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Indaial – 2020 Estudos LitErários: GênEros, idEntidadEs, Etnias E rEprEsEntaçõEs Prof.a Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof.a Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: SO729e Souza, Marilsa Aparecida Alberto Assis Estudos literários: gêneros, identidades, etnias e representações. / Marilsa Aparecida Alberto Assis Souza. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 276 p.; il. ISBN 978-85-515-0447-5 1. Estudos literários. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 869.909 III aprEsEntação Prezado acadêmico! Neste momento, inicia-se uma nova etapa de sua formação profissional em torno da construção de conhecimentos relacionados aos estudos literários. No caminho trilhado até aqui, você já fez muitas descobertas acerca da importância da literatura. Compreendeu que o acesso a ela permite o desenvolvimento de uma gama de conhecimentos que perpassam por aspectos linguísticos, pela educação estética e pelo contato com diferentes saberes e culturas. Além disso, já percebeu que desde a Antiguidade a literatura é uma forma de expressão de sentimentos, anseios, aspirações e ideologias. Assim, o saber literário permite a formação de um sujeito mais crítico e reflexivo, ou seja, trata-se de uma importante ferramenta de formação e educação do ser humano. Neste livro didático, especificamente, serão abordados temas referentes a gêneros, identidades, etnias e representações. Além de ampla, trata-se de uma temática bastante presente nas discussões contemporâneas e no dia a dia da escola. Dessa forma, os estudos que iniciamos a partir de agora pretendem propiciar uma reflexão analítica e crítica acerca da Literatura enquanto fenômeno social, histórico, cultural, político e ideológico, capaz de influenciar o modo de pensar e agir das pessoas. O livro didático está dividido em três unidades, sendo a primeira intitulada Relações de gênero e literatura. Inicialmente, discutiremos o conceito de gênero e como as questões relacionadas a essa temática estão presentes no cotidiano escolar. Também veremos como as questões de gênero são abordadas na literatura, de forma geral, bem como em algumas obras específicas. Na unidade denominada Raça, etnia, diversidade cultural e literatura, trataremos da diversidade cultural e suas implicações no contexto educacional. Faremos uma reflexão sobre a literatura pós-colonial e entraremos em contato com a literatura africana, indígena e de imigrantes. Por fim, na terceira unidade, intitulada Literatura, leitura e identidade na contemporaneidade, teremos a oportunidade de pensar a identidade do leitor contemporâneo frente à era digital. Também discutiremos a ciberliteratura e os novos suportes de leitura. Como você pode perceber, os assuntos a serem tratados neste livro didático são extremamente oportunos e pertinentes ao contexto educacional atual. Espera-se que por meio destes estudos seja possível ampliar o debate, alargar horizontes e aprimorar sua formação em torno das questões que envolvem o respeito à diversidade, tendo como viés os estudos literários. IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Ao término de cada unidade, você também encontrará uma lista de referências bibliográficas, composta por autores e autoras com os quais dialogamos na tessitura do texto. São estudiosos — alguns mais antigos, outros mais recentes — que vêm fomentando o debate acerca dos temas trabalhados. À medida do possível, e quando você achar oportuno, busque essas referências para que possa ampliar o olhar sobre a temática estudada. Prof.a Marilsa Aparecida Alberto V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE VIII IX UNIDADE 1 – RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA ..............................................................1 TÓPICO 1 – REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO .................................................3 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................3 2 GÊNERO E MOVIMENTO FEMINISTA ...........................................................................................4 3 COMPREENDENDO O CONCEITO DE GÊNERO ........................................................................6 4 ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: COMPREENDENDO O CONCEITO DE GÊNERO E SUAS IMPLICAÇÕES .......................................................................................................................8 5 RELAÇÕES DE GÊNERO NO ESPAÇO ESCOLAR E INTERVENÇÃO DOCENTE .............14 6 GÊNERO GRAMATICAL E LINGUAGEM INCLUSIVA ............................................................21 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................25 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................26 TÓPICO 2 – LITERATURA, GÊNERO E A FORMAÇÃO DE LEITORAS E LEITORES ..........29 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................29 2 A INTERFACE ENTRE A LITERATURA E A REALIDADE SOCIAL ......................................30 3 A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA .............................................................................................334 QUESTÕES DE GÊNERO NAS NARRATIVAS INFANTIS E JUVENIS ..................................39 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................49 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................50 TÓPICO 3 – REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA ..........................................................................................53 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................53 2 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM CLARICE LISPECTOR .................................................54 3 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM LYGIA BOJUNGA .........................................................63 4 A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM MARINA COLASANTI ................................................69 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................................74 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................77 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................78 UNIDADE 2 – RAÇA, ETNIA, CULTURA E LITERATURA ..........................................................83 TÓPICO 1 – DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO ....................................................................................85 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................85 2 A DIVERSIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR .............................................................................86 3 COMPREENDENDO O CONCEITO DE CULTURA E ETNOCENTRISMO .........................88 4 A DIVERSIDADE CULTURAL E A CONSTRUÇÃO DAS DIFERENÇAS ..............................94 5 A DIVERSIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR ..........................................................................101 6 A EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DAS LEIS nº 10.639/2003 E Nº 11.645/2008.........................103 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................106 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................107 sumário X TÓPICO 2 – A LITERATURA E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS ............................................113 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................113 2 COLONIALISMO, ETNOCENTRISMO E EUROCENTRISMO ..............................................113 3 PÓS-COLONIALISMO ....................................................................................................................117 4 DESCOLONIZAÇÃO, LITERATURA E CRÍTICA PÓS-COLONIAL .....................................122 5 CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA E ESTUDOS PÓS-COLONIAIS ....................................126 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................127 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................128 TÓPICO 3 – LITERATURA AFRICANA, INDÍGENA E DE IMIGRANTES ............................131 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................131 2 LITERATURA AFRICANA ...............................................................................................................131 2.1 JOSÉ LUANDINO VIEIRA ..........................................................................................................135 2.2 PEPETELA ......................................................................................................................................138 2.3 AGUALUSA ..................................................................................................................................142 2.4 PAULINA CHIZIANE ..................................................................................................................145 2.5 MIA COUTO...................................................................................................................................148 3 LITERATURA INDÍGENA ...............................................................................................................153 