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D a ni e l C . D e nne t t Q U E B R A N D O O E N C A N T O A religião como fenômeno natural Ttradução: Helena Londres Copyright © 2006 by Daniel C. Dennet Copyright da tradução © 2006 by Editora Globo Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora. Título original: Breaking the spell Preparação: Beatriz de Freitas Moreira Revisão: Maria Sylvia Corrêa e Otacílio Nunes índice onomástico: Luciano Marchiori Capa: Ricardo Assis, sobre Visão após o sermão: Jacó lutando com o anjo (1888), de Paul Gauguin, óleo sobre tela, 73 x 92 cm, National Gallery of Scotland, Edimburgo, Reino Unido. CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ ---------------------------------------------------------------------------------------------- D46q Dennett, Daniel C., 1942- Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural / Daniel C. Dennett; [tradução Helena Londres]. - São Paulo: Globo, 2006. Tradução de: Breaking the spell Inclui bibliografia ISBN 85-250-4288-9 1. Religião - Literatura polêmica. I. Título. 06-4035. 03.11.06 07.11.06 ----------------------------------------------------------------------------------------------- Direitos de edição em língua portuguesa, para o Brasil, adquiridos por Editora Globo S. A. Av. Jaguaré, 1485 - 05346-902 - São Paulo – SP www.globolivros.com http://www.globolivros.com ORELHA DE LIVRO Fenômeno humano universal, a religião parece ser independente da filosofia, conforme uma opinião bastante generalizada. Adotando tal perspectiva, o leitor não se verá imediatamente conduzido a questionar o sentido desta obra? Religião, afirmamos comumente, cada um tem a sua, cada uma delas sendo incomensurável em relação às outras. No mundo globalizado, o ecumenismo relativista deveria, pois, ser a tônica. Caminhando em sentido contrário a esse "respeito" irrefletido devotado a todas as religiões indistintamente, e apoiando- se não apenas na filosofia, mas também em dados e teorias oriundos das mais diversas ciências - biologia, psicologia, neurobiologia, genética etc. -, o autor pretende contribuir para que possamos efetuar uma "escolha informada" sobre nossas vidas, se já não a efetuamos ainda, ou nos inteirarmos sobre ela caso já tenhamos abraçado uma fé religiosa. Pois, afirma, se "a ignorância nada tem de vergonhosa", é também verdade que a "imposição da ignorância é vergonhosa". Assim, este livro pretende, em suas concisas páginas, conceder a mais estrita liberdade a quem deseja refletir sobre a religião de forma rigorosa, seguindo a via dos dados e teorias científicas disponíveis e atuais. No interior da obra o leitor será confrontado com a discussão de temáticas ousadas que incidem, inclusive, sobre o valor e o sentido da religião. Ela nos tornaria mais felizes? Ou, do ponto de vista da teoria evolutiva, mais prolíficos do que - caso porventura existissem - homens não religiosos? Será possível ser ético sem acreditar em Deus? Como e por que as "religiões populares" se institucionalizaram introduzindo a necessidade da submissão a um código e uma autoridade para serem praticadas? O leitor será conduzido, através dessas indagações instigantes, a retirar os véus - do dogmatismo, do autoritarismo e do obscurantismo - que, historicamente, foram pouco a pouco acobertando os mistérios religiosos. Véus destinados não a torná-los mais ou menos misteriosos, mas previstos para coibir as possíveis tentativas de cada um refazer por sua própria conta e risco o caminho que a eles conduz. Nas palavras do autor: "as discussões sobre a existência de Deus tendem a se fazer numa bruma piedosa de limites indeterminados". Este livro, se não dissolve essa "bruma", contribui ao menos para amenizá-la e redescobrirmos, sob o marasmo dos cultos habituais, a efervescência desse fenômeno sobre o qual, juntamente com a atitude ereta e a razão, se apóia nossa vocação eterna para a verticalidade. JOSÉ LUIZ FURTADO Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto PREFÁCIO Vou COMEÇAR com um fato óbvio: sou um escritor norte-americano, e este livro é dirigido, em primeiro lugar, aos leitores norte-americanos. Mostrei rascunhos deste livro a diversos leitores, e a maior parte dos não norte-ame- ricanos achou isso não apenas evidente, mas perturbador - até mesmo censurável em alguns casos. Não poderia eu fazer um livro de uma perspectiva menos provinciana? Como filósofo, não deveria tentar abranger um público-alvo mais universal? Não. Não neste caso, e meus leitores não norte-americanos deverão examinar o que eles conseguirem aprender a respeito da situação nos Estados Unidos a partir daquilo que eles encontram neste livro. Para mim, mais irresistível do que a reação dos meus leitores não norte-americanos foi o fato de tão poucos dos norte-americanos perceberem esse viés - ou, se perceberam, não objetaram. Esse é um padrão a ser considerado. Comumente observa-se - tanto nos Estados Unidos como fora - que há diferenças impressionantes entre as atitudes com respeito à religião nos Estados Unidos e nos demais países do Primeiro Mundo, e este livro, entre outras coisas, é um dispositivo sonoro que tem a intenção de medir a profundidade dessas diferenças. Resolvi que, se eu tivesse qualquer esperança de alcançar o meu público-alvo, teria de expressar as ênfases encontradas aqui: os cidadãos curiosos e conscienciosos do meu país natal - tantos quanto possível, e não apenas os acadêmicos. (Não vi sentido em pregar para o coro.) Essa é uma experiência, um desvio dos objetivos de livros anteriores, e aqueles que ficarem desorientados ou decepcionados agora sabem que tive meus motivos, bons ou ruins. E claro que posso ter errado o alvo. Veremos. Minha concentração na América do Norte é proposital; quando se trata de religião contemporânea, por outro lado, meu foco, primeiro no cristianismo, e depois no islamismo e no judaísmo, não é intencional, mas inevitável: simplesmente não conheço outras religiões o suficiente para escrever sobre elas com segurança. Talvez devesse ter dedicado vários anos a mais ao estudo antes de escrever este livro, mas como a urgência em me comunicar me pressionou em razão dos acontecimentos atuais, tive de me contentar com as perspectivas que consegui alcançar até agora. Um dos desvios das minhas práticas estilísticas anteriores é que, pela primeira vez, estou usando notas de final de capítulo, e não notas de pé de página. Em geral não gosto dessa prática, já que obriga o leitor estudioso a usar um segundo marcador de livros, enquanto vira as páginas para a frente e para trás. Mas resolvi que um fluxo amigável para uma platéia mais ampla era mais importante que a conveniência dos estudiosos. Isso então me permite acomodar mais material que de costume, em notas mais longas, de modo que a inconveniência traz alguma recompensa para aqueles que estão em busca de novos argumentos. Com o mesmo espírito, retirei quatro partes do material direcionado, sobretudo aos leitores acadêmicos do texto principal e as coloquei no final, como apêndices. As referências a eles estão no local em que constituiriam capítulos ou partes de capítulos. * * * Mais uma vez, graças à Tufts University, tive a possibilidade de bancar o Tom Sawyer e caiar a cerca com um grupo de alunos notavelmente corajosos e conscienciosos, na maior parte estudantes de graduação, qne trouxeram à luz suas convicções religiosas, muitas vezes profundas, ao estudarem meu rascunho inicial em um seminário, no outono de 2004, corrigindo diversos erros e guiando-me por seus mundos religiosos com bom humor e tolerância com relação às minhas gafes e outras ofensas. Se eu conseguir encontrar meu público-alvo, o feedback dado por eles merece grande parte do crédito. Obrigado, Priscilla Alvarez, JacquelynArdam, Maurício Artinano, Gajanthan Balakaneshan, Alexandra Barker, Lawrence Bluestone, Sara Brauner, Benjamin Brooks, Sean Chisholm, Erika Clampitt, Sarah Dalglish, Kathleen Daniel, Noah Dock, Hannah Ehrlich, Jed For- man, Aaron Goldberg, Gena Gorlin, Joseph Gulezian, Christopher Healey, Eitan Hersh, Joe Keating, Matthew Kibbee, Tucker Lentz, Chris Lintz, Stephen Martin, Juliana McCanney, Akiko Noro, David Polk, Sameer Puri, Marc Raifman, Lucas Recchione, Edward Rossel, Ariel Rudolph, Mami Sakamaki, Bryan Salvatore, Kyle Thompson-Westra e Graedon Zorzi. Obrigado também à minha alegre equipe no Centro de Estudos Cognitivos, aos professores, assistentes de pesquisa, pesquisadores associados e assistentes de programa. Eles fizeram comentários sobre os ensaios dos alunos, aconselharam os estudantes que estavam perturbados com o projeto, deram-me conselhos; ajudaram-me a projetar, melhorar, copiar e traduzir questionários; registraram e analisaram dados; procuraram centenas de livros e artigos em bibliotecas e sites na web; ajudaram-se uns aos outros e ajudaram-me a me manter nos trilhos; Avery Archer, Felipe de Brigard, Adam Degen Brown, Richard Griffin e Teresa Salvato. Obrigado também a Chris Westbury, Diana Raffman, John Roberts, John Symons e Bill Ramsey pela participação de suas universidades em nosso projeto de questionários, que ainda está em andamento, e a John Kihlstrom, Karel de Pauw e Mareei Kinsbourne por me indicarem leituras valiosas. Agradecimentos especiais a Meera Nanda, cuja corajosa campanha para levar o conhecimento científico da religião à sua índia natal foi uma das inspirações para este livro e também para o título. (Ver o livro dela, Breaking the S-pell of Dharma, de 2002, além do mais recente Prophets Facing Backwards, de 2003.) Entre os leitores mencionados no primeiro parágrafo há alguns que preferiram permanecer anônimos. Agradeço a eles e também a Ron Barnette, Akeel Bilgrami, Pascal Boyer, Joanna Bryson, Tom Clark, Bo Dahl- bom, Richard Denton, Robert Goldstein, Nick Humphrey, Justin Junge, Matt Konig, Will Lowe, Ian Lustick, Suzanne Massey, Rob McCall, Paul Oppenheim, Seymour Papert, Amber Ross, Don Ross, Paul Seabright, Paul Slovak, Dan Sperber e Sue Stafford. Mais uma vez, Terry Zaroff fez um extraordinário trabalho de edição de texto para mim, identificando não só escorregadelas no estilo como também fraquezas concretas. Richard Dawkins e Peter Suber são duas pessoas que forneceram sugestões especialmente valiosas durante nossas conversas, do mesmo modo que meu agente, John Brockman, e sua mulher, Katinka Matson. Permitam-me também agradecer, sem dizer os nomes, às muitas outras pessoas que se interessaram por este projeto no curso dos dois últimos anos e deram sugestões, conselhos e apoio moral muito apreciados. Por fim, devo mais uma vez agradecer à minha mulher, Susan, que faz de cada livro meu um dueto, e não um solo, de maneira que eu jamais conseguiria imaginar. Daniel Dennett PARTE I B E R T U R A D A C A I X A D E PA N D O R A 1. QUEBRA DE QUAL ENCANTO? 1. O QUE ESTÁ ACONTECENDO? E ele lhes falou muitas coisas em parábolas, dizendo: olhai, um semeador foi semear, e quando ele semeou, algumas sementes caíram à heira da estrada e as aves vieram e as devoraram. [Mateus 13, 3-4] Se a "sobrevivência do mais apto" tiver qualquer valor como slogan, então a Bíblia parece ser um bom candidato para o prêmio de texto mais apto. [Hugh Pyper, O texto egoísta: a Bíblia e a memética] OBSERVE UMA FORMIGA em um prado, laboriosamente subindo por uma folha de capim, cada vez mais alto, até que cai, depois sobe outra vez, e mais outra, como Sísifo rolando sua pedra, sempre tentando chegar ao topo. Por que ela faz isso? Que benefício estará buscando para si própria nessa estranha e extenuante atividade? A pergunta é que está errada. Não há benefícios biológicos para a formiga. Ela não tenta obter uma visão melhor do território, nem procura comida ou se exibe para um parceiro em potencial, por exemplo. Seu cérebro foi dominado por um parasita minúsculo, Dicrocelium dendriticum, que precisa entrar no estômago de um carneiro ou de uma vaca para completar seu ciclo reprodutivo. Esse pequeno verme cerebral dirige a formiga a uma situação que beneficie sua progênie, e não a da formiga. Esse não é um fenômeno isolado. Do mesmo modo, parasitas manipuladores infectam peixes e camundongos, entre outras espécies. Esses caronas fazem com que seus hospedeiros se comportem de modos bizarros - até mesmo suicidas - para benefício do parasita, não do hospedeiro.' Será que com os seres humanos acontece alguma coisa parecida? Acontece sim. Com grande freqüência encontramos seres humanos que deixam de lado seus interesses pessoais, sua saúde, suas oportunidades de terem filhos e dedicam a vida inteira a promover uma idéia que se fixou em seus cérebros. A palavra árabe islam significa "submissão", e todo bom maometano dá testemunho disso, reza cinco vezes por dia, dá esmolas, jejua durante o Ramadã e tenta fazer a peregrinação ou hajj a Meca, tudo em nome da idéia de Alá e de Maomé, o mensageiro de Alá. Cristãos e judeus fazem coisa parecida, é claro, devotando a vida a disseminar a Palavra, fazendo sacrifícios enormes, sofrendo bravamente, arriscando a vida por uma idéia. Os sikhs, os hindus e os budistas fazem o mesmo. E não nos esqueçamos dos muitos milhares de humanistas seculares que deram a vida pela Democracia, pela Justiça ou pela simples Verdade. Há muitas idéias pelas quais se pode morrer. Nossa possibilidade de dedicar nossa vida a algo que consideramos mais importante que nosso bem-estar pessoal - ou nosso próprio imperativo biológico de ter filhos - é um dos aspectos que nos diferenciam do resto do mundo animal. Uma mãe ursa defenderá bravamente um espaço que tenha alimentos e defenderá com ferocidade sua cria, ou até sua toca vazia. Provavelmente, contudo, já morreu mais gente na brava tentativa de proteger locais e textos sagrados do que na tentativa de proteger reservas de alimentos para seus filhos e suas casas. Como outros animais, temos desejos inatos de nos reproduzir e de fazermos o que for necessário para atingir essa meta, mas também temos crenças e a capacidade de transcender nossos imperativos genéticos. Esse fato nos torna diferentes, mas é em si mesmo um fato biológico, evidente para a ciência natural, e algo que exige uma explicação da ciência natural. Como apenas uma espécie, o Homo sapiens, veio a ter essas perspectivas extraordinárias quanto à sua própria vida? Dificilmente alguém dirá que a coisa mais importante na vida é ter mais netos que seus rivais, mas esse é o default summum bonum de todo animal silvestre. E tudo o que eles sabem. Eles não passam de animais. Existe uma exceção interessante, parece: o cachorro. O "melhor amigo do homem" não consegue mostrar uma dedicação que rivaliza com a de seu amigo homem? O cachorro não chega a morrer, se necessário, para proteger seu dono? Sim, e não se trata de mera coincidência o fato de que esse traço seja encontrado nas espécies domesticadas. Os cachorros de hoje são descendentes daqueles que nossos ancestrais mais amaram e admiraram no passado; sem sequer tentar criá-los para a lealdade, conseguiram que isso acontecesse, tirando o que há de melhor (de seu ponto de vista, do nosso ponto de vista) nos animais que nos servem de companhia.2 Será que, inconscientemente, modelamos essa dedicação a um dono segundo nossa própria devoção a Deus? Estaríamos modelando os cachorros à nossa própria imagem? Talvez; mas, então, de onde tiramos nossa devoção a Deus? E provável que a comparação com que comecei este livro, entre um verme parasita que invade o cérebro de uma formiga e uma idéia que invade um cérebro humano, pareça um tanto forçada e também ultrajante. Ao contrário dos vermes, as idéias não são seres vivos e não invadem cérebros; elas são criadas por cérebros. As duas coisas são verdadeiras, mas não são objeções tão reveladoras como a princípio parecem. Idéias não são seres vivos;elas não conseguem enxergar aonde estão indo e não têm membros com os quais guiar um cérebro hospedeiro, mesmo que conseguissem enxergar. E verdade, mas um Dicrocelium dendriticum também não é exatamente um cientista de foguetes espaciais; não é mais inteligente que uma cenoura, na verdade; nem sequer tem um cérebro. Tudo o que tem é a boa sorte de ser dotado com características que afetam os cérebros de formigas dessa maneira útil sempre que entram em contato com elas. (Essas características são como as manchas semelhantes a olhos nas asas de borboletas, que algumas vezes enganam as aves predadoras, fazendo-as pensar que algum animal grande as está olhando. Os pássaros se afastam e as borboletas se beneficiam, mas sem mérito algum por isso.) Uma idéia inerte, se for projetada acertadamente, poderá ter um efeito benéfico sobre um cérebro sem precisar saber que isso está acontecendo! E, se tiver, ela poderá prosperar, porque é feita por aquele projeto. A comparação entre a Palavra de Deus e um Dicrocelium dendriticum é inquietante, mas a iniciativa de comparar uma idéia a uma coisa viva não é nova. Tenho uma partitura de música escrita em pergaminho de meados do século xvi que achei há meio século em um sebo de Paris. O texto (em latim) conta a moral da parábola do semeador (Mateus 13): Semen est ver- bum Dei; sator autem Christus. A Palavra de Deus é uma semente, e o semeador da semente é Cristo. Parece que essas sementes se enraízam em indivíduos e fazem com que esses seres a disseminem, por toda parte (e, em compensação, os hospedeiros humanos alcançam a vida eterna - eum qui audit manebit in eternum). Como as idéias são criadas pelas mentes? Pode ser por inspiração milagrosa, pode ser por meios mais naturais, já que as idéias se disseminam de mente para mente, sobrevivendo a traduções entre linguagens diferentes, pegando carona em cantigas, ícones, estátuas e rituais, unindo- se em combinações estranhas na cabeça de pessoas em particular, onde dão origem ainda a outras novas "criações", que trazem semelhanças de família com as idéias que as inspiraram, mas acrescentam características novas e outros poderes à medida que avançam. E talvez algumas das idéias "selvagens" que inicialmente invadiram nossas mentes tenham tido descendentes que foram domesticados e amansados quando tentamos nos tornar seus donos, ou pelo menos seus administradores, seus pastores. Quais são os antepassados das idéias domesticadas que hoje se disseminam? Onde e por que elas foram originadas? E uma vez que nossos antepassados assumiram o objetivo de disseminar essas idéias, não apenas as abrigando, mas nutrindo-as, como essa crença na crença transforma as idéias que estão sendo difundidas? As grandes idéias da religião têm nos mantido, nós, seres humanos, enfeitiçados há milhares de anos, ao longo de um tempo maior que o da história registrada, porém ainda um breve momento em termos de tempo biológico. Se quisermos compreender a natureza da religião, hoje, como um fenômeno natural, devemos examinar não apenas o que ela é hoje, mas o que era antes. Um relato das origens da religião, nos próximos sete capítulos, irá nos dar uma nova perspectiva para examinar, nos últimos três capítulos, o que a religião é agora, por que ela significa tanto para tanta gente, e sobre o quê elas podem ter ou não razão em seu entendimento como pessoas religiosas. Aí poderemos ver melhor aonde a religião poderá ir no futuro próximo, nosso futuro neste planeta. Não consigo pensar em um tópico mais importante para ser investigado. 2. UMA DEFINIÇÃO QUE FUNCIONA PARA A RELIGIÃO Os filósofos ampliam, o significado das palavras até que elas pouco conservem de seu significado original; ao chamar de "Deus'' alguma abstração vaga que criaram para si mesmos, eles se apresentam como deístas, crentes, ante o mundo; podem até se orgulhar de terem atingido uma idéia mais elevada e mais pura de Deus, embora o Deus deles não passe de uma sombra sem substância e não seja mais a personalidade poderosa da doutrina religiosa. [Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão] Como defino religião? Não importa apenas como a defino, já que tenho planos de examinar e discutir os fenômenos seus vizinhos que (provavelmente) não são religiões - espiritualidade, compromisso com organizações seculares, devoção fanática a grupos étnicos (ou times esportivos), superstição... Então, seja onde for que eu "trace o limite", de qualquer modo irei ultrapassá-lo. Como se verá, aquilo que em geral chamamos de religião é composto de uma variedade de fenômenos bastante diferentes, que surgem de circunstâncias diferentes e têm diferentes implicações, formando uma família frouxa de fenômenos, não um "tipo natural", como um elemento químico ou uma espécie. Qual a essência da religião? Esta pergunta deve ser encarada com certa desconfiança. Ainda que haja uma afinidade profunda e importante entre muitas ou mesmo a maioria das religiões do mundo, certamente há variações que compartilham de alguns aspectos típicos, ao mesmo tempo que carecem de uma ou outra feição "essencial". Assim como a biologia da evolução progrediu durante o século passado, nós aos poucos avaliamos os motivos profundos para agrupar as coisas vivas do modo como o fazemos - esponjas são animais, e as aves têm relações mais estreitas com os dinossauros que os sapos -, e novas surpresas ainda são descobertas a cada ano. Dessa forma, deveríamos prever- e tolerar - alguma dificuldade na tarefa de chegar a uma definição à prova de contra-exemplos para algo tão diverso e complexo como a religião. Tubarões e golfinhos se parecem bastante e apresentam vários comportamentos semelhantes, mas não são de jeito algum o mesmo tipo de coisa. Talvez, uma vez conhecido melhor o campo inteiro, vejamos que o budismo e o islamismo, apesar de todas as suas semelhanças, merecem ser considerados como duas espécies de fenômeno cultural diferentes. Podemos começar com o senso comum e a tradição, considerando-os, os dois, religiões, mas não devemos nos deixar cegar pela perspectiva de que nossa classificação inicial pode ter de se ajustar à medida que aprendemos mais. Por que dar de mamar a seus filhotes é mais fundamental que viver no mar? Por que ter uma coluna vertebral é mais fundamental que ter asas? Agora isso pode parecer óbvio, mas não era óbvio no raiar da biologia. No Reino Unido, a lei que diz respeito à crueldade com os animais traça um importante limite moral que leva em conta se o animal é vertebrado: no que diz respeito à lei, você pode fazer o que quiser com um verme, uma mosca ou um camarão, mas não com uma ave, um sapo ou um camun- dongo vivo. Este pode ser um lugar bastante bom para traçar o limite, mas as leis podem ser modificadas - e esta o foi. Cefalópodes - polvos, lulas - recentemente foram promovidos a vertebrados honorários, na verdade, porque, ao contrário de seus primos moluscos, os mexilhões e ostras têm sistemas nervosos bastante sofisticados. Parece-me um ajuste político sábio, uma vez que as semelhanças importantes para a lei e a moralidade não se alinhavam perfeitamente com os profundos princípios da biologia. Podemos achar que o problema de traçar um limite entre religião e seus vizinhos mais próximos pertencentes aos fenômenos culturais está cercado de questões parecidas, embora mais perturbadoras. Por exemplo, Daniel C. Dennett uma lei (pelo menos nos Estados Unidos) que separa religiões segundo sta- tus especiais, declarando que algo que era encarado como religião na verdade é alguma outra coisa, está fadada a ter mais do que interesse acadêmico para aqueles envolvidos. A Wicca (bruxaria) e outros fenômenos do movimento Nova Era têm sido defendidos como religiões por seus seguidores exatamente com o objetivo de elevá-las ao status legal e social tradicionalmente desfrutado pelas religiões. Por outro lado, há quem declare que a biologia da evolução é na verdade "apenas mais uma religião", e, portanto, que suas doutrinas não têm lugar no currículo das escolas públicas. Proteção da lei, honra, prestígioe uma isenção tradicional de determinados tipos de análises e críticas - tudo isso depende bastante de como definimos religião. Como devo lidar com essa delicada questão? Como uma primeira tentativa, proponho definir as religiões como um sistema social cujos participantes confessam a crença em um agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovação eles buscam. É claro que essa é uma maneira tortuosa de articular a idéia de que uma religião sem Deus ou deuses é como um vertebrado sem coluna vertebral.3 Alguns dos motivos para essa linguagem em circunlóquios estão bastante claros; outros aparecerão com o tempo - e a definição está sujeita a revisão, é um ponto de partida, não algo esculpido em pedra para ser defendido até a morte. De acordo com essa definição, um devotado fã-clube de Elvis Presley não é uma religião, porque embora os membros possam, em um sentido bastante óbvio, adorar Elvis, ele não é considerado por eles literalmente sobrenatural, mas apenas um ser humano especialmente grandioso. Se alguns fã-clubes resolverem que Elvis é realmente imortal e divino, então estarão realmente no caminho de iniciar uma nova religião. Um agente sobrenatural não precisa ser muito antropomórfico. O Jeová do Velho Testamento é sem dúvida um tipo de homem divino (não uma mulher) que vê com olhos e ouve com ouvidos - e fala e age em tempo real. (Deus esperou para ver o que Jó faria e então falou com ele.) Muitos cristãos, judeus e maometanos contemporâneos insistem em que Deus, ou Alá, é onisciente, não tem necessidade de coisas como órgãos dos sentidos, e, sendo eterno, não age em tempo real. Isso é intrigante, uma vez que muitos deles continuam a rezar para Deus, a esperar que Deus responda a suas preces amanhã, a expressar gratidão a Deus por ter criado o universo, e a usar expressões como "o que Deus quer que nós façamos", e "Deus tem misericórdia", atos que parecem estar em contradição direta com sua insistência de que o seu Deus de modo algum é antropomórfico. De acordo com uma tradição já bem antiga, essa tensão entre Deus como agente e Deus como um Ser eterno e imutável é um aspecto que está além da compreensão humana, e seria bobagem e arrogância tentar entendê-lo. Até aqui é o que se pode ter, e esse tópico será tratado com cuidado mais adiante, porém não podemos prosseguir com minha definição de religião (ou qualquer outra definição, na verdade) até que (de modo experimental, dependendo de maiores esclarecimentos) nos tornemos um pouco mais explícitos em relação ao espectro de opiniões perceptíveis por trás desse nevoeiro piedoso de recatada incompreensão. Precisamos buscar outras interpretações antes de decidir como classificar as doutrinas que as pessoas esposam. Para algumas pessoas, a prece não é literalmente falar com Deus, mas uma atividade "simbólica", um jeito de falar consigo mesmo a respeito de suas mais profundas preocupações, expressadas de modo metafórico. É como iniciar um diário com "Querido Diário". Se o que elas chamam de Deus realmente não é um agente, a seus olhos, um ser que pode atender às preces, aprovar e desaprovar, aceitar sacrifícios e impor castigos ou perdão, então, embora elas possam chamar este Ser de Deus e reverenciá-lo (e não a Ele), esse credo, seja lá qual for, não é verdadeiramente uma religião, de acordo com a minha definição. E talvez um maravilhoso (ou terrível) substituto da religião, ou uma religião primitiva, descendente de uma religião genuína que apresenta muitas familiaridades com a religião, mas é uma espécie inteiramente diferente.4 Com o objetivo de esclarecer o que são as religiões somos obrigados a admitir que algumas delas podem ter se transformado em algo que não é mais religião. Isso certamente aconteceu com práticas e tradições particulares que faziam parte de religiões genuínas. Os rituais de Halloween não são mais rituais religiosos, pelo menos nos Estados Unidos. As pessoas que despendem grandes esforços e dinheiro para participar desses rituais não estão, portanto, praticando uma religião, embora suas atividades possam ser alocadas em uma clara linhagem de descendência das práticas religiosas. A crença em são Nicolau (Papai Noel) também perdeu seu status de crença religiosa. Para outros, a prece significa realmente falar com Deus, que (como pessoa, e não coisa) de fato ouve e perdoa. Seu credo é uma religião, de acordo com minha definição, desde que seja parte de um sistema social ou de uma comunidade mais ampla, e não a congregação de apenas um. Sob esse aspecto, minha definição está profundamente em conflito com a de William James, que qualificou a religião como "os sentimentos, atos e experiências de homens, individualmente, em sua solidão, desde que se vejam em relação com qualquer coisa que possam considerar divina" (1902, p. 31). Ele não teria dificuldade em identificar um crente isolado como uma pessoa dotada de religião; ele próprio, aparentemente, era um deles. Essa concentração na experiência religiosa individual, privada, era uma escolha tática para James. Ele achava que crenças, rituais, armadilhas e hierarquias políticas da religião "organizada" serviam para desviar a atenção da raiz do fenômeno, e esse caminho tático deu frutos maravilhosos. Mas James dificilmente poderia negar que esses fatores sociais e culturais afetavam sobremaneira o conteúdo e a estrutura da experiência individual. Hoje há motivos para trocar o microscópio psicológico de James por um telescópio grande-angular biológico e social, examinando os fatores ao longo de grandes extensões de espaço e de tempo que moldam as experiências e ações de pessoas individualmente religiosas. Assim como James dificilmente poderia negar os fatores sociais e culturais, eu dificilmente poderia negar a existência de indivíduos que, com grande sinceridade e devoção, se consideram os comungantes solitários daquilo que podemos chamar de religiões particulares. Em geral essas pessoas tiveram uma considerável experiência com uma ou mais religiões existentes e preferiram não ser seus adeptos. Sem negar importância a elas, mas tendo necessidade de diferenciá-las das pessoas religiosas, muito mais comuns, que se identificam com um credo ou uma igreja em particular que possui muitos outros membros, eu as chamarei de pessoas espirituais, mas não religiosas. Elas seriam, por assim dizer, vertebrados honorários. Há muitas outras variantes a serem consideradas no devido tempo - por exemplo, pessoas que rezam e crêem na eficácia da prece, mas não acreditam que essa eficácia seja canalizada por um Deus agente, que literalmente ouve as preces. Quero adiar a discussão de todas essas questões até que tenhamos um sentido mais claro a respeito de onde surgiram essas doutrinas. Proponho que o núcleo do problema da religião invoca deuses que são agentes eficazes em tempo real e que representam um papel central na maneira como os participantes pensam sobre o que deveriam fazer. Lanço mão aqui da evasiva palavra "invocar" porque, como veremos adiante, a palavra-padrão "crença" tende a distorcer e camuflar alguns dos aspectos mais interessantes da religião. Como provocação, diria que a crença religiosa nem sempre é crença. E por que é preciso buscar a aprovação do agente ou dos agentes sobrenaturais? Essa cláusula serve para distinguir religião de "magia negra" de diversos tipos. Há pessoas - muito poucas, na verdade, embora interessantes histórias populares a respeito de "cultos satânicos" possam nos fazer pensar o contrário - que se acham capazes de aliciar demônios com quem formam algum tipo de aliança pecaminosa. Esses sistemas sociais (quase inexistentes) estão nos limites da religião, mas acho apropriado deixá-los de fora, uma vez que nossas intuições se horrorizam com a idéia de que as pessoas que se envolvem com esse tipo de bobagem mereçam o status especial de devoto. O que aparentemente enraíza o respeito amplamente disseminado e mantido por religiões de todos os tipos é o sentimento de que as pessoas religiosas são bem-intencionadas, tentam levar uma vida moralmente boa, são honestasem seu desejo de não fazer o mal e reparar suas transgressões. Alguém que seja ao mesmo tempo egoísta e crédulo a ponto de tentar fazer um pacto com agentes sobrenaturais malévolos a fim de conseguir o que quer, vive em um mundo de superstição de histórias em quadrinhos e não merece o mesmo respeito.5 3. QUEBRAR OU NÃO QUEBRAR A ciência é como um tagarela que estraga um filme, contando o fim. [Ned Flanders, personagem fictício em Os Simpsons] Você está em um concerto, encantado e sem fôlego, ouvindo seus músicos favoritos em sua tumê de despedida, e a música doce o enleva, levando- o para outro lugar... Aí o telefone celular de alguém começa a tocar, quebrando o encantamento. Odioso, vil, indesculpável! Um idiota sem consideração estragou seu concerto, roubou um momento precioso que jamais poderá ser recuperado. Que maldade quebrar o encantamento de alguém! Eu não quero ser essa pessoa com o telefone celular, e tenho perfeita consciência de que, para muitas pessoas, pareço cortejar exatamente esse destino ao embarcar neste livro. O problema é que há bons e maus encantamentos. Se ao menos algum providencial telefone celular pudesse ter interrompido os procedimentos em Jonestown, na Guiana, em 1978, quando o lunático Jim Jones mandava suas centenas de seguidores enfeitiçados cometer suicídio! Se ao menos pudéssemos ter quebrado o feitiço que levou o sábio japonês Aum Shi- rinkyo a liberar gás sarin no metrô de Tóquio, matando uma dezena de pessoas e ferindo outras centenas! Se ao menos pudéssemos imaginar algum jeito, hoje, de quebrar o feitiço que atrai milhares de pobres meninos maometanos para as fanáticas madrassahs, nas quais são preparados para uma vida de martírio assassino em vez de serem ensinados a respeito do mundo moderno, da democracia, da história e da ciência! Se ao menos conseguíssemos quebrar o feitiço que convence alguns de nossos concidadãos de que são mandados por Deus para bombardear clínicas de abortos! Cultos religiosos e fanáticos políticos não são os únicos a lançar feitiços malévolos hoje em dia. Pensem nas pessoas que são viciadas em drogas, jogo, álcool, ou pornografia infantil. Elas necessitam de toda a ajuda possível, e duvido que alguém esteja propenso a lançar um manto de proteção sobre esses enfeitiçados e admoestar, "Psiu! Não quebre o encantamento!". E pode ser que a melhor maneira de quebrar esses encantamentos do mal seja introduzir um encantamento do bem, um bom feitiço, uma doutrina de regeneração. Pode ser, pode não ser. Deveríamos tentar descobrir. Talvez, ao longo do percurso, devêssemos inquirir se o mundo seria um lugar melhor caso pudéssemos estalar os dedos e curar os workaholics também - mas aí estou entrando em águas controversas. Muitos trabalhadores compulsivos alegariam que seu vício é benigno, útil para a sociedade e para seus entes queridos, e, além disso, insistiriam eles, é direito deles, em uma sociedade livre, seguir seus anseios até onde eles os levem, desde que não prejudiquem ninguém. O princípio é inatacável: não temos o direito de nos intrometer em suas práticas particulares, desde que possamos ter a certeza de que não estão prejudicando outras pessoas. Mas está cada vez mais difícil ter certeza disso. As pessoas ficam viciadas em várias coisas. Alguns acham que não podem viver sem o jornal diário e uma imprensa livre, enquanto outros acham que não conseguem viver sem cigarros. Alguns acham que uma vida sem música não valeria a pena, e outros acham que uma vida sem religião não valeria ser vivida. Serão essas coisas vícios? Ou serão necessidades legítimas que devemos tentar preservar quase a qualquer custo? Por fim, precisamos chegar a questões a respeito de valores supremos, e nenhuma investigação factual conseguiria resolvê-las. Em vez disso, o melhor que podemos fazer é nos sentar e pensarmos juntos; um processo político de convicções e instrução que podemos tentar levar a cabo de boa-fé. Mas, para fazer isso, temos de saber o que estamos escolhendo e precisamos ter um motivo claro a respeito das razões que podem ser apresentadas a favor e contra as diferentes opiniões dos participantes. Aqueles que se recusam a participar (porque já sabem a resposta em seu íntimo) são, do nosso ponto de vista, parte do problema. Em vez de serem partícipes do nosso esforço democrático para buscar a concordância entre os seres humanos nossos companheiros, eles se colocam no inventário de obstáculos com que se deve lidar, de um jeito ou de outro. Como no caso do El Nino e do aquecimento global, não tem sentido tentar discutir com eles, mas há todos os motivos para estudá-los assiduamente, gostem eles ou não. Eles podem mudar de idéia e se unir à nossa congregação política, nos ajudar na procura das bases para seus posicionamentos e práticas, mas, façam isso ou não, temos a obrigação de aprender tudo o que pudermos a respeito deles, porque eles ameaçam o que nós prezamos. E mais do que tempo de submetermos a religião como fenômeno global à mais intensiva pesquisa multidisciplinar possível, aliciando as melhores mentes do planeta. Por quê? Porque a religião é algo muito interessante para que nos mantenhamos ignorantes a seu respeito. Ela não afeta apenas nossos conflitos sociais, políticos e econômicos, mas os próprios significados que encontramos em nossas vidas. Para muitas pessoas, provavelmente a maior parte das pessoas na Terra, não há nada mais importante que a religião. Exatamente por esse motivo, é imperioso que aprendamos o máximo que pudermos a respeito dela. Em resumo, esse é o argumento deste livro. * * * Será que uma análise tão exaustiva e invasiva não danificaria o próprio fenômeno? Não poderia quebrar o encanto? Esta é uma boa pergunta, e eu não sei a resposta. Ninguém sabe a resposta. E por isso que apresento a questão, para agora explorá-la cuidadosamente de modo que nós (i) não nos atiremos de cabeça em indagações que seria melhor não empreendermos, e no entanto (2) não escondamos de nós mesmos fatos que poderiam nos orientar no sentido de melhorar a vida de todos. As pessoas neste planeta enfrentam uma série terrível de problemas - pobreza, fome, doenças, opressão, a violência da guerra e do crime e muitos mais - e, no século xxi, temos poderes incomparáveis para tomar alguma providência. Mas o que faremos? Boas intenções não são suficientes. Se aprendemos alguma coisa no século xx, aprendemos isso, já que cometemos erros colossais com as melhores intenções. Nas primeiras décadas do século, os comunistas pareciam ser para milhões de pessoas ponderadas e bem-intencionadas, uma solução maravilhosa e até evidente diante da terrível injustiça que todos podemos enxergar, mas estavam enganadas. Um erro obscenamen- te caro. A Lei Seca também pareceu na época uma boa idéia, não apenas para pudicos com fome de poder, tentando impor seu gosto aos concidadãos, mas também para muitas pessoas decentes que conseguiam ver o terrível ônus do alcoolismo e calculavam que nada menos que uma proibição total bastaria. Ficou provado que eles estavam errados, e ainda não nos recuperamos de todos os efeitos maléficos que aquela política bem- intencionada pôs em movimento. Houve uma época, há não muito tempo assim, em que a idéia de manter os negros e os brancos em comunidades separadas, com instalações separadas, parecia, a muitas pessoas sinceras, uma solução razoável para os problemas persistentes do conflito. Foi preciso o movimento pelos direitos humanos nos Estados Unidos, e a dolorosa e humilhante experiência do apartheid, e, por fim, sua derrubada na África do Sul, para mostrar quanto essas pessoas bem-intencionadas estavam enganadas. Que vergonha para elas, você poderá dizer. Deveriam ter tido um discernimento melhor. E nisso que eu insisto. Podemos atingir um melhor entendimento se tentarmos compreender melhor, e não temos desculpas para não fazer isso. Ou temos? Estarão alguns tópicos fora de questão, a despeito das conseqüências? Hoje, bilhões de pessoas rezam pedindo a paz, e eu não me surpreenderia se a maior parte delas pensassede coração que o melhor caminho a seguir para conseguir a paz no mundo é um caminho que passa por suas instituições religiosas particulares, sejam elas cristianismo, judaísmo, isla- mismo, hinduísmo, budismo ou qualquer das centenas de outros sistemas religiosos. Na verdade, muita gente acha que a melhor esperança para a humanidade é reunir todas as religiões do mundo para uma conversa mutuamente respeitosa e um acordo final de como se tratarem respectivamente. Isso pode ser verdade, mas as pessoas não sabem. O fervor de suas crenças não substitui as boas provas concretas, e as provas em favor dessa maravilhosa esperança dificilmente são esmagadoras. Na verdade, não são nada persuasivas, uma vez que muitas pessoas, aparentemente, acreditam com sinceridade que a paz no mundo é menos importante, tanto a curto como a longo prazo, que o triunfo global de sua religião particular sobre a dos concorrentes. Alguns vêem a religião como a melhor esperança para a paz, um bote de salvação que não ousamos sacudir para que não vire e não pereçamos todos; outros vêem a identificação religiosa como a principal fonte de conflito e violência no mundo, e acreditam com igual fervor que a convicção religiosa é um substituto terrível para a calma, o raciocínio bem informado. As boas intenções pavimentam as duas estradas. Quem terá razão? Eu não sei. Nem o sabem milhões de pessoas com suas convicções religiosas apaixonadas. Nem aqueles ateus que têm certeza de que o mundo seria um lugar muito melhor se todas as religiões fossem extintas. Existe uma assimetria: os ateus em geral acolhem bem o exame intensivo e objetivo de suas opiniões, práticas e raciocínios. (Na verdade, sua exigência incessante de autocrítica pode se tornar bastante aborrecida.) Os religiosos, ao contrário, muitas vezes se arrepiam com a impertinência, a falta de respeito, o sacrilégio implícito representado por qualquer pessoa que queira investigar suas opiniões. Eu respeitosamente contesto: existe realmente uma tradição antiga à qual eles apelam, mas ela é errada e não se deveria permitir que continuasse assim. Esse encanto deve ser quebrado, e já. Os que são religiosos e crêem que a religião seja a melhor esperança para a humanidade não podem, de modo razoável, esperar que aqueles de nós que são céticos contenham a expressão de suas dúvidas se eles próprios não estão dispostos a submeter suas convicções a exame. Se eles estiverem certos - especialmente se ficar evidente que estão certos, depois de maiores ponderações -, nós, céticos, não apenas aceitaremos isso, mas nos uniremos entusiasticamente à causa. Nós queremos aquilo que eles (a maior parte) diz querer: um mundo em paz, com o mínimo de sofrimento possível, com liberdade, justiça, bem-estar e significado para todos. Se o caminho deles não puder ser provado, isso é algo que eles -próprios gostariam de saber. E simples assim. Eles reivindicam um elevado fundamento moral; pode ser que mereçam e pode ser que não. Vamos descobrir. 