenta o que poderia ter sido feito, mas não foi ou não fez. Segundo, afi rma que “o acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído”. Aqui chegamos ao coração da questão: o acaso – uma palavra que diz respeito a coisas que acontecem sem causa, sem razão aparente – ao que me parece, não escolhe a quem vai atingir, nem tampouco tem “protegidos”. Se tudo depender do acaso, então minha vida está nas mãos daquilo que há de mais incerto e implacável. O que pouca gente sabe, porém, é que o acaso é considerado biblicamente como parte integrante da existência, e não um mal a ser extinto (nem poderia). Senão, examinemos brevemente o famoso versículo do livro de Eclesiastes em que a palavra aparece: Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos. (Ec 9:11, NVI, grifos meus) O autor aqui desvela uma verdade inconveniente: nem sempre o que era para acontecer, segundo uma ordem esperada de coisas, acontece. O honesto nem sempre “vence na vida”; atos de bondade nem sempre são recompensados do mesmo modo; ou ainda, como se diz em outra tradução, “as pessoas mais capazes nem sempre alcançam altas posições. Tudo depende da sorte e da ocasião” (NTLH), ou do tempo e do acaso. A palavra em inglês para acaso é chance, e diz respeito a ausência de controle e presciência sobre tudo o que de bom ou de ruim acontece debaixo do sol. “Cedo ou tarde”, afi rma-se na tradução A Mensagem (TAM), “a má sorte atinge a todos”. Isso mesmo: todos! Mesmo os que creem na proteção divina, não estão blindados (isto é, completamente protegidos) contra ele. O acaso, portanto, pode não ter protegidos, como sugere o autor da canção, mas ninguém passa por esta vida sem ser | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA34 afetado/a por ele. É o que diz a Bíblia no livro de Eclesiastes. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! Texto de apoio Uma mudança aleatória nos padrões do tempo provoca muita ou pouca chuva sobre determinada região agrícola, destruindo a safra de um ano. Um motorista bêbado joga seu carro na contramão e colide com o Ford verde a alguns metros de distância do Volkswagen vermelho. O motor do avião do voo 205, em vez daquele do voo 209, entra em pane, infl igindo uma tragédia a um grupo de famílias e não a outro. Não há qualquer mensagem em tudo isso. Não há razão especial para que uns e não outros sucumbam à desgraça. Esses eventos não refl etem escolhas de Deus. Eles ocorrem ao acaso, e a casualidade é outro nome para o caos, naqueles cantos do universo onde a luz criativa de Deus ainda não penetrou. E o caos é mau. Não que seja errado ou malévolo; não obstante, ele é mau, por provocar tragédias ao acaso e, assim, impedir as pessoas de crerem na bondade de Deus. (...) O caos residual, a sorte e o azar, coisas que acontecem sem razão, continuarão conosco – o tipo de mal que Milton Steinberg chamou de “andaimes ainda não removidos do edifício da criatividade de Deus”. Nesse caso, teremos simplesmente de aprender a conviver com ele, sustentados e confortados pelo conhecimento de que o terremoto e o acidente, como o assassinato e o roubo, não são da vontade de Deus, mas representam aquele aspecto da realidade que, a despeito dela, subsiste, e que angustia e entristece a Deus da mesma forma que nos angustia e entristece. (Kushner, 2008, p. 71, 73, grifos meus) O habito da literalidade é “péssimo” porque não nos permite questionar, não nos capacita a lidar com os paradoxos, a ponderar o imponderável, não admite “contradições” de toda sorte – embora as Escrituras mesmas 35Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | coloquem essas contradições bem diante dos nossos olhos, só não vê quem não quer. Então, julgamos quem canta a música dos Titãs como “traição à fé” (resta saber de que fé estamos falando), sem saber o que cada um carrega no coração quando canta, e como se apropria da canção. Os detratores do pastor e sua comunidade não estiveram no culto naquele dia, e não poderiam ter a dimensão do signifi cado que aquela canção teve para aquelas pessoas ali reunidas. Não obstante, como é usual no meio religioso, deixaram-se levar pelas aparências, optaram pelo caminho da segregação, do ódio e do julgamento típicos de uma certa religião. Afi nal, sempre é mais fácil julgar do que compreender, condenar do que discernir, empregar fórmulas mágicas do que enfrentar a complexidade da vida de peito aberto e com a franqueza de às vezes poder dizer “eu não sei”. Porque é mais honesto. 