3.1 YAGUARÊ YAMÃ .........................................................................................................................157 3.2 DANIEL MUNDURUKU .............................................................................................................160 3.3 LITERATURA DE IMIGRANTES ................................................................................................166 3.3.1 Tatiana Salem Levy ..............................................................................................................167 3.3.2 Milton Hatoum .....................................................................................................................171 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................175 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................179 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................180 UNIDADE 3 – LITERATURA, LEITURA E IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE ...............................................................................183 TÓPICO 1 – LEITURA, EDUCAÇÃO E CULTURA DIGITAL .....................................................185 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................185 2 UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DA LEITURA .....................................................................186 2.1 CULTURA, LEITURA E LETRAMENTO DIGITAL .................................................................192 3 A ESCOLA NA ERA DIGITAL ........................................................................................................197 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................201 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................202 TÓPICO 2 – LITERATURA NA ERA DIGITAL ..............................................................................205 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................205 2 SUPORTES DE ESCRITA AO LONGO DA HISTÓRIA ............................................................205 3 CIBERLITERATURA, A LITERATURA NA ERA DIGITAL ......................................................212 4 NARRATIVAS E POESIAS DIGITAIS ...........................................................................................215 4.1 TRISTESSA, DE MARCO ANTONIO PAJOLA .......................................................................216 4.2 INANIMATE ALICE, DE KATE PULLINGER ...........................................................................217 4.3 UM ESTUDO EM VERMELHO, DE MARCELO SPALDING .................................................218 4.4 DOIS PALITOS, DE SAMIR MESQUITA ...................................................................................219 4.5 MINICONTOS COLORIDOS, DE MARCELOSPALDING .....................................................219 4.6 POESIA MULTIMÍDIA ................................................................................................................221 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................225 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................226 XI TÓPICO 3 – LITERATURA CONTEMPORÂNEA: VOZES, ........................................................229 ESPAÇOS E SUPORTES .......................................................................................................................229 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................229 2 CARACTERÍSTICAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ....................230 3 CONHECENDO ALGUNS AUTORES DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ...............................................................................................235 3.1 RUBEM FONSECA ........................................................................................................................236 3.2 FERNANDO BONASSI.................................................................................................................238 3.3 ADRIANA LUNARDI ...................................................................................................................240 4 A ESCOLA E A FORMAÇÃO DE LEITORES NA CONTEMPORANEIDADE ....................243 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................245 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................255 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................256 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................259 XII 1 UNIDADE 1 RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender e discutir o conceito de gênero e suas implicações no contexto educacional; • analisar como as questões de gênero são abordadas nas obras literárias; • identificar a representatividade e a representação feminina na literatura brasileira; • discutir aspectos relacionados à representatividade e à representação feminina na literatura brasileira. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO TÓPICO 2 – LITERATURA, GÊNERO E FORMAÇÃO DE LEITORAS E LEITORES TÓPICO 3 – REPRESENTATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 1 INTRODUÇÃO Os assuntos abordados neste primeiro tópico fazem parte de uma pauta bastante atual, quando diversos setores da sociedade têm debatido questões de gênero, respeito às diferenças e conquista de novos espaços pelas mulheres. É possível que neste momento você esteja se perguntando: qual é a relação do docente de Língua Portuguesa e Literatura com essas discussões? Primeiramente é preciso compreender que a sala de aula é, por excelência, espaço da diversidade, no qual é possível encontrar uma pluralidade de expressões. Saber lidar com essa diversidade de forma ética e responsável é um desafio para todos que resolveram dedicar-se ao magistério. Por esse motivo, concordamos com a professora Maria Eulina Pessoa de Carvalho ao afirmar que “gênero atravessa as relações escolares e interessa a educador/as. Atravessa as relações sociais e interessa a todas as pessoas. Então é preciso estudar e entender gênero, sua construção e suas implicações para o desenvolvimento humano e para a vida coletiva” (CARVALHO, 2000, p. 19). Além disso, é preciso ter em mente que, mesmo que o corpo docente adote uma postura de não trabalhar diretamente com questões relacionadas a gênero em sala de aula, essa temática emerge naturalmente no contexto escolar. A propósito, considerando que profissionais que trabalham com a Língua Portuguesa e a Literatura têm a linguagem como principal ferramenta de trabalho, é oportuno ressaltar que ela se constitui em um instrumento poderoso no processo de construção do gênero, uma vez que o ser humano tende a incorporar esse conceito por meio do aprendizado de discursos que são produzidos a partir de padrões socialmente determinados como sendo inerentes à constituição feminina ou masculina. Por hora, este primeiro tópico irá retomar, inicialmente, um pouco da história do movimento feminista, didaticamente dividido na Primeira, Segunda e Terceira Onda Feminista. A seguir, será abordado o conceito de gênero e suas implicações práticas no cotidiano de homens e mulheres e, finalmente, faremos alguns apontamentos sobre como as questões de gênero se manifestam no espaço escolar, dando algumas pistas sobre o trabalho que pode ser realizado em sala de aula. UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 4 2 GÊNERO E MOVIMENTO FEMINISTA Vamos iniciar nossa conversa sobre gênero fazendo uma pequena retrospectiva histórica. Provavelmente, você deve ter ouvido bastante essa palavra ultimamente, visto que ela tem estado em evidência tanto na mídia como nos discursos que norteiam as políticas públicas do país. Entretanto, o conceito de gênero não é recente, tendo sido incorporado às discussões pertinentes às Ciências Sociais desde a década de 1970. Isso mesmo! Embora para muitas pessoas possa parecer um conceito novo, há aproximadamente cinquenta anos diversas pesquisas, dos mais diversos campos do saber, vêm tratando de estudos sobre esse tema. De acordo com a definição encontrada em Barreto, Araújo e Pereira (2009, p. 60), gênero é um [...] conceito formulado nos anos 1970 com profunda influência do pensamento feminista. Ele foi criado para distinguir a dimensão biológica da dimensão social, baseando-se no raciocínio de que há machos e fêmeas na espécie humana, no entanto, a maneira de ser homem e de ser mulher é realizada pela cultura. Assim, gênero significa que homens e mulheres são produtos da realidade social e não decorrência da anatomia de seus corpos. Como você pôde perceber neste pequeno conceito, as discussões em torno desse assunto surgiram no bojo do movimento feminista, organização de cunho político e social em defesa da igualdade de direitos, oportunidades e tratamento entre homens e mulheres. É importante ressaltar que o movimento feminista não surgiu nos anos 1970. A partir da Revolução Francesa (1789), que foi embasada nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, as mulheres começaram a tomar consciência das desigualdades sociais às quais eram expostas. A partir de então as reflexões em torno dessas diferenças entre homens e mulheres foram intensificando-se, passando por três momentos