4. ESPIANDO O ABISMO Filosofias são questões que podem nunca ser respondidas. Religião são respostas que podem nunca ser questionadas. [Anônimo] O encanto que eu digo que deve ser quebrado é o tabu contra uma pesquisa direta, científica e sem obstáculos dos segredos da religião como fenômeno natural, entre muitos outros. Mas certamente um dos motivos mais insistentes e plausíveis para a resistência a essa reivindicação é o medo de que o encanto seja quebrado - se a religião for posta sob as luzes fortes e o microscópio. Há um sério risco de quebrar um encanto diferente e muito mais importante: o encantamento que enriquece a vida vindo da própria religião. Se a interferência causada pela investigação científica de algum modo invalidar as pessoas, tornando-as incapazes de desfrutar os estados mentais que servem de trampolim para a experiência religiosa ou a convicção religiosa, isso poderia ser uma calamidade terrível. Só se pode perder a virgindade uma vez, e alguns têm medo de que a imposição do conhecimento sobre alguns aspectos poderia roubar a inocência das pessoas, aleijando seu coração sob a desculpa de expandir-lhes a mente. Para ver o problema, basta refletir sobre a recente exterminação global promovida pela tecnologia e pela cultura secular ocidental, varrendo centenas de línguas e culturas rumo à extinção em poucas gerações. Não poderia ocorrer algo parecido à sua religião? Na dúvida, não poderíamos deixar em paz o que está funcionando? Que bobagem arrogante, escarneceriam outros. O Mundo de Deus é invulnerável às investidas insignificantes de cientistas intrometidos. A presunção de que os infiéis curiosos precisem andar pé ante pé para não perturbar os fiéis é ridícula, dizem eles. Mas, nesse caso, não faria mal olhar, não é? E poderíamos aprender alguma coisa importante. O primeiro encanto - o tabu - e o segundo encanto - a própria religião - estão ligados em um abraço curioso. Parte da força do segundo pode ser - veja bem, pode ser - a proteção que recebe do primeiro. Mas, quem sabe? Se somos proibidos pelo primeiro de investigar esse possível elo causai, então o segundo encanto tem à mão um escudo útil, quer precise dele ou não. O relacionamento entre esses dois encantos está vivi- damente ilustrado na encantadora fábula de Hans Christian Andersen "A roupa nova do imperador". Algumas vezes falsidades e mitos que são "sabedoria popular" podem sobreviver ao infinito simplesmente porque a perspectiva de expô-los vem a se tornar, ela própria, ameaçadora ou imprópria devido a um tabu. Um indefensável pressuposto mútuo pode se manter hegemônico durante anos, ou até séculos, porque se acha que alguém tem algum motivo muito bom para mantê-lo e ninguém ousa desfiá-lo. Até agora tem havido uma concordância mútua não amplamente examinada de que os cientistas e outros pesquisadores deixarão a religião em paz, ou vão se restringir a uns poucos olhares de esguelha, já que as pessoas ficam tão perturbadas diante da simples idéia de uma investigação mais intensa. Proponho romper esse pressuposto e examiná-lo. Se não for para estudarmos todos os aspectos da religião, eu quero saber por quê, e quero ver raciocínios bons, apoiados em fatos, e não apenas um apelo à tradição que estou rejeitando. Se for para deixar onde está o tradicional manto de privacidade ou "santuário" deveríamos saber por que fazemos isso, já que se pode levantar uma atraente causa de que estamos pagando um preço terrível pela nossa ignorância. Isso estabelece a ordem do processo: primeiro, precisamos examinar a questão de se o primeiro encanto - o tabu - deve ser quebrado. É claro, ao escrever e publicar este livro, estou queimando a saída, precipitando-me e tentando quebrar o primeiro encanto, mas é preciso começar de algum ponto. Antes de continuar, então, e possivelmente piorando as coisas, vou fazer uma pausa para defender minha decisão de tentar quebrar esse encanto. Depois, tendo montado a minha defesa para iniciar o projeto, vou começar o projeto! Não respondendo as grandes questões que motivaram toda a empreitada, mas fazendo as perguntas, o mais cuidadosamente que puder, chamando a atenção para o que já sabemos sobre como responder a essas perguntas - e mostrando por que precisamos respondê-las. Sou um filósofo, não um biólogo, um antropólogo, um sociólogo ou um teólogo. Nós, filósofos, somos melhores em fazer perguntas do que em respondê-las, e isso pode parecer, para algumas pessoas, uma cômica admissão de futilidade - "Ele diz que sua especialidade é só perguntar e não responder. Que tarefa insignificante! E pagam a ele por isso? Mas qualquer pessoa que tenha abordado um problema realmente difícil sabe que uma das tarefas mais árduas é encontrar as perguntas certas e a ordem certa de fazer essas perguntas. Você tem de calcular não apenas aquilo que não sabe, mas o que precisa saber, o que não precisa saber e o que precisa saber para calcular o que precisa saber, e daí por diante. O formato adotado por nossas perguntas abre alguns caminhos e fecha outros, e não queremos desperdiçartempo e energia batendo nas portas erradas. Os filósofos às vezes podem ajudar nessa empreitada, mas é claro que às vezes também já atrapalharam. Então, outros filósofos tiveram de entrar e tentar arrumar a bagunça. Eu sempre gostei do modo como John Locke apresentou o problema na "Epístola ao leitor", no início de seu Ensaio sobre o entendimento humano (1690): [...] já é ambição suficiente ser empregado como um subtrabalhador para limpar um pouco o terreno e retirar um pouco dos detritos que estão no caminho do conhecimento; - que certamente teria sido muito mais avançado no mundo se as tentativas de pessoas engenhosas e laboriosas não tivessem sido muito estorvadas pelo uso culto, mas frívolo, de termos insólitos, afetados ou incompreensíveis, introduzidos nas ciências, e lá tornados uma arte, a ponto de a Filosofia, que nada mais é que o verdadeiro conhecimento das coisas, passar a ser considerada inadequada ou incapaz de ser trazida ao convívio bem-educado e à conversa polida. Outro de meus heróis filosóficos, William James, reconheceu melhor do que qualquer filósofo antes a importância de enriquecer nossa dieta filosófica de abstrações e argumentos lógicos com grande ajuda de fatos conseguidos arduamente, e, apenas há cerca de cem anos, ele publicou sua pesquisa clássica: As variedades da experiência religiosa. Ela será citada com freqüência neste livro porque é uma preciosa coletânea de insights e argumentos, deixados de lado com muita freqüência nos dias de hoje, e eu vou começar dando um novo uso a uma velha história que ele conta: Uma história freqüentemente contada por evangelizadores é a de um homem que se encontrou à noite escorregando por um precipício. Por fim ele conseguiu agarrar-se a um galho, que lhe interrompeu a queda, e lá ficou sofrendo durante várias horas. Mas finalmente seus dedos tiveram de largar o suporte e, com um desesperador adeus à vida, ele se deixou cair. A queda foi de apenas quinze centímetros. Se ele tivesse desistido da luta mais cedo, teria sido poupado de sua agonia. [James, 1902, p. m] Do mesmo modo que o evangelizador, eu lhes digo: Ó gente religiosa que teme quebrar o tabu: Larguem! Larguem! Vocês mal vão notar a queda! Quanto mais cedo começarmos a estudar a religião do ponto de vista científico, mais cedo serão acalmados seus mais profundos temores. Mas isso é apenas uma súplica, não um argumento, de modo que tenho de persistir em minha causa. Só peço que você tente manter uma mente aberta e se restrinja de prejulgar o que digo porque sou um filósofo sem Deus, ao mesmo tempo que faço o melhor que posso para entendê-lo. (Sou um bright. Meu ensaio "The bright stuff", que saiu no The New York Times de 12 de julho de 2003, atraiu a atenção para os esforços de alguns agnósticos, ateus e outros adeptos do naturalismo para cunhar um novo termo para nós, não-crentes, e a grande reação positiva a esse ensaio ajudou a me convencer a escrever este livro. Houve reações negativas também, em grande parte em objeção ao termo que tinha sido escolhido (não por mim): bright [brilhante, inteligente], que pareceria implicar que os outros fossem pálidos ou burros. Mas o termo, modelado na carona altamente bem-sucedida da palavra comum gay, para significar homossexual, não parecia ter essa implicação. Os que não são gays não são necessariamente sorumbáticos; são straight, espadas. Aqueles que não são brilhantes não são necessariamente burros. Eles podem querer escolher um nome para si. Já que, ao contrário de nós, brights, eles acreditam no sobrenatural, talvez gostassem de se chamar super. É uma bela palavra, com conotações positivas, como gay e bright, espada. Algumas pessoas não se associariam de bom grado com alguém que fosse abertamente gay, e outros não leriam de bom grado um livro de alguém que fosse abertamente bright. Mas há uma primeira vez para tudo. Tente. Sempre é possível voltar atrás, se a coisa ficar muito ofensiva. Como você já pode perceber, vamos fazer uma espécie de viagem em uma montanha-russa. Entrevistei muitas pessoas profundamente religiosas durante os últimos anos, e a maior parte desses voluntários nunca tinha conversado com alguém como eu a respeito desses temas (e eu certamente nunca tinha tentado abordar temas tão delicados com pessoas tão diferentes de mim), de modo que houve mais que algumas poucas surpresas desajeitadas e desentendimentos constrangedores. Aprendi bastante, mas, apesar de meus melhores esforços, sem dúvida ofenderei alguns leitores e demonstrarei minha ignorância a respeito de questões que eles consideram da maior importância. Isso lhes daria uma razão prática para descartar meu livro sem pensar exatamente em que aspecto eles não concordam e por quê. Peço que eles resistam a se esconder por trás dessa desculpa e perseverem na leitura. Vão aprender alguma coisa e, assim, poderão nos ensinar algo. Algumas pessoas acham que é profundamente imoral até pensar em ler um livro desse tipo! Para elas, pensar se deveriam lê-lo seria tão vergonhoso como pensar se assistiriam a um filme pornográfico. O psicólogo Philip Tetlock (1999, 2003, 2004) identifica os valores como sagrados quando são tão importantes para aqueles que os mantêm que o próprio ato de pensar sobre eles é ofensivo. O comediante Jack Benny era famoso por sua contundência - ou pelo menos é assim que ele se apresentava no rádio e na televisão - e um dos melhores momentos de seu programa era o esquete no qual um assaltante punha uma arma em suas costas e gritava "A bolsa ou a vida!". Benny só ficava lá parado, em silêncio. "A bolsa ou a vida!", repetia o assaltante com crescente impaciência. "Estou pensando, estou pensando", respondia Benny. Isso é engraçado porque a maioria de nós - religiosos ou não - acha que ninguém deveria nem sequer pensar nesse tipo de barganha. Deveria ser impensável, "básico". A vida é sagrada, e se você ainda não sabe disso, o que há de errado com você? "Transgredir esse limite, acrescentar valor de moeda aos amigos, filhos ou à fidelidade ao seu país é se desqualificar dos papéis sociais que o acompanham" (Tetlock et al., 2004, p. 5). E isso que faz da vida um valor sagrado. Tetlock e seus colegas fizeram experiências engenhosas (e algumas vezes perturbadoras) nas quais os sujeitos da experimentação eram obrigados a pensar em "barganhas-tabu", como comprar ou não partes de um corpo humano vivo para alguma finalidade rentável, ou pagar ou não outra pessoa para ter um filho que você criaria, ou pagar para alguém fazer o serviço militar em seu lugar. Como o modelo deles prevê, muitos dos sujeitos demonstram um forte "efeito meramente contemplativo": eles se sentem culpados e algumas vezes ficam zangados por terem pensado a respeito dessas escolhas terríveis, mesmo quando fazem todas as escolhas acertadas. Quando os experimentadores lhes dão a oportunidade de se envolverem na "limpeza moral" (oferecendo-se como voluntários para algum serviço relevante na comunidade, por exemplo), os sujeitos que tiveram de pensar a respeito de barganhas-tabu, significativamente, apresentam maior probabilidade de se oferecer como voluntários para tais tarefas boas que os integrantes do grupo de controle. (Pediu-se aos sujeitos-controle para pensarem em barganhas puramente seculares, como contratar uma empregada ou comprar comida em vez de fazer alguma outra coisa.) Assim, este livro poderá fazer algum bem se pelo menos aumentar o nível de caridade daqueles que se sentem culpados ao lê-lo! Se você se sentir contaminado por causa da leitura deste livro, talvez você se ressinta, mas também vai ficar mais ansioso do que ficaria se trabalhasse esse ressentimento envolvendo-se em alguma limpeza moral. Espero que se envolva, e não precisa me agradecer pela inspiração. * * * Apesar das conotações religiosas do termo, até os ateus e agnósticos podem ter valores sagrados, valores que simplesmente não estão livres de uma reavaliação. Eu tenho valores sagrados - no sentido de que me sinto vagamente culpado só de pensar se eles são defensáveis e de que jamaispensaria em abandoná-los (quero acreditar!) na resolução de um dilema moral. Meus valores sagrados são evidentes e bastante ecumênicos: amor, democracia, justiça, verdade e vida (na ordem alfabética). Mas como sou um filósofo, aprendi como deixar de lado a vertigem e o embaraço de me perguntar o que, afinal, dá sustentação até a esses valores, o que deverá ceder quando eles entram em conflito, como muitas vezes tragicamente eles entram, e se há alternativas melhores. E essa tradicional abertura de mente dos filósofos para qualquer idéia que algumas pessoas acham imoral. Elas julgam que os filósofos deveriam ter a mente fechada quando se trata de determinados tópicos. Sabem que partilham o planeta com outras pessoas que discordam delas, mas não querem começar um diálogo com essas pessoas. Eles querem desacreditar, suprimir ou até matar esses outros. Ao mesmo tempo que reconheço que diversas pessoas religiosas nunca conseguiriam aceitar ler um livro como este - essa é uma parte do problema que o livro tem a intenção de esclarecer -, tenho a intenção de alcançar o mais amplamente possível o público de crentes. Outros autores escreveram há pouco tempo livros e artigos excelentes sobre a análise científica da religião, dirigidos fundamentalmente a seus colegas de academia. Meu objetivo, aqui, é fazer o papel de embaixador, apresentando (distinguindo, criticando e defendendo) as idéias principais dessa literatura. Isso põe os meus valores sagrados para funcionar: quero que a solução para os problemas do mundo seja tão democrática e justa quanto possível, e tanto a democracia como a justiça dependem de serem postas à mesa para que todos vejam o máximo de verdade possível, lembrando que às vezes a verdade dói, e, portanto, às vezes deve permanecer oculta, por causa do amor àqueles que sofreriam se ela fosse revelada. Mas estou preparado para levar em consideração os valores alternativos e reconsiderar as prioridades que encontro entre os meus próprios valores. 5. RELIGIÃO COMO FENOMENO NATURAL Como toda investigação que se refere à religião é da maior importância, há dois tipos de questão em particular que desafiam a nossa atenção, a saber: aquela que diz respeito aos seus fundamentos na razão, e as que se referem à sua origem na natureza humana. [David Hume, História natural da religião] O que quero dizer quando falo de religião como fenômeno natural? Posso querer dizer que é como alimento natural - não apenas gostoso mas saudável, não adulterado, "orgânico". (Esse, de qualquer modo, é o mito.) Então eu quero dizer: "Religião é saudável; é boa para você!"? Isso pode ser verdade, mas não foi o que eu quis dizer. Posso querer dizer que a religião não é um artefato, não é um produto da atividade intelectual humana. Espirrar e arrotar são naturais, recitar sonetos, não. Mas é evidentemente falso que a religião seja natural nesse sentido; andar nu - au naturel - é natural; usar roupas, não. Mas é obviamente falso que a religião seja natural nesse sentido. As religiões são transmitidas culturalmente, por intermédio da linguagem e do simbo- lismo, não por meio dos genes. Você pode receber o nariz de seu pai e a aptidão para música de sua mãe por intermédio dos genes, mas se você adquirir a religião de seus pais, adquire-a do mesmo modo como adquire a linguagem, por meio da educação. Então, é claro que isso não é o que quero dizer com o termo natural. Dando uma ênfase ligeiramente diferente, posso querer dizer que a religião está fazendo o que vem naturalmente, não é um gosto adquirido ou um gosto artificialmente cuidado ou educado. Nesse sentido, falar é natural, mas escrever, não; beber leite é natural, mas tomar um martíni seco, não; escutar música tonai é natural, mas ouvir música atonal, não; olhar o pôr-do- sol é natural, mas olhar os últimos quadros de Picasso, não. Há alguma verdade nisso: a religião não é um ato pouco natural, e esse será um aspecto explorado neste livro. Mas isso não é o que quero dizer. Posso querer dizer que a religião é natural como oposta ao sobrenatural, que é um fenômeno humano composto de eventos, organismos, objetos, estruturas, padrões e coisas parecidas que obedecem, todos, às leis da física ou da biologia, e que portanto não envolve milagres. E é isso que quero dizer. Note que pode ser verdade que Deus exista, que Deus seja mesmo o criador inteligente, consciente e amoroso de todos nós, e no entanto, ainda assim, a religião em si, como um conjunto complexo de fenômenos, é perfeitamente natural. Ninguém pensaria que escrever um livro subintitulado Esporte como um fenômeno natural ou Câncer como um fenômeno natural é ateísmo. Tanto o esporte como o câncer são amplamente reconhecidos como fenômenos naturais, e não sobrenaturais, apesar dos bem conhecidos exageros de diversos divulgadores. (Estou pensando, por exemplo, em dois famosos passes para touchdown, no futebol americano, conhecidos, respectivamente, como Ave Maria e Imaculada Recepção, para não falar do alarde semanal feito por pesquisadores e clínicas no mundo inteiro anunciando uma cura "milagrosa" para o câncer.) Esporte e câncer são objetos de intenso escrutínio científico por parte de pesquisadores que trabalham em diversas disciplinas e cultivam credos religiosos diferentes. Todos eles pressupõem, tentativamente e a bem da ciência, que os fenômenos que estudam são naturais. Isso não condena o veredicto de que sejam. Talvez haja esportes que desafiam as leis da natureza; talvez algumas curas de câncer sejam milagres. Se assim for, a única esperança de um dia chegar a demonstrar isso para um mundo em dúvida seria adotar o método científico, com sua suposição de que não existem milagres, e mostrar que a ciência foi inteiramente incapaz de explicar os fenômenos. Caçadores de milagres devem ser cientistas escrupulosos, ou então estarão desperdiçando seu tempo - aspecto há muito Reconhecido pela Igreja católica, que pelo menos dá alguns passos para submeter as suposições de milagres feitos pelos candidatos à santidade à investigação científica objetiva. Desse modo, nenhuma pessoa profundamente religiosa deveria fazer objeções ao estudo científico da religião com a pressuposição de que ela seja um fenômeno inteiramente natural. Se não for inteiramente natural, se houver realmente milagres envolvidos nela, a melhor maneira - em verdade, a única maneira - de mostrar isso aos que duvidam seria a demonstração científica. A recusa de agir sob essas regras só cria a suspeita de que a pessoa não acredita realmente que a religião seja sobrenatural. Ao supor que a religião é um fenômeno natural, não estou prejulgan- do seu valor para a vida humana, de um jeito ou de outro. A religião, do mesmo modo que o amor e a música, é natural. Mas também são naturais fumar, a guerra e a morte. Nesse sentido de natural, qualquer coisa artificial é natural! A represa de Assuã não é menos natural que a represa feita por um castor, e a beleza de um arranha-céu não é menos natural que a beleza de um pôr-do-sol. As ciências naturais consideram qualquer coisa na natureza como sendo objeto seu, e isso inclui tanto as selvas como as cidades, tanto os pássaros como os aviões, o bom, o mau e o feio, o insignificante e o essencial também. Há mais de duzentos anos David Hume escreveu dois livros sobre religião. Um era sobre a religião como fenômeno natural, e sua frase inicial é a epígrafe desta seção. O outro era a respeito do "fundamento sobre a razão" da religião, seus famosos Diálogos sobre a religião natural (1779). Hume queria ponderar se haveria algum bom motivo -- qualquer motivo científico, podemos dizer - para acreditar em Deus. A religião natural, para Hume, seria uma crença que fosse tão bem sustentada por provas e argumentos quanto a teoria da gravitação de Newton ou a geometria plana. Ele a contrastava com a religião revelada, que depende das revelações da experiência mística ou de outros caminhos extracientíficos para a fé. Eu dei aos Diálogos de Hume um lugar de honra no meu livro de 1995, A idéia perigosa de Darwin- Hume é mais um dos meus heróis -, de modo que você poderia pensar que tenho a intenção de aprofundar a questão neste livro, mas esse não é de fato meu intento. Desta vez estou procurando o outro caminho de Hume. Os filósofos têm levado dois milênios ou mais arquitetando e criticando argumentos para a existência de Deus, como o Argumento do Projeto e o Argumento Ontológico; e argumentos contra a existência de Deus, como o Argumento do Mal. Muitos de nós, brights, dedicamos tempo e energia consideráveis, em algum momento de nossas vidas, a examinar os argumentos a favor e contra a existência de Deus, e muitos brights continuam a perseguir essas questões, demolindo vigorosamente os argumentos dos crentes como se tentassem refutar uma teoria científica rival. Mas eu não. Há algum tempo decidi que rendimentos minguantes se puseram ao lado dos argumentos sobre a existência de Deus, e duvido que haja em vista qualquer nova descoberta dos dois lados. Além disso, muitas pessoas profundamente religiosas insistem em que todos esses argumentos - dos dois lados - simplesmente estão longe da questão da religião, e sua demonstrada falta de interesse nos argumentos con- venceram-me de sua sinceridade. Tudo bem. Então, para que a religião? O que é esse fenômeno ou conjunto de fenômenos que significam tanto para tantas pessoas, e por que - ou como - ela impõe a lealdade e molda tantas vidas com tamanha força? Essa é a questão principal de que tratarei aqui, e uma vez separadas e esclarecidas (não resolvidas) algumas respostas conflitantes à questão, teremos uma nova perspectiva a partir da qual olhar, de modo breve, para a questão filosófica tradicional que algumas pessoas insistem ser a única questão: se há ou não bons motivos para acreditar em Deus. Aqueles que persistem na convicção de que sabem que Deus existe e podem prová-lo terão seu dia no tribunal.6 * * * Capítulo 1. As religiões estão entre os fenômenos naturais mais poderosos no planeta, e precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar decisões políticas bem informadas e justas. Embora haja riscos e desconfortos envolvidos nesse tema, devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância tradicional em investigar cientificamente os fenômenos religiosos, de modo a compreender como e por que as religiões inspiram tal devoção, e descobrir como deveríamos lidar com todas no século xxi. * * * Capítulo 2. Há obstáculos ao estudo científico da religião, e há desconfianças a serem atendidas. Uma exploração preliminar mostra que é tanto possível como recomendável dirigirmos nossas luzes investigativas mais fortes para a religião. 2. ALGUMAS QUESTÕES A RESPEITO DA CIÊNCIA 1. A CIÊNCIA PODE ESTUDAR A RELIGIÃO? Com certeza, do ponto de vista zoológico, o homem é um animal. No entanto, é um animal exclusivo, diferindo de todos os outros de tantos modos fundamentais que se justifica uma ciência separada para o homem. [Ernst Mayr, O crescimento do pensamento biológico] TEM HAVIDO alguma confusão a respeito de saber se as manifestações terrenas de religião deveriam contar como parte da natureza. Estará a religião fora de limites para a ciência? Tudo depende do que você quer dizer. Se você se refere a experiências religiosas, práticas, textos, artefatos, instituições, conflitos e história do Homo sapiens, então esse é um catálogo volumoso de fenômenos inquestionavelmente naturais. Considerada como estados psicológicos, alucinação induzida por drogas e êxtase religioso, seria passível de ser estudada tanto por neurocientistas como por psicólogos. Encarada como o exercício de competência cognitiva, decorar a tabela periódica dos elementos é o mesmo tipo de fenômeno que decorar o Pai-Nosso. Vista como exemplos de engenhosidade, pontes suspensas e catedrais tanto obedecem à lei da gravidade como estão sujeitas ao mesmo tipo de forças e tensões. Considerada como um artigo manufaturado vendável, tanto romances de mistério quanto a Bíblia estão sob as regulamentações da economia. A logística das guerras santas não difere da logística de conflitos inteiramente seculares. "Louva o Senhor e passa a munição!" - como dizia uma canção da Segunda Guerra Mundial. Uma cruzada ou uma jihad podem ser investigadas por pesquisadores no interior de diversas disciplinas, da antropologia e da história militar à nutrição e à metalurgia. Em seu livro Rocks of Ages (1999), o já falecido Stephen Jay Gould defendeu a hipótese política de que ciência e religião são duas "magisteria que não se sobrepõem" - dois domínios de interesse e especulação que podem coexistir pacificamente, desde que nenhuma delas invada a região especial da outra. O magisterium da ciência é a verdade factual sobre todas as questões, e o magisterium da religião, argumentava ele, é o reino da moralidade e do significado da vida. Embora o desejo de Gould pela vigência da paz entre essas duas perspectivas freqüentemente em guerra fosse risível, sua proposta não encontrou muita aprovação de qualquer dos dois lados, uma vez que, na cabeça dos religiosos, ela propunha abandonar qualquer reivindicação religiosa com relação às verdades factuais e ao entendimento do mundo natural (inclusive as alegações de que Deus criou o universo, ou que faz milagres, ou escuta preces), enquanto na cabeça dos seculares ela dava autoridade demais à religião em questões de ética e significado. Gould expôs exemplos claros de tolice desavergonhada dos dois lados, mas o argumento de que todos os conflitos entre as duas perspectivas se devem à reação excessiva de um lado ou do outro é implausível, e poucos leitores ficaram convencidos dele. Mas, possa-se ou não defender a proposta de Gould, minha proposta é diferente. Pode ser que haja algum domínio no qual só a religião tenha autoridade, algum reino da atividade humana que a ciência não consiga explicar adequadamente, ao passo que a religião possa, mas isso não significa que a ciência não possa ou não deva estudar exatamente esse fato. O próprio livro de Gould era supostamente um produto de tal investigação científica, mesmo que esta tenha sido informal. Ele olhou a religião com olhos de cientista e achou que podia ver um limite que revelava dois domínios de atividade humana. Teria ele razão? Esta seria, presumivelmente, uma pergunta científica, factual, não uma pergunta religiosa. Não estou sugerindo que a ciência devesse tentar fazer o que a religião faz, mas que deveria estudar, cientificamente, o que a religião faz. Uma das descobertas surpreendentes da psicologia moderna é como é fácil ser ignorante a respeito da nossa própria ignorância. Normalmente você não se dá conta de seus próprios pontos cegos, e as pessoas ficam em geral pasmas ao descobrirem que não vemos cores na nossa visão periférica. Parece que vemos, mas não vemos, como você pode verificar por si mesmo balançando cartões coloridos na margem de sua visão - você verá o movimento muito bem, mas não será capaz de identificar a cor do que está se movendo. É preciso uma provocação especial como essa para fazer com que a ausência de informação se revele para nós. E é para a ausência de informação quanto à religião que quero chamar a atenção de todos. Deixamos de reunir muitas informações a respeito de algo que tem grande importância para nós. Isso pode ser surpreendente. Não é verdade que temos examinado cuidadosamente a religião há muito tempo? Sim, é claro. Há séculos de estudos ricos de insight a respeito da história e da variedade dos fenômenos religiosos. Essa obra, do mesmo modo que a pujança dos dedicados observadores de pássaros e outros amantes da natureza antes da época de Darwin, tem construído uma fonte imensamente valiosa para aqueles pioneiros que agora começam, pela primeira vez, na verdade, a estudar o fenômeno natural da religião com os olhos da ciência contemporânea. As descobertas de Darwin na biologia foram possíveis pelo seu profundo conhecimento da riqueza de detalhes empíricos armazenados com escrúpulo por centenas de historiadores naturais pré- darwinianos e não-darwi- nianos. A inocênciateórica deles foi, ela própria, um freio em seu entusiasmo; não tinham coletado os fatos com o objetivo de provar que a teoria de Darwin estava correta. Podemos ser igualmente gratos ao fato de que quase toda a "história natural da religião" tenha sido acumulada, até agora, se não de modo teoricamente inocente, pelo menos inconsciente dos tipos de teorias que agora podem ser comprovadas ou minadas por ela. Até esta data, no entanto, a pesquisa dificilmente tem sido neutra. Nós não abordamos os fenômenos religiosos e os estudamos de forma direta, simplesmente como se fossem fósseis ou grãos de soja num campo. Os pesquisadores tendem a ser respeitosos, deferentes, diplomáticos, hesitantes - ou hostis, invasivos e desdenhosos. É impossível ser neutro na abordagem da religião, porque muitas pessoas encaram a própria neutralidade como hostil. Se você não estiver conosco, está contra nós. Desse modo, como é claro que a religião significa tanto para tanta gente, os pesquisadores quase nunca tentaram ser neutros; eles têm uma tendência a errar pelo lado da deferência, calçando luvas de pelica. É isso ou hostilidade aberta. Por esse motivo, tem havido um padrão infeliz no trabalho realizado. As pessoas querem estudar religião, em geral, por algum motivo pessoal. Ou querem defender sua religião favorita das críticas, ou querem demonstrar a irracionalidade e futilidade da religião, e isso tende a contaminar o método com um desvio. Essas distorções não são inevitáveis. Em todos os campos os cientistas têm teorias que eles esperam confirmar, ou hipóteses-alvo que anseiam por destruir, mas, sabendo disso, adotam diversos passos de comprovação para evitar que seus pontos de vista contaminem a coleta de provas: experiências com duplo-cego, revisão pelos pares, testes estatísticos e muitas outras restrições-padrão de bom método científico. Mas, no estudo da religião, parece que as apostas têm sido mais altas. Se você pensar que a falta de confirmação de uma hipótese a respeito de um ou outro fenômeno religioso não seria apenas uma rachadura indesejável na fundação de alguma teoria, mas uma calamidade moral, você tende a não usar todos os controles. Ou, pelo menos, é isso o que tem parecido muitas vezes aos observadores. Essa impressão, verdadeira ou falsa, criou um ciclo positivo de feed- back: os cientistas não querem lidar com colegas de segunda classe, de modo que tendem a se manter afastados de tópicos nos quais 'percebem o que consideram um trabalho medíocre. Essa auto-seleção é um modelo frustrante que começa quando os alunos pensam a respeito de "escolher um tema principal no início da faculdade. Em geral, os melhores alunos olham tudo, e se não ficam bem impressionados com o trabalho ao qual são apresentados no primeiro curso de uma área, eles riscam aquela área de sua lista para sempre. Quando eu era aluno de graduação, a física ainda era o campo mais atraente, e, na época, a corrida à Lua atraiu mais talentos do que deveria. (Um vestígio fóssil é a expressão "Ei, não é uma ciência de foguetes".) Em seguida, durante algum tempo, veio a ciência da computação, e o tempo todo - durante meio século ou mais - a biologia, em especial a biologia molecular, que atraiu muitas das cabeças mais inteligentes. Hoje, a ciência cognitiva e os diversos ramos da biologia da evolução - bioinformática, genética, biologia comportamental - estão em crescimento. Mas, durante todo esse período, a sociologia e a antropologia, a psicologia social e o meu próprio campo, a filosofia, batalharam, atraindo aqueles cujos interesses se combinam bem com a área, entre eles algumas pessoas brilhantes. Mas estas têm de lutar contra algumas reputações pouco invejáveis. Como o meu velho amigo e antigo colega Nelson Pike, um respeitado filósofo da religião, disse, com pesar: Se você está na presença de pessoas de ocupações diversas, e alguém pergunta o que você faz, e você diz que é professor universitário, aparece uma expressão perplexa no olhar dela. Se você está na companhia de professores de diversos departamentos e alguém pergunta qual a sua área, e você diz filosofia, aparece uma expressão perplexa no olhar dela. Se você está em uma conferência de filósofos e alguém pergunta em que você está trabalhando, e você diz filosofia da religião [...] [Citado em Bambrough, 1980] Esse problema não é exclusivo dos filósofos de religião. É também dos sociólogos da religião, psicólogos da religião e outros cientistas sociais - economistas, cientistas políticos -, e dos corajosos neurocientistas e outros biólogos que resolveram examinar o fenômeno religioso com os instrumentos de seu ofício. Uma das questões é que as pessoas acham que já sabem tudo o que precisam sobre a religião, e essa sabedoria recebida é bastante insípida, não é provocante o suficiente para inspirar a refutação ou o aprofundamento. Na verdade, se você resolve construir uma barreira impermeável entre cientistas e um fenômeno inexplorado, vai ser difícil fazer algo diferente da triste aura de baixo prestígio, calúnias e resultados duvidosos que atualmente envolve o tema da religião. E, como sabemos desde o início que muita gente acha que esse tipo de pesquisa viola um tabu, ou que pelo menos se intromete em questões que é melhor deixar no domínio privado, não é tão surpreendente que poucos bons pesquisadores de qualquer disciplina queiram encarar esse tema. Eu mesmo sentia isso até recentemente. Esses obstáculos podem ser suplantados. No século xx, aprendeu-se muito a respeito de como estudar fenômenos humanos, fenômenos sociais. Levas de pesquisas e críticas aguçaram nossa avaliação a respeito de armadilhas especiais, como desvios na coleta de dados, efeitos de interferência do investigador e interpretação dos dados. Técnicas estatísticas e analíticas ficaram muito mais sofisticadas, e começamos a deixar de lado os modelos ultra-simplificados de percepção humana, emoção, motivação e controle de ações, e a substituí-los por modelos mais fisiológica e psicologicamente realistas. A crescente fissura que separa as ciências da mente (Gesteswissenshaften) das ciências naturais (Naturwissenschaften) ainda não conta com uma ponte segura, mas muitos cabos foram jogados por cima do fosso. Suspeita mútua e ciúmes profissionais, além de genuína controvérsia teórica, continuam a sacudir quase todos os esforços para levar os insights de um lado para outro nessas rotas de conexão, mas o tráfego cresce a cada dia. A questão não é se a boa ciência da religião como fenômeno natural é possível: a questão é se devemos fazê-la. 2. DEVERIA A CIÊNCIA ESTUDAR A RELIGIÃO? Olhe antes de pular. [Esopo, "A raposa e a cabra"] Pesquisa é algo caro e que às vezes tem efeitos colaterais. Uma das lições do século xx é que os cientistas não estão livres da tentação de forjar justificativas para o trabalho que querem fazer, levados por curiosidade insaciável. Haverá, de fato, bons motivos, além de pura curiosidade, para tentar desenvolver a ciência natural da religião? Será que precisamos dela para alguma coisa? Será que ela nos irá ajudar a escolher políticas, resolver problemas, melhorar nosso mundo? O que sabemos sobre o futuro da religião? Pense sobre cinco hipóteses inteiramente diferentes: 1. O Iluminismo já acabou faz tempo; a arrepiante "secularização' das sociedades modernas, que foi prevista durante dois séculos, está se evaporando diante dos nossos olhos. A maré está virando, e a religião fica mais importante que nunca. Nesse cenário, a religião logo retoma uma função parecida com o papel social e moral dominante que tinha antes do surgimento da ciência moderna no século xvn. A medida que as pessoas se recuperam de seu fascínio pela tecnologia e os confortos materiais, a identidade espiritual passa a ser o atributo mais valorizado de uma pessoa, e as populações passam a ser mais nitidamente divididas do que nunca entre cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo e algumas outras grandes organizações religiosas multinacionais. Por fim - pode levar ainda mais um milênio, ou pode ser apressadapor alguma catástrofe -, uma fé fundamental varre o planeta. 2. A religião está em seus estertores de morte; as explosões de fervor e fanatismo de hoje não passam de uma transição breve e desajeitada para uma sociedade realmente moderna, na qual a religião represente no máximo um papel de cerimônia. Nesse cenário, embora possa haver alguns revivais locais e temporários, e até algumas catástrofes violentas, as principais religiões do mundo vão ser extintas como as centenas de religiões secundárias que desaparecem tão rapidamente que os antropólogos mal conseguem registrá-las. No período de vida dos nossos netos, a Cidade do Vaticano passa a ser o Museu Europeu do Catolicismo Romano, e Meca é transformada em Reino Mágico de Alá da Disney. 3. Religiões se transformam em instituições diferentes de qualquer outra coisa vista antes no planeta: basicamente associações sem credos que vendem auto-ajuda e capacitam grupos de trabalhos morais, usando a cerimônia e a tradição para cimentar relacionamentos e construir "fidelidade de fãs de longo prazo". Nesse cenário, ser membro de uma religião se torna cada vez mais semelhante a ser um torcedor do Flamengo, ou do Corin- thians. Cores diferentes, canções e gritos diferentes, símbolos diferentes e competição vigorosa - você gostaria que sua filha se casasse com um torcedor dos Corinthians? -, mas, fora alguns poucos enraivecidos, todo mundo aprecia a importância da coexistência pacífica numa Copa Global de Religiões. Arte e música religiosas florescem, e a rivalidade amigável leva a um grau de especialização. Uma religião se orgulha de sua administração ambiental, fornecendo água limpa para os bilhões do mundo, ao mesmo tempo que outra se torna devidamente famosa por sua organizada defesa da justiça social e da igualdade econômica. 4. A religião diminui em prestígio e visibilidade, assim como fumar; é tolerada, uma vez que há aqueles que dizem não poder viver sem ela, mas é desencorajada, e o ensino de religião para crianças pequenas impressionáveis é desaprovado na maioria das sociedades, e até mesmo proibido em outras. Nesse cenário, os políticos que ainda praticam religião podem ser eleitos se provarem que são dignos em outros aspectos, mas poucos proclamariam suas filiações religiosas - ou atribulações, como os politicamente incorretos insistem em chamá-las. E considerado falta de educação chamar a atenção para a religião de alguém, do mesmo modo como fazer comentários em público sobre sua sexualidade ou se a pessoa é divorciada. 5. O Dia do Julgamento chega. Os abençoados sobem corporalmente ao céu, e o resto fica para trás para sofrer a agonia dos condenados, já que o Anticristo foi vencido. Como as profecias da Bíblia previram, o renascimento da nação de Israel em 1948 e o permanente conflito a respeito da Palestina são sinais claros do Fim dos Tempos, quando a Segunda Vinda de Cristo varre todas as outras hipóteses para o esquecimento. Outras possibilidades podem ser descritas, é claro, mas essas cinco hipóteses sublinham os extremos que devem ser levados seriamente em conta. O notável nesse conjunto é que qualquer pessoa irá considerar pelo menos uma delas absurda, ou perturbadora, ou até mesmo profundamente ofensiva, mas cada uma delas não apenas é prevista, mas ansiada. As pessoas agem de acordo com aquilo que anseiam. Nós estamos em campos opostos sobre religião, para dizer o mínimo, de modo que podemos prever problemas que vão desde os esforços desperdiçados e as campanhas contraproducentes, se tivermos sorte, até a guerra generalizada e a catástrofe genocida, caso não tenhamos. Apenas uma dessas hipóteses (no máximo) se mostrará verdadeira; o resto não apenas está errado, mas muito errado. Muitas pessoas acham que sabem qual hipótese é a verdadeira, mas ninguém sabe. Será que esse fato por si só não basta como motivo para estudar a religião cientificamente? Queira você que a religião floresça ou desapareça, pense você que ela deva se transformar ou continuar do jeito que está, dificilmente poderá negar que, não importa o que aconteça, isso terá um tremendo significado para o planeta. Seria útil para suas esperanças, não importa quais sejam, conhecer mais a respeito daquilo que tem probabilidade de acontecer - e por quê. A esse respeito, vale a pena notar a assiduidade com que aqueles que acreditam firmemente na hipótese número 5 examinam as notícias do mundo à procura de provas de profecias realizadas. Eles classificam e avaliam suas fontes, debatendo os prós e os contras de diversas interpretações dessas profecias. Eles acham que há um motivo para investigar o futuro da religião, e nem sequer lhes passa pela cabeça que o curso dos eventos futuros pode ser determinado a partir do interior dos poderes humanos. Os demais têm ainda mais motivos para investigar os fenômenos, já que é bastante evidente que a complacência e a ignorância poderão nos levar a desperdiçar nossas oportunidades de orientar os fenômenos nas direções que consideramos benignas. Olhar para adiante, prever o futuro, essas são as conquistas da nossa espécie. Conseguimos, em poucos milênios de cultura humana, multiplicar o suprimento de previsões do planeta em muitas ordens de magnitude. Sabemos quando os eclipses vão ocorrer com séculos de antecedência; podemos prever os efeitos sobre as atmosferas dos métodos pelos quais geramos eletricidade; conseguimos prever, em termos gerais, o que irá acontecer quando as reservas de petróleo diminuírem nas próximas décadas. Não fazemos isso por meio de profecia milagrosa, mas com percepção básica. Reunimos informações sobre o ambiente, usando nossos sentidos, e então lançamos mão da ciência para alicerçar nossas previsões, com bases nessas informações. Retiramos minério das minas, depois o refinamos, repetidas vezes, e ele nos permite que vejamos o futuro - fracamente, com muita incerteza, mas muito melhor do que o método de jogar uma moeda para o alto. Em todas as áreas de interesse humano, aprendemos como prever e quando evitar as catástrofes que costumavam ficar em um ponto cego.' Conseguimos recentemente impedir um desastre global causado pelo crescente buraco na camada de ozônio porque alguns químicos de longa visão conseguiram provar que alguns de nossos compostos manufaturados causavam esse problema. Evitamos colapsos econômicos em anos recentes porque nossos modelos econômicos mostraram-nos problemas iminentes. Uma catástrofe evitada é um anticlímax, é claro, de modo que tendemos a não nos dar conta de como são valiosos os nossos poderes de previsão. "Vê?", queixamo-nos. "Afinal de contas, não ia acontecer." A temporada de gripes de 2003-2004 foi prevista como severa, já que tinha chegado antes da época habitual, mas as recomendações de vacinação foram de tal modo seguidas que a epidemia acabou tão rapidamente quanto começou. Amém. Passou a ser mais ou menos um costume, ultimamente, os meteorologistas exagerarem, na televisão, os efeitos de um furacão em curso, ou outra tempestade, e depois o público ficar pouco impressionado com a tempestade real. Mas avaliações ponderadas mostram que muitas vidas são salvas, que a destruição é minimizada. Aceitamos o proveito de estudar intensamente El Nino e outros ciclos nas correntes oceânicas para que possamos melhorar as previsões meteorológicas. Mantemos registros completos de muitos eventos econômicos para que possamos fazer uma melhor previsão econômica. Deveríamos estender esse mesmo escrutínio aprofundado, pelos mesmos motivos, aos fenômenos religiosos. Poucas forças no mundo são tão potentes, tão influentes, como a religião. Quando lutamos para resolver as terríveis desigualdades econômicas e sociais que atualmente desfiguram nosso planeta, e minimizamos a violência e a degradação, devemos reconhecer que, se há um ponto cego a respeito da religião, nossos esforços quase com certeza irão falhar, e isso poderá ainda piorar a situação. Não permitiríamos que os interesses mundiais na produção de alimentos nos desviassem do estudo da agricultura e da nutrição humanas, e aprendemosa não eximir o mundo dos bancos e seguros de um exame intenso e contínuo. Os efeitos deles são importantes demais para ficarmos confiantes. Por isso, o que estou pedindo é um esforço orquestrado para formar uma concordância mútua sob a qual a religião - qualquer religião - se torne um adequado objeto de estudo científico. Nesse aspecto, acho que as opiniões estão divididas entre aqueles que já estão convencidos de que essa seria uma boa idéia, aqueles que estão ambivalentes e duvidam de que ela seja de grande valor, e os que acham a proposta malévola - ofensiva, perigosa e burra. Não querendo pregar para os convertidos, estou especialmente preocupado em abordar os que odeiam essa idéia, na esperança de convencê-los de que a repugnância deles está mal colocada. É uma tarefa atemorizante, como tentar convencer sua amiga com sintomas de câncer de que ela realmente deveria ir ao médico já, uma vez que a ansiedade dela pode estar mal colocada, e quanto mais cedo ela souber disso, mais cedo poderá prosseguir com sua vida, e que se ela tiver câncer, uma intervenção a tempo poderá fazer muita diferença. Amigos podem ficar bastante aborrecidos quando você interfere em suas negativas nessas ocasiões, mas é preciso perseverança. Sim, eu quero pôr a religião na mesa de exame. Se for fundamentalmente benigna, como insistem muitos de seus devotos, ela vai se sair muito bem; as suspeitas serão acalmadas, e poderemos nos concentrar nas poucas patologias periféricas das quais a religião, como qualquer outro fenômeno natural, é presa. Caso contrário, quanto mais cedo identificarmos os problemas, melhor. A pesquisa em si irá gerar algum desconforto ou constrangimento? É quase certo, mas o preço é baixo. Haverá risco de que tal exame invasivo torne doente uma religião sã, ou até incapacitada? E claro que sim. Sempre há riscos. Será que vale a pena correr esse risco? Talvez não, mas ainda não vi qualquer argumento que me convença disso, e logo iremos examinar o melhor deles. Os únicos argumentos que vale a pena satisfazer terão de demonstrar que (i) a religião fornece benefícios indubitáveis à humanidade, e (2) esses benefícios provavelmente não sobreviveriam ao exame. Eu, por exemplo, temo que, se não submetermos a religião a tal escrutínio agora, e trabalharmos juntos em quaisquer revisões e reformas necessárias, passaremos aos nossos descendentes um legado de formas cada vez mais tóxicas de religião. Não posso provar essa hipótese, e os que têm certeza absoluta de que isso não irá acontecer são encorajados a afirmar aquilo que sustenta suas convicções - fora a fidelidade às tradições, o que não é preciso declarar e que aqui não conta para nada. Em geral, saber mais melhora nossas probabilidades de conseguir aquilo a que damos valor. Isso não é apenas uma verdade da lógica, já que a incerteza não é o único fator que pode diminuir a probabilidade de uma pessoa alcançar suas metas. O preço de saber (como o preço de vir a saber) deve ser computado, e esse custo pode ser alto, motivo pelo qual "Improvise!" pode ser um bom conselho. Suponha que haja um limite para o máximo de conhecimento sobre algum tópico que é bom para você. Se for assim, então, sempre que esse limite for alcançado (se isso for possível - o limite poderá ser inalcançável por um motivo ou outro), deveríamos proibir ou pelo menos desencorajar fortemente qualquer outra busca de conhecimento sobre aquele tópico, como se fosse uma atividade anti-social. Isso pode ser um princípio que nunca venha a entrar em ação, mas não sabemos disso, e certamente deveríamos aceitá-lo. Pode ser, então, que alguns de nossos maiores desentendimentos no mundo, hoje, sejam acerca de se alcançamos esse limite. Essa reflexão põe a convicção islamítica2 de que a ciência ocidental é ruim sob uma luz diferente: pode ser menos um engano ignorante do que uma visão profundamente diferente de onde está o limiar. Algumas vezes a ignorância é uma bênção. Precisamos pensar sobre essas possibilidades com cuidado. 3. PODERIA A MÚSICA SER RUIM PARA VOCÊ? A música, o maior bem que os mortais conhecem, E todo o céu que temos aqui embaixo. [Joseph Addison] Não é estranho que as tripas de carneiros puxem as almas para fora do corpo dos homens? [William Shakespeare] Não que eu não simpatize com o desgosto daqueles que resistem à minha proposição. Ao tentar imaginar quais seriam suas reações emocionais à minha proposta, cheguei a uma perturbadora experiência do pensamento que me parece funcionar. (Agora estou falando àqueles que, como eu, não ficam horrorizados com a idéia dessa experiência.) Imagine como você se sentiria se lesse na seção de ciência do The New York Times que pesquisas recentes realizadas na Universidade de Cambridge e no Caltech demonstraram que a música, há muito considerada um dos mais puros tesouros da cultura humana, é na verdade ruim para a sua saúde, um grande fator de risco para o mal de Alzheimer e as doenças cardíacas, um distorcedor de humor que impede o juízo, de maneira sutil, mas deletéria, contribuindo significativamente para as tendências agressivas, a xenofobia e o enfraquecimento da vontade. Exposição desde cedo e habitual à música, tanto fazendo como escutando, torna a pessoa 40% mais propensa a sofrer de depressão, diminui uma média de dez pontos no Qi e quase dobra a probabilidade de que ela cometa um ato de violência em algum momento de sua vida. Um painel de pesquisadores recomenda que as pessoas restrin- jam suas doses de música a não mais de uma hora por dia (incluindo tudo, desde música de elevador e música ambiente na televisão a concertos sinfônicos), e que a prática amplamente disseminada de aulas de música para as crianças seja imediatamente suspensa. Fora a suprema descrença com que eu acolheria um relatório com tais "descobertas", posso detectar em minhas reações imaginadas uma onda defensiva visceral, junto com as frases "Azar de Cambridge e do Caltech! O que eles sabem sobre música?" e "Não estou nem aí se for verdade! E quem quer que tente tirar minha música é melhor estar preparado para uma briga, porque uma vida sem música não vale a pena ser vivida. Não me importa se me 'faz mal', e nem me incomodo se 'faz mal' a outras pessoas - vamos ter música, e pronto . É assim que eu ficaria tentado a responder. Eu preferiria não viver num mundo sem música. "Mas por quê? - poderia perguntar alguém. "A música não passa de bobagem de serrar e fazer barulho juntos. Não alimenta os famintos nem cura o câncer ou [...]" Eu respondo: "Mas traz grande consolo e alegria a centenas de milhões de pessoas. Certo, há excessos e controvérsias, mas mesmo assim ninguém pode duvidar que a música é, em todos os sentidos, uma coisa boa". "Bem, é", vem a resposta. Há seitas religiosas - os talibãs, por exemplo, mas também seitas puritanas de antanho no cristianismo, e sem dúvida outras - que afirmavam que a música é um passatempo ruim, um tipo de droga a ser proibida. A idéia não é claramente insana, de modo que devemos aceitar o ônus intelectual de mostrar que isso é um erro. Reconheço que muita gente sente, a respeito da religião, o mesmo que eu sinto pela música. Eles podem ter razão. Vamos descobrir. Ou seja, vamos permitir que o assunto religião seja submetido ao mesmo tipo de indagação científica que é feita sobre o fumo e o álcool, e também a música. Vamos descobrir por que as pessoas amam suas religiões e para que elas servem. E não devemos deixar que as pesquisas existentes resolvam o assunto, do mesmo modo que não aceitamos como verdadeiras as campanhas dos fabricantes de cigarros a respeito da segurança do fumo. Claro, a religião salva vidas. O fumo também - perguntem àqueles soldados norte- americanos para os quais o fumo era um consolo ainda maior que a religião durante a Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Coréia e a Guerra do Vietnã. Estou preparado para examinar atentamente os prós e os contras da música, e, se realmente for verdade que a música causa câncer, ódio étnico e guerra, então terei de pensar seriamente a respeito de como viversem ouvir música. Só porque tenho tanta certeza de que a música não faz muito mal é que posso curti-la com uma consciência tão pura. Se pessoas críveis me disserem que a música pode ser danosa ao mundo, considerando todos os aspectos, vou me sentir moralmente obrigado a examinar as provas tão desapaixonadamente quanto puder. Na verdade, eu me sentiria culpado a respeito de minha devoção à música se não as examinasse. Mas não é a hipótese de que os custos da religião ultrapassam os benefícios ainda mais absurda que a fantástica alegação a respeito da música? Eu não acho. A música pode ser o que Marx disse da religião: o ópio do povo, mantendo os operários em submissão tranqüilizada. Mas pode também ser a inspiração de canções revolucionárias, unindo as fileiras e dando coragem a todos. Sob outros aspectos, a música parece muito menos problemática que a religião. No decorrer de milênios, a música iniciou algumas desordens, e músicos carismáticos podem ter abusado sexualmente de um número chocante de jovens fãs suscetíveis, e seduzido muitos outros a largarem a família (e o juízo), mas nunca houve cruzadas ou jihads por causa das diferenças de tradições musicais, nenhum pogrom foi instituído contra os amantes de valsas, ragas ou tangos. Populações inteiras não foram levadas a tocar escalas obrigatórias ou mantidas na penúria para montar salas de concerto com a melhor das acústicas e os melhores instrumentos. Nenhum músico teve qualquer fatwa pronunciada contra ele por organizações musicais, nem mesmo os que tocam acordeom. A comparação da religião com a música é especialmente útil aqui, já que a música é outro fenômeno natural que tem sido competentemente estudado há centenas de anos, mas que só agora começa a ser objeto do tipo de estudo científico que estou recomendando. Não há falta de pesquisa profissional sobre teoria musical - harmonia, contraponto, ritmo - ou sobre as técnicas de se fazer música, ou a respeito da história de todo tipo de instrumento. Etnomusicólogos estudaram a evolução de estilos e práticas musicais em relação a fatores sociais, econômicos e outros aspectos culturais, e neurocientistas e psicólogos têm, há relativamente pouco tempo, começado a estudar a percepção e a criação de música, usando todas as mais recentes tecnologias para revelar os padrões de atividade cerebral associados à experiência musical, à memória musical e temas cor- relatos. A maior parte dessa pesquisa, porém, ainda aceita a música sem questionamentos. Raramente pergunta: por que a música existe? Há uma resposta mais curta, e é verdadeira, em suas limitações: existe porque nós gostamos dela, e portanto continuamos a trazer mais música para a nossa existência. Mas por que gostamos dela? Porque achamos que é bonita. Mas por que ela é bonita para nós? Essa é uma ótima pergunta biológica, mas até agora ainda não há uma boa resposta para ela. Compare-a, por exemplo, com a pergunta: por que gostamos de doces? Aqui sabemos a resposta do ponto de vista da evolução, em alguns detalhes, e ela tem alguns aspectos curiosos. Não é por acaso que achamos as coisas doces do nosso agrado, e, se quisermos ajustar nossas políticas em relação a coisas doces no futuro, é melhor conhecermos as bases evolutivas da atração que sentimos por elas. Não devemos cometer o erro do homem na velha piada, que se queixou de que, quando finalmente conseguiu treinar seu burro para não comer, a besta do animal morreu. Algumas coisas são necessárias à vida, e algumas coisas pelo menos aumentam tanto a qualidade ou a capacidade de vida que nos arriscamos ao lidar com elas, e precisamos calcular esses papéis e necessidades. Desde o Iluminismo, no século XVIII, muitas pessoas bem informadas e brilhantes confiavam em que a religião desapareceria em pouco tempo, sendo objeto de um gosto humano que poderia ser satisfeito por outros meios. Muitos ainda estão esperando por isso, de modo um tanto menos confiante. Seja o que for que a religião nos dê, muitos acham que não podem prescindir dela. Dessa vez vamos levar essas pessoas a sério, porque elas podem ter razão. Mas só há um meio de as levarmos a sério: precisamos estudar a religião cientificamente. 