2. Transformando inteligências e não inflando egos “Não imitem o comportamento e os costumes deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma mudança em seu modo de pensar” (Rm 12:2a, NVT). O caminho da alma dividida Talvez não haja sentimento humano pior que o de estar dividido: entre mundos, desejos, valores, amores, escolhas e estilos de vida opostos ou confl itantes. A sensação é a de violação interior: somos violados internamente todas as vezes em que não conseguimos ser quem somos e, simultaneamente, agradar a todas essas forças que o tempo todo parecem guerrear dentro de nós, ora nos empurrando para um lado, ora puxando para outro. É uma espécie de escravidão, porque são essas forças e não nós mesmos (muito menos Deus) que exercemo controle sobre nossas vidas. O exemplo neotestamentário clássico é o de Paulo, em Romanos 7, quando apóstolo narrou seu drama interior entre desejar fazer um tipo de coisa – por entender, pela lei de Deus, que era bom e correto – e ver- | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA36 se seguindo a via completamente oposta, pela força da “lei do pecado” que habita em seus membros. “Quero fazer o bem, mas não o faço. Não quero fazer o que é errado, mas, ainda assim, o faço” (Rm 7:9, NVT). E, como ele deixa bem claro naquele texto, a força para vencer (ainda que não de uma vez por todas) esse confl ito não reside nele mesmo, mas na graça de Jesus Cristo. Ou seja, ao mesmo tempo em que aprendemos que estar dividido faz parte da experiência humana – pois é fruto da angústia de querer e não poder, ou de não querer, e ainda sim fazer –, também sabemos que isso é tremendamente destrutivo, pois nos faz escravos do pecado e de nosso ego (o que dá no mesmo). O ser dividido é um ser adoecido, carente de seu brilho humano original. No próprio texto de Romanos 7 Paulo relembra o nome desse mal: “cobiça”. A cobiça é o que me faz desejar algo que está além de minhas possibilidades; e, quando ela toma conta dos meus membros, é também o que interdita o bem que eu quero fazer, mas não consigo. Ela normalmente começa com um pensamento (falo como mestre da cobiça!), um simples e aparentemente inócuo pensamento. Na medida que vai tomando forma, esse pensamento vai chamando outros pensamentos e corporifi cando um desejo, que logo toma conta do coração (o centro da vontade); e, quando ocupa o coração, se enraíza e faz morada ali, se espalhando para os membros do corpo e demandando atitudes concretas de satisfação. Nesse âmbito, a lei de Deus já não tem poder algum a não ser o de aguçar a concupiscência (o desejo pecaminoso). A cobiça é, portanto, a mãe e a mestra da alma dividida! Saiba mais! A cobiça, a alma dividida e a identifi cação com o pensamento estão, segundo Eckhart Tolle, na origem do ego, que é uma ilusão a respeito de quem somos, porque se constitui basicamente da identifi cação com as formas, o que inclui o que pensamos ser bom, o que pensamos sobre nós, nossos desejos e o que pensamos ser a realidade. Ele conta uma história 37Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | que elucida bem esse ponto: ‘O fi lósofo do século XVII René Descartes, considerado o fundador da fi losofi a moderna, deu expressão a esse erro fundamental com sua máxima (que considerou a verdade básica): “Penso, logo existo”. Essa foi a resposta que ele encontrou para a pergunta: “Há alguma coisa que eu possa saber com certeza absoluta?” Descartes compreendeu que o fato de estar sempre pensando estava além da dúvida, assim igualou o pensamento ao Ser, isto é: a identidade – o “eu sou” – ao pensamento. Em vez da verdade suprema, ele havia detectado a origem do ego, mas não sabia disso. Passaram-se quase 300 anos antes que outro renomado fi lósofo francês visse algo naquela afi rmação que Descartes, assim como todo mundo, não havia percebido. Seu nome era Jean-Paul Sartre. Ele refl etiu muito sobre a afi rmação de Descartes “Penso, logo existo” e, de repente, compreendeu algo. Em suas próprias