distintos, denominados “ondas feministas”. Veja, a seguir, as principais características dessas três fases: • A Primeira Onda feminista ocorreu no final do século XIX e início do século seguinte. Destacou-se, nesse momento, o movimento sufragista, que lutava pela garantia do direito ao voto das mulheres. Tal movimento já vinha ocorrendo na Inglaterra e nos Estados Unidos, com destaque para a escritora Mary Wollstonecraft, que desde 1792 já escrevia livros e manifestos em defesa do voto feminino. Interessante, não é? No final do século XVIIIela já clamava sobre os direitos das mulheres na obra Vindication of the rights of women, traduzida livremente por Nísia Floresta, com o título Os direitos das mulheres e as injustiças dos homens (ZINANI, 2009). No contexto da Primeira Onda feminista foi notório, no Brasil, o envolvimento da bióloga Bertha Lutz que fundou, em 1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, com o objetivo de lutar pela extensão de direito de voto às mulheres, entre outras pautas. • A Segunda Onda feminista perdurou entre os anos de 1960 a 1980, com a intensificação da luta pela igualdade social e de direitos e contra toda forma de opressão, além das discussões acerca da liberdade sexual, maternidade e reprodução. Nesse momento, o movimento foi bastante influenciado pelas TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 5 ideias de Simone de Beauvoir, que em 1949 havia publicado o livro O Segundo Sexo, no qual ela reflete sobre a inferiorização feminina, inaugurando um novo modelo de pensamento acerca da mulher na sociedade moderna. Nesta obra, fica evidente o pensamento existencialista da autora por meio da célebre frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 9). Observe que essa frase está estritamente relacionada ao conceito de gênero apresentado no início deste tópico, que enfatiza que a maneira de ser homem e ser mulher é mediada pela sociedade e pela cultura, e não pela anatomia dos corpos. De acordo com Zinani (2011, p. 412), “essa obra foi um marco no pensamento feminista, discutindo a questão da mulher através de vários ângulos: da biologia, da psicanálise, do materialismo histórico, a fim de demonstrar como a realidade feminina se constitui como o outro e quais as consequências desse posicionamento”. Para Silva (2007, p. 2), o ganho concreto para as mulheres, decorrente da Segunda Onda feminista, foi “[...] a emergência da questão de gênero na agenda governamental e a consequente implementação de política públicas direcionadas para as mulheres, principalmente, na área de combate à violência e na atenção à saúde”. • A Terceira Onda feminista iniciou-se a partir dos anos 1990, tendo como particularidade a busca de total liberdade de escolha pelas mulheres. Na pauta do movimento feminista destacam-se questões referentes à igualdade salarial entre homens e mulheres, igualdade de participação política, combate ao assédio e à violência contra a mulher, libertação de padrões de beleza culturalmente impostos, entre outros. Também é importante observar que no contexto da Terceira Onda surgiu o termo interseccionalidade, utilizado para referir-se a marcadores sociais da diferença que se interagem, potencializando cenários de desigualdades sociais e hierarquizações. Trata-se, por exemplo, das diversas formas de opressão que uma mesma mulher pode sofrer quando as questões de gênero se interseccionam com outros marcadores, como idade/ geração, raça/etnia, classe social, dentre outros (HENNING, 2015). Conforme apontado por Zinani (2011, p. 413), [...] a Terceira Onda apresenta uma pauta de reivindicações mais ampla do que o grupo da Segunda Onda, uma vez que engloba a teoria queer, a conscientização da negra, o pós-colonialismo, a teoria crítica, o transnacionalismo, entre outros. Aponta como aspecto relevante a autoestima sexual, uma vez que a sexualidade é também uma modalidade de poder. Feministas marginalizadas, anteriormente, contribuem para estabelecer a identidade dessa onda que acredita ser a contradição e a negociação das diferenças uma das características mais significativas do feminismo contemporâneo. Como você deve ter percebido, essas ondas mostram que as mulheres vêm se organizando na história de diversas maneiras e contextos, sendo que cada momento tem suas pautas, demandas, reinvindicações, interesses e conquistas. Em meio a esses movimentos surgiu a crítica literária feminista, assunto que será abordado mais adiante, ainda nesta unidade. UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 6 Quer saber mais sobre a Primeira Onda Feminista que tinha, dentre suas pautas, o direito ao voto feminino? Assista ao filme As sufragistas (2015), ambientado na Inglaterra do início do século XX, quando o movimento feminista lutava pelo direito de voto e melhores condições de vida para as mulheres. FICHA TÉCNICA Título: Suffragette (Original) Ano produção: 2015 Dirigido por: Sarah Gavron Duração: 106 minutos Gênero: Biografia-Drama-História Países de Origem: Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte DICAS FIGURA – AS SUFRAGISTAS FONTE: http://www.ipvc.pt/ese- geed-cinema-as-sufragistas. Acesso em: 7 set. 2019. 3 COMPREENDENDO O CONCEITO DE GÊNERO Dando continuidade a nossa conversa sobre gênero, é importante ter uma compreensão clara acerca desse conceito. Afinal, o que é gênero? Para responder a essa indagação é pertinente estabelecer a diferença entre as terminologias gênero e sexo, observando que são dois conceitos distintos, embora sejam algumas vezes utilizados equivocadamente como sinônimos. Entende-se por sexo as distinções biológicas entre homens e mulheres, ou seja, ao classificar os seres humanos a partir desta categoria, faz-se uma separação entre eles de acordo com as diferenças impressas na anatomia de seus corpos. O sexo, portanto, é construído biologicamente e está relacionado à constituição dos órgãos genitais, que apontam se determinada pessoa, ao nascer, é macho ou fêmea. O conceito de gênero, por sua vez, é muito mais amplo, devendo ser compreendido na perspectiva da construção das identidades. De acordo com Scott (1989, p. 3), [...] o “gênero” parece ter aparecido primeiro entre as feministas americanas que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições normativas das feminilidades. TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 7 Louro (1997), por sua vez, explica que as questões de gênero estão relacionadas à subjetividade, bem como a aspectos históricos, sociais e culturais que diferenciam homens e mulheres. Por esse motivo, pessoas que viveram em épocas diferentes ou que tiveram contato com culturas diferentes podem ter comportamentos totalmente distintos, mesmo tendo o mesmo formato de órgão genital. E o que isso significa, na prática? Significa que a forma de se portar, de homens e mulheres, corresponde a aprendizagens socioculturais adquiridas ao longo da vida. Em outras palavras, o modo de ser, pensar e agir das pessoas não é determinado apenas pelo órgão sexual com o qual elas nasceram. Trata-se de uma dimensão que se constrói progressivamente, de acordo com o meio em que se vive, com os exemplos que se tem, com os discursos que se ouve. Um exemplo simples de como os discursos circulantes podem moldar o comportamento das pessoas é o dito popular Homem que é homem não chora. Uma pessoa que ouve constantemente essa frase, no meio em que vive, mesmo sem perceber vai incorporando essa crença ao longo da vida, passando a acreditar que o não chorar é uma atribuição natural do ser homem, e não algo que lhe foi ensinado, mesmo que de forma indireta. Considerando então que o gênero é incorporado por meio da vivência de comportamentos, é importante lembrar que estes são predefinidos pela própria sociedade que, imbuída pelo senso comum, acredita que as diferenças entre homens e mulheres se devem unicamente a motivos naturais. Dessa forma, a própria sociedade é quem dita as regras daquilo que é ou não pertinente a homens e mulheres, rapazes e moças, meninos e meninas. O papel que a biologia desempenha na determinação de comportamentos sociais é fraco — a espécie humana é essencialmente dependente da socialização. Contudo, de acordo com o senso comum, as condutas de homens e mulheres originam-se de uma dimensão natural(os instintos) inscrita nos corpos com que cada indivíduo nasce. Acredita-se, com frequência, que existe um tipo de personalidade ou padrão de comportamento para cada um dos sexos. Na cultura ocidental, supõe-se que o masculino seja dotado de maior agressividade e o feminino de maior suavidade e delicadeza (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 45). O conceito de gênero, portanto, foi cunhado com o intuito de mostrar que o sexo anatômico não é suficiente para definir as formas de comportamento e as condutas humanas, ressaltando a importância e a influência dos aspectos sociais e culturais no decorrer deste processo de construção da identidade do sujeito. UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 8 Em uma sociedade patriarcal, por exemplo, ser representado como homem pressupõe os atributos de força, virilidade e insensibilidade, uma vez que, desde a mais tenra infância, a grande maioria dos homens é advertida de que “homem não chora”, e de que qualquer demonstração de sentimentos pode gerar dúvidas em relação à masculinidade. Por outro lado, ser representada como mulher pressupõe a existência de valores tradicionalmente considerados “femininos”, tais como a maternidade, a empatia, a sensibilidade, a solidariedade e o sentimentalismo (BELLIN, 2011, p. 6). Percebe-se, assim, que características que muitas vezes são atribuídas ao sexo com que a pessoa nasceu, são, na verdade, resultantes de aprendizagens construídas ao longo da vida. Portanto, a diferença sexual não é a única variável na construção da identidade dos sujeitos, pois nesse processo entram em cena os valores e as normas de conduta que configuram as representações culturais e sociais. 