4. SERIA MELHOR DEIXAR PARA LÁ? É doce o conhecimento trazido pela natureza; Nosso intelecto intrometido Deforma os belos feitios das coisas: --Assassinamos para dissecar. [William Wordsworth, "The tables turned"] Então por que a ciência e os cientistas têm de continuar a ser governados pelo medo - medo da opinião pública, medo das conseqüências sociais, medo da intolerância religiosa, medo da pressão política, e, acima de tudo, medo do fanatismo e do preconceito - tanto dentro como fora do mundo profissional? [William Masters e Virgínia Johnson, A resposta sexual humana] E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. [Jesus de Nazaré, em João 8, 32] É hora de enfrentar a preocupação de que uma investigação possa na verdade matar todos os espécimes, destruindo algo de precioso em nome de descobrir sua natureza interior. Não seria mais prudente deixar as coisas em paz? Como já observei, a causa para dominar nossa curiosidade, aqui, tem duas partes: deverá mostrar tanto (i) que a religião oferece benefícios claros para a humanidade e (2) que esses benefícios teriam pouca probabilidade de sobreviver a uma investigação. O problema tático que nos confronta é que não há, na verdade, uma maneira de demonstrar o primeiro ponto sem de fato se envolver na investigação. A religião parece, para muita gente, ser a fonte de diversas coisas maravilhosas, mas outros duvidam disso, por motivos forçados, e nós não devemos apenas fazer concessões por causa de um respeito sem sentido pela tradição. Talvez esse próprio respeito seja como a camada exterior protetora que muitas vezes esconde vírus mortais de nosso sistema imunológico, algum tipo de camuflagem que livra das críticas, muito necessárias. Então, no máximo, podemos dizer que o ponto 1 ainda não ficou provado. Podemos, no entanto, proceder tentativamente e considerar como o ponto 2 seria provável se assumíssemos, a bem da argumentação, que a religião é mesmo algo de grande valor. Podemos assumir isso inocentemente até que se prove sua culpa - em outras palavras, exatamente como funciona o nosso sistema legal. Agora, e o ponto 2? Quanto mal supomos que uma investigação possa causar, no pior dos casos? Será que ela não poderá quebrar o feitiço e nos desencantar para sempre? Essa preocupação tem sido uma base favorita para resistir à curiosidade científica durante séculos. Mas embora não seja responsável negar que desmontar instâncias particulares de coisas maravilhosas - plantas, animais, instrumentos musicais - algumas vezes possa destruí-las de maneira irremediável, outras coisas maravilhosas - poemas, sinfonias, teorias, sistemas jurídicos - vicejam quando estão sob análise, mesmo que muito trabalhosa, e é difícil negar o benefício para outras plantas, animais e instrumentos musicais derivado da dissecção de alguns espécimes. Apesar de todas as advertências ao longo dos séculos, não consegui chegar ao caso de algum fenômeno que tenha realmente sido destruído, ou até seriamente danificado, pelo escrutínio científico. Os biólogos que trabalham no campo muitas vezes são confrontados por um terrível dilema ao estudarem espécies ameaçadas: será que suas bem-intencionadas tentativas de recenseamento, envolvendo capturar animais vivos e depois soltá-los, acabam mesmo apressando a extinção da espécie? Quando os antropólogos estudam povos até então isolados e primitivos, suas perguntas, não importa quão discretas e diplomáticas, rapidamente mudam a cultura que eles tanto anseiam conhecer. Com respeito a casos anteriores, não estudarás é uma política que pode realmente ser invocada com propriedade em determinadas ocasiões, mas, com respeito ao último caso, prolongar o isolamento de pessoas pondo-as, de fato, em um zoológico cultural, embora seja algumas vezes uma idéia defendida, não resiste a um exame mais atento. São pessoas, e não temos o direitode mantê-las ignorantes do mundo mais amplo que elas partilham conosco. (Se elas têm o direito de se manter ignorantes é uma das questões exaspe- rantes a serem abordadas mais adiante, neste livro.) Vale lembrar que foram necessários muitos anos aos bravos pioneiros para sobrepujar o forte tabu contra a dissecção de cadáveres humanos durante os anos iniciais da medicina moderna. E devemos observar que, não obstante o ultraje e a repulsa com que a idéia de dissecção foi recebida na época, passar por cima dessa tradição não levou ao temido colapso da moralidade e da decência. Vivemos em uma era em que os cadáveres humanos ainda são tratados com o devido respeito - na verdade, com maior respeito e decoro do que eram tratados na época em que ainda se encarava a dissecção como algo indecoroso. E quem de nós escolheria dispensar os benefícios da medicina, tornados possíveis pela ciência invasiva e intrometida que Wordsworth deplora? Mais recentemente, outro tabu foi quebrado, com uma gritaria ainda maior. Alfred C. Kinsey, nos anos 1940 e 1950, começou a investigação sobre as práticas sexuais humanas nos Estados Unidos que levou ao notório Relatório Kinsey, Comportamento sexual no homem (1948) e Comportamento sexual na mulher (1953). Houve falhas consideráveis nos estudos de Kinsey, mas o peso das provas que ele reuniu levou a conclusões surpreendentes que não precisaram mais que pequenos ajustes nas investigações mais bem controladas que se seguiram. Pela primeira vez, meninos e homens puderam saber que mais de 90% dos homens norte-americanos se masturbam, e que cerca de 10% são homossexuais; meninas e mulheres puderam saber que os orgasmos são normais e podem ser alcançados por elas, tanto no coito como na masturbação, e - nada surpreendente, visto hoje - que as lésbicas são melhores que os homens para induzir orgasmos em mulheres. Os instrumentos de pesquisa de Kinsey foram entrevistas e questionários, mas logo William H. Masters e Virgínia Johnson reuniram a coragem suficiente para submeter a excitação sexual humana à investigação científica no laboratório, registrando as reações fisiológicas de voluntários envolvidos no ato sexual, usando os instrumentos da ciência, inclusive cinematografia em cores (isso foi antes da disponibilidade imediata do videoteipe). O trabalho pioneiro dos dois, A resposta sexual humana (1966), encontrou uma extremada mistura de hostilidade e ultraje, divertimento e fascinação lasciva - e cautelosos aplausos da comunidade médica e científica. Ao iluminar com a forte luz da ciência o que até então era feito no escuro (com uma grande dose de segredo e vergonha), eles dissiparam uma multiplicidade de mitos, revisaram o conhecimento médico de alguns tipos de dis- função sexual, liberaram incontável número de pessoas ansiosas cujos gostos e práticas haviam estado sob uma nuvem de desaprovação socialmente inculcada, e - maravilha das maravilhas - melhoraram a vida sexual de milhões. Pelo menos nesse caso conseguiu-se quebrar e não quebrar o encanto ao mesmo tempo. Você pode violar o tabu contra o estudo desapaixonado de um fenômeno - eis um encanto quebrado - e não destruí-lo no processo - eis um encanto sob o qual se pode alegremente cair. Mas a que custo? Eu deliberadamente chamo a atenção para o trabalho ainda controverso de Masters e Johnson, pois ele ilustra muito claramente as difíceis questões com as quais este livro está preocupado. Muitos concordarão comigo quando digo que, graças ao trabalho pioneiro de Kinsey, Masters e Johnson, o conhecimento que adquirimos não destruiu o sexo, tornou o sexo melhor. Há também, contudo, aqueles que se enfurecem com a comparação e declaram que é exatamente por isso que eles se opõem a qualquer exploração científica da religião: há uma possibilidade de que ela possa fazer com a religião o que Kinsey et al. fizeram com o sexo - nos ensinar mais do que seria bom para nós. Deixe-me pôr palavras na boca dessas pessoas: Se a masturbação não acompanhada de vergonha, a tolerância à homossexualidade e o maior conhecimento de como alcançar o orgasmo feminino forem exemplos dos benefícios que a ciência nos pode trazer, então pior para a ciência. Ao tratar o sexo como uma coisa natural (no sentido de nada há de que se envergonhar), ela contribuiu para uma explosão de pornografia e degradação, profanando o ato sagrado da união procriadora entre marido e mulher. Estaríamos melhor sem conhecer todos esses fatos, e deveríamos tomar todas as medidas possíveis para proteger nossas crianças dessas informações contaminadoras! Essa objeção é muito séria. Não se pode negar que a sinceridade terra-a- terra a respeito do sexo promovida pela pesquisa de Kinsley provocou alguns efeitos colaterais terríveis, abrindo novos e férteis campos de exploração por parte daqueles que estão sempre procurando formas de oprimir seus concidadãos. A revolução sexual da década de 1960 não foi a liberação gloriosa e inteiramente benévola como muitas vezes a representam. As explorações do "amor livre" e do "casamento aberto" magoaram muitos corações e roubaram de muitos jovens o sentido profundo da importância moral das relações sexuais, encorajando uma visão rasa do sexo como mero entretenimento dos sentidos. Embora se acredite amplamente que a revolução sexual contribuiu para a negligência e a promiscuidade, que aumentaram o flagelo das doenças sexualmente transmissíveis, a coisa pode não ter sido bem assim. A maior parte das provas sugere que, quando as informações sobre sexo são amplamente disseminadas, o comportamento sexual se torna mais responsável (Posner, 1992). Qualquer um que tenha de criar uma criança hoje deve se preocupar com o excesso de informações que nos sufoca atualmente. Conhecimento é realmente poder, para o bem ou para o mal. O conhecimento pode ter o poder de romper padrões antigos de crença e ação, de subverter a autoridade, de mudar as mentes. Pode interferir com tendências que são ou não desejáveis. Em um famoso memorando ao presidente Richard Nixon, Daniel Patrick Moynihan escreveu: Chegou a hora em que a questão da raça se beneficiaria de um período de "negligência benigna". Têm-se falado muito no assunto. O foro foi tomado por histéricos, paranóicos e picaretas - dos dois lados. Talvez necessitemos de um período em que o progresso dos negros continue, e a retórica racial diminua. A administração pode ajudar nisso prestando atenção cuidadosa a esse progresso - do jeito que estamos fazendo -, ao mesmo tempo que deveria tentar evitar situações que dêem aos extremistas de qualquer uma das raças oportunidades de martírio, heroísmo, farsas ou seja lá o que for. (Moynihan, 1970) Provavelmente jamais saberemos se Moynihan estava certo, mas talvez ele estivesse. Os que suspeitam que ele tinha razão podem esperar que sigamos seu conselho agora, adiando a atenção vigorosa para a religião o máximo possível, desviando a inquirição e esperando o melhor. Mas é difícil ver como essa política poderia ser alcançada em qualquer dos casos. Desde o Iluminismo, já tivemos mais de duzentos anos de curiosidade deferente, abafada, e isso não parece ter levado à diminuição da retórica religiosa, não é? A história recente sugere fortemente que a religião vai atrair cada vez mais atenção, e não menos, no futuro imediato. Se é para receber atenção, melhor que seja atenção de boa qualidade, e não do tipo que histéricos, paranóicos e picaretas de todos os lados apresentam. * * * O problema é que hoje em dia é simplesmente difícil demais guardar segredos. Enquanto em épocas anteriores a ignorância era a condição que faltava à maior parte da raça humana, e era preciso um considerável exercício de investigação para aprender sobre o resto do mundo, hoje todos nadamos em um mar de informações e desinformações sobre qualquer assunto, desde a masturbação até como construir armas nucleares para a Al Qaeda. Do mesmo modo como deploramos as tentativas feitas por alguns líderes religiosos no mundo islâmico de manter suas meninas e mulheres sem instrução e sem informaçõesa respeito do mundo, dificilmente podemos aprovar embargos semelhantes ao conhecimento em nossa própria esfera. Ou será que podemos? Talvez esse ponto de discórdia seja o divisor continental, no Espaço da Opinião, entre aqueles que acham que nossa melhor esperança é tentar pregar a tampa da caixa de Pandora e nos mantemos eternamente ignorantes, e os que acham que isso é politicamente impossível e imoral, só para começar. Os primeiros sempre pagam um preço alto pela pobreza factual imposta a si mesmos: eles não conseguem imaginar em detalhes as conseqüências da política que escolheram. Será que não conseguem enxergar que nada aquém de um Estado policial, eri- çado de leis que proíbem a investigação e o conhecimento disseminado, ou o aprisionamento da população em um mundo sem janelas, conseguiria realizar esse feito? Será que é isso mesmo o que eles querem? Será que acham que têm métodos que nem os mulás conservadores sonharam para impedir o fluxo inexorável da informação libertadora para sua sociedade? Adiantem-se. Aí há uma armadilha esperando aqueles que não têm antevisão. Talvez nenhum pai ou mãe seja imune a um toque de remorso quando vê a primeira prova da perda de inocência do filho, e o impulso de protegê-lo dos perigos do mundo é forte, mas a reflexão deveria mostrar a qualquer um que isso não vai funcionar. Precisamos deixar nossos filhos crescerem para enfrentar o mundo armados de conhecimento, com muito mais conhecimentos do que nós mesmos tínhamos na idade deles. É assustador, mas a alternativa é pior. Há algumas pessoas - milhões, aparentemente - que declaram com orgulho que não se devem prever as conseqüências: elas sabem, em seus íntimos, que esse é exatamente o caminho certo, não importando os detalhes. Como o Dia do Julgamento está próximo, não há motivos para planejar o futuro. Se você for um desses, eis o que espero ser uma reflexão sem fantasias: já pensou que talvez você esteja sendo irresponsável? Você iria de boa vontade arriscar não apenas a vida e o bem-estar futuro dos que você ama, mas também a vida e o bem-estar futuro de todos nós, sem hesitação, sem o devido cuidado, guiado por uma revelação ou outra, uma convicção cuja solidez você não tem um bom método para examinar. "Todos os homens prudentes agiram com o conhecimento: mas a tolice de um tolo é visível" (Provérbios 13, 16). Sim, eu sei que a Bíblia também tem um texto que diz o contrário: "Porque está escrito, eu destruirei a sabedoria do sábio, e levarei a nada o conhecimento do prudente" (1 Coríntios 1, 19). Qualquer pessoa pode citar a Bíblia para provar qualquer coisa, e é exatamente por isso que você deveria se preocupar em não ser confiante demais. Alguma vez você já se perguntou: E se eu estiver errado? É claro que há uma grande multidão de outras pessoas ao seu redor que compartilham de sua convicção, e isso distribui - e, ai, dilui - a responsabilidade, de modo que se alguma vez tiver a oportunidade de sussurrar uma palavra de arrependimento, você terá uma desculpa à mão: você foi varrido por uma multidão de entusiastas. Mas certamente você terá notado um fato perturbador. A história nos dá muitos exemplos de grandes multidões de pessoas iludidas, incitando-se umas às outras rumo ao alegre caminho da perdição. Como você pode ter a certeza de que não faz parte desse grupo? Eu, por exemplo, não dou a mínima para a sua fé. Estou espantado pela sua arrogância, pela sua certeza pouco racional de que tem todas as respostas. Fico pensando se algum crédulo do Fim dos Tempos terá a honestidade intelectual e a coragem de ler este livro até o fim. O que imaginamos sem muita clareza, em temida antecipação, muitas vezes acaba sendo muito pior que a realidade. Antes de lamentarmos nossa incapacidade de parar a crescente onda de informações, deveríamos pensar com calma em suas conseqüências possíveis. Elas podem não ser tão más. Imagine, se puder, que nunca tivemos o mito de Papai Noel, que o Natal era apenas outra festa cristã, como o Domingo de Ramos ou Pentecostes, celebrado, mas dificilmente esperado no mundo todo. E imagine que os fãs das histórias de Harry Potter, de J. K. Rowlings, tentassem iniciar uma nova tradição: todos os anos, no aniversário da publicação do primeiro livro de Harry Potter, as crianças receberiam presentes dados pelo menino, que entraria pela janela em sua vassoura mágica, acompanhado por sua coruja. Vamos tornar o Dia de Harry Potter um dia mundial para as crianças! Os fabricantes de brinquedos estariam todos a favor, supostamente, mas imaginem as cassandras que fossem contra: Que idéia terrível! Pensem nos efeitos traumáticos sobre as crianças pequenas quando eles ficarem sabendo, como acabarão por saber, que sua inocência e confiança foi explorada por uma gigantesca conspiração pública dos adultos. Os custos psicológicos e sociais de tal decepção maciça poderiam ser cinismo, desespero, paranóia e sofrimento, que poderiam marcar algumas crianças pelo resto da vida. Poderia haver alguma coisa mais malévola que maquinar um conjunto sedutor de mentiras para espalhar entre os nossos filhos? Eles nos odiarão amargamente, e nós mereceremos sua fúria. Se essa preocupação bastante admirável tivesse sido efetivamente levantada nos dias iniciais que envolveram a mitologia de Papai Noel talvez se tivesse evitado a Grande Catástrofe do Papai Noel de 1985! Mas sabemos que não é isso. Não houve nem nunca haverá tal catástrofe. Algumas crianças realmente sofrem ataques relativamente curtos de vergonha e amargura ao saberem que Papai Noel não existe, mas outros sentem um delicioso orgulho de seus triunfos de Sherlock Holmes, e curtem seu novo status entre Aqueles que Sabem, contribuindo ansiosamente para as artimanhas do ano seguinte, e respondendo sobriamente às perguntas inocentes feitas a eles pelos irmãos mais novos. Tanto quanto sabemos,3 a desilusão do Papai Noel não causa males. Mais especificamente, é provável (mas não ainda pesquisado, que eu saiba) que parte da duradoura atração do mito de Papai Noel se deva ao fato de que os adultos, que já não podem mais ter a experiência das alegrias inocentes da espera pelo velhinho, se contentam com a animação vicária de curtir a excitação de seus filhos. As pessoas se submetem a grandes esforços e despesas para perpetuar a mitologia de Papai Noel. Por quê? Será que estão tentando recapturar a inocência perdida da infância? Será que são mais diretamente motivadas por sua própria gratificação do que pela generosidade? Ou será que os prazeres da conspiração, com a absolvição da comunidade (não manchada pela culpa que acompanha as conspirações de adultério, desfalque ou sonegação de impostos, por exemplo), são suficientes em si mesmos para compensar os custos substanciais? Essa maneira de pensar tão impertinente vai avultar ainda mais nos capítulos subseqüentes, quando nos voltarmos para as questões mais perturbadoras a respeito de por que a religião é tão popular. Não são questões retóricas. Elas podem ser respondidas, se tentarmos. Reconheço que muitos leitores ficarão profundamente desconfiados da direção que estou tomando. Eles me verão apenas como mais um professor liberal tentando convencê-los a abandonar algumas de suas convicções, e estão inteiramente certos a esse respeito - é exatamente isso o que sou, e é exatamente isso que estou tentando fazer. Por que, então, deveriam eles prestar atenção? Estão pasmos diante da queda moral que vêem em todos os lados, e estão sinceramente convencidos de que a proteção de suas religiões com relação a qualquer pesquisa e a toda crítica é o melhor modo de mudar a maré. Concordo com eles de todo coração, que há uma crise moral, e que nada é mais importante que trabalhar em conjunto na busca de caminhos para sairmos de nossos dilemas atuais. Mas acho que há um modo melhor. Prove-o, dirão eles. Deixem-me pensar, respondo eu. E este o propósito deste livro, e eu peço a eles que tentem lê-lo com uma mente aberta. * * * Capítulo 2. A religião não está fora dos limites da ciência, apesar da propaganda emcontrário, vinda de uma variedade de fontes. Além do mais, a pesquisa científica é necessária para fornecer informações às nossas decisões políticas mais graves. Há risco e até dor envolvidos, mas seria irresponsabilidade usar isso como desculpa para a ignorância. * * * Capítulo 3. Se quisermos saber por que valorizamos as coisas que amamos, precisamos mergulhar na história da evolução do planeta, revelando as forças e as restrições que geraram a série gloriosa de coisas que nos são preciosas. A religião não se exime desse levantamento, e podemos traçar uma variedade de caminhos promissores para novas pesquisas, ao mesmo tempo que chegamos a compreender como podemos alcançar uma perspectiva em nossas próprias pesquisas, da qual todos possam compartilhar, independentemente de seus diferentes credos. 3. POR QUE AS COISAS BOAS ACONTECEM 1. TRAZENDO À TONA O QUE HÁ DE MELHOR A alegoria religiosa tornou-se uma parte do tecido da realidade. E viver nessa realidade ajuda milhões de pessoas a lutarem e serem melhores. [Langdon, herói de O código Da Vinci, de Dan Brown] QUANDO COMECEI a trabalhar neste livro, fiz entrevistas com muitas pessoas para tentar perceber um sentido nos diferentes papéis que a religião desempenha na vida delas. Não se tratava de coleta científica de dados (embora eu também tenha feito um pouco disso), mas, antes, uma tentativa de deixar de lado as teorias e os experimentos e ir direto às pessoas de verdade, deixando-as contar, em suas próprias palavras, por que a religião era tão importante para elas. Essas entrevistas eram rigorosamente confidenciais, realizadas quase tête-à-tête,' e embora eu fosse bastante inquisiti- vo, não interpelei meus informantes nem discuti com eles. Essas ocasiões eram muitas vezes emocionantes, para dizer o mínimo, e aprendi um bocado. Algumas pessoas suportaram dificuldades as quais eu não imaginaria sobreviver, e algumas tinham encontrado na religião a força para tomar e manter decisões que chegavam a ser heróicas. Menos dramáticas, porém até mais impressionantes, em retrospecto, eram as pessoas de talentos e realizações modestos, que eram, de um jeito ou de outro, simplesmente pessoas muito melhores do que se poderia esperar que fossem; não apenas a vida tinha significado para elas - embora isso fosse certamente verdadeiro -, mas também elas realmente faziam do mundo um lugar melhor com seus esforços, inspiradas por suas convicções de que sua vida não lhes pertencia para fazerem o que quisessem. A religião realmente pode trazer à tona o que há de melhor em uma pessoa, mas não é o único fenômeno com essa propriedade. Ter um filho muitas vezes surte um maravilhoso efeito de amadurecimento sobre uma pessoa. Os tempos de guerra, notoriamente, dão às pessoas muitas ocasiões de se mostrarem à altura, do mesmo modo que os desastres naturais, como enchentes e furacões. Mas, para o revigoramento no dia-a-dia ao longo da vida, provavelmente não há nada tão eficaz como a religião: ela torna as pessoas poderosas e talentosas mais humildes e pacientes, faz com que pessoas medianas se superem, fornece apoio firme para muita gente que precisa desesperadamente de ajuda para se manter afastada da bebida, das drogas ou do crime. Pessoas que poderiam permanecer centradas em si mesmas, ou superficiais, ou sem refinamento, ou simplesmente desistentes, são muitas vezes enobrecidas pela religião, adotando uma perspectiva na vida que as ajuda a tomar decisões difíceis, que todos nós nos orgulharíamos de tomar. E claro que nenhum julgamento de valor total pode se basear em um levantamento tão limitado e informal. A religião faz isso tudo de bom e mais, sem dúvida, porém poderíamos inventar alguma outra coisa para fazer o mesmo, ou até melhor. Afinal, existem muitos ateus e agnósticos sábios, engajados, comprometidos moralmente. Talvez um levantamento pudesse mostrar que, como grupo, ateus e agnósticos respeitam mais a lei, são mais sensíveis às necessidades dos outros, mais éticos que as pessoas religiosas. Certamente ainda não se fez nenhum levantamento confiável que mostre o contrário. Pode ser que o melhor que se possa afirmar da religião é que ela ajuda algumas pessoas a alcançarem o nível de cidadania e moralidade em geral encontrado nos assim chamados brights. Se você achar essa conjectura ofensiva, precisa ajustar sua perspectiva. Entre as questões que precisamos considerar, objetivamente, estão: o islamismo é mais ou menos eficaz que o cristianismo para manter as pessoas afastadas das drogas e do álcool (e os efeitos colaterais, em qualquer dos casos, não são piores que os benefícios)? O abuso sexual é mais ou menos um problema entre os sikhs que entre os mórmons? E daí por diante. Você não anuncia todo o bem que sua religião faz sem antes, escrupulosamen- te, subtrair todo o mal que ela provoca e sem levar seriamente em conta a questão de se alguma outra religião, ou nenhuma religião, será melhor. A Segunda Guerra Mundial certamente trouxe à tona o que havia de melhor em muitas pessoas, e os que passaram por ela inúmeras vezes dizem que foi a coisa mais importante em suas vidas, sem ela a vida não teria sentido. Mas certamente não se deduz disso que devamos ter outra guerra mundial. O preço que você tem de pagar por qualquer argumento a respeito das virtudes de sua religião, ou de qualquer outra religião, é a disposição de ver seu argumento ser abertamente posto em questão. Minha proposta, desde logo, é apenas reconhecer que já conhecemos o suficiente sobre religião para saber que, não importa quão terríveis seus efeitos negativos sejam - intolerância, fanatismo assassino, opressão, crueldade e ignorância imposta, para citar o óbvio -, as pessoas que encaram a religião como a coisa mais importante na vida têm muitas boas razões para pensar assim. 2. CUI BONO? Bendito seja o Senhor, que diariamente nos cumula de benefícios, o Deus da nossa salvação. Selah. [Salmo 68, 19] Quanto mais aprendemos a respeito dos detalhes dos processos naturais, mais evidente se torna que esses processos são, eles mesmos, criativos. Nada transcende a natureza como a própria natureza. [Loyal Rue] As boas coisas não acontecem por acaso. Há "golpes de sorte", mas manter uma coisa boa não é apenas sorte. Pode ser a Providência, é claro. Pode ser que Deus se assegure de que as coisas boas aconteçam e se mantenham quando, sem a intervenção de Deus, aconteceria o contrário. Mas qualquer dessas visões terá de esperar sua hora, pelo mesmo motivo pelo qual os pesquisadores de câncer não estão dispostos a tratar remissões inesperadas apenas como "milagres" que não precisam ser mais explorados. Que conjunto natural de processos, não milagroso, poderia produzir e manter esse fenômeno que é tão valorizado? A única maneira de considerar seriamente a hipótese dos milagres seria excluir as alternativas não milagrosas. A sovinice da natureza pode ser encontrada em qualquer lugar para o qual olhemos, se soubermos o que procurar. Por exemplo, os coiotes estão surgindo como um acréscimo bem- vindo à vida silvestre da Nova Inglaterra, uivando macabramente nas noites de inverno, mas esses predadores lindos e espertos têm medo dos seres humanos e raramente são vistos. Como se consegue distinguir, na neve, as suas pegadas das de seus primos, os cães domésticos? Até de perto seria difícil distinguir a impressão deixada pela pata de um coiote da impressão deixada por um cachorro do mesmo tamanho - as garras dos cães tendem a ser mais longas, já que eles passam pouco tempo cavando. Mas, mesmo de longe, a trilha do coiote pode ser prontamente distinguida da de um cachorro - as pegadas do coiote seguem uma quase extraordinária linha reta e em fila única, com as patas traseiras em alinhamento quase perfeito com as patas dianteiras, enquanto a trilha de um cachorro é em geral desordenada, já que o cachorro corre exuberantemente para lá e para cá, satisfazendo qualquer desejo curioso (David Brown, 2004). O cachorro é bem alimentado e sabe que vai ganhar o jantar, não importa o que aconteça, enquantoo coiote está em uma situação apertada e precisa conservar cada caloria para a tarefa mais premente: a autopreservação. Seus métodos de locomoção foram impiedosamente otimizados para obter eficiência. Mas, então, o que explica o uivo característico da matilha? Que benefício o coiote recebe desse evidente gasto de energia? Dificilmente é a discrição. Não serviria para espantar o jantar e chamar a atenção de seus próprios predadores para sua presença? Tais custos não seriam reembolsados, pensaríamos. Essas são boas perguntas. Os biólogos as estão analisando, e mesmo que ainda não tenham respostas definitivas, certamente têm razão em buscá- las.2 Qualquer padrão de gasto conspícuo como este exige uma prestação de contas. Pense, por exemplo, nos enormes gastos de esforços humanos dedicados, no mundo inteiro, ao açúcar: não só o plantio e a colheita da cana-de- açúcar e das beterrabas produtoras de açúcar, mas o mundo mais amplo, de fabricação de balas, publicação de livros de receitas cheios de sobremesas, publicidade de refrigerantes e chocolates, comercialização na Páscoa, além das contrapartidas do sistema: clínicas de obesidade, pesquisas patrocinadas pelo governo sobre a epidemia de diabetes prematuro, dentistas e a inclusão de flúor nas pastas de dentes e na água potável. Mais de uma centena de milhão de toneladas de açúcar é produzida e consumida todos os anos. Para explicar os milhares de aspectos desse enorme sistema, que provê o trabalho vital de milhões de pessoas e pode ser discernido em todos os níveis da sociedade, precisamos de muitas investigações diferentes, científicas e históricas, sendo que apenas uma pequena fração delas é biológica. Precisamos estudar a química do açúcar, a física da cristalização e da caramelização, a fisiologia humana e a história da agricultura, mas também a história da engenharia, da fabricação, do transporte, dos bancos, da geopolítica, da publicidade e muito mais. Nenhum desses gastos de tempo e energia relacionados com o açúcar existiria se não fosse a barganha feita, há cerca de 50 milhões de anos, entre plantas que cegamente "buscam" um jeito de dispersar suas sementes polinizadas e animais que igualmente buscam fontes eficientes de energia para alimentar seus próprios projetos de reprodução. Há outras maneiras de dispersar as sementes, tais como o vento e os redemoinhos, e cada método tem seus custos e benefícios associados. Frutas pesadas, carnudas, cheias de açúcar, são uma estratégia de alto investimento, mas podem ter um bônus como resultado: o animal não apenas leva as sementes, mas as deposita em um pedaço de solo adequado, envolvidas em uma boa dose de fertilizante. A estratégia quase nunca funciona - nem uma vez em mil tentativas -, mas só precisa funcionar uma vez ou duas durante o período de vida da planta para que ela se reproduza no planeta e dê continuidade à sua linhagem. Este é um bom exemplo da sovinice da Mãe Natureza na prestação de contas final, combinada com o desperdício absurdo dos métodos. Nem um esperma em um milhão cumpre sua missão na vida - ainda bem -, mas cada um é projetado e equipado como se tudo dependesse de seu sucesso. (Espermas são como s-parn em correio eletrônico, tão barato de fazer e enviar que uma taxa de retorno imperceptivelmente pequena é suficiente para garantir o projeto.) A co-evolução endossou a barganha entre planta e animal, aguçando a capacidade de nossos antepassados para discriminar o açúcar por sua "doçura". Ou seja, a evolução supriu os animais com moléculas receptoras específicas que reagem à concentração de açúcar altamente energético em qualquer coisa que eles provem, e fixou essas moléculas receptoras à maquinaria de busca, para falar cruamente. As pessoas em geral dizem que gostamos de algumas coisas porque elas são doces, mas na verdade é o contrário: seria mais exato dizer que algumas coisas são doces (para nós) porque gostamos delas! (E nós gostamos delas porque nossos antepassados, que foram energizados para gostar delas, tiveram mais energia para a reprodução do que seus pares menos afortunadamente energizados.) Não existe nada "intrinsecamente doce" (seja lá o que isso signifique) nas moléculas de açúcar, mas elas são intrinsecamente valiosas para organismos necessitados de energia, de modo que, assim, a evolução deu um jeito para que os organismos tivessem uma preferência potente e intrínseca por qualquer coisa que excite seus detectores especiais para alta energia. É por isso que nascemos com um gosto instintivo por doces - e, em geral, quanto mais doce, melhor. Os dois lados - plantas e animais - se beneficiaram, e os sistemas se aperfeiçoaram através dos tempos. O pagamento por todo o projeto e pela fabricação (da planta inicial e do equipamento animal) foi feito pela reprodução diferenciada de animais frugívoros e onívoros e plantas que dão frutas comestíveis. Nem todas as plantas "escolhem" a barganha de fazer frutas comestíveis, mas as que o fizeram tiveram de criar suas frutas atraentes para competir. Tudo isso tem um perfeito sentido, do ponto de vista econômico; foi uma transação racional, levada a efeito com um passo mais lento que o glacial ao longo de eras, e é claro que nenhuma planta ou animal teve de saber nada disso para que o sistema progredisse. Este é um exemplo do que eu chamo de base racional descomprometida (Dennett, 1983, 1995b). Processos evolutivos cegos, sem direção, descobrem projetos que funcionam. Eles funcionam por diversos aspectos, e esses aspectos podem ser descritos e avaliados em retrospecto como se fossem realmente a criação de projetistas inteligentes, que perceberam de antemão os motivos fundamentais do projeto. Com relação ao funcionamento geral dos casos, isso não representa controvérsias. As lentes de um olho, por exemplo, são maravilhosamente projetadas para fazer sua tarefa, e as razões fundamentais da engenharia dos detalhes são inequívocas, mas nenhum projetista jamais a articulou, até que o olho fosse passado por uma engenharia reversa realizada pelos cientistas. A racionalidade econômica das trocas mútuas das barganhas na co-evolução é inequívoca, mas até muito recentemente, com o advento do comércio humano, há poucos milênios, os motivos fundamentais para esses bons negócios nunca podiam ser representados em qualquer mente. Digressão: Esse é um ponto de impasse para os que ainda não avaliaram como está bem estabelecida a teoria da evolução por seleção natural. De acordo com um levantamento recente, apenas cerca de um quarto da população dos Estados Unidos sabe que a evolução está tão bem estabelecida como o fato de que a água é H2O. Essa estatística constrangedora exige algumas explicações, já que outros países cientificamente avançados não demonstram o mesmo padrão. Será que tanta gente poderia estar errada? Bem, houve uma época, não há tanto tempo assim, em que apenas uma pequena minoria dos habitantes da Terra acreditava que o planeta era redondo e girava em torno do Sol, de modo que sabemos que as maiorias podem estar redondamente enganadas. Mas como, em face de tantas confirmações impressionantes e de maciças provas científicas, poderiam tantos norte-americanos não acreditar na evolução? Simples: foi dito solenemente a eles que a teoria da evolução é falsa (ou, pelo menos, não provada) por pessoas em quem confiam mais do que confiam nos cientistas. Aqui jaz uma pergunta interessante: de quem é a culpa dessa informação errônea disseminada entre a população? Suponha que os sacerdotes da sua fé, que são pessoas ajuizadas e boas, garantam a você que a evolução é uma teoria falsa e perigosa. Se você for um leigo, pode ser inocente acreditar na palavra autoritária deles e passá-la adiante, autoritariamente, a seus filhos. Todos nós confiamos nos especialistas a respeito de muitas coisas, e os sacerdotes são os seus especialistas. Mas onde, então, eles adquiriram essa informação errônea? Se alegarem tê-la adquirido dos cientistas, foram enganados, já que não há cientista de renome que afirme isso. Nenhum. Há muitos que são fraudese charlatões, no entanto. Como vê, não vou poupar palavras. E os proponentes do Criacionismo Científico e do Projeto Inteligente que são tão falantes e visíveis em campanhas bem orquestradas? Eles todos têm sido cuidadosa e pacientemente refutados por cientistas conscienciosos, que se deram o trabalho de penetrar suas cortinas de fumaça de propaganda e desnudar os argumentos de má qualidade e suas falsidades e evasivas aparentemente deliberadas.3 Se você discorda visceralmente desse repúdio categórico, tem duas boas escolhas a fazer ao levar em consideração este tema: 1. Instrua-se em teoria da evolução e suas críticas e veja por si mesmo se o que eu digo é verdade, antes de prosseguir. (As notas deste capítulo fornecem todas as referências de que você vai precisar para prosseguir. Instruir-se em teoria da evolução e nas suas críticas, e ver por si mesmo, não exigiria mais de dois meses de trabalho árduo.) 2. Suspenda temporariamente a descrença para aprender o que um evolucionista pensa da religião como fenômeno natural. (Talvez seu tempo e energia como cético poderiam ser mais bem gastos tentando penetrar no núcleo da perspectiva desse evolucionista em busca de uma falha fatal.) Como alternativa, você pode acreditar que não precisa leVar em consideração as provas científicas, já que "a Bíblia diz" que a evolução é falsa, e pronto. Essa posição é mais extrema do que algumas vezes se reconhece. Mesmo se você acreditar que a Bíblia tem a última e perfeita palavra sobre todos os temas, você deve reconhecer que há pessoas no mundo que não partilham de sua interpretação da Bíblia. Por exemplo, muitos consideram a Bíblia como a Palavra de Deus, mas não a lêem para excluir a evolução. Assim, não passa de um simples fato corriqueiro a questão de que a Bíblia não fala clara e inequivocamente para todos. Desse modo, a Bíblia não é um candidato plausível como fundamento comum a ser compartilhado sem maiores discussões em uma conversa razoável. Se você insiste que é, você está fazendo "fiau" para toda a pesquisa. (Adeus, espero vê-lo outra vez algum dia.) Mas será que não há uma assimetria injustificada, aqui? - eu me recuso a defender meu anticriacionismo aqui e agora, ao mesmo tempo que despeço os bíblicos infalíveis por não seguirem as regras da discussão racional? Não, porque orientei todo mundo para a literatura que defende a recusa ao criacionismo contra todas as objeções, enquanto os infalíveis estão se recusando a adotar até mesmo essa obrigação. Para serem simétricos, os infalíveis deveriam encorajar-me a consultar a literatura, se existir, que se proponha a demonstrar, contra qualquer objeção, que a Bíblia é mesmo a Palavra de Deus, e que exclui a evolução. Ainda não fui orientado para nenhuma literatura desse tipo, nem a encontrei em nenhum site da web, mas, se existir, iria verdadeiramente garantir essa consideração como tema para outro dia e outro projeto - exatamente como o criacionismo e suas críticas. Os leitores que permanecerem não exigirão nenhuma consideração adicional de mim sobre o criacionismo e suas variantes, já que eu lhes disse onde encontrar as respostas que endosso, para o bem ou para o mal. Fim da digressão. O advogados têm uma expressão latina básica, cui bono?, que quer dizer "quem se beneficiará disso?", uma pergunta que é ainda mais central em biologia da evolução que no direito (Dennett, 1995b). Qualquer fenômeno no mundo vivo que aparentemente excede o funcional exige uma explicação. A suspeita é sempre de que devemos estar perdendo alguma coisa, já que uma despesa gratuita é, em uma palavra, pouco econômica, e, como os economistas estão sempre nos lembrando, não existe almoço grátis. Não ficamos admirando um animal que persistentemente fuça a terra com o nariz porque calculamos que está procurando comida, mas se ele regularmente interrompe seu desenterrar com sobressaltos, queremos saber por quê. Como os acidentes acontecem, é sempre possível que alguma característica de alguma coisa viva que parece ser um excesso sem sentido seja mesmo tão sem sentido quanto parece (em vez de um estratagema profundo e desconcertante em algum jogo que não compreendemos). Mas a evolução é notavelmente eficiente em varrer da cena acidentes sem sentido, de modo que, se encontramos um padrão persistente de equipamento ou atividade caros, podemos bem ter a certeza de que alguma coisa se beneficia deles no único inventário honrado pela evolução: a reprodução diferenciada. Deveríamos lançar nossas redes de modo amplo ao caçar os beneficiários, uma vez que eles são muitas vezes fugidios. Suponhamos que você encontre ratos que arrisquem extravagantemente suas vidas na presença de gatos e pergunte cui bono?. Que benefícios esses ratos obtêm desse comportamento maluco? Será que eles estão se mostrando para impressionar parceiros em potencial ou o comportamento extravagante de algum modo melhora o acesso deles a boas fontes de alimentos? Pode ser, mas provavelmente você está procurando pelo beneficiário no lugar errado. Como o Dicrocelium dendriticum que adotou como residência a laboriosa formiga com a qual iniciei este livro, existe um parasita, o Toxoplasma gondii, que consegue viver em qualquer mamífero, mas precisa entrar no estômago do gato para se reproduzir, e, quando infecta os ratos, ele tem a propriedade útil de interferir no sistema nervoso deles e torná- los hiperativos e relativamente destemidos - e, portanto, com muito maior probabilidade de serem comidos por qualquer gato na vizinhança! Cui bono? O benefício vai para o mais apto - o sucesso reprodutivo do Toxoplasma gondii, não para os ratos que ele infecta (Zimmer, 2000). Toda barganha na natureza tem sua razão descomprometida, a não ser que por acaso seja uma barganha projetada por regateadores humanos, os únicos representantes de razões que evoluíram no planeta. Mas uma razão pode se tornar obsoleta. A medida que as oportunidades e os perigos na natureza mudam, uma boa barganha pode diminuir. A evolução demora a "reconhecer' isso. Nosso gosto por doces é um bom exemplo. Como os coiotes, nossos antepassados caçadores- coletores viviam com orçamentos energéticos muito limitados e tinham de se valer de qualquer oportunidade prática de armazenar calorias para uso em uma emergência. Um apetite quase insaciável por doces fazia sentido naquela época. Agora que desenvolvemos métodos para criar uma superabundância de açúcar, essa insa- ciabilidade se torna uma séria falha no projeto. O reconhecimento da fonte evolutiva dessa falha nos ajuda a calcular como lidar com ela. Nosso gosto pelo doce não é apenas um acidente ou um erro sem sentido em um sistema de outro modo excelente; ele foi projetado para desempenhar a tarefa que desempenha, e, se nós subestimamos seus muitos recursos, sua resistência à perturbação e supressão, nossos esforços em lidarmos com ele podem ser contraproducentes. Existe uma razão para gostarmos de açúcar, e é - ou era - uma razão muito boa. Podemos encontrar outros amores aposentados que precisam de nossa atenção. Mencionei a música no capítulo anterior - e iremos nos voltar para um exame mais detalhado de suas possíveis fontes evolutivas -, mas quero antes fazer um aquecimento em coisas mais fáceis das quais gostamos. E o álcool? E o dinheiro? E o sexo? O sexo apresenta alguns dos problemas mais interessantes e desafiadores na teoria da evolução, porque, aparentemente, a reprodução sexuada é realmente um mau negócio. Esqueça - por um momento - nosso tipo de sexo humano (sexo sensual), e pense nas variedades mais básicas da reprodução sexuada no mundo vivo: a reprodução sexuada de quase todas as formas vivas multicelulares, dos insetos e mexilhões a macieiras, e até muitos organismos unicelulares. O grande biólogo da evolução, François Jacob, uma vez comentou jocosamente que o sonho de toda célula é se tornar duas células. Cada vez que essa fissão ocorre, uma cópia completa do genoma da célula é inscrita em seus descendentes. Os pais se clonam a si próprios, em outras palavras; os organismos resultantescompartilham 100% de seus genes. Se você pode fazer cópias perfeitas de você mesmo, por que quereria incorrer no gasto de uma reprodução sexuada, que envolve não apenas encontrar um parceiro, mas, e muito mais importante, passar apenas metade de seus genes para seus descendentes?4 Essa redução de 50% (do ponto de vista do gene) é conhecida como o custo da meiose (o tipo de divisão que ocorre nas células sexuais, para distingui-las da divisão de clonagem, a mitose). Alguma coisa deve pagar esse custo, e deve pagar na hora, não em alguma data futura, já que a evolução não tem previsões e não pode aprovar barganhas nas bases especulativas de um retorno eventual em alguma época distante. A reprodução sexuada é portanto um investimento caro e que se deve pagar a curto prazo. Os detalhes da teoria e da experiência sobre esse tema são fascinantes (ver, por exemplo, Maynard Smith, 1978; Ridley, 1993), mas para nossos propósitos, alguns melhores momentos da teoria que está atualmente na ponta são muito instrutivos: sexo (nos vertebrados como nós, pelo menos) se paga ao fazer com que nossos descendentes sejam relativamente inescrutáveis para os parasitas com os quais os dotamos desde que nascem. Os parasitas têm períodos vitais curtos, se comparados a seus hospedeiros, e em geral se reproduzem muitas vezes durante o período de vida do hospedeiro. Os mamíferos, por exemplo, são hospedeiros de trilhões de parasitas. (Sim, já não importa quão saudável e limpo você seja, há trilhões de parasitas de milhares de espécies diferentes habitando seus intestinos, sangue, pele, cabelos, boca e todas as demais partes do seu corpo. Eles vêm evoluindo rapidamente para sobreviver ao massacre de suas defesas desde o dia em que você nasceu.) Antes que uma fêmea possa estar madura para a idade reprodutiva, seus parasitas evoluem para se ajustarem a ela melhor que qualquer luva. (Enquanto isso, o sistema imunológico dela evolui para combatê-los, um empate - se ela for saudável - em uma permanente corrida armamentista). Se ela desse à luz um clone, os parasitas dela iriam pular em cima dele e estariam à vontade desde o início. Eles já estariam otimizados com relação a seu novo ambiente. Se, em vez disso, ela usasse a reprodução sexuada para dotar seus descendentes com um conjunto misturado de genes (metade dos de seu parceiro), muitos desses genes - ou, mais diretamente, seus produtos, nas defesas internas do descendente - seriam estranhos ou enigmáticos para os parasitas invasores. Em vez de lar doce lar, os parasitas iriam encontrar-se em terra ignota. Isso dá ao descendente uma grande vantagem inicial na corrida armamentista. Será que essa barganha se paga? Essa é a questão de fundo da atual pesquisa sobre biologia da evolução, e se a resposta positiva resistir ao maior escrutínio, então teremos encontrado a fonte antiga, mas permanente, na evolução, do enorme sistema de atividades e produtos que normalmente levamos em conta quando pensamos em sexo: rituais de casamento e tabus contra o adultério, roupas e penteados, produtos para refrescar o hálito, pornografia, camisinha, HIV e todo o resto. Para explicar o motivo da existência de cada uma e de todas as facetas desse enorme complexo, teremos de lançar mão de muitos tipos e níveis diferentes de teoria, nem todos biológicos. Mas nada disso existiria se não fôssemos criaturas de reprodução sexuada, e primeiro precisamos entender suas bases biológicas, se quisermos ter uma visão clara daquilo que é opcional ou mero acidente histórico e do que é altamente resistente à perturbação, o que é explorável. Há motivos pelos quais gostamos de sexo, e eles são mais complicados do que você poderia pensar. Com o álcool surge uma perspectiva um tanto diferente. O que paga pelas cervejarias, os vinhedos e as destiladas, e pelos maciços sistemas de entrega que trazem as bebidas alcoólicas até o alcance fácil de praticamente qualquer ser humano no planeta? Sabemos que o álcool, como a nicotina, a cafeína e os ingredientes ativos no chocolate têm efeitos específicos sobre moléculas receptoras no nosso cérebro. Vamos supor que esses efeitos, no início, sejam apenas coincidências. O fato de que algumas moléculas grandes em algumas plantas por acaso são semelhantes a moléculas grandes que desempenham importantes funções de moduladores nos cérebros de animais é, suponhamos, tão provável quanto o contrário. A evolução deve sempre começar com um elemento de probabilidade bruta. Mas, então, não é de surpreender que, ao longo de milhões de anos de ingestão exploratória, nossa espécie e outras venham a descobrir as plantas que contêm ingredientes psicoativos e que desenvolvem disposições de preferência ou aversão em relação a elas. Sabe-se que os elefantes - e os babuínos e outros animais africanos - caem de bêbados depois de comerem frutas em fermentação das árvores de marula, e há provas de que os elefantes viajam grandes distâncias para chegar à árvore da marula exatamente quando suas frutas amadurecem. Parece que a fruta fermenta no estômago dos elefantes quando células de levedo residentes na fruta sofrem uma explosão populacional, consumindo o açúcar e liberando dióxido de carbono e álcool. O álcool por acaso tem no cérebro dos elefantes o mesmo tipo de efeito prazeroso que tem nos nossos. Pode ser que a barganha básica contratada entre árvores frutíferas e frugívoras - o negócio de espalhar sementes em troca de açúcar - seja enfatizada por uma parceria a mais entre a levedura e a árvore frutífera. Isso criaria uma atração extra que é paga pelo aumento nas perspectivas reprodutivas tanto da levedura como das árvores, ou pode ser apenas um acidente ao acaso. De qualquer modo, outra espécie, o Homo sapiens, fechou o círculo e iniciou exatamente essa barganha co-evolutiva: domes- ticamos tanto a levedura como a fruta e, durante milhares de anos, temos selecionado artificialmente as variedades que produzem melhor os efeitos de que gostamos. As células da levedura provêem um serviço pelo qual elas são pagas em proteção e nutrientes. Isso significa que as culturas de levedura, cuidadosamente criadas por cervejeiros, vinhateiros e padeiros, são simbiontes humanos tanto quanto as bactérias E. coli que habitam nossos intestinos. Ao contrário das bactérias endossimbiontes, como o Toxaplasma gondii, que devem entrar nos corpos tanto do rato como do gato, as células de leveduras são um tipo de ectossimbionte - como o peixe "limpador" que cuida de peixes maiores -, que depende de outras espécies, mas não precisa entrar no corpo delas. Elas podem - como um peixe limpador desobe- diente - ser engolidas por nós mais ou menos por acidente, mas realmente só o que secretam precisa entrar em nós para elas prosperarem! Agora pensem em um tipo de coisa boa espantosamente diferente: dinheiro. Ao contrário das outras coisas que levamos em consideração, ele está restrito (até agora) a uma única espécie, a nós, e é projetado e transmitido pela cultura, e não pelos genes. Terei mais a dizer a respeito da evolução cultural em capítulos posteriores. Nesta visão geral introdutória, quero chamar a atenção apenas para algumas impressionantes semelhanças entre o dinheiro e tesouros "mais biológicos" que acabamos de mencionar. Como a vista e o vôo, o dinheiro evoluiu mais de uma vez,5 e portanto é um forte candidato àquilo que chamo de Bom Estratagema - uma movimentação no espaço do projeto que será "descoberto" outra vez, e mais outra, por processos cegos de evolução, simplesmente porque tantos caminhos adaptati- vos levam a ele, e, portanto, o endossam (Dennett, 1995b). Os economistas calcularam o raciocínio para o dinheiro em alguns detalhes. O dinheiro é claramente uma das "invenções" mais eficazes de nossa espécie inteligente, mas essa base racional era descomprometida até há pouco tempo. Usamos e valorizamos o dinheiro, confiamos nele, e ocasionalmente matamos e morremos por dinheiro, muito antes da razão de seu valor ficar explícita em nossas mentes. O dinheiro não é a única invenção cultural a não ter um inventorou autor específico. Ninguém inventou a linguagem ou a música, tampouco.6 Coincidência divertida é o fato de que um termo antigo para dinheiro sob a forma de moeda e papel ser espécie (a mesma palavra usada para falar de espécie biológica), e, como muitos já notaram, a base racional descomprometida da espécie poderia decair, em um futuro previsível, e ela poderia se extinguir na esteira dos cartões de crédito e de outras formas de transferência eletrônica de fundos. O dinheiro em espécie, como um vírus, viaja sem bagagem e não carrega consigo sua maquinaria reprodutiva, mas, ao contrário, depende da persistência de seu tipo para provocar um hospedeiro (nós) a fazer cópias dele, usando nossa dispendiosa maquinaria de reprodução (prensas de impressão, matrizes e tintas).7 Moedas e pedaços de papel-moeda, individualmente, podem se gastar com o tempo, e, a não ser que outros sejam feitos e adotados, o sistema inteiro pode se extinguir. (Você pode confirmar isso tentando comprar um barco com uma pilha de conchas de cauri.) Mas já que o dinheiro é um Bom Estratagema, pode-se esperar que outras espécies de dinheiro adotem o nicho que ficou vago pela espécie que partiu. Tenho outro motivo para mencionar o caso do dinheiro. Os bens que foram levantados - açúcar, sexo, álcool, música, dinheiro - são todos problemáticos porque, com relação a cada um deles, podemos desenvolver uma obsessão e querer demais uma coisa boa, mas o dinheiro talvez tenha a pior das reputações como coisa boa. O álcool é condenado por muitos pelos maometanos em particular -, mas entre aqueles que o apreciam como os católicos romanos -, uma pessoa que gosta dele com moderação não é considerada vil ou tola. Presume-se, contudo, que todos nós desdenhemos o dinheiro como uma coisa em si, e apenas o valorizemos como instrumento. O dinheiro é "lucro sujo", algo a ser curtido apenas por aquilo que pode proporcionar, como objetos de valor mais meritórios, de valor "intrínseco".8 Como diz a velha canção, sem convencer inteiramente, as melhores coisas da vida são gratuitas. Será isso por que o dinheiro é "artificial", e as outras coisas são "naturais"? Pouco provável. Será um quarteto de cordas, ou um uísque single malt, ou uma trufa de chocolate menos artificial que moedas de ouro? O que devemos deduzir desse tema de cultura humana é uma questão interessante, a respeito da qual me alongarei posteriormente. Mas, enquanto isso, devemos observar que a única âncora que temos até agora para o valor "intrínseco" é a capacidade que alguma coisa tem de provocar uma reação de preferência bem diretamente no cérebro. A dor é "intrinsecamente ruim", mas sua valência negativa é tão dependente de uma razão evolutiva como a "coisa boa intrínseca" da fome saciada. Uma rosa, sob qualquer outro nome, seria igualmente perfumada, sem dúvida, mas também é verdade que, se fuçar carcaças de elefante em apodrecimento fosse bom para nossas perspectivas reprodutivas do mesmo modo que o é para os urubus, esse elefante morto seria para nós tão perfumado como uma rosa.9 A biologia insiste em investigações profundas abaixo da superfície dos valores "intrínsecos" e em indagar por que eles existem. Qualquer resposta apoiada em fatos tem o efeito de mostrar que o valor em questão é - ou foi algum dia - realmente instrumental, e não intrínseco, mesmo que não o vejamos dessa maneira. Um valor verdadeiramente intrínseco não poderia ter tal explicação. Seria bom apenas por ser bom, não porque é bom para alguma coisa. Uma hipótese a ser seriamente levada em conta, então, é que todos os nossos valores intrínsecos começaram como valores instrumentais, e agora que seus objetivos originais desapareceram, pelo menos aos nossos olhos, eles permanecem como coisas de que gostamos apenas porque gostamos. (Isso não significaria que estamos errados em gostar delas! Significaria - por definição - que gostamos delas sem precisar de outros motivos posteriores para gostar delas.) 