palavras: “A consciência que afi rma ‘eu sou’ não é a consciência que pensa”. O que ele quis dizer com isso? Quando estamos conscientes de que estamos pensando, essa consciência não faz parte do pensamento. É uma dimensão diferente da consciência. E é essa consciência que diz “eu sou”. Se não houvesse nada além do pensamento em nós, nem sequer saberíamos que pensamos. Seríamos como alguém que está sonhando e não sabe que está fazendo isso. Estaríamos identifi cados com cada pensamento assim como aquele que sonha está vinculado a cada imagem no sonho. Muitas pessoas vivem desse jeito, como se andassem nas nuvens, presas a antigos modelos mentais anormais que recriam continuamente a mesma realidade de pesadelo. Quando sabemos que estamos sonhando, é porque estamos despertos no sonho – outra dimensão da consciência se estabeleceu. A implicação da percepção de Sartre é profunda, mas ele próprio ainda estava identifi cado demais com o pensamento para reconhecer o pleno signifi cado do que descobrira: uma nova dimensão emergente da consciência.’. (Fonte: Tolle, 2007, p. 53-54) | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA38 A cobiça é aguçada por nossa identifi cação com o pensamento, como postulou Eckhart Tolle (2007). Acreditamos que somos o que pensamos, que o mundo é como pensamos, ou que as coisas deveriam ser como pensamos que são. Com isso, além de acreditar que o ser é pensamento (penso, logo existo!), também passamos a acreditar nas, e nos identifi car com as, coisas que passam pelo pensamento – nem todas elas verdadeiras, nem puras, nem justas, nem honestas ou dignas de confi ança, isto é, as coisas em que de fato deveríamos pensar, segundo Paulo (Fp 4:8). Além disso, a cobiça inibe a gratidão, que é a virtude que lhe faz oposição, pois nos faz tratar o que é nosso com desdém e, assim, desejar e valorizar o que é outro ou do outro. Logo, a cobiça também é a mãe e a mestra da ingratidão e da ausência de amor próprio. Exercício de reflexão O que você normalmente faz quando os pensamentos, sejam eles cobiçosos ou de qualquer outra natureza, assaltam sua mente? Escreva aqui uma estratégia pessoal, à luz das refl exões acima, para lidar com pensamentos e emoções “fora de lugar”, especialmente em como fi ltrá-los na relação com outras pessoas. Inteligências transformadas Utilizei de propósito os termos “pensamentos” e “emoções” numa mesma sentença porque, numa compreensão holística do humano e suas metodo-logias (a lógica de seus métodos ou caminhos, por assim dizer), razão e emoções andam de mãos dadas, ainda que em grande parte da fi losofi a e da teologia modernas tenha se dado mais ênfase e vazão à primeira do que às segundas. Tenho a impressão de que a vida acadêmica ainda tende a atrair o pressuposto, que Robert Solomon chama de “acrítico e provavelmente falso” sobre a fi losofi a, a teologia e a natureza humana “de que somos antes de tudo seres conhecedores e só secundária ou patologicamente criaturas sencientes também” (Solomon, 2011, p. 74). Ou seja, caminhamos em um terreno em que a razão ainda 39Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | é vista como a senhora e mestra, enquanto as emoções seriam como vassalas ou, no máximo, aprendizes muito contumazes (isso tem alguma ligação sobre o que falei anteriormente, em conversa com Eckhart Tolle, sobre ser cativos de nossos pensamentos). Nesse sentido, a pesquisa de Solomon é muito interessante e importante, porque ele parte do princípio de que emoção pode envolver a presença e o reconhecimento de certos sentimentos, mas que “emoção não é sentimento”, nem uma “ocorrência fi siológica”, tampouco deve ser compreendida em termos de “comportamento individual apenas”. Emoção é “antes de tudo uma prática social e política, uma das práticas defi nitivas de se ter uma vida decente e apaixonada junto a outras pessoas” (Ibid., p. 77). O ponto aqui é: não somos, portanto, criaturas unicamente racionais, mas “temos também emoções”, como completa Solomon em outro lugar: “Vivemos por meio delas e são elas que conferem sentido a nossas vidas. O que nos interessa ou fascina, quem amamos, o que nos enfurece, o que nos mobiliza, o que nos entedia – tudo isso nos defi ne, dota- nos de personalidade, constitui