4 ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: COMPREENDENDO O CONCEITO DE GÊNERO E SUAS IMPLICAÇÕES Até aqui você já compreendeu o conceito de gênero e situou-o cronologicamente, a partir da contextualização histórica do movimento feminista. Agora, vamos refletir sobre as implicações sociais decorrentes das diferentes concepções em relação às questões de gênero. Para isso, é oportuno retomar o pensamento de Louro (1997, p. 20-21) ao afirmar que: O argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter o caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem “científica”, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual, serve para compreender — e justificar — a desigualdade social. Conforme observado nesse trecho, a principal implicação desta concepção que limita as diferenças entre homens e mulheres a aspectos unicamente biológicos é que ela passa a servir de justificativa para a preservação e a reprodução das desigualdades de gênero, que são muitas em nossa sociedade. Esta posição também é defendida nos Parâmetros Curriculares Nacionais, formulados pelo MEC, que na década de 1990 já diziam o seguinte sobre o assunto: O conceito de gênero diz respeito ao conjunto das representações sociais e culturais construídas a partir da diferença biológica dos sexos. Enquanto o sexo diz respeito ao atributo anatômico, no conceito de gênero toma-se o desenvolvimento das noções de ‘masculino’ e ‘feminino’ como construção social. O uso desse conceito permite abandonar a explicação da natureza como a responsável pela grande diferença existente entre os comportamentos e os lugares ocupados por homens e mulheres na sociedade. Essa diferença historicamente tem privilegiado os homens, na medida em que a sociedade não tem TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 9 oferecido as mesmas oportunidades de inserção social e exercício de cidadania a homens e mulheres. Mesmo com a grande transformação dos costumes e dos valores que vêm ocorrendo nas últimas décadas, ainda persistem muitas discriminações, por vezes encobertas, relacionadas ao gênero (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 45). A referência, no trecho que você acabou de ler, a diferentes lugares ocupados por homens e mulheres na sociedade, faz alusão à distinção, historicamente engendrada, da rua enquanto espaço masculino e do lar enquanto espaço feminino. Muito embora as formas de apropriação do espaço pelas mulheres venham se modificado progressivamente, os discursos que permeiam as relações de gênero ainda são baseados em relações hegemônicas de poder, que podem ser percebidas por meio de diversos estereótipos e preconceitos. Essa delimitação de espaços nos permite reportar à Grécia Antiga, quando a cidadania era exercida somente pelos homens que participavam das decisões políticas e das atividades relativas ao mercado na praça principal da polis, que representava o espaço público. Às mulheres era negado o direito de participar das decisões que aconteciam nesse espaço, ficando responsáveis por cuidar da oikos, que era a unidade social que comportava os membros da família. Observa-se, porém, que também no espaço da oikos as mulheres não tinham voz ativa, pois a família era nuclear e seguia uma rígida hierarquia na qual o poder se concentrava na figura masculina paterna. Assim, historicamente o espaço público, simbolizado pela rua, é identificado como sendo um espaço tipicamente masculino. Durante muitos séculos, o homem assumiu o papel de provedor, saindo de casa para as ruas em busca de renda para o sustento familiar, enquanto à mulher cabia a execução de tarefas domésticas. Este tipo de relação social de gênero naturalizou-se com o passar dos tempos, distinguindo o papel familiar de cada um: o homem, por ser o produtor/provedor apropriou-se do espaço público incorporando-se no mercado de trabalho e à mulher coube o papel reprodutivo biológico, no âmbito domiciliar. Conforme Bourdieu, a divisão do trabalho entre os sexos concede ao homem a política, como lhe concede o exterior, a praça pública, o trabalho assalariado fora de casa, etc., ao passo que vota a mulher ao interior, ao trabalho obscuro, invisível, e também à psicologia, ao sentimento, à leitura de romances, etc. (BOURDIEU, 2003, p. 21). Atualmente, nem todas as famílias se enquadram nesse modelo de família nuclear e essa distinção de papéis, segundo o gênero, vem se modificando. Entretanto, os reflexos desse modelo familiar patriarcal que perdurou por tanto tempo na sociedade continua influenciando o processo de organização familiar e na educação das crianças. Assim, ainda é comum, em muitas famílias, encontrar situações em que tanto o homem como a mulher trabalham fora para o provimento da casa, mas, ao término da jornada de trabalho, enquanto o homem descansa, a mulher cuida da organização do lar. Também é comum encontrar UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 10 mães que ensinam às filhas desde cedo a arrumarem a casa, mas isentam os filhos desta aprendizagem. Da mesma forma, diversas famílias liberam as crianças do sexo masculino para brincarem de bola ou bicicleta na rua, enquanto as do sexo feminino brincam de casinha dentro de casa. E tem mais: A divisão do “espaço público e privado” pode ser percebida, por exemplo, quando se quer insultar uma mulher. Ela é chamada de “mulher da rua”, “vadia”, “puta”, em oposição à “mulher da casa”, “mulher ou moça de família”, “santa”, “do lar”. A oposição “rua x casa” é particularmente interessante para percebermos como os gêneros masculino e feminino estão associados a cada uma dessas instâncias, conformando a divisão entre o mundo da produção (masculino) e o da reprodução (feminino) (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 55). Essa forma de pensar o espaço da rua, levando em consideração a distinção dos gêneros, reflete-se em várias instâncias da vida social. Vamos pensar, por exemplo, nas relações de gênero presentes nas situações que envolvem o trânsito. A relação do homem com o automóvel é construída socialmente, desde a infância, quando o quarto dos meninos é decoradocom automóveis e os presentes mais comuns que recebem são carrinhos, pistas de corrida, skates e jogos eletrônicos que remetem à ideia de velocidade e competitividade, comuns no ambiente do trânsito. Além disso, são encorajados a brincar em espaços abertos e a ter um comportamento que prioriza a força, a valentia e a independência. Os estímulos recebidos, portanto, reforçam seu pertencimento ao espaço público e estimulam a criatividade e a agressividade. Esses pequenos gestos refletem a preparação do menino para ser um futuro motorista a usufruir, quando adulto, do espaço público. As meninas, por outro lado, são orientadas a ter um comportamento mais sensível, frágil, dependente, dócil e passivo. Os brinquedos que recebem (bonecas, panelinhas e outros utensílios domésticos) reforçam seu pertencimento ao ambiente doméstico e seu envolvimento com situações que indiquem o cuidado com os filhos ou com o lar. Não é de se estranhar, portanto, que quando alguém vê uma mulher tendo alguma conduta inadequada no trânsito, repita a frase “Vai pilotar fogão!”, cujo significado remete à exclusão do espaço público e sua devolução ao universo doméstico. A forma de apropriação do espaço pela mulher vem se modificando através dos tempos, muito embora o discurso social que rege as condutas de gênero tenha se perpetuado de maneira a reproduzir relações hegemônicas nas quais as mulheres sempre ocupam uma posição inferior em relação ao homem. Assim, se por um lado a mulher vem conquistando espaço no trânsito, por exemplo, por outro lado essa conquista não é legitimada nos mecanismos dos discursos sociais, que continuam propagando que lugar de mulher é na cozinha, pilotando fogão. Vale lembrar aqui que a utilização do automóvel pela mulher, além de significar a conquista do espaço da rua, significa também a conquista de espaço no mercado de trabalho, realizando funções que até pouco tempo eram consideradas típicas do universo masculino (SOUZA, 2010). TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 11 Além disso, até o início do século XX, as relações assimétricas entre homens e mulheres eram respaldadas pela ideologia da maternidade, que, segundo Rago (2001), reduzia as mulheres à esfera privada, lugar considerado natural da esposa/ mãe/dona de casa. Entretanto, é importante observar que somente as mulheres pertencentes a famílias mais abastadas ficavam restritas ao espaço doméstico, podendo dedicar seu tempo unicamente à maternidade. Mulheres pobres sempre trabalharam