3. QUAL É A PAGA PELA RELIGIÃO Mas quais são os benefícios: por que as pessoas querem a religião? Elas a desejam porque a religião é a única fonte plausível de determinadas recompensas para as quais há uma demanda geral e inesgotável. [Rodney Stark e Roger Finke, Acts of Faith] Não importa o que mais a religião seja como fenômeno humano, ela é uma empreitada imensamente cara, e a biologia da evolução mostra que nada tão caro acontece apenas por acaso. Qualquer gasto regular desse tipo, em tempo e energia, deve ser equilibrado por algo de "valor" obtido, e a principal medida de "valor" evolutivo é a aptidão: a capacidade de se replicar com maior sucesso que a concorrência. (Isso não significa que deveremos valorizar a replicação acima de tudo! Significa apenas que nada consegue evoluir e permanecer durante muito tempo nesse mundo exigente a não ser que de algum modo provoque sua própria replicação melhor que a dos rivais.) Já que o dinheiro é uma inovação tão recente da perspectiva da história evolutiva, é estranhamente anacrônico perguntar qual a vantagem de uma feição biológica ou outra como se fossem transações reais e livros-razões na firma de contabilidade de Darwin. Essa metáfora, no entanto, capta bem o equilíbrio subjacente, observado em tudo na natureza, e não sabemos de qualquer exceção à regra. Então, arriscando a ofensa ao desprezar esse risco como apenas mais um aspecto do tabu que deve ser quebrado, pergunto: qual a vantagem da religião? Odeie a linguagem, se quiser, mas isso não lhe dá nenhuma boa razão para desconsiderar a pergunta. Qualquer alegação no sentido de que a religião - a sua religião, qualquer religião - fica acima da biosfera e não tem de satisfazer a essa demanda é simplesmente bazófia. Pode ser que Deus implante em todos os seres humanos uma alma imortal que tem sede de oportunidades para adorar Deus. Isso realmente explicaria a barganha feita, a troca de tempo humano e a energia para a religião. A única maneira honesta de defender essa proposta, ou qualquer coisa parecida com ela, é por meio de um exame correto de teorias alternativas sobre a persistência e a popularidade da religião, e excluí-las, mostrando que não conseguem dar conta do fenômeno observado. Além disso, você poderá defender a hipótese de que Deus criou o universo para que evoluíssemos para amar a Deus. Se for isso, gostaríamos de saber como ocorreu essa evolução. O mesmo tipo de investigação que desvendou os mistérios do doce, do álcool, do sexo e do dinheiro pode ser empregado para a religião. Houve um tempo, não tão distante assim, pelos padrões evolutivos, em que não havia religião neste planeta, e agora há muitas delas. Por quê? Pode haver uma fonte evolutiva, ou muitas, ou pode-se desafiar totalmente a análise evolutiva, mas não saberemos responder até que a procuremos. Será que realmente precisamos indagar a esse respeito? Será que não podemos simplesmente aceitar o fato evidente de que a religião é um fenômeno humano, e que os seres humanos são mamíferos e, portanto, produtos da evolução, e então deixar assim as bases biológicas da religião? As pessoas fazem religiões, mas também fazem automóveis, literatura, esportes, e certamente não têm necessidade de recuar profundamente na pré-história para compreender a diferença entre um sedã, um poema e um torneio de tênis. Será que a maior parte dos fenômenos religiosos que precisam ser investigados é cultural e social - ideológicos, filosóficos, psicológicos, políticos, econômicos, históricos --, e, portanto, estariam eles um tanto "acima" do nível biológico? Essa é uma pressuposição conhecida entre pesquisadores nas ciências sociais e humanas, que muitas vezes consideram "reducionista" (e de uma forma muito ruim) até fazer perguntas a respeito das bases biológicas desses encantadores e importantes fenômenos. Posso ver alguns antropólogos e sociólogos culturais virando os olhos com desdém - "Ah, n£o! Lá vem Darwin outra vez, se metendo onde não é chamado!" -, enquanto outros historiadores e filósofos da religião e teólogos dão risadinhas com a vulgaridade deespírito de quem conseguir perguntar de cara limpa a respeito das bases evolutivas da religião. "E depois, uma busca pelo gene católico?" Esta resposta negativa é em geral impensada, mas não é boba. E sustentada em parte por lembranças desagradáveis de campanhas passadas que falharam: investidas ingênuas e mal informadas por biólogos nas brenhas da complexidade cultural. Existe uma boa causa que pode ser defendida, de que as ciências sociais e humanas - as Geisteswissenchaften, ou ciências da mente - têm suas próprias metodologias "autônomas" e questões, independentes das ciências naturais. Mas, apesar de tudo o que possa ser dito em favor dessa idéia (e eu vou gastar mais tempo examinando o melhor caso na hora adequada), o isolamento disciplinar que isso motiva tornou-se um grande obstáculo para a boa prática da ciência, uma péssima desculpa para a ignorância, uma muleta ideológica que deveria ser jogada fora.'° Temos motivos especialmente fortes para investigar as bases biológicas da religião agora. Algumas vezes - raramente - as religiões não dão certo, desviando-se para algo como uma insanidade ou histeria grupai e causando grande dano. Agora que criamos as tecnologias para causar catástrofes globais, nosso risco é multiplicado ao máximo: uma mania religiosa tóxica poderia terminar a civilização da noite para o dia. Precisamos compreender o que faz a religião funcionar para podermos nos defender, de modo informado, de circunstâncias nas quais as religiões saem do controle. Do que é composta a religião? Como as partes se ajustam? O que constituem a saúde e a patologia do fenômeno religioso? Essas questões podem ser abordadas pela antropologia, pela sociologia, pela psicologia, pela história e por qualquer outra variedade de estudos culturais que se queira, mas é simplesmente indesculpável que pesquisadores, nesses campos, deixem o ciúme disciplinar e o medo do "imperialismo científico" criarem uma cortina de ferro ideológica, que possa vir a esconder importantes restrições e oportunidades subjacentes para eles. Pense nas nossas controvérsias atuais com respeito à nutrição e à dieta. O conhecimento da base racional da maquinaria no nosso corpo que nos leva a comer doces e gorduras demais é a chave para encontrar as medidas corretivas que irão realmente funcionar. Durante muitos anos os nutricionistas acharam que a chave para evitar a obesidade era simplesmente cortar a gordura da dieta. Agora parece que essa abordagem simplista da dieta é contraproducente: quando você mantém insatisfeito, à força, o seu sistema com fome de gorduras, isso intensifica os esforços compensatórios do corpo, levando ao excesso de ingestão de carboidratos. O pensamento evolutivo singelo do passado recente ajudou a construir e pôr em ação o movimento do baixo teor de gordura, que então se mantém auto-sustentável sob o cuidado solícito dos fabricantes e dos anunciantes de alimentos com baixo teor de gordura. Taubes (2001) faz um relato que abre os olhos para os processos políticos que criaram e sustentaram esse "evangelho do baixo teor de gordura", e faz também uma advertência oportuna para o empreendimento que estou propondo aqui: "E uma história daquilo que pode acontecer quando as exigências das políticas de saúde pública - eas exigências do público em busca de conselhos simples [grifos meus] - vão de encontro à ambigüidade perturbadora da ciência real" (p. 2537). Mesmo se fizermos justiça ã ciência da religião (pela primeira vez), devemos vigorosamente defender a integridade do processo seguinte, a redução dos resultados complexos da pesquisa em decisões políticas. Isso não é nada fácil. Basil Rifkind, um dos nutricionistas que foram pressionados a dar um veredicto prematuro sobre a dieta com baixos teores de gordura, resume: "Chega um ponto em que, se você não tomar uma decisão, as conseqüências também podem ser grandes. Haverá também um resultado, se você se limita a permitir que os norte-americanos continuem a consumir 40% das calorias em gorduras" (Taubes, 2001, p. 2541). As boas intenções não são suficientes. Esse é o tipo de campanha mal orientada que queremos evitar quando tentamos corrigir o que achamos ser os excessos tóxicos da religião. A gente se encolhe de horror com os efeitos possíveis de tentar uma "dieta radical" mal orientada ou outra qualquer com aqueles que estão famintos de religião. Pode ser tentador argumentar que todos nós estaríamos em melhores condições se não fosse por nutricionistas sabe-tudo que se intrometem em nossas dietas, para começar. Comemos o que é bom para nós apenas baseados em nossos instintos moldados pela evolução, do jeito que os outros animais fazem. Mas isso é simplesmente errôneo, tanto no caso da dieta como no da religião. A civilização - a agricultura em particular e a tecnologia em geral - alteraram imensa e rapidamente nossas circunstâncias ecológicas em comparação com as circunstâncias de nossos ancestrais bastante recentes, e isso faz com que a maior parte dos nossos instintos seja obsoleta. Alguns deles ainda podem ter valor, apesar de sua obsolescência, mas é provável que outros sejam positivamente danosos. Não podemos confiar na volta à abençoada ignorância do nosso passado animal. Estamos fadados a ser espécies sabedoras, e isso significa que teremos de usar da melhor forma possível o nosso conhecimento para adaptar nossas políticas e práticas de modo que elas possam enfrentar nossos imperativos biológicos. 4. UMA LISTA MARCIANA DE TEORIAS Se você fosse Deus, você teria inventado o riso? [Christopher Fry, The Ladys Notfor Burning] Pode ser que estejamos perto demais da religião para podermos vê-la claramente, de início. Esse tem sido um tema familiar entre artistas e filósofos durante anos. Uma das tarefas que se impuseram é "tornar o familiar estranho"," e alguns grandes golpes de gênio criativo nos levam a atravessar a crosta de familiaridade excessiva e a olhar para coisas comuns, óbvias, com olhos novos. Os cientistas não poderiam deixar de concordar com isso. O momento mítico de sir Isaac Newton foi se fazer a estranha pergunta a respeito de por que a maçã caiu para baixo. ("Bem, por que não cairia?", pergunta o não-gênio do dia-a-dia; "É pesadal" - como se isso fosse uma explicação satisfatória.) Albert Einstein fez uma pergunta igualmente estranha: todo mundo sabe o que "agora" significa, mas Einstein perguntou se você e eu queremos dizer a mesma coisa com "agora quando estamos nos separando um do outro em uma velocidade próxima à da luz. A biologia tem algumas perguntas estranhas também. "Por que os animais machos não lactam?", pergunta o finado grande biólogo evolucionista John Maynard Smith (1977), vividamente nos despertando de nossos sonos dogmáticos para confrontar uma perspectiva curiosa. "Por que piscamos os dois olhos ao mesmo tempo?", pergunta outro grande biólogo evolucionista, George Williams (1992). Boas perguntas, ainda não respondidas pela biologia. Eis algumas outras. Por que rimos quando acontece alguma coisa engraçada? Podemos achar que é simplesmente óbvio que o riso (ao contrário de, por exemplo, coçar a orelha ou arrotar) é a reação apropriada ao humor, mas por quê? Por que alguns formatos femininos são sensuais, e outros não? Não é claro? É só olhar para elas! Mas isso não encerra o assunto. As regu- laridades e as tendências nas nossas reações ao mundo realmente garantem, de modo trivial, que elas fazem parte da "natureza humana", mas isso ainda deixa a questão do porquê. Curiosamente, exatamente essa feição do questionamento evolutivo é muitas vezes encarada com profunda aversão por... artistas e filósofos. O filósofo Ludwig Wittgenstein tem um dito famoso, que a explicação deve parar em algum lugar, mas essa verdade inegável nos orienta mal, se nos desencoraja de fazer tais perguntas, acabando prematuramente com a nossa curiosidade. Por que a música existe, por exemplo? "Porque é naturall", vem a resposta diária, complacente, mas a ciência não tem nada natural como garantido. Pessoas no mundo inteiro dedicam muitashoras - muitas vezes suas vidas profissionais - fazendo, escutando e dançando com música. Por quê? Cui bono? Por que a música existe? Por que a religião existe? Dizer que é natural é apenas o início da resposta, não o final. A notável escritora autista e especialista em ciência animal, Temple Grandin, deu ao neurologista Oliver Sacks um ótimo título para uma de suas coleções de estudos de caso de seres humanos pouco comuns: Um antropólogo em Marte (1995). Era assim que ela se sentia, disse a Sacks, ao lidar com outras pessoas aqui na Terra. Em geral essa alienação é um impedimento, mas afastar-se um pouco do mundo comum ajuda a focalizar nossa atenção naquilo que, de outro modo, é óbvio demais para ser notado, e ajuda se temporariamente nos pusermos nos sapatos (três calçados verdes brilhantes) de um "marciano", integrante de uma equipe de investigadores alienígenas, que podem ser imaginados como pouco familiarizados com os fenômenos que estamos observando aqui no planeta Terra. O que eles vêem hoje é uma população de mais de 6 bilhões de pessoas, sendo que quase todas dedicam uma fração significante de seu tempo e energia a algum tipo de atividade religiosa: rituais, como preces diárias (tanto públicas como privadas) ou comparecimento freqüente a cerimônias, mas também sacrifícios custosos - não trabalhar em alguns dias, não importando que crise iminente necessite da atenção imediata; deliberada- mente destruindo propriedades valiosas em cerimônias pródigas, contribuindo para o sustento de praticantes especialistas dentro da comunidade e a manutenção de prédios sofisticados e seguindo uma multiplicidade de proibições e exigências arduamente observadas, inclusive evitando determinados alimentos, usando véus, ofendendo-se com comportamentos alheios aparentemente inócuos, e daí por diante. Os marcianos não teriam dúvidas de que tudo isso fosse "natural" em um sentido: eles o observam quase em todo lugar na natureza, em uma espécie de bípedes falantes. Como os outros fenômenos da natureza, este exibe tanto uma diversidade de tirar o fôlego como espantosas banalidades, projetos lindamente engenhosos (rítmicos, poéticos, arquitetônicos, sociais etc.) e, no entanto, uma pasmosa inescrutabilidade. De onde vem todo esse projeto e o que o sustenta? Além de todos os gastos contemporâneos de tempo e esforço, há todo o implícito trabalho de projeto que o precedeu. Trabalho de projeto - P&D, pesquisa e desenvolvimento - também é caro. Alguns projetos de P&D podem ser observados diretamente pelos marcianos: debates entre líderes religiosos a respeito de abandonar ou não elementos desajeitados de sua própria ortodoxia, decisões de comitês de construção para aceitar uma proposta vencedora de arquitetura para um novo templo, compositores executando encomenda de novos hinos, teólogos escrevendo tratados, televangelistas encontrando-se com agências de publicidade e outros consultores para planejarem suas novas estações de difusão. No mundo desenvolvido, além do tempo e da energia gastos na observação religiosa, existe um imenso empreendimento de crítica e defesa pública e privada, e interpretação e comparação de todos os aspectos da religião. Se os marcianos apenas se concentrarem nisso, eles formarão a impressão de que a religião, como a ciência, a música ou o esporte profissional, consiste em sistemas de atividade social que são projetados e reprojetados por agentes conscientes, deliberados, que conhecem os pontos ou objetivos dos empreendimentos, os problemas que precisam ser resolvidos, os riscos, os custos e os benefícios. A National Football League foi criada e projetada por indivíduos identificáveis para satisfazerem um conjunto de objetivos humanos, do mesmo modo que o Banco Mundial. Essas instituições mostram evidências claras de projeto, mas não são "perfeitas". As pessoas cometem enganos, erros são identificados e corrigidos ao longo do tempo, e quando há discordâncias sérias entre os que têm o poder e a responsabilidade de manter tal sistema, buscam-se acordos, muitas vezes firmados. Um tipo de P&D que moldou e ainda está moldando a religião cai claramente dentro dessa categoria. Um caso extremo seria a cientologia, uma religião inteira que foi criação inquestionável, deliberadamente projetada por um único autor, L. Ron Hubbard, embora ele tenha evidentemente tomado de empréstimo elementos que deram certo em religiões já existentes. No outro extremo, não há dúvida de que as igualmente intricadas e projetadas religiões populares, ou religiões tribais, difundidas pelo mundo todo, nunca foram submetidas por seus praticantes a nada como os processos de "conselho de revisão do projeto" exemplificados pelo Concilio de Trento, ou o Vaticano n. Do mesmo modo que a música popular e a arte popular, essas religiões adquiriram suas propriedades estéticas e outras feições de projeto por meio de um sistema de influência menos acanhado. E, seja lá quais tenham sido, ou ainda sejam, essas influências, elas exibem profundas características e padrões em comum. Quão profundas? Profundas como os genes? Haverá "genes para" as semelhanças entre as religiões existentes no mundo? Ou serão os modelos que importam mais geográficos ou ecológicos que a genética? Os marcianos não precisam invocar os genes para explicar por que as pessoas, em climas equatoriais, não usam casacos de pele, ou por que as embarcações no mundo inteiro são tanto alongadas como simétricas em torno do eixo longo (fora as gôndolas venezianas e algumas jDutras poucas embarcações especializadas). Os marcianos, tendo dominado as linguagens do mundo, irão notar logo que existe uma enorme variedade na sofisticação dos construtores de barcos pelo mundo todo. Alguns deles conseguem dar explicações articuladas e precisas sobre exatamente por que insistem em que seus vasos sejam simétricos, explicações que qualquer arquiteto naval com doutorado em engenharia aplaudiria; mas outros têm uma resposta simples: construímos barcos assim porque esse é o jeito como sempre os construímos. Eles copiam os projetos que aprenderam de seus pais e avós, que fizeram o mesmo na época deles. Essa cópia mais ou menos desatenta, notarão os marcianos, é um paralelo tentador com o outro meio de transmissão que eles identificaram, os genes. Se construtores de barcos, cera- mistas ou cantores têm o hábito de copiar velhos projetos "religiosamente", eles podem preservar características do projeto durante centenas ou até milhares de anos. A cópia humana é mais ou menos variável, de modo que surgirão muitas vezes ligeiras variações nas cópias, e embora a maior parte dessas variações desapareça logo - já que são consideradas defeituosas, "de segunda" ou, de qualquer modo, pouco populares com os fregueses -, de vez em quando uma variação vai engendrar uma nova linhagem, em algum sentido uma melhora ou inovação para a qual existe um "nicho de mercado". E, olhe só, sem que ninguém se dê conta ou tenha a intenção, esse processo relativamente desatento durante longos períodos pode moldar projetos a um grau maravilhoso, otimizando-os para as condições locais. Um projeto transmitido culturalmente pode, dessa maneira, ter uma base racional descomprometida, exatamente como um projeto transmitido geneticamente. Os fabricantes e os donos dos barcos não precisam entender mais os motivos por que suas embarcações são simétricas do que o urso que come frutas precisa conhecer seu papel na propagação de macieiras silvestres quando defeca na floresta. Aqui temos o projeto de um artefato humano - transmitido culturalmente, não geneticamente - sem um projetista humano, sem um autor ou inventor, ou mesmo um editor ou crítico conhecedor.12 E o motivo pelo qual o processo consegue funcionar é exatamente o mesmo na cultura humana e na genética: replicação diferenciada. Quando são feitas cópias com variações, e algumas variações são, sob alguns aspectos, "melhores" (apenas melhores o suficiente para que novas cópias delas sejam feitas na leva seguinte), isso levará inexoravelmente ao lento processo de melhorade projeto que Darwin chamou de evolução por seleção natural. O que é copiado não tem de ser um gene. Pode ser qualquer coisa que satisfaça às exigências básicas do algoritmo de Darwin.'3 Esse conceito de replicadores culturais - itens que são copiados repetidas vezes - receberam um nome, por Richard Dawkins (1976), que propôs chamá-los de memes, termo que tem sido, recentemente, centro de controvérsias. Por ora, quero apontar para algo que não deveria ser controverso: a transmissão cultural pode às vezes imitar a transmissão genética, permitindo que variantes concorrentes sejam copiadas em velocidades diferentes, resultando em revisões graduais das características desses itens culturais, e essas revisões não têm autores deliberados, previdentes. Os exemplos mais bem pesquisados são as línguas naturais - francês, italiano, espanhol, português e umas poucas outras variantes -, todas descendentes do latim, preservando diversas das características básicas, ao mesmo tempo que revisam outras. Serão essas revisões adaptações? Ou seja, serão elas, em algum sentido, melhoras de seus antepassados latinos em seus ambientes? Há muito a se dizer sobre esse tema, e os pontos "óbvios" tendem a ser simplistas e errados, mas pelo menos uma coisa fica clara: uma vez que um desvio começa a emergir em uma localidade, em geral leva as pessoas do local a adotá-lo, se quiserem ser compreendidas. Quando estiver em Roma, faça como os romanos, ou seja desconsiderado ou não compreendido. Assim também acontece com as peculiaridades da pronúncia; idiomas de gíria e outras novidades "são fixados", como um geneticista diria, em uma linguagem local. E nada disso é genético. O que é copiado é o jeito de dizer alguma coisa, um comportamento de rotina. As mudanças graduais que transformaram o latim em francês, português e outras línguas descendentes não foram intencionais, planejadas, previstas, desejadas, ordenadas por ninguém. Em raras ocasiões, a pronúncia peculiar de alguma palavra por parte de alguma celebridade local pode "pegar", uma moda que acabou se transformando em um clichê e, então, em uma parte estabelecida da linguagem local - e, nesses' casos, podemos identificar plausivelmente o "Adão" e a "Eva" na raiz da árvore da família. Em ocasiões ainda mais raras, indivíduos podem decidir inventar uma palavra ou uma pronúncia e realmente conseguir cunhar alguma coisa que acaba entrando para a linguagem, mas, em geral, as mudanças que se acumulam não têm autores humanos manifestos, deliberados ou não. Arte popular, música popular, medicina popular e outros produtos desses processos populares muitas vezes são brilhantemente adaptados a objetivos bastante avançados e específicos, mas, não importa quão maravilhosos sejam esses frutos da evolução cultural, devemos resistir à forte tentação de postular algum tipo de gênio popular mítico, ou consciências místicas compartilhadas para explicá-los. Esses projetos excelentes muitas vezes realmente devem algumas de suas feições a melhorias deliberadas impostas por indivíduos ao longo do processo, mas elas podem surgir exatamente pelo mesmo tipo de processo cego, mecânico, de triagem e duplicação, sem previsão, que produziu o projeto maravilhoso de organismos por seleção natural; e, nos dois casos, "o julgamento é rude, austero e sem imaginação". A Mãe Natureza é uma contadora ignorante que só quer saber a respeito do lucro imediato em termos de replicação diferenciada, não dando margem a candidatos promissores que não conseguem ficar à altura da competição contemporânea. De fato, o cantor desafinado que mal consegue cantar uma melodia e esquece quase todas as canções que ouve, mas, consegue se lembrar dessa única canção memorável, contribui tanto para o controle de qualidade do processo popular (pela replicação desse clássico em produção, à custa de todas as canções concorrentes) quanto o mais bem-dotado compositor popular. As palavras existem. De que elas são feitas? Ar sob pressão? Tinta? Algumas instâncias da palavra "gato" são feitas de tinta, e algumas são feitas por jatos de energia acústicas na atmosfera, e algumas são feitas de padrões de pontos brilhantes nas telas de computador, e algumas ocorrem silenciosamente em pensamentos, e o que elas têm em comum é apenas que contam como "o mesmo" (símbolos do mesmo tipo, como dizemos nós, filósofos) em um sistema de representações conhecido como linguagem. As palavras são itens tão familiares no nosso mundo mergulhado em linguagem que tendemos a pensar nelas como se elas fossem coisas tangíveis sem nenhum problema - tão reais como xícaras de chá ou gotas de chuva -, mas elas são, na verdade, bastante abstratas, até mais abstratas que vozes ou canções ou cortes de cabelo ou oportunidades (e do que são elas feitas?). O que são as palavras? Palavras são basicamente pacotes de informações de algum tipo, receitas para usar o aparato vocal e os ouvidos da pessoa (ou mãos e olhos) - e cérebros - de modos bastante específicos. Uma palavra é mais que um som ou um modo de escrever. Por exemplo, a palavra fast tem o mesmo som e o mesmo modo de escrever em inglês e em alemão, mas tem significados e papéis inteiramente diferentes nos dois idiomas. São duas palavras diferentes, compartilhando apenas algumas de suas propriedades superficiais. As palavras existem. Será que os memes existem? Sim, porque as palavras existem, e as palavras são memes que podem ser pronunciados. Outros memes são a mesma coisa - pacotes de informação ou receitas para fazer outras coisas além de pronunciar -, comportamentos como apertar mãos ou fazer um gesto rude, em particular, ou tirar os sapatos quando se entra em casa, ou dobrar à direita, ou fazer seus barcos simétricos. Esses comportamentos podem ser descritos e ensinados explicitamente, mas não precisam sê-lo; as pessoas podem apenas imitar os comportamentos que vêem os outros fazerem. As variações de pronúncia se espalham, e do mesmo modo podem se espalhar variações em métodos culinários, lavar roupa, plantar roças. Há problemas irritantes para saber exatamente quais são os limites dos memes - será que usar um boné com a aba para trás é um meme ou dois (usar o boné e pô-lo ao contrário)? -, mas problemas semelhantes aparecem para limites de palavras - será que devemos contar "dar para trás" como duas ou três palavras? - e, de fato, para genes. As condições de contorno são claras para moléculas simples de DNA, ou suas partes constituintes, como os nucleotídeos ou códones (tripletos de nucleotídeos, como AGC ou AGA), mas os genes não se enquadram claramente nesses limites. Eles às vezes desmontam em diferentes pedaços separados, e os motivos pelos quais os biólogos chamam as seqüências de partes de códones de um único gene, em vez de dois genes, são praticamente os mesmos pelos quais os lingüistas identificariam "aguce [minha, sua, a dele] fantasia" ou "leia [-me, a ele, a ela] o ato do motim" como expressões idiomáticas manifestas, e não apenas verbos compostos em expressões com diversas palavras. Essas partes atreladas levantam problemas para quem quiser contar genes - não insuperáveis, mas também nada óbvios. E o que é copiado e transferido tanto no caso dos memes como no dos genes é informação. Terei mais a dizer a respeito dos memes em capítulos posteriores, e já que os ultra-ansiosos entusiastas dos memes e igualmente os ultra-ansiosos delatores de memes transformaram o assunto em questão delicada para muita gente, eu preciso proteger uma versão (relativamente!) sóbria do conceito de alguns de seus amigos e inimigos. Nem todo mundo, contudo, precisa participar desse exercício de higiene conceituai, de modo que copiei minha introdução básica aos memes - "The new replicators' - da recente Encyclopedia of Evolution, em dois volumes, publicada pela Oxford University Press em 2002 - como Apêndice A no final do livro.' 4 Para os nossos objetivos, agora, a principal razão para levar a sério a perspectiva dos memes é que ela nos permite examinar a pergunta cui bono? para todas as características projetadasda religião, sem prejudicar a questão de se estamos falando de genética ou de evolução cultural, e se a base racional para uma característica projetada é descomprometida, ou, explicitamente, não constitui o motivo fundamental de alguém. Isso expande o espaço de teorias evolucionárias possíveis, abrindo caminho para que consideremos processos de níveis múltiplos, misturados, que nos levarão para longe das idéias simplistas dos "genes da religião", em um extremo, e "uma conspiração de padres", no outro, e permitindo que levemos em consideração relatos muito mais interessantes (e mais prováveis) de como e por que as religiões evoluem. A teoria da evolução não é o pônei do filme, que só sabe um truque, e quando os marcianos começarem a teorizar a respeito da religião terrena, terão muitas opções para explorar, que eu esquematizarei rapidamente, em versões extremas, só para dar uma idéia do terreno a ser explorado com maior cuidado nos capítulos seguintes. Teorias do gosto por açúcar: primeiro, pense na variedade de coisas que gostamos de ingerir, ou de inserir de qualquer outro jeito em nossos corpos: açúcar, gordura, álcool, cafeína, chocolate, nicotina, maconha e ópio, para começar. Em cada um desses casos, existe no corpo um sistema receptor desenvolvido, projetado para detectar substâncias (ou ingeridas ou construídas pelo próprio corpo, como as endorfinas ou análogos endógenos da morfina) que esses favoritos possuem em alta concentração. Ao longo do tempo, nossa espécie inteligente andou fazendo prospecções, experimentando quase tudo no ambiente, e, depois de milênios de tentativas e erros, conseguiu descobrir meios de juntar e concentrar as substâncias especiais de modo a podermos usá-las para estimular (demais) nossos sistemas inatos. Os marcianos poderão ficar pensando se há também sistemas evoluídos geneticamente nos nossos corpos, projetados para reagir a alguma coisa fornecida sob forma intensificada pela religião. Muitos já acharam que sim. Karl Marx pode ter tido mais razão do que se pensa quando chamou a religião de ópio do povo. Será que podemos ter um centro de Deus no nosso cérebro, junto com nosso gosto pelo doce? Ele serviria para quê? Qual seria o lucro? Como diz Richard Dawkins, "se os neurocientistas encontrarem um centro de Deus' no cérebro, os cientistas darwinianos como eu vão querer saber por que o centro de Deus evoluiu. Por que aqueles dos nossos antepassados que tinham uma tendência genética para o crescimento de um centro de Deus sobreviveram melhor que os rivais, que não o tinham?" (2004b, p. 14). Se algum desses motivos evolutivos estiver correto, então aqueles dotados de um centro de Deus não apenas sobreviveram melhor que os que não têm; eles apresentam tendência a ter mais filhos. Mas devemos cuidadosamente pôr à parte o anacronismo envolvido em pensar a respeito desse sistema inato hipotético como um "centro de Deus", já que seu alvo original pode ter sido bem diferente da reação intensa que ele dispara hoje - não temos um centro inato de sorvete de chocolate no cérebro, afinal de contas, nem um centro de nicotina. Deus pode ser apenas o confeito mais recente e mais intenso que faz disparar os centros do quê em tantas pessoas. Qual o benefício adquirido por aqueles que satisfizeram os desejos de seus centros do quê? Pode ser até que não haja nem nunca tenha havido realmente nenhum alvo a ser obtido no mundo, mas apenas um alvo virtual imaginário, na verdade: o que deu a vantagem da aptidão foi o buscar e não o conseguir. De todo modo, se a necessidade, ou pelo menos o gosto, com relação a esse tesouro ainda não identificado se tornou uma parte geneticamente transmitida da natureza humana, o risco de mexer com ele é nosso. As teorias, nessa família, levantam algumas possibilidades interessantes. Tanto o açúcar como a sacarina disparam o nosso sistema de gosto por açúcar. Será que há substitutos para a religião que possam ser encontrados ou preparados por psicoengenheiros inteligentes? Ou - ainda mais interessante - serão os próprios religiosos um tipo de sacarina para o cérebro, menos pesado, debilitante ou intoxicante que o alvo original e potencialmente mais perigoso? Será a religião propriamente dita uma subespécie da medicina popular, na qual nós nos automedicamos para termos alívio, usando terapias esmerilhadas por milhares de anos de desenvolvimento por tentativa e erro? Haverá variação genética na sensibilidade religiosa, como a enorme variação genética recentemente descoberta entre os seres humanos no gosto e no olfato? Aqueles que detestam coentro têm um gene para um receptor olfativo que os que gostam de coentro não têm. Para nós, o coentro "tem gosto" mais de sabão. William James há cem anos especulou que ele - não todo mundo - tinha uma necessidade bruta de religião: "Chame isso, se quiser, de meu germe místico. É um germe muito comum. Ele cria a turma dos crentes. Do mesmo modo que resiste no meu caso, resiste, na maior parte das vezes, a toda crítica puramente atéia" (carta para Leuba, citada na introdução de James, 1902, p. xxiv). O germe místico de James pode realmente ser um gene místico. Ou pode ser, exatamente como ele disse, um germe místico, alguma coisa que uma pessoa pega de outra, não "verticalmente" (por descendência dos pais), mas "horizontalmente", por infecção. Teoria do simbionte: pode ser que as religiões acabem sendo espécies de simbiontes culturais que conseguem vicejar pulando de um hospedeiro humano para outro. Eles podem ser mutualistas - melhorando a aptidão humana e até mesmo tornando a vida humana possível, do mesmo modo que as bactérias no nosso intestino. Ou comensais - neutros, nem bons para nós nem maus, mas companheiros de jornada. Ou podem ser parasitas: replicadores deletérios sem os quais ficaríamos melhor - pelo menos no que diz respeito a nossos interesses genéticos -, mas que são difíceis de ser eliminados, já que evoluíram tão bem para enfrentar nossas defesas e melhorar sua própria propagação. Podemos esperar que parasitas culturais, como parasitas microbianos, explorem quaisquer sistemas preexistentes que estejam à mão. O reflexo de espirrar, por exemplo, é em primeiro lugar uma adaptação para livrar as passagens nasais de agentes irritantes estranhos, mas quando um micróbio provoca o espirro, em geral é o germe, e não quem espirra, o principal beneficiário, obtendo um lançamento de alta energia para uma vizinhança em que hospedeiros em potencial possam inalá-lo. O espalhamento de micróbios e o espalhamento de memes podem explorar mecanismos semelhantes, como impulsos irresistíveis de transmitir histórias ou outros itens de informação para os outros, fortificados por tradições que aumentam o comprimento, a intensidade e a freqüência dos encontros com outros, que poderão ser prováveis hospedeiros. Quando olhamos para a religião a partir dessa perspectiva, o cui bono? muda dramaticamente. Agora não é a nossa aptidão (como membros reprodutores da espécie Homo sapiens) que é supostamente melhorada pela religião, mas a aptidão dela (como um membro reprodutor - auto-replicante - do gênero simbionte Cultus religiosus). Ele poderá vicejar como mutua- lista porque beneficia o hospedeiro bem diretamente, ou poderá florescer como um parasita, embora oprima seus hospedeiros com uma doença viru- lenta que os deixa pior, fracos demais para combater a disseminação. E o aspecto principal a ser esclarecido desde o início é que não podemos dizer qual desses é mais provavelmente o ser verdadeiro sem fazer uma pesquisa cuidadosa, objetiva. É possível que sua religião pareça evidentemente benigna para você, e outras religiões podem muito bem parecer, para você, muito evidentemente tóxicas aos infectados por elas, mas as aparências enganam. Pode ser que a religião deles lhes esteja dando benefícios que você simplesmente ainda não entende, e talvez a sua religião o esteja envenenando de modos que você nunca suspeitou. Você realmente não coYisegue ver de dentro. É assim que os parasitas trabalham: silenciosamente, despercebidos,sem perturbar os hospedeiros mais que o absolutamente necessário. Se (algumas) religiões são parasitas evoluídos culturalmente, podemos esperar que tenham sido insidiosamente bem projetadas para esconder sua verdadeira natureza de seus hospedeiros, já que essa é uma adaptação que faria sua disseminação avançar. *** Essas duas famílias de teorias, a do gosto pelo açúcar e a do simbionte, não são exclusivas. Como já vimos com o exemplo do fermento excretor de álcool, há possibilidades simbióticas que combinam diversos desses fenômenos ao mesmo tempo. Pode ser que um gosto inicial seja explorado por simbiontes culturais que incluam tanto formas mutualistas como parasitas. Um simbionte relativamente benigno ou inócuo pode sofrer uma mutação sob determinadas condições para algo mais virulento e até mortal. Durante milênios as pessoas imaginaram que outras religiões podiam ser uma forma de doença ou mal-estar, e apóstatas muitas vezes olham para trás, para seus dias iniciais, como um período de aflição ao qual eles de algum modo sobreviveram. Mas as perspectivas evolutivas nos permitem ver que há tanto cenários positivos como negativos depois que começamos a encarar a religião como possível simbionte cultural. Há simbiontes amigáveis por toda parte. Seu corpo talvez seja composto de ioo trilhões de células (Hoo- per et al., 1998)! A maior parte desses trilhões de hóspedes microscópicos é inócua ou útil; só vale a pena se importar com uma minoria. Muitos deles, na verdade, são auxiliares valiosos que herdamos de nossas mães e seríamos bastante indefesos sem eles. Essas heranças não são genéticas. Alguns podem ser passados adiante via fluxo sangüíneo compartilhado entre mãe e feto, mas outros são apanhados por contato corporal ou proximidade. (Uma mãe substituta que não faz contribuições genéticas ao feto implantado em seu útero, no entanto dá uma grande contribuição à microflora que o bebê levará pelo resto da vida.) Simbiontes culturais - memes - são passados adiante para os filhos do mesmo modo, por vias não genéticas. Falar a "língua materna", cantar, ser educado e muitas outras aptidões de "socialização" são transmitidos culturalmente de pais para filhos, e os recém-nascidos humanos privados dessas fontes de herança muitas vezes são profundamente prejudicados. Sabe-se bem que o elo entre pais e filhos é a maior via de transmissão da religião. Os filhos crescem falando a língua dos pais e, na maioria das vezes, identificando-se com a religião deles. A religião, não sendo genética, pode ser disseminada "horizontalmente" para os não-descendentes. Tais conversões desempenham um papel desprezível na maior parte das circunstâncias. Uma avaliação frágil desse aspecto levou, no passado, a alguns programas grosseiros e cruéis de "higiene". Se você acha que a religião é, apesar de tudo, uma característica maligna da cultura humana, um tipo de doença da infância com efeitos posteriores duradouros, a política de saúde pública a ser adotada para isso seria politicamente drástica, mas bem simples: vacina e isolamento. Não deixe os pais darem a seus próprios filhos uma educação religiosa! Essa política já foi tentada, em grande escala, na antiga União Soviética, com conseqüências calamitosas. A reação da religião na Rússia pós- URSS sugere que a religião tem papéis a desempenhar e recursos nem sonhados por essa visão simples. Uma possibilidade evolutiva de tipo inteiramente diferente é representada pelas teorias da seleção sexual. Talvez a religião seja como o ninho de determinados pássaros. Os machos dedicam tempo e esforço extraordinários para construir e decorar estruturas elaboradas, projetadas para impressionar a fêmea da espécie, que escolhe um parceiro apenas depois de avaliar cuidadosamente os ninhos concorrentes. Esse é um exemplo de seleção sexual fugitiva, subvariedade da seleção natural em que o papel central da função seletiva é desempenhado pela exigente fêmea, cujas preferências podem, ao longo de muitas gerações, se acumular em exigências altamente específicas e onerosas, como os caprichos das pavoas, que obrigam os pavões a criar caudas espetaculares - e especularmente caras e desajeitadas. (Ver Cronin, 1991, para um belo apanhado.) A coloração viva dos pássaros machos é o exemplo mais bem estudado de seleção sexual. Nesses casos, um viés inicial no capricho inato das fêmeas, como a preferência por azul com relação ao amarelo, adquire um feedback positivo em machos intensamente azuis; quanto mais azul, melhor. Na natureza, nada há que faça com que o amarelo seja melhor que o azul, ou vice-versa, a não ser o gosto reinante da fêmea da espécie, que exerce uma potente, embora arbitrária, pressão seletiva. Como poderia alguma coisa do tipo da seleção sexual fugitiva moldar as extravagâncias da religião? De muitas maneiras. Primeiro, poderia ter sido uma seleção sexual direta por parte das mulheres pelos traços psicológicos que reforçam a religião. Talvez elas preferissem homens que demonstrassem sensibilidade à música e às cerimônias, o que poderia então ter se intensificado para uma propensão ao entusiasmo elaborado. As mulheres que tinham essa preferência não precisariam saber por que a tinham; poderia ser apenas um capricho, um gosto pessoal cego que as impelia na escolha, mas se os homens que elas escolheram por acaso eram melhores provedores, homens de família mais fiéis, essas mães e pais tenderiam a criar mais filhos e netos do que outros, e tanto a sensibilidade à cerimônia como o gosto por aqueles propensos à cerimônia se espalhariam. Ou o mesmo capricho poderia ter uma vantagem seletiva apenas porque mais mulheres partilhavam dele, de modo que os filhos aos quais faltasse a sensibilidade à cerimônia em moda eram desprezados pelas mulheres exigentes. (E se uma amostra influente de nossas antepassadas, sem nenhuma outra razão, tivesse um gosto por homens que pulassem para cima e para baixo na chuva, nós, caras, poderíamos agora ser incapazes de ficar quietos quando chovesse. As garotas poderiam ou não compartilhar nossas tendências de pular sob essas condições, mas elas definitivamente escolheriam aqueles de nós que pulassem - é essa a implicação da clássica hipótese da seleção sexual.) Certamente é conhecida a idéia de que o talento musical é o caminho real para os braços de uma mulher; ela provavelmente vende milhões de violões por ano. E pode muito bem haver algum fundamento nela. Isso poderia ser uma propensão geneticamente transmitida, com variação significante na população, mas deveríamos também considerar os análogos culturais da seleção sexual. As cerimônias do potlatch encontrada entre nativos norte- americanos do Noroeste eram impressionantes: demonstrações cerimoniais de generosidade conspícua, nas quais os indivíduos competem entre si para ver quem consegue dar mais de seus bens, algumas vezes ao ponto da ruína. Esses costumes trazem a marca de terem sido criados por uma escalada de feedback positivo como o que estabeleceu as caudas dos pavões ou os gigantescos chifres dos cervos irlandeses. Outros fenômenos sociais também exibem espirais inflacionárias de competição cara e essencialmente arbitrária: rabos-de-peixe nos carros dos anos 1950, modas de adolescentes e exibições de iluminação do lado de fora da casa durante o Natal estão entre os mais freqüentemente discutidos, mas há outros também. Durante mais de um milhão de anos, os nossos ancestrais fizeram lindíssimos "machadinhos acheulianos", implementos de pedra com o feitio de pêra, de tamanhos variados, amorosamente lixados e raramente exibindo qualquer sinal de uso. Fica claro que os nossos antepassados gastaram muito tempo e energia fazendo esses machadinhos, e o desenho mal se alterou ao longo das eras. Encontraram-se grandes esconderijos com centenas e até milhares desses machados (Mithen, 1996). O arqueólogo Thomas Wynne (1995) opinou que "seria difícil superenfatizar como esses machados são estranhos quando comparados aos produtos da cultura moderna". "Eles são biofatos", disse uma vez um arqueólogo, cunhandoum termo novo e inspirando o divulgador de ciência Marek Kohn (1999) a apresentar uma hipótese