o que somos” (Solomon, 2015, p. 15). Inteligências transformadas, para começo de conversa, são as daquelas pessoas que conseguem fazer o uso de todo o seu ser, e de toda a sua personalidade, sua história e experiência de vida, de suas emoções unindo-as ao compasso de suas sinapses cerebrais, no ato refl exivo (sim, porque a refl exão é, também, uma forma de ação). Texto de apoio A metodologia de Ankersmit Enquanto historiador, você tem de fazer uso de toda a sua personalidadequando escreve história, sem permitir que qualquer parte dela seja sacrifi cada no altar de alguma ilusão científi ca desorientada. ‘L’histoire se fait avec des documents’ [a história se faz por meio de documentos] – de fato, mas também com historiadores. (Ankersmit, 2005, p. 191) | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA40 A tese de Solomon Desejo, também, defender a tese de que não somos meras vítimas passivas de nossas emoções; somos bastante ativos quando as constituímos e cultivamos. Em outras palavras, não podemos simplesmente usar nossas emoções como desculpas para nosso mau comportamento. (“Não pude evitar, estava com raiva.” / “Sinto muito, só estava com ciúme quando disse aquilo”). Somos nossas emoções, tanto quanto somos nossos pensamentos e ações. Além disso, desejo argumentar que emoções não só são inteligentes como intencionais, em um sentido surpreendentemente forte. São, às vezes, talvez até com frequência, estratégias para avançar no mundo. São um meio de motivar, guiar, infl uenciar e, por vezes, manipular nossas ações e atitudes dos outros. Desse modo, somos em grande medida responsáveis por nossas emoções, algo que geralmente negamos, pela mais interesseira das razões – criar desculpas para nós. Desejo, portanto, passar uma boa parte do livro examinando e, até certo ponto, rejeitando as desculpas teóricas com as quais tentamos nos “safar”, sugerindo, por exemplo, que nossas emoções são “forças psíquicas internas a nós” ou que “emoções são essencialmente irracionais”. Compreender verdadeiramente a natureza de nossas emoções e como expressam e corporifi cam nossos mais profundos valores constitui o começo da integridade emocional. (Solomon, 2015, p. 17) Em Romanos 12, Paulo deixa claro que a transformação passa, portanto, pela entrega de nosso ser inteiro a Deus como “sacrifício vivo e santo, do tipo que Deus considera agradável” (Rm 12:1). O ensinamento presente nos dois versículos iniciais deste capítulo, para mim, pode assim ser resumido: Adoramos a Deus em um corpo. O que fazemos nesse corpo é expressar louvor a Deus em tudo o que fazemos: (1) de modo inteiro; (2) de modo consciente; (3) de modo corajoso, a partir do centro (core, coração) de 41Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | quem somos, da vontade de Deus, muitas vezes na contramão do mundo; (4) de modo mutante – isto é, por meio da renovação, não conservação (como tende a ser nosso costume), de nosso modo de pensar pelo Espírito. Agora vamos falar mais especifi camente, começando por perguntar: que tipo de sacrifício é esse? Não se trata de uma oferta tipicamente religiosa, porque o sacrifício vicário, último e sufi ciente (de Jesus na cruz) pôs fi m à necessidade de ofertas dessa natureza. O que “está consumado” não pode ser revogado, tampouco barateado no altar das “oferendas espirituais”. Trata-se precisamente do nosso coração. Ou seja, até para que a cobiça não mais tome conta do coração e faça dele um escravo, é necessário oferecê-lo inteiramente a Deus. Somente assim o coração – e tudo o mais no ser humano – poderá ser livre ou rumar para a liberdade. O passo conseguinte dessa liberdade está em não mais ter de mimetizar os modos de ser e pensar de nossa cultura, especialmente aqueles que nos conduzem ao velho problema da cobiça e, portanto, são confl itantes com a vida de e em Deus. E aqui entra em questão o que mais quero chamar atenção nesse caso: a transformação pela qual alegamos ter passado, no momento de nossa conversão (ou da entrega de nosso coração a Deus), implica em um modo novo e diferente de pensar-ser: do pensar que se conforma ao pensar inconformado. O primeiro é o que segue as tendências, modismos e fl utuações de seu tempo e cultura; é o