fora de casa, o que corrobora com a ideia de que diferentes desigualdades, quando interagidas simultaneamente — neste caso, o fato de ser pobre e ser mulher — geram tratamentos desiguais. O fato de trabalhar fora, entretanto, não significa reconhecimento. Segundo Fonseca (2001, p. 517), [...] ironicamente, apesar de ser evidente que em muitos casos a mulher trazia o sustento principal da casa, o trabalho feminino continuava a ser apresentado pelos advogados e até pelas mulheres como um mero suplemento à renda masculina. Sem ser encarado como profissão, seu trabalho em muitos casos nem nome merecia. Além desse caráter de invisibilidade, a mulher trabalhadora era duplamente discriminada: primeiro pela sociedade, pois em vez de ser admirada por ser boa trabalhadora, como o homem em situação parecida, a mulher com trabalho assalariado tinha de defender sua reputação contra a poluição moral, uma vez que o assédio sexual era lendário (FONSECA, 2001), e também em relação ao salário, visto que, em geral, na divisão do trabalho, as mulheres ficavam com as tarefas menos especializadas e mal remuneradas; os cargos de direção e de concepção, como os de mestre, contramestre e assistente, cabiam aos homens (RAGO, 2001). A partir da segunda metade do século XX, o movimento feminista conseguiu colocar em discussão o tema da desvalorização da mulher, expressamente manifestado na divisão sexual do trabalho, na organização política e no ordenamento jurídico social. À custa de muita persistência e luta foi possível pensar em uma nova configuração social por meio de legislações e políticas públicas voltadas para a valorização da mulher. A partir da década de 1960, o movimento pela saúde da mulher passou a defender o direito ao acesso à contracepção, que possibilitou a autonomia das mulheres na escolha do momento para engravidar, criando assim maiores possibilidades de inserção e permanência no mercado de trabalho. Tal situação pode ser considerada uma conquista, pois, [...] penetrar na esfera pública era um velho anseio por longo tempo vedado às mulheres. Significava uma conquista, possibilitando- lhes, segundo Hannah Arendt, assumir sua plena condição humana através da ação política, da qual, por longo tempo, permaneceram violentamente excluídas. Passavam as mulheres a garantir sua transcendência, pois o espaço público, afirma aquela filósofa, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida dos homens mortais, aos quais acrescentamos, também, a das mulheres mortais (SOIHET, 2002, p. 116). Não restam dúvidas de que foram muitas as conquistas obtidas pelas mulheres ao longo da história. Entretanto, a luta continua, pois existem muitas demandas a serem atendidas. Reflita a seguir sobre algumas delas: UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 12 • Em décadas não muito distantes, o mercado de trabalho era majoritariamente masculino, sendo que a mulher não tinha muitas perspectivas em relação à carreira profissional. Muito embora esse quadro tenha mudado e a mulher apresente uma presença significativa nesse setor, ainda existem alguns impasses que não foram solucionados, como, por exemplo, salários inferiores, mesmo realizando funções semelhantes às dos homens e menor quantidade de mulheres em cargos de chefia e liderança. • Atividades relacionadas ao cuidado como cuidar do lar, das crianças, dos idosos ou dos doentes, por exemplo, quase sempre são atribuídas às mulheres. Além da carga horária diária dedicada ao trabalho remunerado, cabe às mulheres a realização destas atividades de cuidado que acabam trazendo implicações em relação à participação em condições de igualdade no mercado de trabalho, restringindo as oportunidades de acesso aos recursos econômicos, culturais, sociais e políticos. O fato de a mulher engravidar e amamentar faz com que quase toda a totalidade do trabalho reprodutivo fique sob sua responsabilidade, levando algumas delas a abandonarem a carreira profissional para cuidar dos filhos, fato que gera uma dependência econômica em relação aos homens. Ou então, nota-se um excesso de trabalho devido ao acúmulo da jornada laboral remunerada com os afazeres domésticos. Em suma, a conquista do mercado de trabalho pela mulher trouxe, em contrapartida, impactos na saúde física e mental, incluindo o sentimento de culpa por achar que não está desempenhando bem essas funções relacionadas ao cuidado. • Em relação à participação política, o ato de votar só foi conquistado pelas mulheres brasileiras em 1932 devido à intensa luta do movimento sufragista feminino. Entretanto, a representatividade feminina nos cargos eletivos ainda hoje é bastante pequena, muito embora as mulheres correspondam a quase 52% do eleitorado brasileiro. O fato de as mulheres não serem devidamente representadas no sistema político implica, para alguns estudiosos, no enfraquecimento da elaboração e execução de políticas públicas que priorizem as questões de gênero. Conforme já mencionado, essas diferenças entre os gêneros são construídas culturalmente, sendo que o papel esperado de cada pessoa já é delimitado desde o nascimento, sendo que tais expectativas continuam ao longo da vida. A partir do momento em que se sabe o sexo do bebê, aqueles que fazem parte de seu círculo de relações (pai, mãe, família, escola e sociedade em geral) passam a ensinar, de forma direta ou indireta, determinados comportamentose modos de conduta, ou seja, a todo momento as crianças são bombardeadas com estímulos que reforçam a divisão de papéis entre os diferentes gêneros. Não se trata de negar as diferenças físicas e biológicas entre homens e mulheres, que comprovadamente existem. Pretendemos, sim, refletir se essas diferenças justificam formas desiguais de tratamento. Além disso, vale lembrar que uma das consequências mais graves da desigualdade de gênero é a violência de gênero, que é aquela proveniente de preconceitos e da desigualdade instaurada entre mulheres e homens. TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 13 [...] a despeito de todos os avanços e conquistas das mulheres na direção da equidade de gênero, persiste entre nós essa forma perversa de manifestação do poder masculino por meio da expressão da violência física, sexual ou psicológica, que agride, amedronta e submete não só as mulheres, mas também os homens que não se comportam segundo os rígidos padrões da masculinidade dominante (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 74). A questão do gênero em interface com a violência é um fenômeno social presente no cotidiano. Trata-se de um fenômeno complexo cujas raízes envolvem questões sociais, econômicas, políticas e culturais, estando diretamente relacionado com as desigualdades sociais e as relações de gênero. Os alarmantes e assustadores números referentes à violência de gênero em nosso país apontam para a necessidade de ações multisetoriais e multidisciplinares, ações estas que não poderiam isentar a participação da escola, entendida como espaço educativo por excelência. Com certeza, você já ouviu falar na Lei Maria da Penha, decretada em 2006, com o objetivo de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. O nome Maria da Penha é uma homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica e bioquímica que sofreu violência doméstica durante 23 anos de casamento, tendo ficado paraplégica após ser vítima de dupla tentativa de feminicídio pelo marido. Seu caso é representativo da violência doméstica sofrida por inúmeras mulheres em nosso país. Para saber mais sobre a história dessa mulher você pode: • Acessar o site do Instituto Maria da Penha e ler sobre sua história de vida: http://www. institutomariadapenha.org.br/. • Ler o livro Sobrevivi... posso contar, escrito por ela mesma. • Assistir ao documentário O silêncio das inocentes (2010), dirigido por Ique Gazzol. DICAS FONTE: https://www.saraiva.com.br/ sobrevivi-posso-contar-3065914/p>. Acesso em: 7 set. 2019. FONTE: http://www.ameliapt.com.br/ sesc-tv-exibe-documentario-violencia- domestica-mulher-dia-2812/. Acesso em: 7 set. 2019. FIGURA – SOBREVIVI... POSSO CONTAR FIGURA – SILÊNCIO DAS INOCENTES UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 14 Nesse subtópico, você esteve em contato com o conceito de gênero e suas implicações e compreendeu o contexto em que o termo começou a ser utilizado. Pelos estudos realizados até aqui você deve ter percebido que o conceito de gênero parte de uma perspectiva relacional, isto é, os estudos relacionados às mulheres e aos homens devem ser “definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão de qualquer um pode existir através de estudo inteiramente separado” (SCOTT, 1989, p. 4). Essa perspectiva relacional também é explorada por Bellin (2011, p. 7), que explica que “o gênero é também a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe. A noção de gênero constrói uma relação entre uma pessoa e outras pessoas previamente constituídas como classe, não se referindo a um indivíduo isolado e sim a uma relação social”. Para Matos e Soler (1997, p. 97) “a categoria gênero procura destacar que os perfis de comportamento feminino e masculino se definem um em função do outro. Esses perfis se constituem social, cultural e historicamente num tempo, espaço e cultura determinados”. Tendo compreendido o conceito de gênero sua abordagem enquanto categoria relacional, no próximo subtópico trataremos das questões de gênero em um espaço específico que é o ambiente escolar. 