espantosa. Geofatos são aquilo a que os geólogos chamam de pedras, que parecem artefatos, mas não são - são apenas o produto não intencional de algum processo geológico. Kohn propõe que esses machados podem não ser artefatos, mas biofatos, mais semelhantes a ninhos elaborados dos pássaros que ao arco-e-flecha de um caçador, publicidades evidentemente caras da superioridade masculina, plano que foi transmitido culturalmente, não geneticamente, em uma tradição que dominou a batalha entre os sexos durante um milhão de anos. Os hominóides que trabalharam tanto para participar dessa competição não precisavam entender mais das bases racionais do empreendimento que as aranhas macho que apanham um inseto e embrulham-no cuidadosamente em seda para dar como "presente nupcial" à aranha fêmea durante a corte. Esse argumento é altamente especulativo e controverso, mas ainda não há prova em contrário, e ele é útil para nos alertar sobre as possibilidades que, de outro modo, talvez nos escapem. Sejam quais forem as razões para isso, nossos antepassados esbanjaram tempo e trabalho em artefatos aparentemente não usados sempre que puderam, precedente que vale a pena lembrar quando nos maravilhamos com tumbas, templos e sacrifícios. A interação entre a transmissão cultural e genética também deveria ser explorada. Leve em consideração o bem estudado caso da tolerância à lac- tose nos adultos, por exemplo. Muitos de nós adultos conseguimos beber e digerir leite cru sem dificuldade, mas inúmeros outros, que, é claro, não tinham dificuldade em consumir leite quando eram bebês, não conseguem mais digerir o leite depois da infância, uma vez que os corpos deles desligou o gene da fabricação da láctase, a enzima necessária, depois de desma- mados, o que é o padrão normal nos mamíferos. Quem não é tolerante à lactose? Para os geneticistas, existe um padrão claramente definido: a tolerância à lactose está concentrada em populações humanas descendentes de culturas que desenvolviam pecuária leiteira, enquanto a intolerância à lactose é comum naqueles cujos ancestrais nunca foram pastores de animais leiteiros, como os chineses e os japoneses.'5 A tolerância à lactose é transmitida geneticamente, mas o pastoralismo, a disposição de cuidar de rebanhos de animais da qual depende o traço genético, é transmitido culturalmente. Supostamente, ele poderia ser transmitido geneticamente, mas, pelo que sabemos, não foi. (Nos cachorros da raça "border collie", ao contrário dos filhos de cães pastores bascos, o instinto de pastoreio foi introduzido [Dennett, 2003c, d].) Além dessas, há as teorias do dinheiro, de acordo com as quais as religiões são artefatos culturais tanto como os sistemas monetários: sistemas desenvolvidos na comunidade que evoluíram, culturalmente, muitas vezes. Sua presença em todas as culturas é facilmente explicada e até justificada: é um Bom Estratagema que espera ser redescoberto vezes sem conta, um caso de evolução social convergente. Cui bono? Quem se beneficia? Aqui podemos considerar várias respostas: a. Todos na sociedade se beneficiam, porque a religião faz com que a vida na sociedade seja mais segura, harmoniosa, eficiente. Alguns se beneficiam mais que outros, mas ninguém pensaria em querer acabar com a coisa toda. b. A elite que controla o sistema se beneficia à custa dos outros. A religião é mais semelhante a um esquema de pirâmide do que a um sistema monetário; ela prospera oprimindo os mal informados e impotentes, enquanto seus beneficiários a transmitem de bom grado a seus herdeiros, genéticos ou culturais. c. As sociedades como um todo se beneficiam. Não importa se os indivíduos se beneficiam, a perpetuação de seus grupos sociais ou políticos é reforçada à custa de grupos rivais. Esta última hipótese, seleção grupai, é problemática, já que as condições sob as quais a seleção de grupos genuína pode existir são difíceis de especificar.'6 Os cardumes de peixes e bandos de pássaros, por exemplo, certamente são fenômenos que envolvem grupos. Para ver como indivíduos (ou seus genes individuais) são beneficiados pela disposição a formar cardumes ou bandos é preciso conhecer a ecologia dos grupos, mas os grupos não são os beneficiários primários; os indivíduos que os compõem é que o são. Alguns fenômenos biológicos se disfarçam de seleção grupai, contudo, são mais bem tratados como exemplos de seleção em nível individual, que depende de determinados fenômenos ambientais (como formação de grupos), ou até como exemplos de fenômenos de seleção simbiôntica. Como já observamos, um meme simbionte precisa ser espalhado para novos hospedeiros, e, se conseguimos induzir as pessoas a formarem grupos (do jeito como o Toxoplasma gondii leva os ratos para as mandíbulas de gatos) nos quais elas conseguem facilmente encontrar hospedeiros alternativos, a explicação não é nenhuma seleção grupai. Se os marcianos não conseguirem fazer com que nenhuma dessas teorias se ajuste aos fatos, eles deveriam considerar algum tipo de teoria default, que podemos chamar de teoria da pérola: a religião é simplesmente um lindo subproduto. É criada por um mecanismo, ou uma família de mecanismos, controlado geneticamente, com o objetivo (da Mãe Natureza, da evolução) de reagir a irritações ou intrusões de um tipo ou de outro. Esses mecanismos são desenhados pela evolução para determinados objetivos, mas então, um dia, aparece alguma coisa nova, ou uma nova convergência de fatores diferentes, alguma coisa que nunca foi encontrada antes, e, é claro, nunca foi prevista pela evolução, que por acaso dispara as atividades que geram esse espantoso artefato. De acordo com as teorias das pérolas, a religião não é para nada, do ponto de vista da biologia; ela não beneficia nenhum gene ou indivíduo, ou grupo, ou simbionte cultural. Mas, já que existe, ela pode ser um objet trouvé, alguma coisa que por acaso cativa a nós, agentes humanos, que temos uma capacidade indefinidamente crescente para nos deliciar com novidades e curiosidades. Uma pérola começa com um cisco insignificante de material estranho (ou, mais provavelmente, um parasita), e, depois que a ostra acrescentou cada maravilhosa camada, ela passa a ser algo de valor coincidente com integrantes de uma espécie que por acaso aprecia essas coisas, seja ou não essa cobiça avaliada do ponto de vista da aptidão biológica. Há outros padrões de valores que podem surgir, por motivos bons ou maus, sem justificativa aparente ou altamente articulada. Do mesmo modo que a ostra reage ao elemento irritante inicial, e depois incessantemente reage aos resultados de sua primeira reação, e depois aos resultados dessa reação, e assim por diante, os seres humanos podem ser incapazes de reagir a suas próprias reações, incorporando camadas cada vez mais elaboradas a uma produção que assume, então, formas e características inimagináveis em seu modesto início. O que explica a religião? Gosto por doces, simbionte, ninhos elaborados, dinheiro, pérola ou nenhuma das opções anteriores? A religião pode incluir fenômenos da cultura humana que não têm análogos remotos na evolução genética, mas, se isso for verdade, nós ainda temos de responder à pergunta cui bono?, porque é inegável que os fenômenos da religião são projetados em um grau muito significativo. Há poucos sinais de aleatorie- dade ou arbitrariedade, de modo que alguma replicação diferencial deve pagar pelo P&D responsável pelo projeto. Essas hipóteses não se desenvolvem todas na mesma direção, mas a verdade a respeito da religião pode muito bem ser um amálgama de diversas delas (e mais outras). Se for assim, não obteremos uma visão clara de por que a religião existe até que tenhamos distinguido claramente essas possibilidades e submetido cada uma delas a teste. Se você acha que já sabe qual a teoria certa, ou você é um grande cientista que vem escondendo do resto do mundo uma enorme montanha de pesquisa não publicada, ou então você está confundindo desejosfantasiosos com conhecimento. Talvez lhe pareça que estou, um tanto de propósito, desprezando a explicação óbvia de por que a sua religião existe e tem as características que apresenta: ela existe porque é a reação inevitável de seres humanos esclarecidos ao fato evidente de que Deus existe! Alguns acrescentariam: nos envolvemos nessas práticas religiosas porque Deus manda, ou porque nos é agradável agradar a Deus. Fim de papo. Mas isso não poderia ser o fim do papo. Seja lá qual for a sua religião, há mais pessoas no mundo que não compartilham dela do que as que compartilham, e cabe a você - a nós todos, na verdade - explicar por que tantas pessoas entenderam errado e como aqueles que sabem (se houver algum) conseguiram entendê-la direito. Mesmo que seja óbvio para você, não é óbvio para todo mundo, ou até mesmo para a maioria. Se você chegou até este ponto, neste livro, é porque está disposto a indagar sobre as fontes e causas das outras religiões. Não seria hipocrisia alegar que sua própria religião está um tanto fora dos limites? Só para satisfazer à sua curiosidade intelectual, você poderia desejar ver como sua religião resiste ao tipo de escrutínio a que submeteremos as outras. Porém, você pode muito bem imaginar, será que a ciência pode ser verdadeiramente imparcial? Será que a ciência, na verdade, não passa de apenas outra religião? Ou, ao contrário, não seriam as perspectivas religiosas tão válidas quanto as científicas? Como podemos encontrar alguma base comum, objetiva, a partir da qual erguer nossas investigações? Essas questões preocupam muitos leitores, especialmente os estudiosos que investiram pesadamente nas respostas. Outros, contudo, ficam impacientes com elas, e nem um pouco preocupados. As questões são importantes - de fato, cruciais para meu projeto -, uma vez que põem em dúvida a própria possibilidade de levar adiante a pesquisa que estou empreendendo, mas elas podem ser adiadas até depois que o esboço da teoria esteja completo. Se você discorda, então, antes de começar a ler o capítulo 4, você deveria ir diretamente ao Apêndice B, "Mais algumas questões a respeito de ciência", que trata desses problemas, especificando com mais detalhes e defendendo o caminho pelo qual podemos trabalhar juntos para encontrar concordância mútua a respeito de como proceder e sobre o que é importante. Capítulo 3. Tudo o que valorizamos - açúcar, sexo, dinheiro, música, amor e religião -, valorizamos por algum motivo. Por trás disso, e diferentes das nossas razões, há razões evolutivas, bases racionais descomprometidas que foram endossadas pela seleção natural. * * * Capítulo 4. Do mesmo modo que o cérebro de todos os animais, o cérebro humano evoluiu para lidar com problemas específicos dos ambientes nos quais deve operar. O ambiente social e lingüístico que co-evoluiu com o cérebro do homem dá aos seres humanos poderes que nenhuma outra espécie desfruta, mas também cria problemas, e as religiões populares, aparentemente, evoluíram para resolvê-los. A aparente extravagância das práticas religiosas pode ser explicada nos termos austeros da biologia da evolução. PARTE 2 E V O L U Ç Ã O D A R E L I G I Ã O 4. AS RAÍZES DA RELIGIÃO 1. O NASCIMENTO DE RELIGIÕES Tudo é o que é porque ficou desse jeito. [D'Arcy Thompson] ENTRE OS HINDUS há uma divergência sobre se é Shiva ou Vishnu o Senhor maior, e muita gente foi morta por causa de sua crença nessa questão. "Os Lingapurãna prometem o céu de Shiva a quem mate ou arranque a língua de quem insulte Shiva" (Klostermaier, 1994). Entre os zulus, quando uma mulher grávida está prestes a dar à luz, algumas vezes a "serpente-espírito de uma mulher velha" faz uma aparição zangada (de acordo com os xamãs), indicando que um cabrito ou algum outro animal deve ser sacrificado para os ancestrais da tribo de modo que a criança nasça com saúde (Lawson e McCauley, 1990, p. 116). Os jivaro, do Equador, acreditam que você tem três almas, a alma verdadeira, que você tem desde o nascimento (esta volta ao seu lugar de nascimento depois da morte, e aí se transforma num demônio, que morre, por sua vez, virando uma mariposa gigante, que quando morre vira nevoeiro); a arutam, uma alma que você obtém por meio do jejum, banho em uma cachoeira e tomando um sumo alucinógeno (torna você invencível, mas tem o hábito infeliz de ir embora quando você está em dificuldade); e a musiak, a alma vingadora que foge da cabeça de uma vítima e mata seu assassino. E por isso que você tem de ficar fora do alcance da cabeça da sua vítima (Harris, 1993). Essas crenças e práticas curiosas não existiram "desde sempre" - não importa o que os devotos delas possam dizer. Mareei Gauchet começa seu livro sobre a história política da religião observando que, "tanto quanto sabemos, a religião tem, sem exceção, existido em todas as épocas e em todos os lugares" (1997, p. 22), mas essa é a visão restrita de um historiador, e esta simplesmente não é a verdade. Houve uma época antes de crenças e práticas religiosas terem ocorrido a qualquer pessoa. Houve uma época, afinal, antes de haver quaisquer crentes no planeta, antes de haver quaisquer crenças a respeito de qualquer coisa. Algumas crenças religiosas são verdadeiramente acidentais (segundo padrões históricos), e pode-se ler a respeito do advento de outras em arquivos de jornais. Como surgiram todas elas? Algumas vezes a resposta parece bastante evidente, em especial quando temos registros históricos confiáveis do passado recente. Quando os europeus, em seus magníficos navios a vela, visitaram pela primeira vez as ilhas do Pacífico Sul, no século xvm, os melanésios que moravam nessas ilhas ficaram abismados pelos navios e pelos presentes notáveis que receberam do homem branco que morava neles: tigelas de aço e fardos de tecido e vidros através dos quais se podia ver, e outros carregamentos além de seus conhecimentos. Eles reagiram do jeito que provavelmente reagiríamos hoje se visitantes do espaço aparecessem, capazes de nos sobrepujar quanto quisessem e trazendo tecnologias com as quais nem sequer sonhamos: "Precisamos conseguir um pouco dessa carga e aprender como dominar os poderes mágicos desses visitantes". E nossos insignificantes esforços no sentido de usar o que sabíamos para tomar o controle da situação e restaurar nossa segurança e sentimento de poder provavelmente divertiriam esses alienígenas tecnologicamente superiores, tanto quanto nos divertimos com a conclusão dos melanésios de que os europeus deviam ser seus ancestrais disfarçados, que voltavam do reino dos mortos com incontáveis riquezas, semideuses a serem adorados. Quando os missionários luteranos chegaram a Papua Nova-Guiné, no final do século xix, para tentar converter os melanésios ao cristianismo, eles encontraram uma desconfiança obstinada: por que esses sovinas ancestrais estão disfarçados, recusando presentes e tentando nos fazer cantar hinos? Cultos à carga surgiram vezes sem conta no Pacífico. Durante a Segunda Guerra Mundial, as forças norte-americanas chegaram à ilha de Tana para recrutar milhares de homens que ajudassem a construir uma pista de pouso e uma base do exército na ilha Efate, vizinha. Quando os trabalhadores voltaram, com histórias de homens brancos e pretos que tinham posses além dos sonhos do povo de Tana, a sociedade inteira foi lançada em confusão. Os ilhéus, muitos dos quais tinham sido anteriormente convertidos ao cristianismo por missionários britânicos, pararam de ir à igreja e começaram a construir pistas de pouso, armazéns e mastros de rádio de bambu, na crença de que, se tinha funcionado para os norte-americanos, na Efate, funcionaria para eles em Tana. Modelos esculpidos de aviões, capacetes e rifles norte- americanos eram feitos de bambu e usados como ícones religiosos. Os ilhéus começaram a marchar em paradas com as letras USA pintadas, esculpidas ou tatuadas no peito e nas costas. John Frum surgiu como o nome do Messias deles, embora não haja registro de qualquer soldado norte-americano com esse nome. Quando o últimoG I norte-americano foi embora, no fim da guerra, os ilhéus previram o retorno de John Frum. O movimento continuou a florescer e, em 15 de fevereiro de 1957, uma bandeira norte-americana foi erguida na baía Enxofre para declarar a religião de John Frum. Nesse dia, todos os anos, é comemorado o Dia de John Frum. Eles acreditam que John Frum está esperando escondido no vulcão Yasur com seus guerreiros para entregar seus presentes ao povo de Tana. Durante as festividades, os anciãos marcham em uma imitação de exército, um tipo de treinamento militar misturado com danças tradicionais. Alguns levam imitações de rifles feitas de bambu e usam memorabilia do exército norte- americano, como bonés, camisetas e casacos. Eles acreditam que seus rituais anuais atrairão o deus John Frum do vulcão e entregarão sua carga de prosperidade a todos os ilhéus. [MotDoc, 2004] Ainda mais recentemente, por volta de 1960, na ilha Nova Britânia, em Papua Nova-Guiné, o culto Pomio Kivung foi encontrado. Ainda viceja. A doutrina Pomio Kivung afirma que a adesão às Dez Leis (uma versão modificada do Decálogo [Dez Mandamentos]) e a execução fiel de um conjunto extenso de rituais, inclusive o pagamento de multas com o objetivo de ganhar absolvição, é essencial para o melhoramento moral e espiritual necessário para apressar o retorno dos ancestrais. O mais importante desses rituais tem como objetivo aplacar os ancestrais, que fazem o assim chamado "Governo da Aldeia". Encabeçado por Deus, o Governo da Aldeia inclui aqueles ancestrais a quem Deus perdoou e aperfeiçoou. Os líderes espirituais do Pomio Kivung têm sido o fundador, Koriam, seu principal assistente, Bernard, e o sucessor de Koriam, Kolman. Os seguidores consideraram todos os três já membros do Governo da Aldeia, e, portanto, divindades. Os três residiram fisicamente na terra (especificamente na região Pomio da província), mas as almas deles habitariam o tempo todo com os ancestrais. A condição decisiva para induzir o retorno dos ancestrais e inaugurar o "Período das Companhias" é alcançar suficiente purificação coletiva. O Período das Companhias será uma era de prosperidade sem precedentes, resultante da transferência de conhecimento e de uma infra-estrutura industrial para a produção de maravilhas tecnológicas e riqueza material igual à do mundo ocidental. [Lawson e McCauley, 2002, p. 90] Esses casos podem ser excepcionais. Sua religião, você pode acreditar, começou a existir quando a sua verdade fundamental foi revelada por Deus para alguém, que então a transmitiu para outros. Ela viceja hoje porque você e outros de sua fé sabem que ela é a verdade, e Deas o abençoou e o encorajou a manter a fé. E simples assim, para você. E por que existem todas as demais religiões? Se aquela gente toda está errada, por que o credo deles não desmorona tão prontamente como as falsas idéias a respeito da agropecuária ou as práticas de construção obsoletas? Elas irão desmoronar no tempo próprio, pode achar você, deixando de pé a única religião verdadeira, a sua religião. Certamente existe algum motivo para acreditar nisso. Além das poucas dúzias de religiões principais no mundo atual - aquelas cujos adeptos somam centenas ou milhares de milhões -, há milhares de religiões menos populosas reconhecidas. Duas ou três aparecem todos os dias, e em geral não duram mais que uma década.' Não há meios de saber quantas religiões diferentes vicejaram durante algum tempo durante os últimos io ou 50 ou 100 mil anos, mas podem ser até milhões, das quais todos os traços estão agora perdidos para sempre. Algumas religiões confirmaram histórias com datas de vários milênios atrás - mas só se formos generosos com nossos limites. A Igreja mórmon tem menos de duzentos anos de idade, como nos lembra seu nome oficial: a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. O protestantismo tem menos de quinhentos anos, o islã tem menos de 1 500 anos, o cristianismo tem menos de 2 mil anos. O judaísmo não chega a ter duas vezes essa idade, e o judaísmo de hoje evoluiu significativamente a partir do judaísmo mais primitivo identificado, embora as variedades de judaísmo nada são se comparadas com os tumultuosos florescimentos das variações que o cristianismo gerou durante os dois últimos milênios. Do ponto de vista biológico, esses são períodos curtos de tempo. Nem sequer são longos quando comparados às idades de outras características da cultura humana. A escrita tem mais de 5 mil anos de idade, a agricultura tem mais de 10 mil anos, e a linguagem tem - quem sabe? - talvez "apenas 40 mil anos, e pode ser dez ou vinte vezes mais velha que isso. Este é um tema de pesquisa litigioso, e como há um acordo amplo de que as linguagens naturais inteiramente articuladas devem ter se desenvolvido a partir de algum tipo de protolinguagem (que pode ter evoluído ao longo de centenas de milhares de anos), não existe um consenso a respeito do que chegaria mesmo a ser uma data de nascimento da linguagem. Será que a linguagem é mais antiga que a religião? Não importa como datemos seu início, a linguagem é muito, muito mais velha que qualquer religião existente, ou até mesmo qualquer religião da qual tenhamos qualquer conhecimento histórico ou arqueológico. A prova arqueológica impressionante mais antiga da religião são os elaborados sítios de sepultamento Cro-Magnon na República Tcheca, e eles têm cerca de 25 mil anos de idade.2 E difícil dizer, mas alguma coisa semelhante a religião pode muito bem ter existido desde os tempos iniciais da linguagem, no entanto, ou até antes disso. Como eram os nossos ancestrais, antes de haver alguma coisa semelhante à religião? Eram eles bandos de chimpanzés? A respeito de que falavam, se é que falavam de alguma coisa, fora comida, predadores e do jogo do acasalamento? Do tempo? Fofocas? Qual seria o solo psicológico e sociológico no qual a religião criou raízes pela primeira vez? Podemos tentar trabalhar para trás, extrapolando, sob a orientação das nossas limitações biológicas fundamentais: cada passo inovador devia "se pagar" de algum jeito, no ambiente existente em que ocorreram pela primeira vez, independentemente de qual pudesse vir a ser seu papel em ambientes posteriores. O que, então, poderia explicar tanto a diversidade como as semelhanças nas idéias religiosas que observamos em todo o mundo? Será que as semelhanças se devem ao fato de que todas as idéias religiosas surgem de uma idéia ancestral comum, transmitida ao longo das gerações à medida que as pessoas se espalharam pelo globo, ou serão essas idéias redescobertas, de modo independente por quase todas as culturas porque elas são simplesmente a verdade, e evidentes o suficiente para ocorrerem às pessoas no tempo devido? É claro que essas são enormes simplificações ingênuas, mas pelo menos são tentativas de propor e responder a questões explícitas que muitas vezes não são examinadas por pessoas que perderam o interesse ao encontrarem um objetivo ou uma função para a religião que a elas parecem plausíveis: atendendo a uma "necessidade humana" suficientemente grandiosa para explicar o manifesto gasto de tempo e energia exigido pela religião. Os três objetivos preferidos, ou raisons detre, para a religião são: • confortar-nos nos nossos sofrimentos e acalmar nosso medo da morte; • explicar coisas que não conseguimos explicar de outro modo; e • encorajar a cooperação em grupo diante de problemas e inimigos. Milhares de livros e artigos foram escritos defendendo esses argumentos, e tais idéias atraentes e familiares provavelmente estão em parte certas, mas se você adotar uma delas, ou até mesmo as três ao mesmo tempo, sucumbirá a uma confusão muitas vezes encontrada nas ciências humanas e sociais: satisfação prematura da curiosidade. Há tanta coisa ainda para se perguntar, tanto mais a ser compreendido. Por que essas idéias confortariam as pessoas? (E por que, exatamente, seriam elas consoladoras? Será que poderia haver idéias mais confortantes a ser encontradas?) Por que essas idéias seriam atraentes para pessoas comoexplicações de eventos desnorteantes? (E como poderiam elas ter surgido? Será que algum aspirante a protocientista encontrou alguma teoria sobrenatural e entu- siasticamente converteu seus vizinhos?) Como essas idéias de fato conseguem aumentar a cooperação em face da suspeita e da deserção? (E, mais uma vez, como poderiam elas ter surgido? Será que algum sábio líder tribal inventou a religião para dar à sua tribo uma vantagem de trabalho em equipe sobre as tribos rivais?) Algumas pessoas supõem que não vamos conseguir ir além dessas simples especulações a respeito desses processos e resultados do passado remoto. Alguns insistem nisso, de fato, e a veemência deles trai o fato de que têm medo de estar errados. Estão. Hoje, graças ao progresso em diversas ciências, podemos aprimorar as questões e começar a respondê- las. Neste e nos próximos quatro capítulos, vou tentar narrara melhor versão atual da história que a ciência tem a contar a respeito de como as religiões apareceram e o que elas são. Não estou alegando, de modo algum, que isso seja o que a ciência já estabeleceu a respeito da religião. O ponto principal deste livro é insistir que ainda não sabemos, mas podemos descobrir as respostas a essas perguntas importantes se fizermos um esforço conjunto. Provavelmente algumas das feições da história que eu contar irão, em seu próprio tempo, se provar erradas. Talvez muitas delas sejam erradas. O propósito de tentar esquematizar a história inteira agora é pôr em cima da mesa alguma coisa que seja ao mesmo tempo estável e que valha a pena testar. Em geral é mais fácil consertar alguma coisa que tenha falhas do que reconstruir desde o início. Tentar tapar os buracos no nosso conhecimento nos obriga a formular perguntas que não tínhamos formulado antes, e isso põe as questões em uma perspectiva que nos capacita a formular ainda outras perguntas a serem propostas e respondidas. E isso em si mesmo pode solapar a proclamação derrotista de que esses mistérios estão além da compreensão humana. Muita gente pode insistir em que são questões impossíveis de ser respondidas. Vamos ver o que acontece quando desafiamos seu pessimismo defensivo e fazemos uma tentativa. 2. OS MATERIAIS BRUTOS DA RELIGIÃO Podemos concluir, portanto, que em todas as nações que adotaram o politeísmo, as primeiras idéias de religião surgiram não de uma contemplação das obras da natureza, mas de uma preocupação com respeito aos eventos da vida, e das incessantes esperanças e medos que acionam a mente humana. [David Hume, História natural da religião] Meus orientadores são os cientistas pioneiros que começaram a atacar essas questões com imaginação e disciplina. Um biólogo da evolução ou um psicólogo que não conhece bem mais de uma religião e tem uma (des)informação superficial a respeito de outras (como a maioria de nós), quase com certeza partirá de idiossincrasias e generalizará excessivamente ao formular perguntas. E também pouco provável que um historiador social, ou um antropólogo, que conhece bastante das crenças e práticas dos povos do mundo inteiro, mas é ingênuo com respeito à evolução, consiga formular bem as questões. Por sorte, alguns poucos pesquisadores bem informados recentemente começaram a juntar essas perspectivas distantes com resultados muito atraentes. Vale a pena ler seus livros e artigos até o fim, como espero convencê-los ao apresentar alguns aspectos. Armas, germes e aço, de Jared Diamond (1997), é uma esclarecedora pesquisa de efeitos muito específicos da geografia e da biologia sobre o desenvolvimento inicial da agricultura em diferentes partes do mundo, em épocas diferentes. Quando os primeiros povos agrícolas domesticaram animais, eles naturalmente começaram a viver em estreita proximidade com eles, e isso enfatizou a probabilidade de os parasitas dos animais passarem para outra espécie. As doenças infecciosas mais sérias conhecidas pela humanidade, como a varíola e a influenza, derivam todas de animais domesticados, e nossos ancestrais fazendeiros passaram por epidemias horríveis, nas quais milhões de pessoas sucumbiram às versões iniciais dessas doenças, deixando apenas aqueles que tiveram a sorte de possuir alguma imunidade natural a ser propagada. Muitas gerações desse gargalo evo- lucionário garantiram que seus descendentes posteriores fossem relativamente imunes, ou tivessem uma alta tolerância, aos descendentes dessas virulentas cepas de parasitas. Quando tais descendentes, morando principalmente na Europa, desenvolveram a tecnologia para cruzar oceanos, eles trouxeram consigo seus germes, e foram os germes, mais que as armas e o aço, que varreram grandes frações das populações indígenas que encontraram. O papel da agricultura na disseminação de doenças infecciosas, e a relativa imunidade a elas, evoluída entre esses povos que viveram durante as devastações dos dias iniciais da atividade agrícola, podem ser estudados agora com alguma precisão, já que conseguimos extrapolar retrospectivamente, a partir do genoma de espécies existentes de plantas, animais e germes. Acidentes geográficos deram aos países europeus uma vantagem inicial que vai longe para explicar por que eles foram colonizadores, e não colonizados, nos séculos posteriores. O livro de Diamond, ganhador do Prêmio Pulitzer, é bem conhecido, como merece, mas não está sozinho. Há uma nova geração de pesquisadores interdisciplinares trabalhando para juntar a biologia com as provas coletadas por séculos de trabalho de historiadores, antropólogos e arqueólogos. Os antropólogos Pascal Boyer e Scott Atran fizeram extensivos trabalhos de campo na África e na Ásia, mas também são formados em teoria da evolução e psicologia cognitiva. Seus livros recentes, Religion Explained: The Evolutionary Origins of Religious Thought (Boyer, 2001) e In God We Trust (Atran, 2002), desenvolvem explicações amplamente harmoniosas dos principais passos pelo pântano que eles e outros têm adotado. E aí temos David Sloan Wilson, um biólogo da evolução que vem se dedicando, nos últimos anos, a analisar essas explorações sistemáticas do Arquivo da Área das Relações Humanas, um banco de dados de todas as culturas do mundo, compilada por antropólogos. Seu livro recente, Darwiris Cathedral: Evolution, Religion, and the Nature of Society (2002), apresenta o melhor argumento até agora para a hipótese de que a religião é um fenômeno humano planejado (pela evolução) para melhorar a cooperação dentro (não entre) de grupos humanos. De acordo com Wilson, a religião surgiu por um processo de seleção grwpal, um vinco controverso na teoria da evolução que é desconsiderada por muitos teóricos da evolução como, na melhor das hipóteses, um processo à margem, cujas condições para o sucesso têm pouca probabilidade de surgir e permanecer durante muito tempo. Existem profundas razões para ceticismo a respeito da seleção de grupos, em especial na nossa espécie, e exatamente porque a tese de Wilson - religião como reforçador de cooperação - é profundamente atraente para muita gente, precisamos nos segurar para evitar o pensamento fantasioso. Há um acordo bastante geral entre seus críticos de que ele (ainda) não conseguiu montar uma causa para sua tese radical de seleção de grupos, mas até uma teoria científica refutada de modo radical pode trazer grande contribuição ao constante acúmulo do conhecimento científico se as provas arrecadadas a favor e contra ela tiverem sido escrupulosamente reunidas. (Para mais a esse respeito, ver o Apêndice B.) Aqui vou introduzir os principais pontos de concordância, além de reconhecer os pontos de contenda persistentes, deixando a maior parte dos detalhes controversos para as notas deste capítulo e para os Apêndices, nos quais aqueles que gostem disso possam (começar a) buscar as próprias considerações mais profundas sobre eles. Tanto Boyer como Atran apresentam o trabalho de uma comunidade de pesquisadores, pequena, mas crescente, em termos relativamente acessíveis.3 A tese central deles é que, para explicar o domínio que várias idéias e práticasreligiosas têm sobre as pessoas, precisamos compreender a evolução da mente humana. Durante muitos séculos, a maioria dos filósofos e teólogos discutiu que a mente humana (ou alma) era algo imaterial, incorpóreo, que René Descartes chamou de res cogitans (coisa que pensa). Em algum sentido, ela era infinita, imortal e inteiramente inexplicável do ponto de vista material. Agora compreendemos que a mente não está, como Descartes confusamente pensou, em comunicação com o cérebro de algum modo milagroso; ela é o cérebro, ou, mais especificamente, um sistema ou organização dentro do cérebro que evoluiu bastante do mesmo jeito que nosso sistema imunológico ou sistema respiratório ou sistema digestivo. Como tantas outras maravilhas naturais, a mente humana é uma espécie de saco de mágicas, reunidas ao longo das eras pelos processos sem previsões da evolução por seleção natural. Levados pelas demandas de um mundo perigoso, ela tem um profundo viés favorável a observar as coisas mais importantes para o sucesso reprodutivo de nossos ancestrais.4 Algumas das características da nossa mente são dons que compartilhamos com criaturas muito mais simples, e outros são específicos de nossa linhagem, e portanto desenvolvidos muito mais recentemente. Essas características algumas vezes exageram, algumas vezes têm subprodutos curiosos, outras vezes estão maduras para exploração por outros replicado- res. De todos os efeitos peculiares gerados pelo saco de mágicas inteiro - nosso conjunto de "artifícios", como Boyer os chama -, alguns poucos por acaso interagem com outros em reforços mútuos, criando padrões observáveis em todas as culturas, com variações interessantes. Alguns desses padrões assemelham-se muito a religiões, ou pseudo-religiões, ou proto- religiões. Os produtos secundários dos diversos artifícios são o que Boyer chama de conceitos: Alguns conceitos por acaso se conectam com sistemas de inferência no cérebro, de tal forma que facilitam a lembrança e a comunicação. Alguns conceitos por acaso fazem disparar nosso programa emocional de modo especial. Alguns conceitos por acaso conectam nossa mente social. Alguns deles são representados de um jeito tal que logo se tornam plausíveis e dirigem o comportamento. Os que fazem tudo isso são os religiosos que de fato observamos nas sociedades humanas, [p. 50] Boyer enumera mais de meia dúzia de sistemas cognitivos distintos que alimentam efeitos nessa receita de religião - um agente detector, um gerente de memória, um detector de mentiras, um gerador de intuição moral, um gosto por histórias e contar histórias, diversos sistemas de alarme e o que eu chamo de postura intencional. Qualquer mente dotada desse conjunto particular de instrumentos e vieses de pensamento tende a abrigar mais cedo ou mais tarde alguma coisa semelhante a uma religião, alega ele. Atran e outros oferecem explicações amplamente concordantes, e vale a pena explorar os detalhes, mas vou apenas esquematizar algo do quadro geral para que possamos ver o feitio todo da teoria, e não (ainda) avaliar para ver se é verdadeira. Serão necessárias décadas de pesquisa para garantir qualquer parte dessa teoria, mas neste momento podemos ter uma noção de quais sejam as possibilidades, e daí, de que perguntas deveríamos tentar responder. 3. COMO A NATUREZA LIDA COM O PROBLEMA DE OUTRAS MENTES Encontramos faces humanas na Lua, exércitos nas nuvens; e por uma propensão natural, se não corrigida pela experiência e reflexão, atribuímos malícia e boa vontade a todas as coisas, as que nos machucam ou as que nos agradam. [David Hume, História natural da religião] "Eu a vi aceitar o beijo dele!" "É verdade" "Oh, Recato!" "Foi estritamente mantido: Ele achou que eu dormia; pelo menos eu sabia Que ele achou que eu achava que ele achou que eu dormia " [Coventry Patmore, "The kiss"] A primeira coisa que temos de compreender a respeito das mentes humanas como moradias adequadas para a religião é o modo pelo qual nossa mente compreende outras mentes! Tudo o que se move precisa de alguma coisa parecida com uma mente, para mantê-lo fora de perigo e ajudá-lo a encontrar as coisas boas; mesmo um humilde marisco, que tende a permanecer em um lugar, tem uma das características básicas de uma mente - uma retirada para evitar perigos em seu "pé" de alimentação, que se recolhe dentro da concha quando alguma coisa alarmante é detectada. Qualquer vibração ou batida tem a capacidade de pô-la em ação, e provavelmente a maior parte delas é inócua, mas seguro morreu de velho é o lema do marisco (a base racional descomprometida do sistema de alarme do marisco). Animais mais móveis desenvolveram métodos mais discriminatórios; em particular, tendem a ter a capacidade de dividir o movimento detectado nas coisas banais (o farfalhar de folhas, o balanço das algas) e nas potencialmente vitais: o "movimento animado" (ou "movimento biológico") de outro agente, outro animal dotado de uma mente, que pode ser um predador, uma presa, um parceiro, um rival da mesma espécie. Isso faz sentido do ponto de vista econômico, é claro. Se você se assusta com cada movimento que detecta, jamais irá encontrar seu jantar, e se você não se assusta com movimentos perigosos, logo vai ser o jantar de outrem. Esse é outro Bom Estratagema, uma inovação evolutiva - como a própria visão, ou a fuga - que é tão útil a tantos modos de vida diferentes que se desenvolve vezes sem conta em muitas espécies diferentes. Algumas vezes esse Bom Estratagema pode ser uma coisa boa demais: então temos aquilo que Justin Barrett (2002) chama de dispositivo de detecção de agente hiperativo, ou HADD (hyperactive agent detection device). Esse exagero não é exclusivo dos seres humanos. Quando seu cachorro pula e rosna quando um pouco de neve cai dos beirais do telhado com um ruído que o desperta de seu cochilo, ele está manifestando uma resposta orientada "falso positivo", disparada por seu HADD. Pesquisas recentes sobre inteligência animal (Whiten e Byrne, 1988, 1997; Hauser, 2000; Sterelny, 2003; ver também Dennett, 1996) mostraram que alguns mamíferos e aves, e talvez também algumas outras criaturas, levam essas discriminações de agentes para territórios mais sofisticados. Há provas de que eles não apenas distinguem entre os que provocam movimentos animados e o resto, mas fazem também distinções entre os tipos prováveis de movimentos a serem previstos por parte dos animados: ele irá me atacar ou fugir, irá para a esquerda ou direita, recuará se eu o ameaçar, já me vê, quer me comer ou preferiria ir atrás do meu vizinho? As mentes mais inteligentes desses animais descobriram o outro Bom Estratagema de adotar a postura intencional (Dennett, 1971, 1983, 1987): eles tratam algumas outras coisas no mundo como • Agentes com • Crenças limitadas a respeito do mundo, • Desejos específicos, e • Bom senso suficiente para fazer o que for racional, dadas essas crenças e desejos. Uma vez que os animais começam a adotar a postura intencional, segue-se uma espécie de corrida armamentista, com manobras e contrama- nobras, movimentos enganadores e detecção inteligente de um movimento enganador, levando as mentes animais a maiores sutilezas e poder. Se você já tentou apanhar ou prender um animal silvestre, tem uma avaliação da esperteza que se desenvolveu. (Desenterrar mariscos, em contraste, é brincadeira de criança. Os mariscos não desenvolveram a postura intencional, embora eles possuam simples HADD disparados por pêlos.) A utilidade da postura intencional em descrever e predizer o comportamento animal é inegável, mas isso não significa que os animais propriamente ditos são instruídos a respeito do que estão fazendo. Quando um pássaro que faz um ninho baixo leva o predador para longe do ninho fazendo uma exibição para distração, ele faz uma imitação convincente de uma asa quebrada, criando a ilusão tentadora de um jantar fácil para o predador que está observando, mas não precisa entender esse ardil. Ele precisa entender as condições de sucesso, para melhor ajustar o comportamento nosentido de se adequar às variações encontradas, mas não precisa estar consciente dos motivos fundamentais para suas ações mais que o bebê cuco, quando empurra os ovos rivais para fora do ninho no intuito de maximizar o alimento que receberá de seus pais adotivos. Pesquisadores têm diversos outros termos para a postura intencional. Alguns a chamam de "teoria da mente" (Premack e Woodruff, 1978; Les- lie, 1987; Gopnik e Meltzoff, 1997), mas há problemas com essa formulação, de modo que vou ficar com uma terminologia mais neutra.5 Sempre que algum animal trata alguma coisa como um agente, com crenças e desejos (com conhecimentos e metas), eu digo que ele está adotando a postura intencional ou tratando aquela coisa como um sistema intencional. A postura intencional é uma perspectiva útil a ser adotada por um animal em um mundo hostil (Sterelny, 2003), já que há coisas ali que podem querê- lo, e podem existir crenças acerca de onde ele está e para onde está indo. Entre as espécies que desenvolveram a postura intencional há considerável variação na sofisticação. Ao deparar com um rival ameaçador, muitos animais podem tomar uma decisão sensível do ponto de vista da informação, ou para recuar e para desafiar o outro, mas há pouca evidência de que eles tenham qualquer percepção do que estão fazendo e por quê. Existem provas (controversas) de que um chimpanzé pode acreditar que outro agente - digamos, um chimpanzé ou um ser humano - sabe que a comida está na caixa, em vez de estar na cesta. Isso é uma intencionalidade de segunda ordem (Dennett, 1983), envolvendo crenças a respeito de crenças (ou crenças a respeito de desejos, ou desejos a respeito de crenças etc.), mas não há provas (ainda) de que qualquer animal não humano possa querer que você acredite que ele acha que você está se escondendo atrás da árvore da esquerda, e não da direita (intencionalidade de terceira ordem). Mas até mesmo crianças na pré-escola gostam de jogos nos quais uma criança quer que outra finja não saber o que a primeira criança quer que a outra acredite (intencionalidade de quinta ordem): "Você vai ser o xerife e me perguntar para que lado foram os ladrões!'. Seja lá qual for a situação com animais não humanos - e esse é um tema de pesquisa debatido vigorosa e calorosamente6 -, não há dúvida alguma de que os seres humanos normais não têm de ser ensinados a respeito de conceber o mundo como contendo muitos agentes que, como eles próprios, têm crenças e desejos, além de crenças e desejos a respeito das crenças e desejos de outros, e crenças e desejos a respeito das crenças e desejos que outros têm a respeito deles, e daí por diante. Esse uso virtuoso da postura intencional aparece naturalmente e tem o efeito de saturar o ambiente humano com psicologia popular (Dennett, 1981). Em nossa experiência do mundo, ele está cheio não apenas de corpos humanos em movimento, mas de lembradores e esquecedores, pensadores e esperançosos, vilões e bobos, e quebradores de promessas e ameaçadores, aliados e inimigos. De fato, aqueles seres humanos que acham difícil perceber o mundo dessa perspectiva - os que sofrem de autismo são a categoria mais bem estudada - têm uma incapacidade mais significativa que os que nasceram cegos ou surdos (Baron-Cohen, 1995; Dunbar, 2004). Nosso impulso inato para adotar a postura intencional é tão forte que temos uma real dificuldade em desligá-lo quando ele deixa de ser apropriado. Quando alguém que amamos ou apenas conhecemos bastante morre, somos repentinamente confrontados com uma importante tarefa de atualização cognitiva: revisar todos os nossos hábitos de pensamento para se ajustarem a um mundo com um sistema intencional menos familiar. "Fico pensando se ela gostaria...", "Será que ela sabe que estou...", "Ah, olha, isso é uma coisa que ela sempre quis... . Uma porção considerável da dor e da confusão que sofremos quando nos confrontamos com a morte é causada pelas lembranças freqüentes, até obsessivas, sobre as quais nossos hábitos de postura intencional nos jogam como anúncios pop up chatos, mas muito, muito piores. Não podemos simplesmente apagar o arquivo no nosso banco de memória, e, além disso, não gostaríamos de fazê-lo. O que mantém em vigência muitos hábitos é o prazer que temos em nos gratificar com eles.7 E desse modo os prolongamos, atraídos por eles como a mariposa para uma lâmpada. Preservamos relíquias e outras lembranças das pessoas mortas, fazemos imagens delas, contamos histórias sobre elas para prolongar esses hábitos da mente, mesmo quando eles começam a desaparecer. Mas há um problema: um cadáver é uma fonte poderosa de doença, e desenvolvemos um forte mecanismo compensatório inato de repugnância para nos manter à distância. Atraídos pela saudade e distanciados pela repulsa, ficamos em um torvelinho quando nos confrontamos com o cadáver de um ente amado. Não é de espantar que essa crise desempenhe um papel tão central no nascimento de religiões por toda parte. Como Boyer (2001, p. 203) acentua, alguma coisa tem de ser feita com um cadáver, e deve ser algo que satisfaça ou aquiete concorrentes impulsos inatos de poder ditatorial. O que parece ter se desenvolvido por toda parte, um Bom Estratagema para lidar com uma situação desesperadora, é uma cerimônia elaborada que retira o corpo perigoso do ambiente diário, por sepultamento ou incineração, combinado com a interpretação da ativação persistente dos hábitos de postura intencional partilhados por todos os que conheceram o morto como a presença invisível do agente como um espírito, uma espécie de pessoa virtual, criada pelos perturbados estados dalma dos sobreviventes, e quase tão vivido e robusto quanto uma pessoa viva. Que papel, se é que há algum, desempenha a linguagem nisso? Somos a única espécie de mamíferos que enterra os mortos porque somos a única espécie que pode falar a respeito do que compartilhamos, quando nos confrontamos com um defunto fresco? Será que as práticas fúnebres dos nean- dertalenses mostra que eles devem ter tido linguagem plenamente articulada? Essas estão entre as perguntas que devemos tentar responder. As linguagens do mundo são bem providas de verbos para as variedades básicas da manipulação crença-desejo: fingimos e mentimos, mas também blefamos, suspeitamos, e lisonjeamos, e nos gabamos, e tentamos, e dissuadimos, e mandamos, e proibimos, e desobedecemos, por exemplo. Foi o nosso virtuosismo como psicólogos naturais um pré-requisito para nossa capacidade lingüística, ou foi o contrário: será que o nosso uso da linguagem tornou possível nossos talentos psicológicos? Essa é uma outra área controversa da pesquisa corrente, e provavelmente a verdade é, como freqüentemente ocorre, que havia um processo de co-evolução, no qual cada talento alimentava o outro. Plausivelmente, o próprio ato da comunicação verbal exige algum grau de avaliação de intencionalidade de terceira ordem: eu tenho de querer que você reconheça que estou tentando informá-lo, fazer com que você acredite naquilo que estou dizendo (Grice, 1957, 1969; Den- nett, 1978; mas ver também Sperber e Wilson, 1986). Mas, do mesmo jeito que o cuco implume, uma criança consegue avançar sem muitas pistas, sendo bem-sucedida em comunicação sem fazer nenhuma reflexão a respeito da estrutura subjacente a qualquer comunicação intencional, sem sequer reconhecer, de fato, que está se comunicando. Uma vez que começou a falar (com outras pessoas), você será banhado em palavras novas, algumas das quais mais ou menos entende; alguns desses objetos de percepção, como as palavras "fingir", "bravatear" e "tentar", ajudarão a chamar e focalizar a atenção para casos de fingimento, bravatas e tentativas, dando a você uma grande prática barata em psicologia popular. Ao mesmo tempo que alguns chimpanzés e alguns mamíferos podem também ser "psicólogos naturais", como Nicholas Humphrey (1978) os chamou, já que falta a eles a língua que jamais terão para comparar notas ou discutir casos com outros psicólogos naturais. A articulação da postura intencional na comunicaçãoverbal não apenas fortalece a sensibilidade, a discriminação e a versatilidade dos psicólogos populares individuais, mas também amplia e complica os fenômenos de psicologia popular de que eles estão se encarregando. Uma raposa pode ser esperta, mas uma pessoa que consegue lisonjeá-lo declarando que você é esperto como uma raposa tem, de longe, muito mais truques na manga que a raposa. A linguagem nos dá o poder de nos lembrarmos dê coisas que não estão presentes para os nossos sentidos, repisar assuntos que de outro modo seriam elusivos, e isso trouxe para o foco um mundo virtual de imaginação, povoado pelos agentes que tinham mais importância para nós, tanto os vivos como os ausentes e os mortos, que se foram, mas não estão esquecidos. Liberados da pressão corretiva de outros encontros concretos no mundo real, esses agentes virtuais ficaram livres para se desenvolver em nossas mentes, ampliando nossos anseios ou temores. A ausência faz com que o coração goste mais, ou - se o ausente era na realidade um tanto assustador - se sinta mais atemorizado. Isso ainda não leva nossos ancestrais à religião, mas os leva a ensaios persistentes - até obsessivos - e a elaborações de alguns de seus hábitos de pensamento. * * * Capítulo 4. Ao extrapolar retrospectivamente para a pré-história humana, com a ajuda do pensamento biológico, podemos conjecturar como surgiram as religiões populares sem qualquer plano consciente ou deliberado, do mesmo modo como emergiram as línguas, por processos interdependentes de evolução biológica e cultural. Na raiz da crença humana em deuses está um instinto pronto a disparar: a disposição de atribuir agência - crenças e desejos e outros estados mentais - a qualquer coisa complicada que se mova. *** Capítulo 5. Os alarmes falsos gerados pela nossa exagerada disposição de procurar agentes onde quer que a ação esteja são os elementos irritantes em torno dos quais crescem as pérolas da religião. Só as variantes melhores, mais amigáveis à mente, se propagam, atendendo - ou parecendo atender - a profundas necessidades psicológicas e físicas, e, depois, essas variantes são ainda mais aprimoradas pela poda incessante dos processos de seleção. 