pensamento que se adapta de acordo com os ditames de seu entorno, que “se mundaniza” ao se curvar ao modus operandi e às urgências de seu tempo. Para o conformado, a essência está na forma; há nele/a uma recusa permanente de ir mais fundo, de desconfi ar do que está posto, de caminhar com as próprias pernas. Em contrapartida, o segundo é o que quero chamar aqui de “pensamento mutante”. É mutante porque, embora assuma uma certa forma (de modo simples, não há pensamento fora do corpo, e o corpo já é, por si só, uma forma), não se identifi ca de modo indelével com ela. Está mudando constantemente não apenas por não aceitar os moldes impostos por seu entorno (e aqui me refi ro tanto a conteúdos quanto a formas), quanto e principalmente porque | Metodologia da Pesquisa Científica I | FTSA42 procura seguir o sopro do Espírito de Deus – o mais selvagem sopro do universo! E na medida em que o Espírito de Deus, como sabemos, nunca para de soprar – a despeito de nossa incapacidade de escutar o que Ele sopra – o pensamento de quem procura segui-lo nunca para de mudar, de amadurecer, de se trans-formar. Por isso esse pensamento é, no geral, in-con-formado; suas formas são assumidamente provisórias; sua teologia é feita a partir do caminhar e da jornada e, por isso, resiste a moldes ou formatações permanentes. É construída a partir de constantes esboços de saber-fazer-agir à luz da Palavra, e como resposta crítica às necessidades de seu contexto. E assim, pela graça, vai “experimentando” aqui e acolá relances da “boa, agradável e perfeita vontade de Deus para vocês” (Rm 12:2b). Exercício de fi xação Segundo o que acabamos de estudar, o que difere o modo de pensar- ser-fazer inconformado do conformado? Assinale a alternativa correta: a. O inconformado é essencialmente indignado com tudo e com todas as formas; já o conformado apenas aceita a realidade como ela é. b. O inconformado é o que não aceita tomar forma alguma; já o conformado facilmente se ajusta e se adapta às formas. c. O inconformado reconhece a natureza provisória da forma, e, por isso, segue o sopro do Espírito; o conformado acredita que a essência está na forma, e se identifi ca sem problemas com seu entorno por isso. No verso bíblico acima citado é possível encontrar um claro contraste entre apenas conhecer e o experimentar: há muitos que conhecem cognitivamente a vontade de Deus (como o Paulo de Rm 7 dizia conhecer bem “a lei de Deus”), mas somente aqueles que permitem 43Metodologia da Pesquisa Científica | FTSA | ser transformados por Deus e sua graça é que a experimentam de fato. Mas o que isso significa concretamente? Bem, há vários sinais dessa transformação que Paulo nos vai apontando ao longo do capítulo 12, sendo o mais marcante deles, a meu ver, a capacidade de se humilhar. Começando por ser “honestos em nossa autoavaliação” (12:3), andando de acordo com o que Deus nos deu e não se julgando maior nem melhor do que ninguém. Por outro lado, o comportamento cobiçoso é irmão do comportamento orgulhoso: na medida em que almejamos ser mais do que nos cabe, isso vem acompanhado de querer ser mais que os outros – e logo achar que sabe mais, que é mais inteligente, e que a luz de seu pensamento reluz tanto que torna o do outro uma mera sombra. Não se trata aqui de negar quem somos e o que sabemos, tampouco de esconder isso, mas de saber que no Reino de Deus não há espaço para “egos infl ados”. O dom de Deus foi feito, sim, para ser externado e partilhado, e realizado com excelência: que o profeta profetize na medida do dom de Deus; que o mestre ensine bem; que o servo que sirva com dedicação; já o que lidera, que o faça de modo responsável (cf. 12:6-8). No ato de partilhar, porém, precisamos aprender não usurpar o lugar uns dos outros, porque, como lembra Paulo: “Somos membros diferentes do mesmo corpo, e todos pertencemos uns aos outros”. E, como diz a poesia de Beto Guedes na canção “O Sal da Terra”: Vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois Pra melhor juntar as nossas forças é só repartir melhor o pão Recriar o paraíso agora para merecer quem vem depois. A inteligência transformada é fruto de um coração transformado; fruto da cabeça
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