5 RELAÇÕES DE GÊNERO NO ESPAÇO ESCOLAR E INTERVENÇÃO DOCENTE Conforme vimos até aqui, até o momento de ser enviada para a escola, a criança já incorporou diversos comportamentos relativos às questões de gênero aprendidos na convivência familiar e em outros grupos sociais dos quais porventura ela faça parte; já percorreu um caminho social no qual conviveu com diferentes pessoas e teve contato com diferentes modelos de homem, de mulher e de família e já começou a construir suas referências de gênero tendo como base essas pessoas com as quais conviveu, os discursos que ouviu, os comportamentos que assimilou. Ao ingressar na escola, e durante os vários anos de permanência na instituição, amplia-se consideravelmente o leque de relacionamentos da criança/adolescente, e a escola passa a ser um novo local de aprendizagem de comportamentos e de construção (ou desconstrução) de estereótipos e preconceitos adquiridos em relação às questões de gênero. O processo de socialização que ocorre no ambiente escolar, tanto na infância quanto na adolescência, tem importância fundamental na construção da identidade do sujeito, sendo que a escola tem significativa responsabilidade no processo de formação de meninos e meninas, bem como de moças e rapazes, ao desnaturalizar as diferenças de gênero e possibilitar um ambiente propício ao debate acerca das desigualdades decorrentes dessas diferenças. TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 15 Conforme já mencionado no decorrer desta unidade, a imagem que construímos acerca do outro no que tange às questões de gênero são construídas a partir dos modelos que a própria sociedade nos oferece. Em outras palavras, é a sociedade, e não os aspectos biológicos, que determina as normas de comportamento, bem como as possibilidades e os limites de cada sujeito. À medida que estamos convencidos de que as diferenças entre os gêneros não estão inscritas nos corpos, mas são decorrentes de aprendizagens construídas desde o nascimento, é possível, em contrapartida, desconstruí-las por meio do processo educativo, conforme sugerido por Moreno (1999, p. 28) ao afirmar que se os seres humanos se comportassem unicamente a partir de seus impulsos biológicos, se as condutas consideradas masculinas e femininas fossem espontâneas, naturais e predeterminadas, não seria necessário educar tão cuidadosamente todos os aspectos diferenciais; bastaria deixar que a natureza atuasse por si mesma. A escola, portanto, enquanto espaço de socialização e interação, possibilita o processo de construção de homens e mulheres enquanto sujeitos sociais. Nesse espaço, os sujeitos não somente são influenciados como também ajudam a construir o próprio meio no qual estão inseridos. A escola, portanto, não é uma instância neutra. Mesmo que haja um silenciamento por parte da instituição ao optar por não trabalhar diretamente com questões que envolvam diversidade e gênero, este silenciamento, por si só, já produz um efeito sobre a realidade dos sujeitos inseridos na dinâmica escolar. Em outras palavras, mesmo que a escola não aborde em seu currículo, seja de forma transdisciplinar ou interdisciplinar, temática que envolva a desigualdade entre os gêneros, o currículo oculto manifesto no ambiente escolar tem muito a dizer. Sobre o currículo oculto, que pode ser definido como um conjunto de normas, princípios e valores transmitidos de forma tácita no ambiente escolar, Giroux (1986, p. 70) propõe três bases essenciais que permitem melhor compreender sua fundamentação: As escolas não podem ser analisadas como instituições removidas do contexto socioeconômico em que estão situadas; as escolas são espaços políticos envolvidos na construção e controle do discurso, dos significados e das subjetividades; os valores e crenças do senso comum que guiam e estruturam a prática escolar não são universais a priori,mas construções sociais baseadas em pressuposições normativas políticas. Concordando com os fundamentos apresentados por Giroux (1986), é possível afirmar a existência de uma relação intrínseca entre a instituição educativa e os sistemas social, cultural e econômico, que perpassa pelo conceito do currículo oculto. Por meio da investigação desse currículo é possível proceder a uma análise do que ocorre por entre os muros escolares. UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 16 Desse modo, a instituição escolar pode acabar reproduzindo, mesmo que de forma sutil ou velada, práticas androcêntricas já enraizadas em uma cultura patriarcal que não dá espaço para questionamentos acerca de um modelo diferente de relações entre homens e mulheres pautados em princípios de respeito, igualdade e justiça, sem fortalecer modos de conduta, pensamentos e atitudes discriminatórias. O currículo oculto pode se manifestar, por exemplo, por meio da prática do bullying no interior da escola e consequente posicionamento da equipe escolar frente a essa situação. A forma como a escola lida (ou deixa de lidar), em seu dia a dia, com essas manifestações de violência expressa, de forma indireta, seus valores e princípios. Sendo uma prática bastante recorrente no ambiente escolar: O bullying é um problema generalizado em escolas de todo o mundo. Trata-se de uma violência intencional e repetitiva, praticada por um ou mais estudantes e dirigida a outros, manifestando uma relação de desigualdade de poder. O bullying exerce efeito negativo sobre a escolarização, a saúde e o desenvolvimento psicossocial, atingindo, além de suas vítimas, dos próprios agressores e das testemunhas. Essas agressões podem ser praticadas de forma reativa, como defesa contra alguma provocação ou agressão sofrida, ou de forma proativa, como uma ação deliberada e planejada, com o propósito de atingir algum objetivo, não necessitando de estímulos para se efetivar (SILVA et al., 2019, p. 2). Em se tratando especificamente da violência de gênero, o que muitas vezes acontece na escola é que a discriminação a determinados grupos considerados frágeis ou passíveis de serem dominados (mulheres, homens que não manifestam uma masculinidade violenta etc.) é exercida por meio de apelidos, exclusão, perseguição, agressão física. Além disso, a depredação de instalações ou atos de vandalismo são algumas das manifestações públicas da violência por parte daqueles que querem se impor e se afirmar pela força de seu gênero (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 76). Ainda sobre o currículo oculto que permeia o ambiente educacional, é interessante observar que a própria estrutura escolar é uma forma silenciosa de ensino que pode ser considerado um “elemento curricular que proporciona aprendizagem de um conjunto de valores, normas, conteúdos e estímulos que não são determinados pelo currículo formal [...]” (SÁ, 2007, p. 131-132). Não é raro adentrar em salas de aula e constatar, pela própria disposição das carteiras, uma separação evidente entre alunos e alunas. Essa divisão fica mais patente quando se observa as brincadeiras e os jogos organizados durante o recreio, nos quais é possível notar uma expressa demarcação de espaços e territórios. Conforme Barreto, Araújo e Pereira (2009, p. 105), “esses territórios são construídos utilizando-se diferentes artifícios originados nos conceitos preestabelecidos de masculino e feminino e de relações de poder”. TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 17 Assim é possível constatar, no pátio escolar, atividades consideradas exclusivas de meninas (geralmente são atividades mais calmas), de meninos (atividades mais agitadas) ou outras em que ambos podem participar (atividades que não requerem habilidades e movimentos próprios “de meninos” ou “de meninas”). A cada ano que passa, essas delimitações de territórios vêm se apresentando menos rígidas, sendo comum encontrar, por exemplo, meninas jogando futebol. Cabe notar, porém, que quando a situação é inversa (meninos se ocupando de atividades tradicionalmente consideradas femininas, como brincar de boneca, por exemplo), o estranhamento das pessoas é mais exacerbado. Tal situação está relacionada à hierarquização dos gêneros, que atribui valores àquilo que é pertinente ao masculino e ao feminino. Por esse motivo, é frequente a desvalorização de meninos ou rapazes que realizam atividades do universo feminino, consideradas atividades inferiores. [...] as atividades típicas do pátio são potentes expressões de como as concepções de gênero orientam a maneira como alunos e alunas interagem entre si, expressam seus corpos e aproveitam de forma diferenciada e desigual, por toda a infância e até a idade adulta, o elenco de movimentos, jogos e brincadeiras possíveis. Portanto, a observação dessas atividades pode evidenciar como se dá o aprendizado da separação. Em última análise, jogos e brincadeiras são capazes de fornecer dados necessários à elaboração de atividades de lazer que remetam às competências a serem desenvolvidas igualmente por meninos e meninas. As brincadeiras seriam de todos que quisessem reinventá-las cotidianamente. As quadras poderiam ser ocupadas segundo diferentes objetivos que não apenas o desenvolvimento da agilidade e da