5. RELIGIÃO, OS PRIMEIROS DIAS 1. AGENTES DEMAIS: COMPETIÇÃO POR ESPAÇO PARA ENSAIO Posso repetir para mim mesma, de maneira lenta e tranqüila, uma lista de citações maravilhosas, geradas por mentes profundas - se eu conseguir me lembrar do raio de alguma delas. [Dorothy Parker] COISAS QUE parecem luxos úteis que dão a você uma vantagem em um mundo de ritmo acelerado acabam se tornando necessidades. Hoje, nos perguntamos como podíamos viver sem telefone, sem carteira de motorista, sem cartões de crédito, sem computadores. O que começou como um Bom Estratagema se tornou rapidamente uma necessidade prática da vida humana, à medida que nossos antepassados se tornaram cada vez mais sociais, cada vez mais lingüísticos. E, como já foi notado para casos mais simples do HADD, há a possibilidade de se ter algo de bom em demasia. A experiência freqüente da presença de mortos conhecidos como espíritos não é apenas o exagero da postura intencional nas vidas dos nossos ancestrais. A prática de atribuir intenções demais a coisas que se movem no ambiente é chamado de animismo, literalmente, dar uma alma (em latim, anima) ao que se move. As pessoas que amorosamente ficam adulando seus velhos automóveis, ou maldizem seus computadores estão exibindo vestígios fósseis de animismo. Provavelmente elas não levam esses atos verbais inteiramente a sério, mas estão apenas se comprazendo com algo que as faz se sentir melhor. O fato de que isso realmente tende a fazer com que se sintam melhor, e que aparentemente pessoas de diversas culturas se gratifiquem com isso, sugere quão profundamente está enraizado na biologia humana o impulso para tratar coisas - especialmente coisas frustrantes - como agentes dotados de crenças e desejos. Mas se nossos acessos de animismo hoje tendem a ser irônicos e amenos, houve uma época em que o desejo do rio de correr para o mar e a intenção benigna ou malévola das nuvens de chuva eram tomados tão ao pé da letra e tão seriamente que podiam se tornar uma questão de vida ou morte - por exemplo, para aquelas pobres almas que eram sacrificadas para apaziguar os desejos insaciáveis do deus da chuva. Formas simples daquilo a que podemos chamar de animismo prático discutivelmente não são completos enganos, mas jeitos extremamente úteis de se manter informado a respeito das tendências de coisas planejadas, vivas ou manufaturadas. O jardineiro que tenta descobrir o que suas flores e legumes preferem, ou engana um galho de corniso trazendo- o para dentro de casa, onde está quente, fazendo-o pensar que é primavera para que ele abra os botões, não tem de exagerar e matutar sobre o que suas petúnias estão pensando. Até mesmo sistemas físicos não planejados podem às vezes ser utilmente descritos em termos intencionais ou animis- tas: o rio não quer literalmente voltar para o oceano, mas a água busca seu próprio nível, como dizem, e o raio procura o melhor caminho para o solo. Não é de surpreender que a tentativa de explicar padrões observados no mundo tenha muitas vezes batido no animismo como uma boa - de fato antecipativa - aproximação de algum fenômeno subjacentè inimaginavelmente complexo. Mas algumas vezes a tática de buscar a perspectiva de uma postura intencional não dá em nada. Por mais que nossos ancestrais pudessem ter adorado prever o tempo descobrindo o que ele queria e que crenças o tempo teria a seu respeito, a coisa simplesmente não funcionou. No entanto, sem dúvida, muitas vezes pareceu funcionar. Algumas vezes, as danças da chuva eram recompensadas com chuva. Qual seria o efeito? Muitos anos atrás, o psicólogo behaviorista B. F. Skinner (1948) mostrou um impressionante efeito de "superstição em pombos que tinham sido postos em um esquema aleatório de reforço. De vez em quando, não importando o que o pombo estivesse fazendo, aparecia uma recompensa sob a forma de um clique e uma bolinha de ração. Logo os pombos postos nesse esquema aleatório estavam fazendo “danças elaboradas, sacudindo, torcendo e dobrando o pescoço”. É difícil não imaginar um monólogo no cérebro dessas aves: “Agora, vejamos: na última vez em que recebi a recompensa, eu tinha acabado de dar uma virada e dobrei o pescoço. Vamos tentar outra vez... Não, nada de recompensa. Talvez eu não tenha girado o suficiente... Nada. Talvez eu deva sacudir uma vez antes de girar e dobrar... SIMMM! Está bem, agora, o que foi que acabei de fazer?...”. É claro que você não precisa ter a linguagem para ser vulnerável a essas atraentes ilusões. O solilóquio dramatiza a dinâmica que produz o efeito, o qual não exige reflexão consciente, apenas reforço. Mas em uma espécie que realmente representa tanto ela própria como outros agentes a ela mesma, o efeito pode ser multiplicado. Se tal efeito comportamental espantosamente extravagante pode ser produzido em pombos, fazendo-os caminhar para uma armadilha de reforço aleatório, não fica difícil acreditar que efeitos semelhantes possam ser inculcados por algum acidente feliz nos nossos ancestrais, cujo amor intrínseco pela postura intencional tenderia a encorajá-los a acrescentar agentes invisíveis ou outros homúnculos para serem os titereiros por trás do fenômeno intrigante. Nuvens certamente não se parecem com agentes dotados de crenças e desejos, de modo que sem dúvida é natural supor que são na verdade coisas inertes e passivas manipuladas por agentes ocultos que parecem agentes: deuses da chuva, deuses da nuvem e coisas parecidas - apenas se pudéssemos vê-los. Essa idéia curiosamente paradoxal - alguma coisa invisível que parece com uma pessoa (tem cabeça, olhos, braços e pernas, talvez use um capacete especial) - é diferente de outras combinações incoerentes. Imagine a idéia de uma caixa que não tem espaço interior para pôr coisas dentro, ou um líquido que não é molhado. Para dizer cruamente, essas idéias não são interessanteso suficiente para serem enigmáticas durante muito tempo. Algumas coisas sem sentido prendem mais a atenção do que outras coisas sem sentido. Por quê? Apenas porque nossas lembranças não são indiferentes ao conteúdo daquilo que elas guardam. Achamos algumas coisas mais memoráveis que outras, e algumas coisas são tão interessantes que podem muito bem ser inesquecíveis, e ainda outras, como por exemplo a seqüência aleatória de palavras "voluntários treinador sem importar exercício no campo" (tiradas "aleatoriamente" por mim da primeira história de jornal em que pus as mãos agora mesmo), poderia ser lembrada por mais do que poucos segundos apenas se você as repetisse deliberadamente para si próprio dezenas de vezes ou inventasse alguma história interessante que de algum modo desse sentido a essas palavras exatamente nessa ordem. Hoje em dia temos penosa consciência de que nossa atenção é um artigo limitado com muitos competidores concorrendo para uma porção maior do que aquela a que têm direito. Esse excesso de informações, com publicidade nos bombardeando de todos os lados, mais uma multidão de outras distrações, não é novo; acabamos de nos conscientizar disso, agora que há milhares de pessoas especializadas em projetar novos atratores e mantenedores de atenção. Nós - e de fato todas as espécies animadas - sempre tivemos de possuir filtros e vieses embutidos em nosso sistema nervoso para filtrar do espetáculo em curso as coisas que valem a pena, e esses filtros favorecem determinados tipos de exceção ou anomalia. Pascal Boyer (2001) chama essas exceções de contra-intuitivas, mas o significado que ele dá é, em um sentido técnico, um tanto restrito: as anomalias contra-intuitivas são especialmente dignas de atenção e memoráveis se elas violarem apenas uma ou duas das suposições do default básico a respeito de uma categoria fundamental como pessoas, plantas ou instrumentos. Elaborações que não estejam prontamente passíveis de ser classificadas porque são sem sentido demais não se sustentam na competição pela atenção, e elaborações que são leves demais simplesmente não são suficientemente interessantes. Um machado invisível sem cabo e com uma cabeça esférica não passa de uma bobagem irritante, um machado feito de queijo é um tanto palpitante (há artistas conceituais que ganham bem a vida apresentando essas brincadeiras), mas um machado que fala - ah, agora temos algo que prende a atenção! Junte essas duas idéias - um viés hiperativo em busca de um agente e uma fraqueza por determinadas espécies de combinados memoráveis -, e você obtém um tipo de geringonça geradora de ficção. Toda vez que acontece alguma coisa intrigante, dispara um tipo de susto curioso, uma reação "Quem está aí?", que começa a remoer "hipóteses' de alguma espécie: "Talvez seja Sam, talvez seja um lobo, talvez seja um galho caindo, talvez seja... uma árvore que anda - ei, talvez seja uma árvore que anda!". Podemos supor que esse processo quase nunca gera qualquer coisa dotada de poder de permanência - milhões ou milhões de pequenos arroubos de fantasia que quase instantaneamente se evaporam para além da lembrança, até que, um dia, por acaso, uma ocorra exatamente no momento certo, com exatamente o tipo certo de energia, para ser ensaiado não uma vez e não duas, mas muitas vezes. Uma linhagem de idéias - a linhagem das árvores que andam -- nasce. Cada vez que a mente do iniciador é levada a rever a curiosa idéia, não deliberadamente, mas apenas à toa, a idéia fica um pouco mais forte - no sentido de que tem um pouco mais de probabilidade de ocorrer na mente do iniciador outra vez. E outra vez. Tem um tanto de poder auto-replicativo, um poder um pouco mais auto-replicativo do que as outras fantasias com que ela compete pelo tempo no cérebro. Ainda não é um meme, um item que foge à mente individual e se espalha pela cultura humana, mas é um bom protomeme: uma idéia ligeiramente obsessiva - ou seja, muitas vezes recorrente, muitas vezes ensaiada - como um pequeno cavalo-de-pau. (A evolução trata de processos que quase nunca acontecem. Cada nascimento em cada linhagem é um evento potencial de formação de uma espécie, mas esse processo de formação de espécie quase nunca acontece, não chega a uma vez em um milhão de nascimentos. A mutação no DNA quase nunca acontece - menos de uma vez em um trilhão de cópias -, mas a evolução depende dela. Tomemos o conjunto de acidentes infre- qüentes - coisas que quase nunca acontecem - e os classifiquemos em acidentes felizes, acidentes neutros e acidentes fatais; amplifiquemos os efeitos dos acidentes felizes - que acontecem automaticamente quando se tem replicação e competição -, e se tem a evolução.) Supostos memeticistas muitas vezes não se dão conta de que parte do ciclo da "vida" de um meme é a competição pari passu com outras idéias - não só outros memes, mas qualquer outra idéia a respeito da qual alguém possa pensar - dentro do cérebro hospedeiro. O ensaio, deliberado ou involuntário, é uma replicação. Podemos tentar tornar alguma coisa um meme - ou só uma lembrança - ensaiando-a deliberadamente (um número de telefone, uma regra a ser seguida); ou, se apenas deixarmos a "natureza seguir seu curso", as preferências inatas do nosso cérebro irão automaticamente remoer ensaios das coisas que lhes são agradáveis. Essa é, de fato, a fonte da memória episódica, nossa capacidade de lembrarmos de eventos na nossa vida. O que você tomou de café-da-manhã no dia do seu último aniversário? Provavelmente não vai se lembrar. O que usou no seu casamento? Provavelmente vai lembrar, porque você já repassou isso muitas vezes, antes, durante e depois do casamento. Ao contrário da memória do computador, que é um armazém com oportunidades iguais que consegue registrar prontamente seja lá o que for jogado dentro dele, a memória do cérebro humano é competitiva e contém preferências. Foi planejada por eras de evolução para lembrar alguns tipos de coisa mais prontamente que outras. Faz isso em parte por ensaio diferenciado, fixan- do-se no que é vital e tendendo a descartar o que for trivial depois de uma única passagem. Funciona bastante bem, ajustando-se em características que, por acaso, se alinharam com aquilo que tendeu a ser vital no passado. Bom conselho a um meme potencial: se você quiser muitos ensaios (repli- cações), tente parecer importantel A memória humana favorece combinações vitais, e também assim, presumivelmente, funciona a memória do cérebro de todos os outros animais. A memória animal provavelmente tem sido relativamente impermeável à fantasia, no entanto, por um motivo simples: por falta de linguagem, os cérebros animais não tiveram um meio de se inundar com uma explosão de combinações não encontradas no ambiente natural. Como um macaco ansioso vai elaborar a combinação contra-intuitiva de uma árvore que anda ou uma banana invisível - idéias que até cativariam a mente de um macaco, se pudessem ser apresentadas a ele? E sabemos nós que alguma coisa do tipo desse processo de geração de fantasia vem acontecendo na nossa espécie (e só na nossa espécie) há milhares de anos? Não, mas uma investigação maior é uma possibilidade séria. Usando apenas materiais que teriam sido organizados pela evolução para outros objetivos, essa hipótese poderia explicar a imaginação notavelmente fértil que deve, de algum modo, ser responsável pela coleção de criaturas e demônios míticos no mundo. Uma vez que os monstros propriamente ditos nunca existiram, eles tiveram de ser "inventados", ou deliberada ou inadvertidamente (do jeito que as linguagens foram inventadas). Eles são criações dispendiosas, e a P&D exigida para a tarefa teve de ser gerada por alguma coisa que pudesse se pagar. Deixei a hipótese bastante não especificada, por hora, porém formas mais restritas dela estão disponíveis e têm a grande vantagem de gerar conseqüências passíveis de ser testadas. Podemos começar varrendo a mitologia mundial em busca de modelos que seriam previstos por algumas versões da hipótese, mas não por outras. E não temos denos restringir à espécie humana. Experiências ao longo das linhas de provocação de superstição nos pombos de Skinner podem começar a desvendar as preferências e linhas de falhas nos mecanismos de memória dos símios, do mesmo modo como as experiências de Niko Tinbergen com gaivotas (1948, 1959) mostraram admiravelmente as preferências da percepção desses pássaros. A gaivota fêmea adulta tem uma mancha laranja no bico, a qual os pintinhos bicam instintivamente, para estimular a fêmea a regurgitar e alimentá-los. Tinbergen mostrou que os filhotes bicavam ainda mais prontamente os modelos exagerados da mancha laranja em papelão, nos chamados estímulos swpernormais. Pascal Boyer (2001) observa que, ao longo das eras, os seres humanos descobriram e exploraram seus próprios estímulos supernormais: Não existe sociedade humana sem algum tipo de tradição musical. Embora as tradições sejam muito diferentes, alguns princípios podem ser encontrados em qualquer lugar. Por exemplo, sons musicais são sempre mais próximos dos sons puros que do barulho [...]. Para exagerar um pouco, o que se tem com os sons musicais são supervogais (as freqüências puras, ao contrário das misturadas, que definem as vogais comuns) e consoantes puras (produzidas pelos instrumentos rítmicos e o ataque da maior parte dos instrumentos). Essas propriedades tornam a música uma forma intensificada de experiência sonora, da qual o córtex recebe doses purificadas, e portanto intensas, daquilo que normalmente o torna ativo [...] Esse fenômeno não é exclusivo da música. Em toda parte os seres humanos enchem seus ambientes de artefatos que superestimulam seu córtex visual, por exemplo, fornecendo cor pura saturada em vez dos monótonos marrons e verdes de seus ambientes familiares [...]. Do mesmo modo, nosso sistema visual é sensível a simetrias nos objetos. A simetria bilateral, em particular, é muito importante; quando dois lados de um animal ou de uma pessoa parecem iguais, isso significa que eles estão de frente para você, uma faceta importante de interação com pessoas, mas também com presa e predadores. Mais uma vez, você não consegue encontrar um grupo humano em que as pessoas não produzam instrumentos visuais com tais arranjos simétricos, da técnica mais simples de maquiagem ou penteados a padrões têxteis e decoração de interiores, [pp. 132- 133] Por que outras espécies não têm arte? Mais uma vez, a resposta que se insinua - o que não significa que está provada, mas apenas que pode muito bem ser passível de ser provada - é que, faltando a linguagem, faltam a elas os instrumentos para criar combinações de estímulos substitutos, e, portanto, falta a eles a perspectiva que permite a exploração da análise combinatória de seus próprios sentidos.1 Através do uso de observação perspicaz e tentativas de acerto e erro, Tinbergen arquitetou, de modo inteligente, os estímulos supernormais que atraíram seus pássãros (e outros animais) para uma multidão de comportamentos bizarros. Não há dúvida de que às vezes os animais se deixam prender inadvertidamente ao descobrirem um estímulo supernatural na natureza e deixando que esse estímulo os afete, mas o que fariam eles depois? Repetir, se tiver sido bom, mas a geração da diversidade da qual depende a verdadeira exploração do projeto provavelmente não seria possível para eles. Para resumir a história até agora: as memoráveis ninfas, fadas, duendes e demônios que povoam as mitologias de todos os povos são filhos da imaginação de um hábito hiperativo de gerar atuação sempre que alguma coisa nos intrigue ou amedronte. Isso gera, sem pensar, uma vasta superpopulação de idéias atuantes, a maior parte das quais é boba demais para manter nossa atenção por um instante; apenas algumas poucas bem planejadas conseguem atravessar o torneio de ensaios, modificando-se e melhorando à medida que avançam. As que conseguem ser partilhadas e lembradas são os vencedores "envenenados" de bilhões de competições por tempo de ensaio no cérebro de nossos ancestrais. E claro que essa não é uma idéia nova, apenas um esclarecimento e uma extensão de uma idéia que tem estado por aí há gerações. Como o próprio Darwin conjecturou: [...] a crença nas ações invisíveis ou espirituais [...] parece ser quase universal [...] não é difícil compreender como surgiu. Assim que as faculdades importantes da imaginação, espanto e curiosidade, junto com algum poder de raciocínio, ficaram parcialmente desenvolvidas, o homem teria naturalmente ansiado por entender o que estava acontecendo ao seu redor, e especulou vagamente sobre sua própria existência. [1886, p. 65] Até aqui tudo bem, mas o que explicamos foi superstição, não religião. Caçar elfos no jardim ou o bicho-papão embaixo de sua cama não é (ainda) ter uma religião. O que está faltando? Para começar, crença! Porque, embora Darwin mencione crença em entidades espirituais, ainda não fornecemos uma explicação que afirme nada assim tão forte. Nada ainda foi dito a respeito de ter de acreditar na idéia cavalo-de-pau que continua rodando pela mente; pode ser um palpite, uma idéia ou até uma pequena parte obsessivamente desacreditada de paranóia - ou apenas uma porção cativante de uma história. Ninguém jamais acreditou na Gata Borralheira ou no Cha- peuzinho Vermelho, mas suas histórias de fadas têm sido transmitidas bastante fielmente (com mutações) por muitas gerações. Diversas histórias de fadas compensam o fato de não serem histórias verdadeiras tendo uma moral, o que dá a elas um valor aparente - aos que contam e aos que escutam -, que compensa o fato de elas não serem informação sobre o vasto mundo. Outras claramente não apresentam uma moral - o que será que "Cachinhos Dourados" ensina a nossos filhos: não invadir a casa de estranhos? - e devem persistir no torneio de transmissão por motivos menos evidentes. Como é comum nas circunstâncias evolutivas, uma rampa gradual de estados de espírito intermediários está ali para ser atravessada, da dúvida atemorizante (será que realmente há bruxas más nas florestas?) e fascinação neutra (um tapete voador - imagine!) à aborrecida incerteza (unicórnios?... bem, eu nunca vi nenhum) e à robusta convicção (Satã é tão real quanto aquele cavalo ali). O fascínio é suficiente para dar força a ensaio e replicação. Quase todo mundo tem uma boa cópia forte da idéia de unicórnio, embora poucas pessoas acreditem neles; mas dificilmente alguém tem a idéia de um pudu, que tem a vantagem distinta de ser real (pode verificar). Há muito mais na religião do que um fascínio dotado de entidades contra-intuitivas do gênero de ações. 2. DEUS COMO PARTE INTERESSADA Por que os deuses acima de mim Que devem estar sabendo Têm-me em tão pouca conta Eles permitem que você parta... [Cole Porter, "Every time we say goodbye"] A veneração dos ancestrais deve ser uma idéia atraente para aqueles que estão prestes a se tornar ancestrais. [Steven Pinker, Corno a mente funciona] Enquanto outras espécies fazem uso limitado de suas posturas intencionais - para prever os movimentos de predadores e presa, mais um pouco de intimidação e blefe -, nós, seres humanos, somos obcecados a respeito de nossos relacionamentos pessoais com os outros: nos preocupamos com nossa reputação, nossas promessas e obrigações não cumpridas, revisando nossos afetos e fidelidades. Ao contrário de outras espécies, que devem se preocupar o tempo todo com predadores sorrateiros e fontes de alimentos em declínio, nós, seres humanos, temos trocado em larga escala essas preocupações insistentes por outras. O preço que nossa espécie pagou pela segurança de viver em grandes grupos de comunicadores em interação com planos diferentes é ter de se manter a par desses planos complexos e mudar os relacionamentos. Em quem posso confiar? Quem confia em mim? Quem são meus rivais e quem são meus amigos? Com quem tenho dívidas e que dívidas devo esquecer ou cobrar? O mundo humano está repleto de informações estratégicas como essas, para usar o termo de Pascal Boyer, e o mais importante a esse respeito (como em umjogo de cartas) é isso: "Na interação social, supomos que o acesso de outras pessoas a informações estratégicas não é nem perfeito nem automático" (2001, p. 155). Será que ela sabe que eu sei que ela quer largar o marido? Será que alguém sabe que roubei um porco? Todos os enredos de todas as grandes sagas e tragédias e romances, mas também todas as comédias e livros de histórias em quadrinhos giram em torno de tensões e complicações que surgem porque os agentes no mundo não partilham todos da mesma informação estratégica. Como as pessoas lidam com toda essa complexidade?2 Algumas vezes, quando estão aprendendo um novo jogo de cartas, elas são aconselhadas por seus professores a abrir todas as cartas na mesa para que todos possam ver o que os outros têm. Esse é um excelente modo de ensinar as táticas do jogo. Dá uma muleta temporária para a imaginação - você consegue na realidade ver o que cada pessoa normalmente estaria escondendo, de modo que você consegue basear seu raciocínio nos fatos. Você não tem de se manter informado a respeito delas na sua cabeça, já que você pode apenas olhar para a mesa sempre que precisar de um lembrete. Isso ajuda a desenvolver a aptidão de visualizar onde as cartas deverão estar quando se encontrarem escondidas. O que funciona na mesa de cartas não pode ser feito na vida real. Não podemos obrigar as pessoas a divulgarem todos os seus segredos durante uma seção de prática de vida, mas podemos conseguir práticas "fora da linha" contando e escutando histórias narradas por agentes que vêem todas as cartas dos personagens fictícios ou históricos. E se realmente houver agentes que tenham acesso a todas as informações estratégicas! Que idéia! É bem fácil ver que esse ser - nos termos de Boyer, um "agente com acesso pleno" - seria uma elaboração para prender a atenção, mas, fora isso, para que serviria? Por que seria mais importante para as pessoas que qualquer outra fantasia? Bem, pode ajudar as pessoas a simplificarem o processo de pensar para descobrir o que fazer em seguida. Um levantamento das religiões do mundo mostra que quase sempre os agentes de acesso pleno acabam sendo os ancestrais, que se foram mas não estão esquecidos. Do mesmo modo que a lembrança do pai é polida e elaborada em muitas histórias, contadas repetidas vezes para filhos e os netos dos netos, seu espírito pode adquirir muitas propriedades exóticas, mas no centro da imagem dele está seu virtuosismo no departamento de informação estratégica. Lembra como sua mãe e seu pai muitas vezes pareciam saber exatamente o que você estava pensando, exatamente que malfeito- ria você tentava esconder? Os ancestrais são assim, só que mais: você não pode se esconder deles, nem mesmo seus pensamentos secretos, e mais ninguém tampouco pode. Agora você pode reenquadrar sua perplexidade em relação ao que fazer em seguida: o que os meus ancestrais gostariam que eu fizesse na situação corrente? Você pode não conseguir dizer o que esses agentes, vividamente imaginados, querem que você faça, mas, seja lá o que for, é o que você deveria fazer. Por que, então, nós, seres humanos, focalizamos de modo tão persistente nossas fantasias nos nossos ancestrais? Nietzsche, Freud e muitos outros teóricos da cultura articularam conjecturas elaboradas sobre os motivos e as lembranças subliminares que surgiram das profundas lutas míticas no nosso passado humano, e pode haver muito ouro a ser refinado nesse veio de especulações, uma vez que o reexaminemos de olho em hipóteses testáveis da psicologia evolutiva. Mas, enquanto isso, podemos identificar com maior confiança a disposição mental básica que estabelece esse viés, já que ele é consideravelmente mais antigo que nossa espécie. Os mamíferos e as aves, ao contrário da maior parte dos outros animais, muitas vezes dedicam considerável atenção paterna a seus filhotes, mas existe uma ampla variação nisso: espécies nidífugas são aquelas nas quais os filhotes já caem no chão correndo, como se diz, enquanto as espécies nidícolas têm filhotes que exigem cuidado e treinamento prolongado dos pais. Esse período de treinamento propicia uma multidão de oportunidades para a transmissão de informações dos pais para os filhos, que contornam inteiramente os genes. Os biólogos são muitas vezes acusados de genecentrismo - achando que tudo na biologia é explicado pela ação dos genes. E alguns biólogos realmente exageram em seu fascínio pelos genes. Deveria ser lembrado a eles que a Mãe Natureza não é "genocêntrica"! Ou seja, o próprio processo da seleção natural não exige que todas as informações valiosas transcorram "pela linha germinal" (via genes). Ao contrário, se o fardo puder ser assumido de modo confiável por continuidades no mundo exterior, tudo bem para a Mãe Natureza - retira uma carga do genoma. Pense nas várias continuidades nas quais a seleção natural confia: as fornecidas pelas leis fundamentais da física (gravidade etc.) e as fornecidas pelas estabilidades de longo prazo no ambiente, a respeito das quais se pode dizer que "espera-se" que perseverem (salinidade no oceano, composição da atmosfera, cores de coisas que podem ser usadas como disparadores etc.). Dizer que a seleção natural confia nessas regularidades significa exatamente isto: elas geram mecanismos que são afinados para funcionar bem em ambientes que exibem essas regularidades. O desenho desses mecanismos pressupõe regularidades do mesmo modo que o projeto de uma sonda para pesquisar Marte pressupõe a gravidade do planeta, a solidez e a faixa de temperatura na sua superfície, e daí por diante. (Ela não é projetada para operar nos Evergla- des, por exemplo.) E aí há as regularidades que podem ser transmitidas de geração a geração por aprendizado social. Essas são um caso especial de regularidades ambientais confiáveis; elas assumem ainda mais importância por serem, elas mesmas, submetidas a seleção natural, direta e indiretamente. Duas supervias de informações foram melhoradas e aumentadas ao longo das eras. Os caminhos genéticos da informação têm, eles próprios, sido submetidos a aprimoramentos incessantes ao longo de bilhões de anos, com a otimização do desenho do cromossomo, a invenção e a melhoria das enzimas leitoras e das provas, e daí por diante, com o efeito de se ter alcançado a transmissão de informações genéticas em alta fidelidade, em alta banda larga. O caminho instrucional de pai para filho também foi otimizado pelo processo recursivo ou iterativo de reforço. Como Avital e Jablonka (2000) observam, "a evolução da transmissão de mecanismos de transmissão é de importância central para a evolução do aprendizado e do comportamento" (p. 132). Entre as adaptações para melhorar a banda larga e a fidelidade da transmissão pai-filho está a impressão, na qual o recém-nascido tem uma necessidade instintiva, poderosa e já acionada de se aproximar e ficar próximo e dedicar-se à primeira coisa grande que se mova que ele veja. Nos mamíferos, o impulso para encontrar e se agarrar ao mamilo está embutido nos genes e tem o efeito colateral, oportunamente explorado por maiores adaptações, de manter o filhote onde eles possam observar a mãe enquanto não estão se alimentando. Os bebês humanos não são exceção às regras mamíferas. Enquanto isso, indo na direção contrária, os pais foram geneticamente projetados para cuidar dos bebês. Enquanto os filhotes das gaivo- tas são irresistivelmente atraídos para uma mancha laranja, os seres humanos são irresistivelmente cativados pelas proporções especiais de uma "carinha de bebê". Ela provoca a reação "Oh, ele não é uma gracinhal" no rabugento mais empedernido. Como Konrad Lorenz (1950) e outros argumentaram, a correlação entre a aparência facial de um recém-nascido e a reação de cuidados de um adulto não é acidental. Não que as carinhas de bebês sejam de algum modo intrinsicamente encantadoras (que diabo significaria isso?), mas que a evolução acertou nas proporções faciais como sinal para disparar reações nos pais, e isso foi aprimorado e intensificado ao longo das eras em muitas linhagens.Não amamos os bebês e os cachor- rinhos porque eles são uma gracinha. E o contrário: nós os achamos uma gracinha porque a evolução nos projetou para amar coisas que se parecem com eles. A correlação é tão forte que medidas de fósseis de dinossauros recém-nascidos têm sido usadas para apoiar a hipótese radical de que algumas espécies de dinossauros eram nidícolas (Hopson, 1977; Horner, 1984). A clássica análise de Stephen Jay Gould (1980) da gradual "juvenilização", ao longo dos anos, das feições do Mickey Mouse propiciam uma elegante demonstração do modo como a evolução cultural pode ser comparada à evolução genética, acertando naquilo que os seres humanos instintivamente preferem. Ainda mais potente que o viés nos adultos para reagir de modo paren- tal à prole com cara de bebê é o viés nessa prole para reagir com obediência à injunção parental - traço observável em filhotes de ursos, além de bebês humanos. A base racional descomprometida não está longe: está no interesse genético dos pais (mas não necessariamente em outros da mesma espécie!) de informar - não informar erroneamente - sua prole, de modo que é eficiente (e relativamente seguro) confiar nos próprios pais. (Stere- lny, 2003, tem observações especialmente perspicazes sobre as trocas entre confiança e suspeita na competição evolutiva da cognição.) Uma vez estabelecida a supervia de informações entre pai e filho pela evolução genética, ela está pronta para ser usada - ou abusada - por quaisquer agentes dotados de seus próprios planos, ou por quaisquer memes que por acaso tenham feições que se beneficiem das preferências introduzidas na via.3 Os próprios pais - ou alguém que seja difícil distinguir dos próprios pais - têm alguma coisa que se aproxima de um canal direto exclusivo para a aceitação, não tão potente quanto a sugestão hipnótica, mas às vezes próxima a ela. Há muitos anos, minha filha de cinco anos, tentando imitar o desempenho da ginasta Nadia Comaneci nas barras horizontais, tropeçou na banqueta do piano e dolorosamente esmagou a ponta de dois dedos. Como eu acalmaria essa criança aterrorizada de modo a poder conduzi-la em segurança até a sala de emergência? A inspiração bateu: aproximei minha própria mão da mãozinha latejante dela e severamente ordenei: "Olhe, Andréa! Vou ensinar-lhe um segredo! Você pode empurrar a dor para a minha mão com a sua mente. Vamos, empurrei Empurre!". Ela tentou - e funcionou! Ela tinha "empurrado a dor" para a mão do papai. O alívio (e o fascínio) foram instantâneos. O efeito só durou poucos minutos, mas com algumas outras administrações de analgesia hipnótica improvisada pelo caminho, levei-a à sala de emergência onde ela pôde receber os outros tratamentos de que precisava. (Tente com seu filho, se surgir a ocasião. Você poderá ter a mesma sorte.) Eu estava explorando os instintos dela - embora a base racional só me tivesse ocorrido anos depois, quando estava refletindo sobre o fato. (Isso levanta uma interessante questão empírica: será que minha tentativa de hipnose instantânea teria funcionado com tanta eficácia em outra criança de cinco anos que não tivesse imprimido em mim uma figura de autoridade? E se há impressão envolvida, que idade uma criança deverá ter para imprimir um pai com tanta eficácia? Nossa filha tinha três meses de idade quando a adotamos.) "A seleção natural constrói o cérebro das crianças com uma tendência a acreditar seja lá no que quer que seus pais e mais velhos da tribo digam a elas" (Dawkins, 2004a, p. 12). Não é de surpreender, então, que se encontrem líderes religiosos em qualquer parte do mundo martelando na autoridade extra dada a eles pela adoção do título "Pai" - mas isso é adiantar nossa história. Ainda estamos no ponto em que, alega Boyer, nossos ancestrais inconscientemente convocavam fantasias a respeito dos ancestrais deles para aliviar algumas de suas perplexidades a respeito do que fazer em seguida. Uma característica importante da hipótese de Boyer é que esses imaginados agentes com acesso pleno em geral não são considerados oniscientes; se você perder sua faca, não supõe automaticamente que eles saberão onde ela está, a não ser que alguém a tenha roubado de você, ou que você a tenha deixado cair em um lugar incriminador durante algum encontro - ou seja, a não ser que seja uma informação estratégica. E os ancestrais conhecem todas as informações estratégicas porque estão interessados nelas. O que você e seus parentes fazem é de interesse deles pelo mesmo motivo que é de interesse de seus pais, e pelo mesmo motivo que é de seu interesse o que seus filhos fazem e como eles são percebidos na comunidade. A sugestão de Boyer é que a idéia de onisciência - um deus que sabe absolutamente tudo a respeito de tudo, incluindo onde estão as chaves do seu carro, o maior número primo menor que um quadrilhão, e o número de grãos de areia naquela praia - consiste em um vinco posterior, um pouco de sofisticação ou arrumação intelectual adotada muito mais recentemente pelos teólogos. Existe alguma prova experimental em apoio a essa hipótese. As pessoas aprendem desde crianças, e portanto vão admitir, que Deus sabe tudo, mas elas não confiam nisso ao raciocinar sem constrangimento a respeito de Deus. A idéia que está na raiz, a que as pessoas realmente usam quando não estão preocupadas com "correção teológica" (Barrett, 2000), é que os ancestrais ou os deuses sabem as coisas mais importantes: os anseios e planos secretos, e as preocupações e os sentimentos de culpa. Deus sabe onde todos os corpos estão enterrados, como se diz. 3 . FAZENDO COM QUE OS DEUSES FALEM CONOSCO Não há nada mais difícil, , portanto mais precioso, do que ser capaz de decidir. [Napoleão Bonaparte] Mas de que nos servem os conhecimentos dos deuses se não os conseguimos obter deles? Como podemos nos comunicar com os deuses? Nossos ancestrais (enquanto estavam vivos!) tropeçaram em uma solução extremamente engenhosa: adivinhação.*Nós todos sabemos como é difícil tomar as principais decisões na vida: devo permanecer firme ou admitir minha transgressão, devo mudar ou continuar na minha posição atual, devo ir para a guerra ou não, devo seguir meu coração ou minha cabeça? Ainda não descobrimos nenhum jeito sistemático satisfatório de decidir sobre essas perguntas. Qualquer coisa que possa aliviar o fardo de calcular como resolver essas questões difíceis tende a ser uma idéia atraente. Pense em jogar uma moeda para o alto, por exemplo. Por que fazemos isso? Para evitar a obrigação de encontrar uma razão para escolher A em vez de B. Gostamos de ter razões para o que fazemos, mas algumas vezes não conseguimos pensar em nada suficientemente persuasivo, e sabemos que temos de decidir logo, então elaboramos um pequeno artifício, uma coisa externa que tomará a decisão em nosso lugar. Mas se a decisão envolver algo grave, como ir ou não para a guerra, se casar, confessar, cara ou coroa seria, como direi, muito irreverente. Nesse caso, a escolha sem um bom motivo seria obviamente um sinal de incompetência. Além disso, se a decisão for realmente importante, depois de a moeda ter caído você terá de enfrentar a escolha seguinte: vai honrar seu compromisso recém-adotado, vai cumprir o resultado do cara ou coroa, ou deve reconsiderar? Diante dessas dificuldades, reconhecemos a necessidade de algum tipo de tratamento mais forte que jogar uma moeda. Alguma coisa mais cerimoniosa, mais impressionante, como a adivinhação, que não apenas nos diz o que fazer, mas dá um motivo (se você espiar do modo certo e usar sua imaginação). Os estudiosos revelaram uma profusão comicamente variegada de modos antigos de delegar decisões importantes a exterioridades incontroláveis. Em vez de jogar uma moeda para o alto, você pode jogar flechas (belomancia), bastões (rabdo- mancia), ossos ou cartas (sortilégios), e, em vez de olhar para folhas de chá (tasseografia), você pode examinar o fígado de animais sacrificados (hepa- toscopia) ou outras entranhas (haruspicia), ou cera derretida despejada em água (ceroscopia). Ainda há amoleosofia (adivinhação por manchas), miomancia (adivinhação pelo comportamento de roedores), nefomancia (adivinhação pelas nuvens) e, é claro, os velhos favoritos, numerologia e astrologia, entre dezenas de outros.4 Um dos argumentos mais plausíveis elaborado por Julian Jaynes em seu livro brilhante, mas evasivo e pouco confiável, The Origins of Cons- ciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind (1976), é o de que essa tumultuosa explosão de diferentes maneiras de jogar a responsabilidade para um dispositivo de decisão externo foi uma manifestação das dificuldades crescentes do ser humano com o autocontrole, à medida que os grupos humanos ficaram maiores e mais complicados (capítulo 4, "A change of mind in Mesopotâmia", pp. 223-254). E como Palmer e Steadman observaram mais recentemente, "o efeito mais importante da adivinhação é que ela reduz a responsabilidade na tomada de decisão, e portanto reduz a acri- mônia que possa resultar de más decisões" (2004, p. 145). Os fqndamentos generalizados são bastante evidentes: se você vai transferir a responsabilidade, transfira-a para algo que não possa fugir à responsabilidade, por sua vez, e que possa ser considerado responsável se as coisas não derem certo. E como sempre acontece com as adaptações, você não tem de compreender os motivos fundamentais para se beneficiar deles. A adivinhação - o que Jaynes chama de "métodos exopsíquicos de pensamento ou tomada de decisão" (p. 245) - poderia ter crescido em popularidade simplesmente porque aqueles que por acaso a faziam gostaram dos resultados o suficiente para repeti-la, e, outra vez, os outros começaram a copiá-la, e ela se tornou a coisa a ser feita mesmo que ninguém soubesse realmente por quê. Jaynes notou (p. 240) que a própria idéia de aleatoriedade e sorte tem uma origem bastante recente: nos tempos iniciais, não havia meios nem mesmo para suspeitar que alguns eventos fossem inteiramente aleatórios; a suposição era de que tudo tinha um significado, só se precisava saber qual. A opção deliberada por uma opção sem sentido apenas para se fazer uma escolha qualquer para poder seguir com a vida provavelmente é uma sofisticação muito posterior, embora seja o motivo fundamental para explicar por que ela é mesmo útil às pessoas. Na ausência dessa sofisticação, era importante acreditar que alguém, em algum lugar, que sabe o que é certo, está lhe dizendo. Como a pluma mágica do Dumbo, algumas muletas para a alma funcionam apenas se você acreditar que elas funcionam.5 Mas o que significa dizer que tal método funciona? Apenas que ele realmente ajuda as pessoas a pensarem a respeito de seus planejamentos estratégicos e então adotar decisões a tempo - mesmo que as decisões em si não tenham qualquer informação melhor vinda do processo. Isso não é pouco. De fato, pode ser um tremendo empurrão sob diversas circunstâncias. Suponha que pessoas enfrentando problemas difíceis em geral tenham todas as informações de que precisam para tomar decisões bem fundamentadas, mas não se dão conta de que dispõem delas, ou simplesmente não confiam em seu julgamento como deveriam. Tudo o que precisam para sair fortalecidos da confusão e partir para a ação resoluta é... uma pequena ajuda por parte de seus amigos, seus ancestrais imaginados que pairam invisíveis por perto e dizem o que fazer. (Esse trunfo psicológico seria prejudicado pelos céticos que desdenham a integridade da adivinhação, é claro, e talvez esse reconhecimento - mesmo quando subliminar e inarticulado - tenha sempre motivado hostilidade em relação aos céticos. Psiu. Não quebre o encanto; essas pessoas precisam dessa muleta para que funcionem com eficiência.) Mesmo que as pessoas em geral não sejam capazes de tomar boas decisões baseadas nas informações de que dispõem, pode parecer a elas que a adivinhação as ajuda a pensar a respeito das situações difíceis, e isso pode propiciar a motivação para se aterem à prática. Por motivos que não conseguem avaliar, a adivinhação fornece alívio e faz com que se sintam melhor - assim como o tabaco. E observe que nada disso é transmissão genética. Estamos falando da prática da adivinhação transmitida culturalmente, e não de um instinto. Não temos de estabelecer agora a questão empírica de saber se os memes da adivinhação são memes mutualistas, que realmente fortalecem a aptidão de seus hospedeiros, ou memes parasitas, que é melhor evitar. Seria bom obter uma resposta baseada em provas para essa questão, mas, por hora, estou interessado na pergunta. Note também que isso deixa inteiramente aberta a possibilidade de que a adivinhação (sob circunstâncias específicas, a serem descobertas e confirmadas) seja um meme mutualista, porque é ela verdadeira - porque existe um Deus que sabe o que está dentro do coração de todos e que em ocasiões especiais diz às pessoas o que elas devem fazer. Afinal, o motivo pelo qual a água é considerada essencial à vida, em todas as culturas humanas, é que ela é essencial à vida. Por agora, no entanto, insisto apenas que a adivinhação, que aparece em todos os lugares, em todas as culturas humanas (inclusive, é claro, entre os que buscam os astrólogos e numerólogos que ainda habitam nossa cultura ocidental high-tech), poderia ser entendida como fenômeno natural, que paga a si próprio na moeda biológica da replicação, sendo ou não fonte real de informação confiável, estratégica ou não. 4 . XAMÃS COMO HIPNOTIZADORES Qualquer pessoa que vá a um psiquiatra deveria ter a cabeça examinada. [Samuel Goldwyn] A adivinhação é um gênero de ritual encontrado no mundo todo; os rituais de cura conduzidos por xamãs locais (ou "curandeiros") são outro. Como apareceu? Em Armas, germes e aço (1997), Jared Diamond mostrou que, em uma primeira aproximação, em todas as culturas de todos os continentes, a pesquisa humana ao longo dos séculos descobriu todas as plantas e os animais locais comestíveis, incluindo muitas que exigem preparação elaborada para torná-las não venenosas. Além disso, domesticaram as espécies passíveis de domesticação. Tivemos o tempo, a inteligência e a curiosidade para realizar uma pesquisa praticamente exaustiva das possibilidades - algo que agora pode ser provado por métodos de alta tecnologia de análise genética de espécies domesticadas e seus parentes silvestres mais próximos. E razoável supor, portanto, que deveríamos também ter feito um excelente trabalho em descobrir a maior parte, se não todas, as ervas medicinais localmente disponíveis, mesmo aquelas que exigem refinamento e preparação elaborados. Esses procedimentos de pesquisa se mostraram tão poderosos e confiáveis que as companhias farmacêuticas têm, nos últimos anos, investido em pesquisa antropológica, adquirindo energicamente - por roubo, em alguns casos - os frutos dessa P&D "primitiva feita pelas populações indígenas em todas as florestas tropicais e ilhas remotas. Tal apropriação ávida dos "direitos de propriedade intelectual e "segredos comerciais' de povos economicamente ingênuos é, não importa quão deplorável, um excelente exemplo do raciocínio cui bono? da biologia evolutiva. P&D é cara e demorada; qualquer informação que tenha resistido à prova do tempo, replicando-se ao longo das eras, deve ter se pagado de algum modo, então, provavelmente, vale a pena ser plagiado! (Cui bono? Pode se ter pago ajudando uma longa série de charlatões a enganarem seus clientes, de modo que não devemos presumir que o pagamento fosse um benefício para todas as partes.) Não intriga nem surpreende que as pessoas tomem ervas para aliviar seus sintomas ou até curar suas doenças, mas para quê todos os rituais que acompanham (e às vezes horrorizam) esse ato? O antropólogo James McClenon (2002) examinou os modelos nos rituais dos curandeiros pelo mundo todo e acha que eles apoiam fortemente a hipótese de que o que as pessoas descobriram, repetidamente, é o efeito placebo - mais especificamente, o poder do hipnotismo, muitas vezes ajudado pela ingestão ou inalação de alucinógenos ou outras substâncias que alteram o estado mental (vertambém Shumaker, 1990). Os rituais de cura, argumenta McClenon, são onipresentes porque eles realmente funcionam - não com perfeição, é claro, mas muito melhor que o sistema médico ocidental em geral está disposto a admitir. De fato, há uma convergência: as doenças que as pessoas vão - e pagam - ao xamã para aliviar são aquelas particularmente hospitaleiras ao tratamento com efeito placebo: estresse psicológico e os sintomas dele decorrente, além da provação do parto, para mencionar talvez o caso mais interessante. O parto, no Homo sapiens, é um evento particularmente estressan- te, e é claro que o dia em que ele irá ocorrer- ao contrário dos traumas de acidentes e de hostilidade - pode ser previsto com bastante exatidão, fazendo do parto uma ocasião ideal para cerimônias elaboradas que exigem um tempo de preparação considerável. Como as taxas de mortalidade infantil e materna no parto eram presumivelmente tão altas nos dias pré- tecnológicos quanto o são agora em culturas não-tecnológicas, houve bastante espaço para uma forte pressão seletiva em favor da co- evolução de qualquer tratamento (transmitido culturalmente) e suscetibilidade ao tratamento (transmitido geneticamente) que pudesse melhorar as chances. Do mesmo modo que a tolerância à lactose se desenvolveu em povos que tinham a cultura de pastoreio, a possibilidade de ser hipnotizado pode ter evoluído em povos que tinham a cultura de rituais de cura. A minha hipótese é de que os rituais xamanísticos constituem induções hipnóticas, que as representações xamanísticas propiciam a sugestão, que as reações dos clientes são equivalentes às reações produzidas por hipnose, e que as reações ao tratamento xamanístico são correlacionadas com a propensão do cliente à hipnose. [McClenon, 2002, p. 79] Essas hipóteses são evidentemente testáveis, e, argumenta McClenon, elas propiciam fontes para algumas das características (rituais e crenças) a serem encontradas em quase toda parte nas religiões. É interessante, mas existe uma ampla variação na propensão à hipnose, sendo que cerca de 15% das populações humanas mostram forte propensão à hipnose, e aparentemente existe um componente genético que não foi ainda bem estudado (que eu saiba). Os xamãs tendem a aparecer em famílias, de acordo com uma boa quantidade de provas antropológicas, mas isso poderia, é claro, ser atribuído inteiramente à transmissão vertical cultural (dos memes xamanís- ticos de pai para filho). Mas por que os seres humanos seriam suscetíveis ao efeito placebo, para começar? Essa é uma adaptação exclusivamente humana (que depende da linguagem e da cultura), ou há efeitos relacionados discerníveis em outras espécies? Esse é um tema de pesquisa e controvérsia atuais. Uma das hipóteses mais engenhosas em discussão é a hipótese de "gerenciamento de recursos econômicos" de Nicholas Humphrey (2002). O corpo tem muitos recursos para curar suas próprias doenças: dor para desencorajar atividade que possa piorar um ferimento, febres para combater infecção, vômitos para livrar o sistema digestivo de toxinas, e respostas imunológi- cas, para mencionar os mais potentes. Todos esses são eficazes, embora custosos; o uso exagerado, ou prematuro, pode de fato acabar danificando o corpo, mais que ajudando. (Reações imunológicas em grande escala são especialmente custosas, e apenas os animais mais saudáveis conseguem manter um exército de anticorpos inteiramente equipado.) Quando um corpo deveria não poupar despesas na esperança de uma cura rápida? Só quando isso for seguro, ou quando a ajuda está próxima. De outro modo, pode ser mais prudente para o corpo ser avaro com suas automedicações caras. O efeito placebo, de acordo com essa hipótese, é um gatilho disparado, dizendo ao corpo para retirar todos os impedimentos porque há esperança. Em outras espécies, a variável esperança é supostamente ajustada para qualquer informação que o animal consiga vislumbrar em seus arredores (está em segurança na toca, ou no meio do rebanho, e há bastante comida por perto?); em nós, a variável esperança pode ser manipulada por figuras de autoridade. Essas são questões que vale a pena investigar. No capítulo 3, introduzi brevemente a hipótese de que nosso cérebro pode ter evoluído um "centro de Deus", mas observei que seria melhor, por hora, considerá-lo um centro do quê, que mais tarde foi adaptado ou explorado por elaborações religiosas de um tipo ou de outro. Agora temos um candidato plausível para preencher a lacuna: aquele que capacita a propensão à hipnose. Além disso, em seu livro recente, The God Gene, o neu- robiólogo e geneticista Dean Hamer (2004) alega ter encontrado um gene que poderia ser atrelado a esse papel. O gene VMAT2 é um dos muitos que dão receitas de proteínas - as monoaminas - que fazem o trabalho principal no cérebro. São proteínas que levam os sinais que controlam todos os nossos pensamentos e nosso comportamento: os neuromoduladores e os neurotransmissores que são mandados de um lado para outro entre os neurônios, e os transportadores dentro dos neurônios que fazem todo o serviço doméstico, restaurando os suprimentos de neuromoduladores e neurotransmissores. O Prozac e as muitas outras drogas psicoativas ou que modificam a disposição, desenvolvidas nos últimos anos, funcionam enfatizando ou suprimindo a atividade de uma monoamina ou outra. O gene VMAT2 é polimórfico nos seres humanos, ou seja, há diferentes mutações dele em pessoas diferentes. As variantes do gene VMAT2 são idealmente colocadas, então, para explicar as diferenças nas reações emocionais ou cognitivas das pessoas aos mesmos estímulos, e poderiam justificar por que algumas pessoas são relativamente imunes à indução hipnótica, enquanto outras são prontamente postas em transe. Nada disso está perto de ser provado, e o desenvolvimento da hipótese de Hamer é marcado por mais entusiasmo que sutileza, um ponto fraco que poderá repelir pesquisadores que, de outra maneira, o levariam a sério. Mesmo assim, algo parecido com sua hipótese (mas provavelmente muito mais complicado) é um bom palpite para confirmação no futuro próximo, à medida que o papel das proteínas e suas receitas de genes forem mais analisados. O que é parcialmente tentador nesse caminho de pesquisa é como ela não é reducionista! McClenoon e Hamer trabalharam independentemente um do outro, pelo que sei. Nenhum dos dois menciona o outro, em todo caso, e nenhum é tratado por Boyer, Atran ou os demais antropólogos. Isso não é de surpreender. A colaboração entre geneticistas e neurobiolo- gistas, de um lado, e antropólogos, arqueólogos e historiadores, do outro, tendo como pioneiro Luigi Luca Cavalli- Sforza e seus colegas, é uma tendência recente e irregular. E provável que haja mais fracassos iniciais e decepções do que triunfos nos primeiros dias desse trabalho interdiscipli- nar, e não prometo nada com relação às perspectivas das hipóteses específicas, nem de McClenon nem de Hamer. No entanto, eles apresentam um exemplo vivido e acessível das possibilidades existentes. Lembre-se do trecho de Dawkins citado no capítulo 3: "Se os neurocientistas encontram um 'centro de Deus' no cérebro, os cientistas darwinianos como eu queremos saber por que o centro de Deus evoluiu. Por que aqueles dentre os nossos ancestrais que apresentaram uma tendência genética a criar um centro de Deus sobreviveram melhor que os rivais, que não tinham?" (2004b, p. 14). Agora temos uma resposta finalmente testável para a questão de Dawkins, e ela invoca não apenas os fatos bioquímicos, mas todo o mundo da antropologia cultural.6 Por que aqueles que apresentam a tendência genética sobrevivem? Porque eles, ao contrário dos que não têm o gene, tinham seguro de saúde! Nos dias anteriores à medicina moderna, a cura xamanística era o único recurso da pessoa que ficava doente. Se você fosse constitucionalmente impermeável aos tratamentos que os xamãs com paciência refinaram ao longo de séculos (evolução cultural), você ficaria sem um serviço de tratamento de saúde ao qual recorrer. Se os xamãs nãoexistissem, não haveria vantagem de seleção em possuir esse gene variante, mas os memes acumulados deles, a cultura de cura xamanística, poderia ter criado uma forte crista de pressão seletiva na paisagem adaptativa, que de outro modo não estaria lá. Isso ainda não nos leva à religião organizada, mas ao que vou chamar de religião do povo, o tipo de religião que não tem credos escritos, teólogos, nem hierarquia ou funcionários.7 Antes de existir qualquer das grandes religiões organizadas, havia as religiões do povo, e estas propiciaram o ambiente cultural do qual as religiões organizadas puderam emergir. As religiões do povo têm rituais, histórias a respeito de deuses ou ancestrais sobrenaturais, práticas proibidas e obrigatórias. Do mesmo modo que as histórias populares, os ditos da religião popular são de autoria tão dispersa que é melhor dizer que não têm autor algum, e não que os autores sejam desconhecidos. Como a música popular,8 os rituais e cantigas da religião popular não têm compositores, e seus tabus e outras injunções morais não têm legisladores. A autoria consciente, deliberada, vem mais tarde, depois que os projetos dos itens culturais básicos foram aguçados e polidos ao longo de muitas gerações, sem previsão, sem intenção, apenas pelo processo de replicação diferenciada durante a transmissão cultural. Isso tudo é possível? Claro. A linguagem é um artefato cultural sensacionalmente intrincado e bem planejado, e o crédito por isso tudo não é dado a nenhum planejador humano individual. Do mesmo modo como algumas características de linguagem escrita apresentam vestígios claros de seus ancestrais puramente orais,9 alguns dos aspectos da religião organizada podem ser traçados como vestígios de religiões populares das quais eles descenderam. Por vestígios entendo o seguinte: a preservação de uma religião popular ao longo de muitas gerações - sua auto-replicação em face da concorrência inexorável -, adaptações de exigências que são peculiares a uma tradição oral e que não são mais estritamente necessárias (do ponto de vista da engenharia reversa), mas que persistem simplesmente porque ainda não são suficientemente custosas para ser seletivamente eliminadas. 