força. Esta seria uma das variadas maneiras de escolarizar crianças e adolescentes visando a perseguir a igualdade racial, de gênero e de orientação sexual como conteúdos curriculares de orientação interdisciplinar, abarcando inclusive disciplinas como matemática, português geografia e língua estrangeira (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 106). Conclui-se, assim, que pela simples observação das atividades rotineiras realizadas no recreio é possível perceber evidências de um currículo oculto que potencializa as diferenças no espaço escolar por meio da sedimentação de práticas que hierarquizam os gêneros e reforçam modelos estereotipados de masculinidade e feminilidade. Esse modelo também pode ser percebido no interior das salas de aula, nas quais é possível encontrar dois tipos de demarcação dos lugares em conformidade com as expectativas esperadas de comportamento conforme a distinção entre os gêneros. Por julgarem que as meninas costumam ser mais ordeiras e disciplinadas que os meninos, é comum, nas escolas, a disposição de alunos e alunas de forma alternada, com o intuito de manter o controle da disciplina em sala de aula. Em alguns casos, docentes preferem manter meninos e meninas em grupos separados. UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 18 Nesta ambiência, espera-se que as meninas sejam mais atentas, organizadas, caprichosas, asseadas, disciplinadas e tenham mais propensão à submissão e à obediência. Como consequência desses padrões de comportamento, espera- se que tenham um melhor rendimento em sala de aula. Quanto aos meninos, espera-se que façam mais bagunça, falem alto, perturbem a ordem e a disciplina da sala. Não é exigido dos meninos o mesmo zelo e capricho com a letra, os cadernos e outros materiais escolares quando comparado com o que se espera das meninas. A inversão desses modelos estereotipados quase sempre provoca um estranhamento da parte do corpo docente que geralmente é mais propenso a tolerar atitudes desrespeitosas dos meninos, agindo de forma mais intransigente quando esse tipo de comportamento parte de uma menina. Como consequência: o rendimento das estudantes é favorecido de diferentes maneiras, pois a escola beneficia-se das distintas habilidades produzidas por outras instâncias de socialização. O papel de “boa aluna que ajuda os colegas” é uma dessas habilidades. As meninas devem ser aquelas que servem e cuidam, que estão à disposição para ajudar e atender às necessidades das outras pessoas. Estes são afazeres e posturas relacionados à feminilidade, segundo o modo com que tradicionalmente as relações de gênero foram construídas e organizadas em nossa sociedade. Vale notar que istonão corresponde a uma subordinação das estudantes, uma vez que aceitar tais demandas dá a elas a oportunidade de angariarem prestígio ao se relacionarem, em um patamar diferenciado, com as/os professoras/es e com os/as demais estudantes. Fazer com que as estudantes assumam tarefas de organização e cuidado expressa como a tradicional socialização feminina opera na escola de modo a reforçar e a perpetuar uma determinada divisão sexual do trabalho, na qual as mulheres e os homens devem se ocupar de diferentes obrigações. Nesta divisão, as meninas e as mulheres são as obedientes cuidadoras, que trabalham duro e asseguram a ordem, sem subvertê- la ou questioná-la. Para meninos e homens, resta corresponder à demanda por comportamentos rebeldes e agressivos, a fim de ser reafirmado um modelo específico de masculinidade (BARRETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009, p. 96). A propósito, essa divisão sexual do trabalho pode acabar influenciando os jovens na escolha profissional. Cursos cujos atributos envolvem o ensinar e o cuidar - que são, tradicionalmente, associados ao gênero feminino – são, na maioria das vezes, preenchidos por mulheres, como, por exemplo, Enfermagem, Pedagogia, Serviço Social, Terapia Ocupacional, dentre outros. Em contrapartida, alguns cursos são, de acordo com o senso comum, mais favoráveis aos homens, como as Engenharias, o Direito, a Informática, a Administração. Gradualmente, esse quadro tem mudado, com mulheres buscando profissões predominantemente masculinas e vice-versa. Entretanto, as escolhas não são aleatórias; essa suposta propensão natural para a escolha de determinadas profissões em conformidade com a divisão sexual do trabalho é fruto de expectativas criadas e fabricadas ao longo do tempo, no convívio social, inclusive durante o processo de escolarização. TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 19 Por trás das palavras... Mesmo que de forma sutil, pela linguagem é possível estabelecer diferenças e promover desigualdades, pois os discursos produzidos na sociedade costumam demarcar, de forma direta ou indireta, os lugares dos gêneros. Veja, a seguir, uma lista de ditos populares carregados de valores metafóricos que reproduzem estereótipos e preconceitos referentes à mulher. Mulher no volante, perigo constante. Mulher magra sem ser de fome, foge dela que te come. Mulher de cego, para que se enfeita? Mulher boa, ave rara. Mulher não casa com sapo porque não sabe qual é o macho. Mulher sabida é mulher perdida. Entre marido e mulher nunca metas a colher. Ele não sabe porque bate, mas ela sabe porque apanha. Mulher é como bife, só amacia quando apanha. Mulher na janela não cozinha nem mexe panela. Espelho reflete sem falar, a mulher fala sem refletir. Segredo em mulher é pão em boca de pobre. Qual destes ditos populares você já conhecia? Conseguiu entender o significado de cada um deles? O que eles revelam? Você saberia levantar outros ditos populares para completar esta lista? IMPORTANT E As reflexões apresentadas até aqui mostraram quanto a escola pode ser um local de reprodução das desigualdades de gênero, que pode acontecer de forma consciente ou inconsciente ou até mesmo por meio da omissão, concordando aqui com as palavras de Moreno (1999, p. 74) ao asseverar que “não intervir equivale a apoiar o modelo existente”. A proposta deste subtópico é trazer reflexões sobre como você pode melhorar esse quadro de desigualdade de gênero reproduzido ao longo do processo de escolarização de crianças e jovens, tendo em mente a perspectiva freiriana de que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p. 67). A promoção da igualdade de gênero e do respeito à diversidade perpassa pelo ambiente escolar e, portanto, deve ser objeto de políticas públicas de formação docente, seja ela inicial ou continuada. Também deve incorporar o Projeto Pedagógico das instituições educativas e de seus respectivos cursos, que devem primar por um ambiente educacional no qual as diferenças entre os gêneros sejam repensadas e, no mínimo, desnaturalizadas. Não há dúvidas de que lidar com estas questões constituiu um desafio à prática docente, pois faz-se necessário desconstruir conceitos e preconceitos que fazem parte de sua própria constituição identitária. Como bem coloca Gomes (2004, p. 13), UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 20 [...] em face de uma forma de pensar e de agir, de uma lógica que nos é proposta por alguém que fala a partir de uma experiência outra, diferente da que estamos prontos a compreender, podemos, mesmo sem perceber, reconduzir o que ouvimos ao que já conhecemos. É somente nessa interação com o outro, nas reiteradas verificações do que não compreendemos (quando temos tanta pressa em já ter entendido tudo) e no exercício paciente de continuar a procurar entender, que avançamos no conhecimento das diversas formas que a realidade social pode assumir para os diferentes sujeitos envolvidos. Assim, é de extrema importância o processo de formação no qual o corpo docente possa continuamente repensar e reavaliar prática, considerando que “pensar o mundo – nomear o mundo [...] é agir sobre ele” (GOMES, 2004, p. 15). Para propiciar o debate em torno da diversidade é importante que professoras e professores aprendam a interrogar sua posição frente à diversidade tão presente no universo escolar. Endossamos aqui as palavras de Carrara (2009, p. 15), que afirma que: Ao discutir tais questões com os/as professores/as brasileiros/as, busca- se contribuir, mesmo que modestamente, com a escola em sua missão de formadora de pessoas dotadas de espírito crítico e de instrumentos conceituais para se posicionarem com equilíbrio em um mundo de diferenças e de infinitas variações. Pessoas que possam refletir sobre o acesso de todos/as à cidadania e compreender que, dentro dos limites da ética e dos direitos humanos, as diferenças devem ser respeitadas e promovidas e não utilizadas como critérios de exclusão social e política. Precisamos, portanto, ir além da promoção de uma atitude apenas tolerante para com a diferença, o que em si já é uma grande tarefa, sem dúvida. Afinal, as sociedades fazem parte do fluxo mais geral da vida e a vida só persevera, só se renova, só resiste às forças que podem destruí-la através da produção contínua e incansável de diferenças, de infinitas variações. As sociedades também estão em fluxo contínuo, produzindo a cada geração novas ideias, novos estilos, novas identidades, novos valores e novas práticas sociais. Trata-se, portanto, de um processo de reconstrução de sentidos e práticas que não deixa de