5. DISPOSITIVOS DE ORGANIZAÇÃO DE MEMÓRIA NAS CULTURAS ORAIS O corpo total de conhecimentos dos baktaman está guardado em 183 mentes baktaman, com a ajuda apenas de uma montagem modesta de símbolos crípticos concretos (sendo que seus significados dependem das associações construídas em torno deles na consciência de alguns anciãos) e por comunicação limitada, desconfiada, com os membros de algumas comunidades vizinhas. [Fredrik Barth, Ritual and Knowledge Among the Baktaman ofNew Guinea] Os seres humanos, parece, são os únicos animais que se envolvem espontaneamente em coordenação corporal criativa, rítmica, para aumentar as possibilidades de cooperação (por exemplo, cantando e balançando quando trabalham juntos). [Scott Atran, In God We Trust] Todas as religiões populares têm rituais. Para um evolucionista, os rituais se destacam como pavões em uma clareira iluminada pelo sol. Em geral, são espantosamente caros: muitas vezes envolvem a destruição deliberada de alimentos e outros patrimônios valiosos - para não falar dos sacrifícios humanos -, muitas vezes são fisicamente extenuantes ou até mesmo danosos para os participantes, e em geral exigem tempo e esforço impressionantes para a preparação. Cui bono? Quem ou o que se beneficia desses gastos extravagantes? Já vimos dois modos pelos quais os rituais podem se pagar, como as características psicologicamente necessárias das técnicas de adivinhação, ou os processos de indução hipnótica nas curas xamanís- ticas.10 Uma vez instalados na cena para esses objetivos, eles estariam disponíveis para adaptação - exaptação, como diria Stephan Jay Gould - a outros usos. Mas há outras possibilidades a serem exploradas. Antropólogos e historiadores da religião teceram teorias a respeito do significado e da função do ritual religioso por gerações, geralmente a partir de perspectivas limitadas, que não dão importância ao background evolutivo. Antes de examinarmos as especulações a respeito dos rituais como expressões simbólicas de uma profunda necessidade ou crença, deveríamos pensar na suposição dos rituais como processos de fortalecimento de memória, projetados por evolução cultural (e não por qualquer projetista consciente!) para melhorar a fidelidade da cópia do próprio processo de transmissão de memes que eles resguardam. Uma das lições mais claras da biologia da evolução é que a extinção prematura está no futuro de qualquer linhagem cuja maquinaria de cópia se quebre, ou apenas se estrague um pouco. Sem a cópia de alta-fidelidade, quaisquer melhoras de projeto que por acaso ocorram em uma linhagem tenderão a ser dissipadas quase imediatamente. Ganhos duramente obtidos, acumulados ao longo de muitas gerações, podem ser perdidos em poucas replicações defeituosas, evaporando os preciosos frutos de P&D da noite para o dia. Desse modo, podemos ter certeza de que as tradições religiosas hipotéticas que não têm bons meios de preservar a confiabilidade de seus projetos ao longo dos séculos estão fadadas ao esquecimento. Podemos observar hoje o nascimento e a morte rápida de cultos, à medida que os adeptos iniciais perdem a fé ou o interesse e se afastam, mal deixando traços depois de poucos anos. Até quando os membros de um grupo desses querem ardentemente mantê-lo em funcionamento, seus desejos são dificultados, a não ser que eles se valham das tecnologias de replicação. Hoje em dia, a escrita (para não falar do videoteipe e outras mídias de registro de alta tecnologia) propicia a via óbvia de informações a ser usada. E desde os dias iniciais da escrita, tem havido uma valorização intensa da necessidade, não só de proteger os documentos sagrados de danos e deterioração, mas de copiá-los repetidamente, minimizando o risco de perda, ao assegurar que múltiplas cópias tenham sido distribuídas. Durante muitos séculos antes da invenção do tipo móvel, que pela primeira vez tornou possível a produção em massa de cópias idênticas, salas cheias de escribas, ombro a ombro em suas escrivaninhas, tomavam ditado de um leitor e assim transformavam uma cópia frágil e muito manuseada em dezenas de novas cópias - uma copiadora feita de gente. Como a maior parte dos originais dos quais essas cópias eram feitas, nesse meio- tempo, já tinha se transformado em pó, sem os esforços desses escribas não disporíamos de textos confiáveis de nenhuma literatura da Antigüidade, sagrada ou secular, nenhum Velho Testamento, nada de Homero, Platão e Aristóteles, nenhum Gilgamesh. A cópia mais antiga conhecida dos diálogos de Platão ainda existente, por exemplo, foi criada séculos depois da morte do pensador, e até os Manuscritos do Mar Vermelho e os evangelhos Nag Hammadi (Pagels, 1979) são cópias de textos compostos centenas de anos antes. Um texto pintado sobre papiro ou pergaminho é como os esporos duros de uma planta, que podem ficar intactos na areia durante séculos antes de se encontrarem em condições adequadas para deixar a armadura e brotar. Nas tradições orais, ao contrário, o veículo - um verso falado ou um refrão cantado - dura só alguns segundos. Tem de entrar em alguns ouvidos - tantos quanto possível - e se imprimir firmemente no máximo de cérebros possível para fugir do esquecimento. Ficar registrado em um cérebro - ser ouvido e notado acima da concorrência - é menos da metade da luta. Ser decorado diversas vezes, seja na privacidade de um único cérebro ou em repetição pública uníssona, essa é uma questão de vida ou morte para um meme transmitido oralmente. Se você quiser refrescar sua memória quanto à ordem das devoções no serviço dominical de sua igreja, ou checar se deve levantar ou sentar durante as bênçãos finais, quase com certeza haverá algum documento a ser consultado. Os detalhes estão impressos no verso de qualquer hinário, talvez, ou no Book of Common Prayer, ou, se não lá, pelo menos em textosque estão prontamente disponíveis para o padre, o ministro, o rabino ou o imã. Ninguém tem de decorar todas as linhas de cada invocação, cada prece, cada detalhe das vestes, música, manipulação dos objetos sagrados e daí por diante, já que está tudo escrito em um registro oficial ou outro. Mas os rituais não estão, de jeito algum, restritos a culturas letradas. Na verdade, os rituais religiosos de sociedades não letradas são muitas vezes mais detalhados, em geral exigem muito mais fisicamente e demoram muito mais tempo que os rituais das religiões organizadas. Além do mais, os xamãs não freqüentam seminários xamanísticos oficiais, e não existe um conselho de bispos ou aiatolás para manter o controle de qualidade. Como os membros dessas religiões guardam todos os detalhes na memória ao longo das gerações? Uma resposta simples é: eles não guardam! Não conseguem! E é surpreendentemente difícil provar o contrário. Embora membros de uma cultura não letrada possam muito bem ser unânimes em sua convicção de que seus rituais e credos têm sido perfeitamente preservados por eles ao longo de "centenas" ou "milhares" de gerações (mil anos são apenas cinqüenta gerações), por que deveríamos acreditar nisso? Há alguma prova que sustente a convicção tradicional deles? Há, um pouco. Grande parte do entusiasmo que acompanhou a descoberta, pelos estudiosos, da tradição ritual Nambudiri deve-se ao fato de que, embora existam textos delineando os rituais védicos, os Nambudiri não os usaram. Exclusivamente por meios não letrados, eles mantiveram essa elaborada tradição ritual com espantosa fidelidade (tal como se pode depreender pela Strauta Sutras com séculos de idade). [Lawson e McCauley, 2002, p. 153] Desse modo, à primeira vista, parece que os Nambudiri talvez sejam uma cultura oral dotada de uma sorte excepcional, com alguma prova que sustente suas convicções de terem preservado os rituais intactos. Se não fosse pelos textos védicos, supostamente desconhecidos deles e jamais consultados ao longo dos anos, não haveria um padrão fixo pelo qual medir a confiança na antigüidade de suas tradições. Mas, enfim, a história é boa demais para ser inteiramente verdadeira. A tradição nambudiri pode ser oral, mas eles não são pessoas analfabetas (alguns de seus sacerdotes ensinam engenharia, por exemplo), e é difícil acreditar que tenham se mantido isolados dos textos védicos. "Sabe-se que, durante o período de iniciação, de seis meses, para treinamento, preparação e ensaios que levam ao evento propriamente dito, é feito uso de cadernos preparados pelo AcArya sênior, que já participou de rituais anteriores...".12 Então ôs nambudiri não são realmente um parâmetro independente de quanto a transmissão oral pode ser exata. Compare o problema aqui com a pesquisa em andamento sobre a evolução das linguagens. Por meio de análises probabilísticas complexas e sofisticadas, os lingüistas conseguem deduzir características de linguagens orais extintas, cujos últimos usuários já estão mortos há milênios! Como isso pode ser feito sem consultas a gravações em fita e sem textos na linguagem sobre o qual levantam hipóteses? Os lingüistas fazem uso intenso do enorme corpo de dados textuais em outras linguagens mais recentes, traçando desvios lingüísticos do grego ático ao grego helênico, e do latim para as línguas românicas, e daí por diante. Ao encontrar modelos comuns nesses desvios, eles conseguiram extrapolar retrospectivamente, com algum grau de confiança, para saber como as linguagens devem ter sido antes de a escrita aparecer, fossilizando algumas delas, a serem posteriormente estudadas. Eles conseguiram extrair regularidades de desvios de pronúncia e gramaticais, e justapor essas regularidades em modelos de estabilidade para chegar a conjecturas altamente fundamentadas e confirmadas por cruzamentos a respeito de, digamos, como as palavras indo-européias eram pronunciadas, muito antes de haver linguagens escritas que preservassem os indícios como insetos fósseis em âmbar.'3 Se tentássemos o mesmo estratagema de extrapolação com as crenças religiosas, teríamos primeiro de estabelecer modelos para estabilidade e alterações, e até agora não foi possível fazer isso. O pouco que sabemos a respeito de religiões primitivas depende quase inteiramente de textos que sobreviveram. Pagels (1979) oferece uma perspectiva fascinante sobre os Evangelhos Gnósticos, por exemplo, concorrentes iniciais à inclusão no cânon dos textos cristãos, graças à sobrevivência fortuita de textos escritos transmitidos como traduções de cópias de cópias... dos originais. Não podemos, assim, simplesmente acreditar que as tradições religiosas não letradas ainda existentes no mundo são tão antigas como se diz. E já sabemos que, em algumas religiões dessas, não há uma tradição de preservação obsessiva do credo antigo. Fredrik Barth, por exemplo, encontrou muitas evidências de inovações entre os baktamans, e como Lawson e McCauley (2002, p. 83) observam secamente, "Fidelidade perfeita à prática antiga não é um ideal determinado para os baktamans". Desse modo, embora possamos estar bastante certos de que os povos da tradição oral tiveram algum tipo de religião durante milhares de anos, não devemos descartar a possibilidade de que a religião que hoje presenciamos (e registramos) pode consistir de elementos que foram inventados, ou reinventados bastante recentemente. As pessoas correm, pulam e jogam pedras do mesmo jeito em todo lugar, e essa regularidade é explicada pelas propriedades físicas dos membros e da musculatura humana, pela uniformidade da resistência ao vento em torno do globo, e não por uma tradição de algum modo passada de geração a geração. Por outro lado, em lugares em que nenhuma dessas restrições garante a reinvenção, os itens de cultura poderão perambular de modo rápido, amplo e irreconhecível, na ausência de mecanismos fiéis de cópias. Braçadas diferentes para pessoas diferentes.'4 E onde seja que ocorra essa transmissão ambulante, automaticamente haverá seleção por mecanismos que enfatizem a fidelidade na cópia sempre que ela surja, independentemente de se as pessoas se importam, já que qualquer um desses mecanismos tenderá a persistir mais tempo no meio cultural do que mecanismos alternativos (e mais baratos) que são copiados com indiferença. Uma das melhores maneiras de assegurar a fidelidade da cópia em muitas replicações é a estratégia da "regra da maioridade", que é a base do estranhamente confiável comportamento dos computadores. Foi o grande matemático John von Neumann que viu um modo de aplicar esse estratagema ao mundo real da engenharia, de modo que a máquina de computação imaginária de Alan Turing pudesse se tornar realidade, nos permitindo fabricar computadores altamente confiáveis a partir de partes inevitavelmente não confiáveis. A quase perfeita transmissão de trilhões de bits é executada de forma rotineira até pelo computador mais barato, hoje em dia, graças ao "multiplexação de Von Neuman", mas esse estratagema foi inventado e reinventado ao longo de séculos em muitas variações. Nos dias anteriores aos da comunicação por rádio e satélites GPS, OS navegadores costumavam levar não um, mas três cronômetros a bordo de seus navios nas viagens longas. Se você tiver apenas um cronômetro e ele começar a atrasar ou adiantar, você nunca vai saber se está errado. Se você levar dois e eles começarem a discordar, você não vai saber se um está atrasando ou o outro está adiantando. Se você levar três, pode ter bastante certeza de que o que está estranho é aquele no qual os erros se acumulam, já que, do contrário, os dois que ainda estão concordantes teriam de funcionar mal exatamente do mesmo modo, coincidência pouco provável na maioria das circunstâncias. Muito antes de ser conscientemente inventado ou descoberto, esse Bom Estratagema já estava incorporado como uma adaptação de memes. Ele pode ser visto em funcionamento em qualquer tradição oral, religiosa ou secular, na qual as pessoas agem em uníssono - rezando, cantando ou dançando, porexemplo. Nem todo mundo vai se lembrar das palavras ou da melodia ou do passo seguinte, mas a maior parte'vai, e os que estão fora do passo irão rapidamente se corrigir para se unirem à massa, preservando as tradições de modo muito mais confiável do que qualquer um deles poderia fazer isoladamente. O todo não depende do virtuosismo dos que decoravam a seqüência; ninguém precisa ser melhor que a média. Pode-se provar matematicamente que tais esquemas "mutiplexado- res" conseguem superar o fenômeno do "elo mais fraco", e construir uma teia que é muito mais forte que seus elos mais fracos. Não é por acidente que as religiões todas têm ocasiões em que os adeptos se reúnem em rituais para agir em uníssono público. Qualquer religião sem essas ocasiões já estaria extinta.1' Um ritual público é um excelente modo de preservar conteúdo com alta fidelidade, mas por que as pessoas são tão ansiosas por participar em rituais, para começar? Já que estamos supondo que elas não têm a intenção de preservar a fidelidade da cópia de seus memes constituindo um tipo de memória de computador social, o que as motivaria a se juntarem a eles? Aqui há um monte de hipóteses conflitantes que levará algum tempo e pesquisa para resolver, uma dificuldade de escolha.'6 Pense naquilo que podemos chamar de a hipótese de publicidade xamanística. Os xamãs em todo o mundo realizam a maior parte de sua prática de cura em cerimônias públicas, e são hábeis em conseguir que o público local não apenas observe enquanto eles induzem um transe neles mesmos ou em seus clientes, mas que participe, com tambores, cantando, salmodiando e dançando. Em seu clássico Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande (1937), o antropólogo Edward Evans-Pritchard descreve vividamente esses procedimentos, observando como o xamã astutamente arregimenta a multidão de espectadores habituais, transformando-os em chamarizes, de fato, para impressionar os não iniciados, para os quais essa demonstração cerimonial é um espetáculo novo. Pode-se supor, na verdade, que a freqüência a elas tem uma influência informativa importante no crescimento das crenças em feitiçarias nas mentes das crianças, porque as crianças fazem questão de freqüentá-las e participar delas como espectadores e coro. Essa é a primeira ocasião na qual demonstram sua crença, e fica mais dramática e mais publicamente afirmada nessa sessão que em qualquer outra situação. [Evans-Pritchard, 1937; 1976, edição resumida, pp. 70-71] A curiosidade inata, estimulada pela música, a dança rítmica e outras formas de "pompa sensorial" (Lawson e McCauley, 2002), poderia provavelmente explicar a motivação inicial para entrar no coro - especialmente se tivermos desenvolvido um desejo inato de pertencer, de nos juntar com outros, especialmente os mais velhos, como muitos têm recentemente argumentado. (Isso será tema do próximo capítulo.) E então há o fenômeno de "hipnose coletiva", e "histeria da massa", ainda pouco conhecido mas com inegáveis efeitos potentes observáveis quando as pessoas são reunidas em multidão e alguma coisa excitante acontece para que elas reajam. Uma vez que as pessoas se encontrem no coro, outras motivações podem predominar. Qualquer coisa que faça o custo da não-participação aumentar funciona, e os membros da comunidade ficam com a idéia de encorajar os outros membros, não apenas a participar, mas para infligir o custo àqueles que fogem à responsabilidade de participar, e o fenômeno pode se tornar auto- sustentável (Boyd e Richerson, 1992). Será que não deve haver alguém para promover a operação? Como isso começaria a funcionar a não ser que houvesse algumas pessoas, alguns agentes que quisessem iniciar uma tradição ritual? Como sempre, esse palpite trai uma falha de imaginação evolutiva. É claro que é possível - e em alguns casos certamente provável e até mesmo provado - que algum líder comunitário ou outro agente venha a projetar um ritual para servir a um objetivo em particular, mas vimos que esse agente não é estritamente necessário. Até mesmo rituais elaborados e caros de ensaio público poderiam surgir de práticas e hábitos anteriores, sem qualquer plano consciente.'7 O ensaio público é um processo-chave de fortalecimento da memória, mas não o suficiente. Temos também de examinar as características daquilo que é ensaiado, porque podem, elas próprias, ter sido projetadas para poder interagir cada vez mais com a memória. Uma inovação fundamental foi dividir o material a ser transmitido em algo parecido com um alfabeto, um repertório um tanto limitado de normas de produção. No Apêndice A descrevo como a confiabilidade da replicação do DNA depende da existência de um código ou conjunto finito de elementos, uma espécie de alfabeto, como A, c, G, T. Esta é uma forma de digitação que permite que flutuações ou variações minúsculas na execução sejam absorvidas ou apagadas na rodada seguinte. A idéia do projeto de digitação ficou famosa na era da computação, mas é possível ver aplicações anteriores nos modos pelos quais os rituais religiosos - como danças, poemas e as próprias palavras - podem ser quebrados em elementos facilmente reconhecíveis, adequados para o que Dan Sperber (2000) chama de "produção acionada" (ver Apêndices A e c). Não há duas pessoas que façam suas mesuras, batam continência ou kowtow exatamente da mesma maneira, mas cada gesto será claramente reconhecível como uma mesura, uma continência ou kowtow pelo resto do grupo, que desse modo absorve o ruído do momento e transmite para o futuro apenas o esqueleto essencial, ou a grafia dos movimentos. Quando as crianças observam os mais velhos fazendo os movimentos, seja em uma dança popular tradicional ou numa cerimônia de religião popular (e essa distinção será bastante arbitrária ou inexistente em algumas culturas), elas aprendem o alfabeto dos comportamentos, e podem se comparar uns aos outros para ver quem consegue fazer o movimento-A mais espetacular, ou o movimento-B mais ondulado, ou a cantilena-C mais alta. Irão todos concordar a respeito do que são os movimentos, e aí jaz uma compressão enorme das informações que devem ser transmitidas. Esse tipo de compressão pode ser medida com exatidão no seu computador de casa, comparando um bitmap de uma página de texto (que não faz distinção entre caracteres alfabéticos e borrões e manchas de tinta, laboriosamente representando cada ponto) a um arquivo de texto da mesma página, que será de magnitude menor. Falar que um "alfabeto" é composto de um conjunto "canônico" de coisas a serem lembradas é duplamente anacrônico, usando tecnologia recente (a linguagem escrita e a elevação consciente e deliberada de um cânon restrito de crenças e textos prescritos) para analisar as potências dos projetos das inovações mais antigas em métodos de transmissão que não tiveram autores. Esses são ainda mais enfatizados pelo uso de ritmo e rima - para praticar ainda outro anacronismo, já que esses termos "técnicos" foram certamente inventados muito depois de a eficácia das propriedades ter sido "reconhecida" pelo relojoeiro cego da seleção cultural. Ritmo, rimas e tons musicais, todos propiciaram respaldo adicional (Rubin, 1995), transformando seqüências de palavras não memoráveis em sound bites (vamos abusar dos anacronismos, já que estamos aqui). Uma característica de projeto menos evidente foi a inclusão de elementos incompreensíveis! Por que isso ajudaria a transmissão? Obrigando os transmissores a voltar à "citação direta", em circunstâncias nas quais eles estariam, de outro modo, tentados a usar a "citação indireta" e a transmitir apenas a parte essencial da ocasião "em suas próprias palavras" - uma perigosa fonte de mutação. A idéia subjacente é bem familiar para todos no (em geral desprezado, mas eficaz) método pedagógico: aprender decorando. "Não tente entender essas fórmulas! É só decorá-lasl" Se você simplesmente não consegue entender as fórmulas, ou alguns aspectos delas, você não precisa do conselho; não há outro recurso além da memorização, e isso reforça a confiança na repetiçãoestrita e no gênio corretor de erros dos alfabetos. O conselho, no entanto, também pode estar lá, assim como outro aspecto de fortalecimento de memória: Repita a fórmula exatamente! Sua vida depende disso! (Se você não disser as palavras mágicas exatamente certas, a porta não vai abrir. O diabo vai pegá-lo se você disser errado.) Para repetir o refrão que deveria ser familiar, a essa altura: ninguém tem de compreender esses motivos fundamentais, nem mesmo querer melhorar a fidelidade da cópia dos rituais de que participou; quaisquer rituais que por acaso sejam favorecidos por essas características teriam uma vantagem replicativa poderosa sobre rituais concorrentes que não as tivessem. Observe que, até agora, as adaptações que revelamos como prováveis colaboradoras na sobrevivência das religiões têm sido neutras quanto a saber se nós somos beneficiários ou não. Essas são características do meio, não da mensagem, projetadas para assegurar a fidelidade da transmissão - uma exigência da evolução -, ao mesmo tempo que são quase inteiramente neutras para dizer se o que é transmitido é bom (um mutualista), ruim (um parasita) ou neutro (um comensal). Para ter certeza, levantamos a hipótese de que a evolução dos rituais de cura xamanísticos foi um desenvolvimento provavelmente benigno, ou mutualista, não apenas um mau hábito para os quais os nossos antepassados eram atraídos. E há uma boa chance de que a adivinhação realmente ajudasse (e não apenas parecesse ajudar) os nossos antepassados a tomar suas decisões quando precisassem. Mas essas hipóteses ainda são questões empíricas em aberto, e poderíamos revisar nossa opinião sem o colapso da teoria, se elas estiverem garantidas pelas provas. Ninguém poderia objetar, neste ponto, que não começamos a falar a respeito de todo o bem que a religião faz. Ainda não tivemos de tratar dessa questão. Devemos exaurir nossas opções minimalistas para ASSENTAR as fundações de um exame adequado da questão. * * * Capítulo 5. O alto preço evidente da religião popular, um desafio à biologia, pode ser explicado por hipóteses que ainda não estão confirmadas, mas podem ser testadas. Provavelmente a população excessiva de agentes imaginários gerados pelo HADD rendeu candidatos para fazer o papel de ajudantes em decisões, em adivinhação, ou como cúmplices do xamã, na manutenção da saúde, por exemplo. Esses constructos mentais, cooptados ou exaptados, foram então submetidos a uma extensa revisão de projeto sob a pressão seletiva para proezas reprodutivas. * * * Capítulo 6. À medida que a cultura humana cresceu e as pessoas se tornaram mais reflexivas, a religião popular transformou-se em uma religião organizada; as bases generalizadas dos motivos para os projetos mais antigos foram suplementadas, e algumas vezes substituídas, por razões cuidadosamente elaboradas, à medida que as religiões se domesticaram. 6. A EVOLUÇÃO DA INTENDÊNCIA 1. A MÚSICA DA RELIGIÃO Não significa coisa alguma, se não tiver aquele balanço. [Duke Ellington] O ARGUMENTO CENTRAL deste capítulo é que a religião popular se transformou em religião organizada do mesmo modo pelo qual a música popular gerou aquilo que podemos chamar de música organizada: músicos e compositores profissionais, representações e regras escritas, salas de concerto, críticos, agentes e todo o resto. Nos dois casos, a mudança aconteceu por diversas razões, mas em grande parte porque, à medida que as pessoas passaram a ser cada vez mais reflexivas, tanto a respeito de suas práticas como de suas reações, elas puderam se tornar cada vez mais inventivas em suas explorações das possibilidades. Tanto a música como a religião aos poucos se tornaram "artísticas" ou sofisticadas, mais elaboradas, exigindo mais produção. Não necessariamente melhores, em qualquer sentido absoluto, contudo mais capazes de responder a demandas cada vez mais complicadas de populações que eram, biologicamente, bem semelhantes a seus ancestrais distantes, mas culturalmente ampliadas, tanto do ponto de vista da qualificação como da sobrecarga de tarefas. Existe artifício no planejamento e na execução das práticas religiosas, como sabem todos os que já sofreram durante uma cerimônia religiosa conduzida com incompetência. Um sacerdote gago e prosaico, uma liturgia chata, um canto trêmulo do coro, pessoas que se esquecem de levantar e do que devem dizer e fazer - uma execução falha como esta pode afastar até o membro da congregação mais bem-intencionado. Ocasiões celebradas com mais arte conseguem elevar a congregação a êxtases sublimes. Podemos analisar o artifício nos textos sagrados e nas cerimônias religiosas do mesmo modo como podemos analisar o artifício na literatura, na música, na dança, na arquitetura e em outras artes. Um bom professor de teoria musical consegue desmontar uma sinfonia de Mozart ou uma cantata de Bach e mostrar como as diferentes características do desenho colaboram para sua magia, mas algumas pessoas preferem não mergulhar nessas questões, pela mesma razão por que não querem que se revelem os truques de mágica no palco: para elas, a explicação diminui o "deslumbramento". Pode ser, mas compare a incompreensão reverente dos musicalmente ignorantes diante de uma sinfonia com a avaliação igualmente superficial de uma pessoa, em um jogo de futebol, que não conheça as regras ou os pontos altos do jogo, e só vê muito chute na bola para lá e para cá e corridas vigorosas por todo lado. "Grande ação!", poderão eles exclamar sinceramente, mas estão perdendo a maior parte da excelência oferecida. Mozart e Bach - e um grande time de futebol - merecem coisa melhor. Os projetos e as técnicas da religião também podem ser estudados com a mesma curiosidade distanciada, e com resultados valiosos. Pense em adotar a mesma atitude inquisitiva em relação à religião, especialmente à sua própria religião. Ela é um amálgama muito bem afinado de procedimentos e estratagemas brilhantes, capazes de manter as pessoas fascinadas e fiéis durante a vida inteira, elevando-as de seus egoísmos e modos mundanos assim como a música, porém com maior eficiência. Entender como ela funciona é tanto um preâmbulo para melhor avaliá-la ou fazer com que ela funcione melhor quanto uma tentativa de desmontá- la. E a análise que estou incentivando é, afinal de contas, apenas a continuação do processo de reflexão que trouxe a religião ao estado em que ela se encontra atualmente. Todos os sacerdotes de todos os credos são como músicos de jazz, ao manter as tradições vivas tocando os padrões amados como devem ser tocados, mas também incessantemente avaliando e decidindo, diminuindo ou apressando o passo, apagando ou acrescentando outra expressão a uma prece, misturando o conhecido e a novidade exatamente nas proporções certas para atrair a mente e o coração dos ouvintes presentes. As melhores execuções não são apenas como boa música; elas são como uma espécie de música. Escutem os sermões gravados do reverendo C. L. Franklin (pai da Aretha Franklin e famoso entre os pregadores gospel antes de ela gravar qualquer sucesso), ou do pregador batista branco irmão John Sherfey, por exemplo.' Esses compositores-executantes não são apenas vocalistas; o instrumento deles é a congregação, e eles o tocam com o talento artístico apaixonado mas instruído de um violinista a quem foi confiado um Stradivarius. Além dos efeitos imediatos de hoje - um sorriso ou "amém!" ou "aleluia! - e dos efeitos de curto prazo - volta à igreja no domingo seguinte, deposição de outro dólar no prato da coleta -, há efeitos de longo prazo. Ao escolher que passagens da Escritura serão replicadas esta semana, o sacerdote molda não apenas a ordem do culto, mas a mente dos devotos. A não ser que você seja um estudioso notável e raro, você só consegue guardar em sua memória pessoal uma fração dos textos sagrados de sua fé - aqueles que você tiver ouvido repetidas vezes desde a infância, algumas vezes entoando-os em uníssono com a congregação, tenha você confiado ou não qualquer deles deliberadamente à memória. Do mesmomodo como as mentes latinas da Roma antiga deram lugar a mentes francesas, italianas e espanholas, as mentes cristãs hoje são bem diferentes das mentes dos cristãos primitivos. As principais religiões de hoje são tão diferentes de suas versões ancestrais quanto a música de hoje é diferente da música da antiga Grécia ou de Roma. As mudanças feitas estão longe de ser aleatórias. Elas percorreram a incansável curiosidade e as mudanças nas necessidades da nossa espécie, que adquiriu cultura. A capacidade humana para a reflexão fornece uma habilidade para observar e avaliar os padrões no nosso comportamento ("Por que continuo caindo nessa”), "Na época pareceu uma boa idéia, mas por quê?" etc.) Isso fortalece nossa habilidade em representar perspectivas e oportunidades futuras, o que, por sua vez, ameaça a estabilidade de qualquer prática social mal fundamentada que não consiga sobreviver a essa atenção céti- ca. Assim que as pessoas começam "a sacar", um sistema que "funcionou" durante gerações pode implodir da noite para o dia. As tradições podem desmoronar mais rapidamente que muros de pedra e telhados de ardósia, e a manutenção preventiva dos credos e das práticas de uma instituição pode se tornar uma ocupação em tempo integral para os profissionais. Mas nem todas as instituições têm, ou exigem, tal manutenção. 2. RELIGIÃO POPULAR COMO KNOW-HOW PRÁTICO Entre os nuer, é particularmente auspicioso sacrificar um touro, mas como os touros são especialmente valiosos, na maior parte das vezes um pepino serve muito bem. [E. Thomas Lawson e Robert N. McCauley, Bringing Rituais to Mind] Em face do gasto inevitável, nada que foi projetado persiste por muito tempo sem renovação e replicação. As instituições e os hábitos da cultura humana estão tão presos a esse princípio, a segunda lei da termodinâmica, como os organismos, os órgãos e os instintos da biologia. Mas nem todas as práticas culturalmente transmitidas precisam de intendência. As linguagens, por exemplo, não exigem os serviços de polícia de usos e gramáticos - embora nas linguagens européias tenha há muito tempo havido um excesso desses assim chamados protetores da integridade. Um dos principais argumentos do capítulo anterior é que as religiões populares são como as linguagens quanto a esse aspecto: podem muito bem tomar conta delas mesmas. Os rituais que persistem são aqueles que se perpetuam por si mesmos, a despeito de alguém dedicar ou não esforços sérios para mantê-los. Os memes conseguem adquirir novos estratagemas - adaptações - que podem ajudá-los a garantir essa longevidade para suas linhagens, independentemente de alguém os valorizar. Então, a questão de saber se as religiões populares propiciaram algum benefício claro às pessoas - se os memes que as compõem são memes mutualistas, e não comensais ou parasitas - pode ser deixada sem resposta por hora. Os benefícios da religião popular parecem óbvios - tão óbvios quanto os benefícios da linguagem -, mas precisamos nos lembrar de que um benefício para a aptidão genética humana não é a mesma coisa que um benefício para a felicidade humana ou o hem-estar humano. Aquilo que nos faz mais felizes não nos torna mais prolíficos, que é tudo o que importa para os genes. Até mesmo a linguagem deveria ser olhada com o máximo de neutralidade. Talvez ela não passe de um mau hábito que por acaso se espalhou! Como pode ser isso? Assim: logo que a linguagem começou a ser moda entre nossos antepassados, os que não se atualizaram rapidamente foram deixados fora do jogo do acasalamento. Converse, ou não tenha filhos. (Essa seria a teoria da seleção sexual da linguagem: superficialidade como a cauda do pavão para o Homo sapiens. De acordo com essa teoria, pode ser verdade que, se nenhum de nós jamais tivesse tido a linguagem, estaríamos melhor no departamento de descendentes, mas uma vez que o custoso han- dicap da linguagem pegou entre as mulheres, os homens sem linguagem tenderam a morrer sem descendentes, sem poder, portanto, se dar ao luxo de não fazer o investimento, a despeito de quanto isso complicasse a vida deles.) Ao contrário das penas da cauda, que você tem de fabricar usando os equipamentos com os quais seus pais porventura o tenham dotado, as linguagens se espalham horizontal ou culturalmente, de modo que temos de considerá-las como co-atrizes no drama, com suas próprias chances de reprodução. Nessa teoria, o motivo pelo qual adoramos falar é como o motivo pelo qual os camundongos infectados com Toxoplasma gondii adoram apoquentar os gatos - as linguagens aprisionaram nossos pobres cérebros e nos fizeram cúmplices ansiosos em sua própria propagação! Essa é uma hipótese forçada, já que as contribuições da linguagem para a aptidão genética são muito evidentes. Somos atualmente mais de 6 bilhões atravancando o planeta e monopolizando seus recursos, enquanto nosso parente mais próximo, os sem-linguagem bonobos, chimpanzés, orangotangos e gorilas, estão todos ameaçados de extinção. Pondo à parte a hipótese de que a nossa capacidade de correr ou a falta de pêlos é o segredo do nosso sucesso, podemos acreditar firmemente que os memes da linguagem realçaram os mais aptos como mutualistas, e não parasitas. Mesmo assim, o fato de enquadrar a hipótese nos faz lembrar que a evolução genética não promove diretamente a felicidade ou o bem-estar; ela só se preocupa com o número de descendentes, que sobrevivem para fazer outra geração de descendentes e daí por diante. A religião popular pode bem ter tido um papel importante na propagação do Homo sapiens, mas ainda não sabemos isso. O fato de que, pelo que sabemos, todas as populações humanas têm algum tipo de versão não determina isso. Todas as populações humanas conhecidas também tiveram resfriados que - pelo que sabemos - não são mutualistas. Durante quanto tempo a religião popular poderia ser adotada por nossos ancestrais antes de a reflexão começar a transformá-la? Podemos ter alguma idéia disso olhando outras espécies. É óbvio que os pássaros não precisam entender os princípios da aerodinâmica que determinam o formato de suas asas. É menos óbvio - mas mesmo assim verdadeiro - que as aves podem ser partícipes ignorantes em rituais tão elaborados como os leks - os locais de encontro para acasalamento algumas vezes chamados de "boate da natureza" -, nos quais as fêmeas de uma população local de uma espécie se reúnem para observar a exibição competitiva dos machos, que ficam se mostrando. A razão básica para os leks, que são também encontrados em alguns mamíferos, peixes e até insetos, é clara: eles se pagam como métodos eficientes de seleção para acasalamento sob condições passíveis de ser especificadas. Mas os animais que participam dos leks não precisam saber por que fazem o que fazem. Os machos aparecem e se mostram, as fêmeas prestam atenção e deixam sua escolha ser guiada pelos "ditames de seus corações", que, sem que elas saibam, foram moldados por seleção natural ao longo de muitas gerações.2 Será que a nossa propensão para participar de rituais religiosos tem explicação semelhante? O fato de que os nossos rituais sejam passados adiante por meio da cultura, e não dos genes, não elimina de jeito algum essa perspectiva. Sabemos que linguagens específicas são transmitidas pela cultura, não pelos genes, mas houve também evolução genética, que aprimorou nosso cérebro para a aquisição e o uso cada vez mais eficiente da linguagem.3 Nossos cérebros se desenvolveram para se tornar processadores de palavras mais eficazes, e eles podem também ter evoluído para implementar com maior eficácia os hábitos culturalmente transmitidos das religiões populares. Já vimos como o hipnotismo poderia ser o talento para o qual o centro do quê imaginado no capítulo 3 foi moldado. A sensibilidade a rituais (e música) pode fazer parte desse pacote. Não há, de fato, razão alguma para supor que os animais tenham qualquer idéia a respeito dos motivos que os levam a fazer o que instintivamente fazem, e os seres humanos não são exceção; os propósitos mais profundos dos nossos"instintos raramente nos são transparentes. A diferença entre nós e outras espécies é que somos a única espécie que se preocupa com sua ignorância! Ao contrário de outras espécies, sentimos uma necessidade geral de compreender, de modo que, mesmo que ninguém deva compreender ou possuir a intenção de inovar qualquer dos projetos que criaram as religiões populares, deveríamos reconhecer que as pessoas, naturalmente curiosas, reflexivas, e dotadas da linguagem na qual enquadrar e reenquadrar suas perplexidades, teriam apresentado a probabilidade - ao contrário das aves - de se perguntar qual seria o significado desses rituais. A coceira da curiosidade não é forte em algumas pessoas, aparentemente. A julgar pela variação observável ao nosso redor hoje, seria justo apostar que apenas uma pequena minoria de nossos ancestrais chegou a ter o tempo ou a inclinação para questionar as atividades em que se engajaram com seus parentes e vizinhos. Nossos antepassados caçadores-coletores dos tempos paleolíticos podem muito bem ter tido uma vida relativamente fácil, com alimento abundante e tempo de lazer (Sahlins, 1972), se comparados ao trabalho duro necessário à sobrevivência depois que a agricultura foi inventada, há mais de 10 mil anos, e as populações cresceram de modo explosivo. Desde o início desse período, no neolítico, até, na verdade, muito recentemente na escala de tempo biológica - as últimas duzentas gerações -, a vida, para quase todos os nossos ancestrais, era, como disse Hobbes, admiravel- mente má, bruta e curta, com poucos breves bolsões de tempo livre no qual pudessem ficar... teóricos. Portanto, provavelmente é seguro imaginar que o pragmatismo comprimia os horizontes de nossos ancestrais. Entre as jóias da sabedoria popular encontrada pelo mundo todo está a idéia de que um pouco de conhecimento pode ser uma coisa perigosa. Um corolário não freqüentemente notado é que algumas vezes pode ser mais seguro substituir o conhecimento incompleto por um mito potente. Como o antropólogo Roy Rappaport explicou em seu último livro: [...] em um mundo no qual os processos que governam seus elementos físicos são, até certo ponto, desconhecidos, e, ainda em maior grau, imprevisíveis, o conhecimento empírico desses processos não pode substituir o respeito pela integridade mais ou menos misteriosas que têm, e pode ser mais adaptativo - ou seja, mais adaptativamente verdadeiro - envolver esses processos em véus sobrenaturais do que expô-los ao mal-entendido que pode ser encorajado pelo conhecimento naturalístico empiricamente exato, mas incompleto. [1999, p. 452] As exigências práticas de apresentar um modo de unir toda a mis- celânea intrigante da vida em vôo não são as mesmas que as exigências práticas da ciência, como observa Dunbar (2004, p. 171): "A lei dos rendimentos decrescentes significa que haverá sempre um ponto além do qual simplesmente não vale a pena investir mais tempo e esforço para descobrir a realidade subjacente. Nas sociedades tradicionais, qualquer coisa que funcione serve". Desse modo, podemos esperar que nossos antepassados, não importa quão curiosos fossem por temperamento, fizeram mais ou menos o que todos ainda fazem hoje: fiam-se naquilo "que todos sabem '. A maior parte do que você (acha que) sabe, você simplesmente crê. Com isso não quero dizer a fé em crença religiosa, mas algo muito mais simples: a política prática, sempre passível de ser revista, de simplesmente confiar na primeira coisa que lhe vem à mente, sem ficar obcecado para saber por que é assim. Quais são as chances de que "todo mundo" esteja simplesmente enganado em pensar que bocejar é inócuo, ou que você deva lavar as mãos depois de ir ao banheiro? (Lembra daqueles "belos bronzeados saudáveis" que costumávamos cobiçar?) A não ser que alguém publique um estudo que nos surpreenda a todos, adotamos como verdade que o conhecimento comum que recebemos dos mais velhos e de outros está correto. E estamos certos em fazer isso; precisamos de quantidades imensas de conhecimento comum para nos orientarmos pela vida, e não há tempo para classificar todos eles, testando a veracidade de cada item.4 Desse modo, numa sociedade tribal, em que "todo mundo sabe" que você precisa sacrificar um cabrito para ter um bebê saudável, você não deixa de sacrificar um cabrito. Seguro morreu de velho. Essa característica marca uma profunda diferença entre a religião popular e a religião organizada: os que praticam uma religião popular não acham de modo algum que estão praticando uma religião. Suas práticas religiosas fazem parte integral de suas vidas práticas, lado a lado com a caça, a coleta, ou arar e colher. E uma forma de saber que eles realmente acreditam nas divindades para as quais fazem esses sacrifícios é observar que não estão o tempo todo falando a respeito de como eles acreditam em suas divindades - não mais do que você e eu saímos por aí garantindo um ao outro que acreditamos em micróbios e átomos. Onde não há dúvidas ambientes que se possa notar, não há necessidade de falar em fé. A maioria de nós só conhece os átomos e os micróbios de ouvir falar, e seria embaraçoso ser incapaz de dar uma boa resposta se um antropólogo marciano nos perguntasse como sabemos que essas coisas existem - uma vez que você não as consegue ver, ouvir, sentir o gosto ou ter o tato para elas. Se pressionada, a maioria de nós provavelmente elaboraria alguma doutrina seriamente equivocada a respeito dessas coisas invisíveis (mas importantes!). Não somos os especialistas - só concordamos com "o que todos sabem", que é exatamente o que os povos tribais fazem. Acontece que os especialistas deles entenderam errado.5 Muitos antropólogos observaram que, quando perguntam a seus informantes nativos a respeito de detalhes "teológicos" - o paradeiro dos deuses, história específica e métodos de ação no mundo -, os informantes acham todas as perguntas intrigantes. Por que se esperaria que eles soubessem ou se preocupassem com isso7 Dada essa reação amplamente registrada, não deveríamos descartar a corrosiva hipótese de que muitas das doutrinas verdadeiramente exóticas e discutivelmente incoerentes desenterradas pelos antropólogos ao longo dos anos são artefatos de inquirição, e não credos preexistentes. É possível que essas perguntas persistentes feitas pelos antropólogos tenham composto um tipo de ficção inocentemente colaborativa, dogmas recém-cunhados e cristalizados, gerados quando o questionador e o informante conversam até terem como resultado uma história mutuamente coerente. Os informantes acreditam profundamente em seus deuses - "Todo mundo sabe que eles existem! -, mas pode ser que nunca tenham pensado antes nesses detalhes (talvez ninguém tenha, naquela cultura!), o que explicaria por que as convicções deles são vagas e impossíveis de determinar. Obrigados a elaborar, eles elaboram, pegando as deixas nas perguntas formuladas.6 No próximo capítulo vamos examinar algumas implicações espantosas dessas questões metodológicas, depois de esquematizarmos uma explicação que sirva de apoio para testes. Por hora, poderia ajudar se você tentasse se pôr no lugar de um informante de antropólogo. Agora que o mundo moderno, com suas complexidades particulares, está caindo em cima dos povos tribais, eles têm de fazer revisões por atacado em seus modos de ver a natureza, e não surpreende que essa perspectiva seja assustadora para eles. Ouso dizer que se os marcianos chegassem com uma tecnologia maravilhosa que nos afigurasse como "impossível e nos dissessem que tínhamos de abandonar germes e átomos e ganharíamos com os programas deles, só os dotados de mente mais brilhante entre os nossos cientistas fariam a transição rapidamente e de bom grado. O resto de nós se agarraria aos nossos queridos e velhos átomos e micróbios o máximo que pudesse, contando prosaicamente a nossos filhos como a água é feita de átomos de hidrogênio e de oxigênio - pelo menos foi isso que nos contaram sempre i- e adver- tindo-os a respeito dos micróbios, só para ficar do lado da segurança.O que paira amplamente na vida de cada pessoa é o problema sobre o que fazemos agora, e há menos desconfortos estressantes que o dilema de não saber o que fazer ou o que pensar quando aparece alguma novidade desconcer- tante. Nessa hora todos nos refugiamos naquilo que nos é conhecido. O tentado e verdadeiro pode não ser verdadeiro, mas pelo menos é tentado, de modo que nos dá alguma coisa a fazer que nós sabemos como fazer. E geralmente funciona bastante bem, tão bem quanto sempre funcionou. 3 . A REFLEXÃO SORRATEIRA E O NASCIMENTO DO SEGREDO NA RELIGIÃO Você consegue enganar todo mundo durante algum tempo, e algumas pessoas o tempo todo, mas você não consegue enganar todo mundo o tempo todo. [Abraham Lincoln] Aqueles para os quais a palavra dele foi revelada estavam sempre sozinhos em algum lugar remoto, como Moisés. Também não havia ninguém por perto quando Maomé recebeu a palavra. O mórmon Joseph Smith e a cientista cristã Mary Baker Eddy tinham audiências exclusivas com Deus. Temos de confiar neles como repórteres -- e você sabe como são os repórteres. Eles fazem qualquer coisa por lima matéria. [Andy Rooney, Sincerely, Andy Rooney] A física popular do dia-a-dia, e a biologia popular e a psicologia popular funcionam muito bem como regra. Do mesmo modo, a religião popular também funciona, mas aparecem dúvidas ocasionais. As reflexões exploratórias dos seres humanos se acumulam em ondas de dúvidas, e se essas ondas ameaçam a nossa serenidade, pode-se esperar que nos apossemos de qualquer resposta que possa escorar o consenso ou diminuir o desafio. Quando a curiosidade tropeça em um evento inesperado, alguma coisa deve ceder: "o que todo mundo sabe" tem um contra- exemplo, e a dúvida desabrocha em descoberta, que leva ao abandono ou à extinção de uma parte duvidosa do saber local, ou os itens duvidosos se garantem com uma emenda ad hoc de um tipo ou de outro, ou se aliam com outros itens que ficaram fora do alcance do ceticismo torturante.7 Essa separação tem o efeito de isolar da refutação um subconjunto especial de itens culturais por trás do véu da invulnerabilidade sistemática - um padrão encontrado praticamente em toda parte na sociedade humana. Como muitos já advertiram (ver por exemplo, Rappaport, 1979; Palmer e Steadman, 2004), essa divisão em proposições que são planejadas para ser imunes à falta de confirmação parecem uma articulação hipotética na qual poderíamos muito bem trinchar a natureza. Exatamente aqui, sugeriram eles, é onde a (proto) ciência e a (proto-) religião se afastam. Não que os dois tipos de doutrinas muitas vezes não se encontrem inteiramente misturadas em diversas culturas. A história natural detalhada da região local, com os hábitos e as propriedades de todas as diferentes espécies intensamente observadas, é em geral mesclada a mitos e rituais que envolvem essas espécies - nas quais as divindades informam que pássaros, que sacrifícios precisam ser oferecidos antes de se caçar determinada presa, e assim por diante. A linha divisória pode, além disso, ser pouco clara, na prática: um pai conta ao filho como o estorninho dá um grito de aviso para seus parentes que pode ser ouvido pelos ursos selvagens; enquanto outro pai conta para o filho que não sabe como o urso aprende com o estorninho - talvez um deus leve a mensagem, e o filho pode muito bem contar a seu filho a respeito de um deus que protege os estorninhos e os ursos, mas não os antílopes. Pseudocientistas conhecem a tentação: sempre que sua teoria preferida fizer uma previsão que se mostrar errada, por que não deixar sua hipótese se metamorfosear um pouco em outra que, convenientemente, não possa ser questionada sob aquelas condições? Os cientistas devem ser cautelosos com essas migrações para longe da refutação, mas é uma lição dura de aprender. Ater- se à sua hipótese e deixar os fatos decidirem é um ato pouco natural, e você tem de se segurar para executá-lo. Os xamãs têm uma programação diferente: eles tentam curar e aconselham as pessoas em tempo real, e podem gratamente se esconder atrás do mistério quando o inesperado acontecer. (Um quadrinho mostra um curandeiro de pé, abatido, ao lado do corpo de um paciente falecido, dizendo para a viúva desolada: "Há tanta coisa que a gente ainda não sabe!".) A postulação de efeitos invisíveis, não detectáveis, que (ao contrário dos átomos e dos micróbios) são sistematicamente imunes à confirmação ou à refutação, é tão comum em religiões que esses efeitos são algumas vezes tomados como definitivos. Nenhuma religião deixa de tê-los, e qualquer coisa que não os tenha não é verdadeiramente uma religião, não importa quanto pareça uma religião em outros aspectos. Por exemplo, sacrifícios elaborados aos deuses podem ser encontrados em toda parte, e é claro que em lugar algum deuses surgem da invisibilidade e sentam-se para comer o maravilhoso porco assado ou beber o vinho. Ao contrário, o vinho é despejado no chão ou no fogo, onde os deuses podem curti-lo em privacidade não observável, e a participação na comida é efetuada queimando-a até se tornar cinza, ou delegando-a aos xamãs, que a comem como parte de seus deveres oficiais como representantes dos deuses. Do mesmo modo que a "clériga" de Dana Carvey exclamaria: "Muito conveniente!". Como sempre, não temos de comprometer os xamãs individualmente, ou mesmo como um grupo difuso de conspiradores, no planejamento desse raciocínio, já que ele só poderia aparecer pela replicação diferenciada dos ritos. Mas os xamãs teriam de ser bem burros se não apreciassem essa adaptação, ou se não apreciassem a necessidade de desviar a atenção dela. Em algumas culturas, apareceu uma conveniência mais igualitária: todo mundo come a comida que, de algum modo, foi também, de forma imperceptível, comida pelos deuses. Os deuses podem ter o bolo e comer o bolo. Não seria a transparência desses arranjos convenientes arriscada em demasia? Sim, então eles quase sempre são protegidos por um segundo véu: São mistérios além da compreensão! Nem tente entendê-los! E, ainda, com muita freqüência, é dado um terceiro véu: é proibido fazer muitas perguntas a respeito desses mistérios! E os próprios xamãs? Será que a curiosidade deles também fica embotada por esses tabus? Nem sempre, evidentemente. Como qualquer trabalhador consciencioso, espera-se que os xamãs notem ou suspeitem de qualquer deficiência em seus próprios desempenhos e então experimentem métodos alternativos: "Estou perdendo fregueses para aquele outro xamã; o que será que ele está fazendo que eu não estou? Será que há um jeito melhor de executar os rituais de cura?". Uma idéia popular conhecida a respeito da hipnose é que o hipnotizador de algum modo incapacita as salvaguardas do sujeito, os típicos mecanismos de defesa, sejam lá quais forem, que inspecionam a credibilidade de todo o material que entra. (Talvez ele ponha os guardas para dormir!) Uma idéia melhor é que o hipnotizador não incapacita as salvaguardas, mas, em vez disso, as coopta, transformando-as em aliados, fazendo com que dêem o aval ao hipnotizador. Uma forma de fazer isso é jogar alguns pequenos fatos para eles ("Você está ficando com sono, suas pálpebras estão pesando..."), cuja exatidão possa determinar e confirmar de imediato. Se não ficar evidente para o sujeito que o hipnoti- zador sabe esses fatos, isso cria uma leve ilusão de autoridade inesperada ("Como é que ele sabe isso?"), e então o hipnotizador, armado da bênção das salvaguardas, pode ir à luta. Essa parte de sabedoria popular mais ou menos secreta ganha algum apoio de experiências: o sucesso que um hipnotizador tem sobre um sujeito é afetado significativamente caso se diga antecipadamente ao sujeito que o hipnotizador é um novato ou se é experiente (Small e Kramer, 1969; Coe et al., 1970; Balaschak et al., 1972). Essa tática foi descoberta e explorada repetidamente pelos xamãs. Em todo lugar eles assiduamente reúnem com discrição fatos pouco conhecidos a respeito dos indivíduos que poderão vir a ser seus clientes, mas eles não param por aí.Há outras maneiras de demonstrar domínio inesperado. Como observa McClenon (2002), o ritual de caminhar sobre brasas incandescentes sem se queimar tem sido observado no mundo todo - índia, China, Japão, Cingapura, Polinésia, Sri Lanka, Grécia e Bulgária, por exemplo. Duas outras práticas disseminadas pelos xamãs são movimentos de prestidigitação, como esconder entranhas de animais que podem então ser milagrosamente "retiradas" do torso da pessoa doente em uma "cirurgia mediúnica", e o truque de ter mãos e pés amarrados e, de algum modo, conseguir com que a tenda chacoalhe ruidosamente. No imenso Espaço de Planejamento das possibilidades, esses três parecem ser os modos mais acessíveis de criar efeitos espantosamente "sobrenaturais" para impressionar os clientes, já que foram sedescober- tos vezes sem conta. "As equivalências entre as culturas parecem ser mais que coincidentes: os xamãs podem usar formas semelhantes de magia sem treinamento formal algum e sem ter tido contato com outros que usem as mesmas estratégias", afirma McClenon; então, qualquer '"explicação de difusão'parece implausível" (p. 149). Um dos fatos mais interessantes sobre esses inequívocos atos de ilusão é que os executores, ao serem pressionados por antropólogos inquisitivos, apresentam uma série de respostas. Algumas vezes obtemos uma admissão sincera de que eles estão sabidamente usando os truques de mágica de palco para enganar os clientes, e algumas vezes eles defendem essa prática como o tipo de "desonestidade sagrada" (pela causa) da qual fala o teólogo Paul Tillich (ver Apêndice A). E algumas vezes, mais interessantes, um certo nevoeiro sagrado de incompreensão desce rapidamente sobre quem responde para defendê-lo, ou a ela, de outras perguntas corrosivas. Esses xamãs não são muito trapaceiros - não todos eles, pelo menos -, e no entanto eles sabem que os efeitos que obtêm são segredos do ofício, que não devem ser revelados aos não iniciados por medo de diminuir seus efeitos. Qualquer bom médico sabe que alguns simples truques na apresentação compõem bons "modos de beira do leito" e podem fazer uma diferença enorme.8 E não é de fato desonesto, não? Cada padre, pastor, imã, rabino, guru sabe a mesma coisa, e a mesma gradação de conhecimento e inocência pode ser encontrada hoje na prática dos pregadores do revival, como é vividamente revelado no filme Marjoe, o documentário que ganhou o Oscar em 1972. O filme seguia Marjoe Gortner, um jovem pregador evangélico carismático que perdeu a fé, mas que fez uma reaparição como pregador para revelar os truques do ofício. Nesse filme, perturbador e inesquecível, ele mostra como faz as pessoas desmaiarem quando pratica a imposição das mãos, como ele as incita a dar declarações apaixonadas de seu amor por Jesus, como consegue com que elas esvaziem as carteiras nas bolsas de coleta. 9 4 . DOMESTICAÇÃO DAS RELIGIÕES Quando uma raça de plantas está bastante bem estabelecida, os criadores de sementes não escolhem as melhores plantas, mas apenas dão uma olhada nas sementeiras e retiram as "tratantes", de qualidade inferior, que é como eles chamam as plantas que se desviam do padrão adequado. [Charles Darwin, A origem das espécies] Agora começamos a ver que o que chamamos de cristandade - e o que identificamos como tradição cristã - de fato representa apenas uma pequena seleção de fontes específicas, escolhidas entre dúzias de outras. Quem fez a seleção, e por que motivos? Por que foram aqueles outros escritos excluídos e banidos como "heresia"? O que os tornava tão perigosos? [Elaine Pagels, Os evangelhos gnósticos] As religiões populares surgem das vidas diárias de pessoas que moram em pequenos grupos e compartilham de características comuns pelo mundo todo. Como e quando essas religiões populares se metamorfoseiam em religiões organizadas? Há um consenso geral entre os pesquisadores de que o grande desvio responsável foi o surgimento da agricultura e os maiores assentamentos que ela tornou tanto possíveis como necessários. Os pesquisadores discordam, no entanto, sobre o que enfatizar nessa grande transição. A criação de estocagem não portável de alimentos, e a resultante mudança para residência fixa, permitiu o surgimento de uma divisão de trabalho sem precedentes (Seabright, 2004, é especialmente claro a esse respeito), e isso, por sua vez, deu lugar a mercados e oportunidades para ocupações cada vez mais especializadas. Esses novos modos de interação entre as pessoas criaram novas oportunidades e necessidades. Quando você acha que tem de lidar em bases diárias com pessoas que não são seus parentes próximos, a perspectiva de algumas poucas pessoas que pensam de modo parecido formarem uma coalizão bem diferente de uma família extensa deve quase sempre se apresentar, e muitas vezes deve ser uma opção atraente. Boyer (2001) não é o único a argumentar que a transição da religião popular para a religião organizada foi originalmente um desses fenômenos de mercado. Ao longo da história, as guildas e outros grupos de artesãos e especialistas tentaram estabelecer preços comuns e padrões comuns para evitar que os não integrantes das guildas executassem trabalhos comparáveis. Ao estabelecer quase um monopólio, eles certificavam-se de que todos os direitos fossem para si. Mantendo preços e padrões comuns, eles tornavam difícil, para um membro especialmente habilidoso ou eficiente, vender mais barato que os outros. Desse modo, a maior parte das pessoas paga um preço pequeno para ser membro de um grupo que garanta uma porção mínima do mercado para cada um de seus integrantes, [p. 275] O primeiro passo para uma organização dessas é o maior de todos, mas os passos seguintes, de uma guilda de padres ou de xamãs para o que são, de fato, firmas (e franquias e marcas), são conseqüências quase inevitáveis da crescente consciência de si mesmos e do conhecimento de mercado daqueles indivíduos que se juntaram para formar as guildas. Cui bono? Quando indivíduos começam a se perguntar como fortalecer e preservar melhor as organizações que eles criaram, mudam radicalmente o foco da questão, trazendo à existência novas pressões seletivas. Darwin avaliou isso, e usou a transição do que chamou de seleção "inconsciente" para a seleção "metódica" como uma ponte pedagógica para explicar sua grande idéia da seleção natural no capítulo inicial de sua obra- prima. (A origem das espécies é uma ótima leitura, aliás. Do mesmo modo como ateus muitas vezes lêem "a Bíblia como literatura" e saem profundamente emocionados pela poesia e os insights sem serem convertidos, criacionistas e outros que não conseguem chegar a acreditar na evolução podem ainda assim ficar emocionados ao ler o documento fundador da moderna teoria da evolução - sem se importar se essa leitura vai mudar ou não suas cabeças a respeito da evolução). Na época atual, criadores eminentes tentam, por seleção metódica, com um objetivo distinto em vista, fazer uma nova linhagem, ou super-raça, superior a qualquer outra existente no país. Mas, para nossos objetivos, um tipo de Seleção, que pode ser chamada de Inconsciente, e que resulta do fato de todos tentarem possuir e criar a partir dos melhores animais individuais, é mais importante. Desse modo, um homem que tem a intenção de criar pointers naturalmente tenta conseguir os melhores cães que puder, e depois cria a partir de seus próprios cães melhores, mas não tem desejo ou expectativa de melhorar a raça permanentemente. No entanto, não duvido que esse processo, continuado durante séculos, melhoraria e modificaria qualquer raça... Há motivos para acreditar que o s-paniel do rei Charles tem sido inconscientemente modificado em grande extensão desde a época do monarca, [pp. 34-35] A domesticação tanto de plantas como de animais ocorreu sem qualquer intenção de sagacidade ou invenção por parte dos administradores das sementes e dos garanhões. Mas que golpe de sorte para aquelas linhagens que se tornaram domesticadas! Tudo o que resta dos ancestrais dos grãos de hoje são pequenas extensões deprimos que não passam de grama silvestre espalhada por aí, e os parentes mais próximos de todos os animais domesticados poderiam ser guardados em algumas poucas arcas. Como os carneiros selvagens foram espertos ao terem adquirido essa adaptação tão versátil, o pastor! Ao formar uma aliança simbólica com o Homo sapiens, os carneiros conseguiram terceirizar suas principais tarefas de sobrevivência: encontrar alimento e evitar predadores. Conseguiram até, como bônus, abrigo e assistência médica de urgência. O preço que eles pagam - perda da liberdade de escolher um parceiro para acasalamento, ser abatido, em vez de morto por predadores (se é que isso é um custo) - é uma ninharia se comparado ao ganho na troca, em termos de sobrevivência dos descendentes. Mas é claro que não é a esperteza deles que explica o bom negócio. E a astúcia cega, sem previsões, da Mãe Natureza, a evolução, que ratificou a base racional descomprometida desse arranjo. Os carneiros e outros animais domesticados são, na verdade, significantemente mais burros que seus parentes selvagens - porque podem. O cérebro deles é menor (em relação ao tamanho e ao peso do corpo) e isso não se deve somente ao fato de terem sido criados para aumentar a massa muscular (carne). Como tanto os animais domesticados quanto seus domesticadores sofreram enormes explosões de população (de menos de 1% da biomassa vertebrada terrestre ro mil anos atrás a mais de 98% hoje - ver Apêndice B), não pode haver dúvida de que essa simbiose foi mutualística - fortalecimento de aptidão para os dois lados. O que pretendo sugerir agora é que, na mesma época da domesticação de animais e plantas, houve um processo gradual no qual os memes selvagens (auto-sustentáveis) da religião popular se tornaram inteiramente domesticados. Eles adquiriram intendentes. Os memes que têm a sorte de ter intendentes, pessoas que irão trabalhar arduamente e usar a inteligência para promover a propagação deles e protegê-los de seus inimigos, são aliviados de grande parte da carga de manter a existência de sua própria linhagem. Em casos extremos, eles não precisam mais ser particularmente atraentes, ou apelar para nossos instintos sensuais. Os memes "tabelas de multiplicação", por exemplo, para não Falar dos memes de cálculo, são dificilmente do agrado das multidões, e no entanto são devidamente propagados pelos professores - pastores memes -, cuja responsabilidade é manter essas linhagens fortes. Os memes selvagens da linguagem e da religião popular, em outras palavras, são como ratos e esquilos, pombos e vírus de gripe - magnificamente adaptados para viver conosco e nos explorar, gostemos deles ou não. Os memes domesticados, em contraste, dependem da ajuda dos guardiões humanos para continuar a existir. As pessoas têm meditado sobre suas práticas e instituições religiosas por quase tanto tempo quanto aquele em que vêm aprimorando suas práticas e instituições agrícolas, e esses examinadores reflexivos tiveram, todos, suas agendas - concepções individuais ou compartilhadas do que era valioso e por quê. Alguns foram ajuizados, e outros, tolos, alguns, amplamente informados, e outros, ingênuos, alguns, puros e santos, e alguns, venais e maus. A hipótese de Jared Diamond a respeito da quase exaustiva pesquisa de nossos ancestrais em busca de espécies domesticáveis em suas vizinhanças (discutida no capítulo 5) pode ser ampliada. Praticantes curiosos também teriam descoberto quaisquer Bons Estratagemas que estivessem nas vizinhanças próximas, no Espaço de Planejamento de religiões possíveis. Diamond vê a transição de bandos de menos de cem pessoas para tribos de centenas, para domínios de milhares, para estados de mais de 50 mil pessoas, como uma marcha inexorável "do igualitarismo à cleptocracia", o governo dos ladrões. Falando dos domínios de um chefe, ele observa: Na melhor das hipóteses, eles fazem o bem fornecendo serviços caros, impossíveis de ser contratados em bases individuais. Na pior, eles funcionam desavergonhadamente como cleptocracias, transferindo riqueza líquida dos comuns para as classes superiores [...] Por que os comuns toleram a transferências dos frutos de seu trabalho árduo para os cleptocratas? Essa questão, levantada por teóricos políticos de Platão a Marx, é evocada de novo pelos votantes em cada eleição moderna. [1997, p. 276] Os cleptocratas tentaram quatro maneiras para manter seu poder: (1) desarmar o populacho e armar a elite; (2) tornar as massas felizes redistribuindo grande parte dos tributos recebidos; (3) usar o monopólio da força para promover felicidade, mantendo a ordem pública e reprimindo a violência; (4) construir uma ideologia ou religião que justifique a cleptocra- cia (p. 277). Como pode uma religião sustentar uma cleptocracia? Com uma aliança entre os líderes políticos e os padres, é claro, na qual, em primeiro lugar, declara-se ser o líder divino, ou descendente de deuses, ou, como Diamond apresenta, pelo menos possuir uma "linha direta com os deuses". Além de justificar a transferência de riqueza para os cleptocratas, a religião institucionalizada traz dois outros importantes benefícios para as sociedades centralizadas. Primeiro, a ideologia compartilhada, ou religião, ajuda a resolver o problema de como os indivíduos que não são parentes devem viver juntos sem se matar - dando a eles uma ligação que não é baseada em parentesco. Segundo, dá às pessoas um motivo, além do interesse genético, para sacrificar suas vidas em favor dos outros. À custa de alguns membros da sociedade, que morrem em batalha como soldados, a sociedade como um todo se torna muito mais eficaz em conquistar outras sociedades ou resistir a ataques, [p. 278] Desse modo, encontramos os mesmos dispositivos inventados outra vez, em praticamente todas as religiões, e em muitas organizações não religiosas também. Nada disso é novo - como lorde Acton disse há mais de um século, "Todo poder tende a corromper; o poder absoluto corrompe absolutamente" -, mas houve um tempo em que isso era novidade, quando nossos ancestrais estavam pela primeira vez explorando revisões de projeto para as nossas instituições mais potentes. Por exemplo, aceitar um status inferior ao de um deus invisível é um estratagema astuto, a despeito de sua astúcia ser conscientemente reconhecida por aqueles que tropeçam nela. Aqueles que se apoiam nela prosperam, conscientemente ou não. Como sabe todo subordinado, as ordens são ainda mais eficazes se puderem ser acompanhadas de uma ameaça de contar para o chefe superior se houver desobediência. (Variações desse estratagema são bem conhecidas dos subalternos da Máfia e vendedores de carros usados, entre outros - "não estou autorizado a fazer uma oferta dessas, de modo que tenho de confirmar com o meu chefe. Desculpe- me um minuto".) Isso ajuda a explicar o que, de outro modo, é uma espécie de enigma. Qualquer ditador depende da fidelidade de sua equipe imediata - simplesmente porque dois ou três deles poderiam sobrepujá-lo com facilidade (ele não pode andar por aí com as adagas desembainhadas). Como você, na condição de ditador, poderia garantir que sua equipe considerasse a lealdade a você acima de quaisquer idéias que ela pudesse muito bem ter de substituí-lo? Introduzir o medo de um poder mais alto na cabeça deles é uma jogada muito boa. E freqüente haver, sem dúvida, uma não declarada détente entre o sacerdote primaz e o rei - um precisa do outro por causa de seu poder, e juntos eles precisam dos deuses no céu. Walter Burkert é especialmente maquiavélico em sua apresentação de como esse estratagema traz em sua esteira a instituição do louvor ritual, e observa algumas de suas complexidades úteis: Pela força de sua competência verbal [o padre] não só é elevado a um nível superior na imaginação, mas consegue reverter a estrutura da atenção: é o superior que deve prestar atenção à cantiga ou ao discurso de louvor do inferior. O louvor é a forma reconhecida de fazer barulho na presença de superiores; de forma bem estruturada, tende a se tornar música. Olouvor sobe às alturas como o incenso. Desse modo, a tensão entre alto e baixo se concentra e distende, já que o mais baixo estabelece seu lugar dentro de um sistema que ele aceita de modo enfático. [1996, p. 91] Os deuses vão lhe pegar se você tentar se opor a qualquer um de nós. Já indicamos o papel dos rituais, tanto os ensaios individuais como as sessões em uníssono de absorção de erros, ao fortalecer a fidelidade da transmissão memética, e observamos que essa transmissão é reforçada tornando cara a não-participação. Além do mais, como sugere Joseph Bulbulia, "Pode ser que os rituais religiosos ponham em exposição o poder natural de uma comunidade religiosa, uma impressionante demonstração aos desertores em potencial daquilo com que se confrontam" (2004, p. 40). Mas o que conduz o espírito da comunidade? Será que o projeto de manter os grupos unidos é, principalmente, apenas uma forma de os cleptocratas inventarem modos de preservar seus carneiros? Ou será que há uma história mais benigna a ser revelada? * * * Capítulo 6. A transmissão de religião tem sido tratada por inúmeras revisões, muitas vezes deliberadas e precavidas, à medida que as pessoas que ingressavam nelas se tornavam intendentes das idéias, domesticando-as. Segredo, impostura e invulnerabilidade sistemática à refutação são alguns dos fatos que surgiram, e eles foram planejados por processos sensíveis, novas respostas ao cui bono?, já que os motivos dos intendentes entraram no processo. * * * Capítulo 7. Por que as pessoas entram para grupos? Será isso simplesmente uma decisão racional da parte delas, ou será que há forças relativamente irracionais de seleção de grupos em funcionamento? Embora haja muito a dizer em favor dessas duas propostas, elas não esgotam os modelos plausíveis que tentam explicar nossa presteza em formar lealdades duradouras. 7- A INVENÇÃO DO ESPÍRITO DE EQUIPE 1. UM CAMINHO CALÇADO DE BOAS INTENÇÕES E aí vem o embuste. Só uma pessoa má precisa se arrepender; só uma pessoa boa consegue se arrepender perfeitamente. Quanto pior você for, mais você precisa e menos você consegue. A única pessoa que conseguiria se arrepender perfeitamente seria uma pessoa perfeita - e ela não precisaria do arrependimento. [C. S. Lewis, Mere Christianity] TODO SISTEMA de controle, seja o sistema nervoso de um animal, o sistema de crescimento e auto-restauração de uma planta, ou um artefato planejado, como o sistema de orientação de um avião, é projetado para proteger alguma coisa. E essa coisa deve incluir ela mesma! (Se "morrer" prematuramente, a missão falhou, seja ela o que for.) O "interesse próprio" que define desse modo a avaliação da maquinaria de todos os sistemas de controle pode se estilhaçar, no entanto, quando um sistema de controle começa a ser reflexivo. A reflexibilidade humana abre um rico campo de oportunidades para que revisemos nossas metas, incluindo nossos objetivos mais amplos. Quando você consegue começar a pensar a respeito dos prós e dos contras de se unir a uma coalizão existente, em contraposição a separar- se e iniciar uma nova, ou a respeito de lidar com os problemas de lealdade entre sua família, ou a necessidade de mudar a estrutura de poder do seu ambiente social, você cria vias pelas quais escapar das suposições-padrão de seu planejamento inicial. Sempre que um agente - um sistema intencional, na minha terminologia - toma uma decisão a respeito de como melhor proceder, considerando todas as situações, podemos perguntar da perspectiva de quem essa otimização está sendo julgada. Uma suposição default mais ou menos padrão, pelo menos no mundo ocidental, e especialmente entre economistas, é tratar cada agente humano como um tipo de lócus de bem-estar isolado e individualista. O que eu ganho com isso? Egoísmo racional. Mas embora tenha de haver alguma coisa no papel da própria pessoa - alguma coisa que responda ao cui bono? para o tomador de decisão que está sendo examinado -, não há necessidade disso nesse tratamento-padrão, mesmo sendo ele tão comum. O próprio-como- principal-beneficiário pode em princípio ser indefinidamente distribuído no tempo e no espaço. Eu me preocupo com os outros, ou com uma estrutura social mais ampla, por exemplo. Nada há que me restrinja a um mim, contrastado a um nós.' Eu ainda posso adotar a minha tarefa de procurar o Número Um, ao mesmo tempo que incluo sob o Número Um não apenas eu mesmo, não apenas a minha família, mas também o islã, ou a Oxfam, ou os Chicago Bulls! A possibilidade, aberta pela nossa evolução cultural, de instalar essas novas perspectivas no nosso cérebro é o que dá à nossa espécie, e apenas à nossa espécie, a capacidade de pensamento moral - e imoral. Eis aqui uma trajetória bem conhecida: você começa com um desejo sincero de ajudar outras pessoas e a convicção, seja ela bem ou mal fundamentada, de que sua guilda, ou clube, ou igreja é a coalizão que mais bem serve para melhorar o bem-estar de outros. Se os tempos forem especialmente duros, essa intendência condicional - estou fazendo o que é bom para a guilda porque isso será bom para todos - pode ser deslocada pela preocupação mais estreita com a integridade da própria guilda, e por um bom motivo: se você acredita que a instituição em questão é o melhor caminho para a bondade, a meta de preservá-la para projetos futuros, ainda não imaginados, pode ser a meta racional mais alta que você pode definir. Esse passo é curto, para daí perder o rumo ou até mesmo apagar o objetivo maior e dedicar-se ao propósito único de promover os interesses da instituição, não importa a que custo. Uma aliança de fidelidade condicional ou instrumental pode então se tornar indistinguível, na prática, de um compromisso com alguma coisa que seja "boa em si". Mais um outro passo curto perverte esse summum bonum paroquial em direção à meta mais egoísta de fazer o que seja preciso para que você se mantenha no leme da instituição ("Quem melhor do que eu para triunfar sobre nossos inimigos?"). Todos nós já vimos isso acontecer muitas vezes, e pode ser que tenhamos até nos apanhado no ato de esquecer exatamente por que quisemos ser líderes. Essas transições fazem com que decisões conscientes afetem questões que anteriormente tinham sido trilhadas pelo processo sem previsão da replicação diferencial por seleção natural (ou memes, ou genes), e isso cria novos rivais como respostas à pergunta cwi bono?. O que é bom pode não coincidir com o que é bom para a o líder da instituição, mas esses padrões diferentes têm um modo de ser substituídos uns pelos outros sob a pressão do controle reflexivo em tempo real. Quando isso acontece, as bases racionais descomprometidas que são cegamente esculpidas por competições anteriores podem passar a ser ampliadas ou até substituídas por motivos fundamentais representados, motivos básicos que não estão apenas ancorados em mentes individuais, em diagramas e planos, e em conversas, mas usados - sujeitos a argumentos, raciocínios, concordâncias. As pessoas então se tornam intendentes conscientes de seus memes, sem considerar sua sobrevivência garantida do mesmo modo como temos a linguagem como garantida, mas adotando a meta de promover, proteger, enfatizar e espalhar a Palavra.2 Por que as pessoas querem ser intendentes de sua religião? E óbvio, não? Elas acreditam que esse é o modo de levar uma vida moral, uma vida boa, e querem sinceramente ser boas. Será que têm razão? Observe que essa não é a questão de por que as religiões aumentaram a aptidão biológica humana. Aptidão biológica e valor moral são duas questões inteiramente diferentes. Adiei a questão da aptidão até podermos ver que, embora seja uma boa pergunta, empírica, uma questão que deveríamos tentar responder, o fato de respondê-la deixaria inteiramente aberta a questão a respeito de se deveríamos ser intendentes de religião. Com esse ponto firmemente estabelecido, vamos, por fim, considerar - não responder - a questão de se, afinal, as religiões populares e as religiões organizadas nas quais elas se transformaramtrouxeram benefícios de aptidão àqueles que as praticam. Essa questão tem preocupado antropólogos e outros pesquisadores há séculos, muitas vezes porque eles a confundiram com a questão do valor (moral) supremo da religião, e não faltam hipóteses familiares a serem exploradas, depois que tivermos limpado o caminho. Duas das hipóteses mais plausíveis receberão maior atenção em capítulos posteriores, de modo que por hora vou só reconhecê-las. Dunbar (2004) resume uma delas muito bem: Por certo não é por acidente que todas as religiões prometem a seus adeptos que eles - e somente eles - são os "escolhidos de Deus", com salvação garantida, sem importar o resto, estão seguros de que o Todo-Poderoso (ou seja lá a forma que os deuses adotem) irá assisti-los em suas dificuldades atuais se as preces e os rituais corretos forem praticados. Isso sem dúvida introduz um profundo sentimento de conforto em tempos de adversidade, [p. 191] Observe que o conforto em si, ou por si próprio, não seria um impul- sor da aptidão a não ser que também fossem dadas (como quase certamente o são) as vantagens práticas de resolução e confiança, tanto na tomada de decisão como na ação. Que a força esteja contigo! Quando você tem de enfrentar a quase sempre aterradora incerteza de um mundo perigoso, a crença de que alguém vela por você pode muito bem ser um impulsor moral decisivamente eficaz, capaz de transformar pessoas que, de outro modo, estariam incapacitadas pelo medo, em bravos agentes. Essa é uma hipótese a respeito da eficácia individual em tempos conflituosos, e pode - ou não - ser verdadeira. Uma hipótese inteiramente diferente é que a participação na religião (em penosos ritos de iniciação, por exemplo) cria ou fortalece as ligações de confiança que permitem a grupos de indivíduos agir juntos com muito maior eficiência. Versões dessa hipótese da aptidão de grupos já foram apresentadas por Boyer, Burkert, Wilson e muitos outros. Pode ou não ser verdadeira - na verdade, as duas hipóteses poderiam ser verdadeiras, e deveríamos tentar confirmar ou refutar as duas, nem que fosse pelo esclarecimento que isso lançaria (nada além disso) sobre a questão do valor moral da religião. 2. A COLÔNIA DE FORMIGAS E A CORPORAÇÃO A religião existe principalmente para que as pessoas consigam, juntas, o que não conseguem alcançar sozinhas. [David Sloan Wilson, Daruins Cathedral] Mas quais são os benefícios; por que motivo as pessoas querem uma religião? Elas a querem porque a religião é a única fonte plausível de certeza de determinadas recompensas para as quais existe uma demanda geral e inesgotável. [Rodney Stark e Roger Finke, Acts of Faith] Por que as pessoas se unem a grupos? Porque elas querem - mas por que querem? Por diversos motivos, incluindo o óbvio: para proteção mútua e segurança econômica, para promover eficiência nas colheitas e outras atividades necessárias, para obter projetos em grande escala que, de outro modo, seriam impossíveis. Mas a utilidade manifesta desses arranjos de grupos não explica por si só como é que elas se realizam, já que há barreiras a ultrapassar, sob a forma de medo e hostilidade mútuos, e a perspectiva sempre presente de deserção ou traição oportunista. Nossa incapacidade de alcançar uma cooperação verdadeiramente global, apesar dos argumentos persuasivos que demonstrem os benefícios a serem alcançados, e apesar de muitas campanhas fracassadas, destinadas a criar instituições de capacitação, mostra que a cooperação e a lealdade limitadas que experimentamos são uma realização rara. De algum modo conseguimos nos civilizar até determinado ponto e de uma forma que outras espécies nem sequer tentaram, pelo que sabemos. Outras espécies muitas vezes formam populações que se juntam em rebanhos, bandos ou cardumes, e fica claro que esses agrupamentos, quando ocorrem, são adaptativos. Mas não somos animais herbívoros, por exemplo, e entre os símios forrageiros (e predadores) que são os nossos parentes mais próximos, os maiores grupos estáveis são geralmente restritos aos parentes próximos, famílias extensas às quais os recém- chegados só são admitidos depois de uma luta e de um teste. (Entre os chimpanzés, os recém-chegados são sempre fêmeas que emigram de seus grupos originais para encontrar parceiros; qualquer macho que tente se unir a outro grupo seria sumariamente morto.) Não há mistério sobre por que nós, como outros símios, teríamos desenvolvido uma ânsia pela companhia dos co-específicos, mas esse instinto gregário tem seus limites. É notável que tenhamos aprendido a ficar à vontade na companhia de estranhos, como Seabright (2004) diz, e uma idéia sempre persuasiva em relação à religião é que ela serve para incentivar exatamente essa coesão grupai, e transforma populações de desafortunadas pessoas sem relação e mutuamente desconfiadas, em famílias com laços estreitos, ou até superorganismos muito eficazes, como colônias de formigas ou colméias de abelhas. A solidariedade impressionante alcançada por muitas organizações religiosas não está em dúvida, mas será que isso poderia explicar o surgimento e a existência continuada das religiões? Muitos acharam que sim, mas exatamente como isso poderia funcionar? Os teóricos de todas as denominações religiosas concordam que a P&D exigida para estabelecer e manter um sistema desses deve ser realizada de algum modo, e à primeira vista parece haver apenas dois caminhos a serem escolhidos: a rota da colônia de formigas e a rota da corporação. A seleção natural moldou o projeto das formigas ao longo de várias eras, fabricando os tipos individuais de formigas como especialistas que coordenam de modo automático seus esforços para que o resultado seja uma colônia normalmente harmoniosa e vigorosa. Não houve formigas individualmente heróicas que calcularam e implementaram tudo. Não havia necessidade, já que a seleção natural fez todas as tentativas de acerto e erro para elas, e não há nem nunca houve nenhuma formiga individual - ou conselho de formigas - para desempenhar o papel de governador. Em contraste, são precisamente as escolhas racionais de seres humanos, individualmente, que dão existência a uma corporação: eles projetam a estrutura, concordam com a incorporação e depois governam suas atividades. Agentes racionais individuais, que olham para seus próprios interesses e, fazendo análises individuais de custo-bene- fício, tomam as decisões que moldam, direta ou indiretamente, as características da corporação. Será que a robustez de uma religião, sua capacidade de perseverar e progredir, em desafio à segunda lei da termodinâmica, é como a robustez de uma colônia de formigas ou de uma corporação? Será que a religião é o produto de um instinto evolucionário cego, ou uma escolha racional? Ou haverá alguma outra possibilidade? (Poderia ser um dom de Deus, por exemplo?) O fracasso em fazer - quanto mais em responder - essa pergunta é a acusação que há muito tempo tem sido usada para desacreditar a escola funcionalista da sociologia, iniciada por Emile Durkheim. De acordo com seus críticos, os funcionalistas trataram as sociedades como se elas fossem coisas vivas, mantendo sua saúde e vigor por meio de uma multidão de ajustes em seus órgãos, sem mostrar como a P&D exigida para o projeto e o ajuste desses superorganismos foi levada a efeito. Essa crítica é essencialmente a mesma apontada por biólogos evolucionistas à hipótese da Gaia, de Lovelock (1979), e outras. De acordo com a hipótese da Gaia, a biosfera da Terra é ela mesma um tipo de superorganismo, mantendo seus diversos equilíbrios com o fim de preservar a vida no planeta. Uma bela idéia, mas, como disse Richard Dawkins, de modo sucinto: Para que a analogia se aplicasse rigorosamente, deveria haver um conjunto de Gaias rivais, supostamente em diferentes planetas. Biosferas que não desenvolvessem reguladores homeostáticos eficientes para suas atmosferas planetárias tenderiam a se extinguir [...]. Além disso, nós teríamos de postular algum tipo de reprodução, por meio da qual os planetas bem-sucedidosdisseminassem cópias de suas formas vivas em outros planetas. [1982,1999, p. 236] Os entusiastas da Gaia, se quiserem ser levados a sério, devem levantar, e responder, a questão de como os supostos sistemas homeostáticos foram projetados e instalados. Os funcionalistas nas ciências sociais devem assumir o mesmo fardo. Entra aí David Slan Wilson (2002) e sua "teoria da seleção multinível", para tentar fazer com que um tipo de funcionalismo não perca o dia, fixando o processo do projeto ao mesmo algoritmo da P&D que explica o resto da biosfera. De acordo com Wilson, as inovações de planejamento que funcionam sistematicamente para ligar grupos humanos são o resultado da descendência do darwinismo com modificação orientada pela replica- ção diferenciada do mais apto, em muitos níveis, inclusive o nível do grupo. Em resumo, ele aceita o desafio de mostrar que a competição entre grupos rivais levou à extinção de grupos mal projetados, ao fracassarem na competição com grupos mais bem desenhados, que foram os beneficiários das bases racionais descomprometidas (para apresentar a coisa do meu jeito) que nenhum de seus membros precisava entender. Cui bono? A aptidão do grupo deve estar acima da aptidão individual de seus membros, e se os grupos devem ser os principais beneficiários, eles devem ser concorrentes. A seleção pode continuar em diversos níveis, ao mesmo tempo, no entanto, graças às competições nos diversos níveis. Os críticos há muito têm zombado das invocações dos funcionalistas de alguma coisa como a sabedoria mística da sociedade (como a imaginada sabedoria de Gaia), mas Wilson tem razão em insistir que não é preciso haver nada de místico ou até de misterioso para que as funções amigáveis dos grupos de Durkheim sejam instaladas por processos evolutivos - se ele conseguir demonstrar os processos de seleção de grupos. A sabedoria distribuída de uma colônia de formigas, que é de fato um tipo de superor- ganismo, tem sido analisada em profundidade e detalhe por biólogos evo- lucionistas, e não há dúvida de que os processos evolutivos podem moldar adaptações de grupos sob condições especiais, como as que prevalecem entre os insetos sociais. Mas as pessoas não são formigas, nem se parecem muito com formigas, e só as ordens religiosas mais rigidamente disciplinadas chegam próximo da inflexibilidade fascista dos insetos sociais. As mentes humanas são dispositivos de exploração altamente complexos, ques- tionadoras de cada detalhe do mundo que elas encontram, de modo que é melhor a evolução acrescentar alguns sinos e assovios notáveis às suas adaptações à tendência de formar grupos dos seres humanos, se for para haver alguma chance de sucesso pela rota da seleção de grupos. Wilson acha que a competição entre grupos religiosos, com sobrevivência e replicação diferenciadas de alguns desses grupos, pode gerar (e "pagar pelas") as excelentes características de projeto que observamos nas religiões. O pólo teórico oposto - a única alternativa, ou pelo menos assim parece, à primeira vista - é ocupado pelos teóricos da escolha racional, que surgiram recentemente para desafiar a suposição amplamente disseminada pelos cientistas sociais de que a religião é algum tipo de maluquice. Como Rodney Stark e Roger Finke (2000) observam com desdém, "Durante mais de três séculos a sabedoria-padrão da ciência social foi que o comportamento religioso deve ser irracional exatamente porque as pessoas fazem sacrifícios em nome de sua fé - uma vez, é óbvio, que nenhuma pessoa racional faria uma coisa dessas" (p. 42), mas, como eles insistem: Não é preciso ser uma pessoa religiosa para apreender a racionalidade subjacente do comportamento religioso, não mais do que se precisa ser criminoso para imputar racionalidade a muitos atos de desvio comportamental (como fazem as principais teorias de crime e desvios) [...]. O que estamos dizendo é que o comportamento religioso - no grau em que ele ocorre - é geralmente baseado em cálculos de custo-benefício, e é portanto um comportamento racional exatamente no mesmo sentido em que outro comportamento humano é racional, [p. 36] As religiões são mesmo como corporações, alegam eles: "Organizações religiosas são empresas sociais cujo objetivo é criar, manter e fornecer religião a alguns conjuntos de indivíduos e apoiar e supervisar seus intercâmbios com um Deus ou deuses" (p. 103). A demanda pelos artigos que a religião tem a oferecer não é elástica; em um mercado livre de escolha de religiões (como nos Estados Unidos, onde não há uma religião do Estado, e há muitas seitas concorrentes) existe uma competição vigorosa entre as seitas pela dominação do mercado - uma aplicação direta da economia do "lado de oferta". Mas como Wilson observa em uma comparação útil entre a teoria dele e a dos outros, mesmo se tivéssemos de admitir que agora é racional, para os membros da igreja, considerarem o que é basicamente uma decisão de mercado a respeito de em qual religião investir (suposição que examinaremos em breve), isso não atende à questão da P&D: Mas como foi que a religião adquiriu sua estrutura que adaptativamente restringe a escolhas de maximizadores de utilidade exatamente do jeito certo? Devemos explicar a estrutura da religião além do comportamento de indivíduos, uma vez que a estrutura esteja no lugar. Será que costumes bizarros foram conscientemente inventados por atores racionais tentando maximizar suas utilidades? Se for assim, por que eles têm a utilidade de maximizar o bem comum de sua igreja? Será que devemos realmente atribuir todas as feições adaptativas de uma religião a um processo psicológico de raciocínio custo- benefício? Não será possível um processo de variação cega e de retenção seletiva? Afinal, milhares de religiões nascem e morrem sem serem notadas porque nunca atraíram mais de alguns poucos membros (Stark e Bainbridge, 1985). Talvez as feições adaptativas das poucas que sobrevivem sejam como mutações aleatórias, e não o produto de uma escolha racional, [p. 82] Wilson tem razão em enfatizar a alternativa de um processo de variação cega e retenção seletiva, mas, ao se agarrar à sua versão radical de seleção de grupo, ele perde uma oportunidade melhor: o processo de planejamento evolutivo que nos deu as religiões envolve a replicação diferenciada de memes, não de grupos,3 Wilson menciona isso brevemente como uma alternativa, mas afasta-a sem sequer um olhar, muito porque ele encara a doutrina que as define como aquela em que as características religiosas devem ser disfuncionais. Ele acha que a teoria dos memes exige que todos os memes religiosos sejam parasitas (redutores da aptidão), e raramente, se é que alguma vez, comensais neutros em aptidão, ou mutualistas que enfatizam a aptidão.4 Aqui Wilson é induzido a erro por um mal-entendido comum: Richard Dawkins, que cunhou o termo meme, não é amigo de religião e muitas vezes comparou os memes - memes religiosos, em particular - a vírus, enfatizando a capacidade que têm de se proliferar, a despeito dos efeitos deletérios sobre seus hospedeiros humanos. Embora essa alegação dissonante deva ser considerada uma possibilidade importante, não poderíamos nos esquecer de que a grande maioria dos memes, como a grande maioria dos simbiontes bacterianos e virais que habitam nosso corpo, é neutra ou até útil (da perspectiva da aptidão do hospedeiro). Aqui, então, está minha alternativa memética suave à hipótese do nível de grupos de Wilson: Os memes que promovem a solidariedade nos grupos humanos são especialmente aptos (como memes), sobretudo em circunstâncias nas quais a sobrevivência do hospedeiro (e portanto a aptidão do hospedeiro) depende mais diretamente do fato de o hospedeiro juntar suas forças em grupos. O sucesso desses grupos infestados de memes é, ele mesmo, um potente dispositivo de irradiação, fortalecendo a curiosidade (e inveja) fora do grupo, e portanto permitindo que os limites lingüísticos, étnicos e geográficos sejam mais prontamente ultrapassados. Assim como na teoria mais radical da seleção de grupos