ser um desafio para o professorado, que precisa estar devidamente instrumentalizado para ter um posicionamento crítico e equilibrado frente a uma realidade infinitamente plural. TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 21 6 GÊNERO GRAMATICAL E LINGUAGEM INCLUSIVA Para concluir esse tópico que traz algumas reflexões acerca do conceito de gênero e educação, é importante fazermos algumas ponderações sobre gênero social e gênero gramatical, uma vez que este último é trabalhado diretamente em sala de aula por docentes de Língua Portuguesa. Primeiramente, é preciso ter em mente que, apesar de o senso comum veicular a ideia generalizada de que o gênero gramatical está relacionado à noção de sexo, tal correlação nem sempre é verdadeira, muito embora o gênero tenha como função “parear as palavras entre masculino e feminino” (KOLODNY, 2016, p. 12). Em decorrência dessa função, de natureza contrastiva, “toda língua dotada desta categoria gramatical possui no mínimo dois gêneros” sendo que, no caso da Língua Portuguesa, “o sistema reduz-se à presença de dois gêneros formais: masculino (não marcado) e feminino (marcado)” (KOLODNY, 2016, p. 13). O uso dos termos masculino e feminino para referir-se ao gênero das palavras costuma gerar confusão entre a categoria gramatical e a característica biológicados sexos. Para evitar tal equívoco, os gramáticos Pasquale e Ulisses esclarecem: [...] observe que definimos gênero como um fato ligado à concordância das palavras em seu relacionamento linguístico: pó, por exemplo, é um substantivo masculino pela concordância que estabelece com o artigo o, e não porque se possa pensar num possível comportamento sexual das partículas de poeira. Só faz sentido relacionar o gênero ao sexo quando se trata de palavras que designam pessoas e animais, como os pares professor/professora ou gato/gata. Ainda assim, essa relação não é obrigatória, pois há palavras que, mesmo pertencendo exclusivamente a um único gênero, podem indicar seres do sexo masculino ou feminino. É o caso de criança, palavra do gênero feminino que pode designar seres de dois sexos (CIPRO NETO; INFANTE, 2008, p. 218). Levando em consideração a polissemia do termo – que detém significados diferentes na literatura, na sociologia, na biologia, nas artes e na linguística – é importante compreender que, enquanto categoria gramatical, o gênero opera como divisor semântico que nem sempre está relacionado ao traço de sexo, embora isso fique evidente quando se trata de substantivos animados, ou seja, que designam pessoas ou animais. Sobre a etimologia da palavra, sabe-se que ela é derivada do latim genus, que originalmente significava tipo (KOLODNY, 2016). De acordo com Cipro Neto e Infante (2008), a tipologia de gênero compreende as seguintes distribuições: substantivos biformes, substantivos comuns de dois (ou comuns de dois gêneros), substantivos sobrecomuns e epicenos, cujas definições e exemplos estão apresentados no quadro seguinte: UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 22 QUADRO 1 - CLASSIFICAÇÃO DOS SUBSTANTIVOS TIPOLOGIA DEFINIÇÃO EXEMPLOS Substantivos biformes Substantivos que designam seres humanos e animais, apresentando uma forma para o masculino e outra para o feminino. menina/menino gata/gato pomba/pombo francês/francesa Substantivos comuns de dois gêneros (uniformes) Apresentam uma forma única para os dois gêneros, sendo que a distinção entre a forma masculina e a forma feminina é feita pela concordância com o artigo ou outro determinante. o agente/a agente o dentista/a dentista o colega/a colega o jornalista/ a jornalista Substantivos sobrecomuns Substantivos de um único gênero que se referem a seres humanos. o cônjuge a criança a testemunha a criatura o indivíduo a vítima Substantivos epicenos Substantivos de um único gênero que designam animais e algumas plantas. a águia a baleia a borboleta o besouro a palmeira o mamoeiro FONTE: Adaptado de Cipro Neto e Infante (2008, p. 218-221) A classificação apresentada corrobora a ideia de que, na língua portuguesa, a diferenciação de gênero nem sempre está relacionada à identificação de sexo do substantivo, uma vez que apenas substantivos animados apresentarão esse tipo de caracterização. Além disso, até mesmo em alguns casos de substantivos animados essa diferenciação não é evidente, como se pode notar nos substantivos sobrecomuns e epicenos nos quais palavras de gênero feminino podem fazer referência a algum ser do sexo masculino e vice-versa (como exemplos temos as palavras vítima e cônjuge, dentre os sobrecomuns, e as palavras cobra e jacaré, dentre os epicenos). Feito esse esclarecimento acerca da “incompreensão semântica” (CÂMARA JR., 2004, p. 42), que envolve o estudo de gênero enquanto categoria gramatical, é oportuno mencionar uma discussão recente na sociedade, tanto no Brasil como em outros países, que originou estudos relacionados à linguagem inclusiva e gênero, bem como a criação de diversos manuais voltados para uma linguagem não sexista. Tais estudos defendem o uso de marcadores de gênero em substituição ao uso do masculino genérico, entendido como: [...] o uso do gênero gramatical masculino para denotar o gênero humano (isto é, a espécie humana, incluindo homens e/ou mulheres). O conceito de gênero não marcado, por sua vez, origina-se na escola estruturalista e ainda ocupa um lugar de destaque nos estudos linguísticos atuais como suporte teórico para a descrição do masculino genérico (MÄDER, 2015, p. 17). TÓPICO 1 | REFLEXÕES ACERCA DE GÊNERO E EDUCAÇÃO 23 As pessoas que defendem uma linguagem inclusiva afirmam que o uso do genérico masculino, aceito com naturalidade por parte expressiva da sociedade, confere um caráter machista à linguagem. O Manual para o uso não sexista da linguagem, por exemplo, elaborado pelo governo do Rio Grande do Sul, explica que: Se a Língua Portuguesa apresenta os gêneros masculino e feminino, por que não os usarmos quando falamos, escrevemos ou lemos? Por sua origem, não se caracteriza como uma ferramenta de comunicação sexista, mas sim a forma como a utilizamos faz com que haja discriminação entre mulheres e homens. Da mesma forma que contribui para a discriminação de gênero, a linguagem pode ser utilizada para reforçar estereótipos impostos culturalmente. A linguagem sexista, utilizada de forma irrestrita, impõe-nos que o masculino (homem) é empregado como norma, ficando o feminino (mulheres) incluído como referência ao discurso masculinizado (TOLEDO et al., 2014, p. 13). Contrariando esse pensamento, significativo número de linguistas afirma que a adoção desse tipo de linguagem demonstra desconhecimento de questões linguísticas. Acerca desse assunto, Silva (2019) apresenta o pronunciamento da Real Academia Espanhola (2005) que diz: Em substantivos que designam seres animados, o masculino gramatical é usado não apenas para se referir a indivíduos do sexo masculino, mas também para designar a classe, ou seja, todos os indivíduos da espécie, sem distinção de sexos. [...] consequentemente, nomes masculinos, quando usados no plural, podem incluir ambos os sexos em sua designação [...]. Apesar disso, nos últimos tempos, por razões políticas, e não linguísticas, o costume de tornar esse uso comum, a alusão de respeito a ambos os sexos está se espalhando [...]. Esquece-se de que, na linguagem, se prevê a possibilidade de se referir a coletivos mistos através do gênero gramatical masculino, possibilidade em que não se visse intenção discriminatória, mas a aplicação da lei linguística da economia expressiva [...] (SILVA, 2019, p. 25). Concordando com o exposto pela Real Academia Espanhola, Silva (2019) observa que muitas pessoas que acreditam agir de forma politicamente correta ao utilizar, em seus discursos, formas do feminino e do masculino, acabam incorrendo no equívoco de confundir gênero gramatical com sexo biológico, conforme já descrito nesta seção. Muito embora linguistas e gramáticos renomados defendam esse ponto de vista, ele não é um consenso entre todas as pessoas da área. Mäder (2015, p. 24-25), por exemplo, defende que o uso do masculino genérico, justificado pelo conceito de gênero não marcado, pode, “em nome de uma suposta neutralidade, escamotear as relações de poder entre homens e mulheres e contribuir para a manutenção de relações sexistas e opressivas”. Nota-se, assim, que essa temática ainda demanda novos debates, de caráter multidisciplinar, com o envolvimento de pessoas da área da linguística e outros setores da sociedade. Por ora, é interessante uma leitura crítica das propostas relacionadas à linguagem inclusiva que têm como propósito apresentar estratégias para construção de uma linguagem mais equitativa. UNIDADE 1 | RELAÇÕES DE GÊNERO E LITERATURA 24 É importante refletir como a linguagem institui e demarca os lugares dos gêneros não apenas pela ocultação do feminino, mas também pelas adjetivações diferenciadas que são atribuídas aos sujeitos, pelo uso (ou não) do diminutivo, pela escolha dos verbos, pelas associações e pelas analogias feitas entre os gêneros e determinadas qualidades, atributos ou comportamentos. É importante escutar o que é dito sobre os sujeitos, mas também perceber o não dito, aquilo que é silenciado — os sujeitos que
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