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MENESES_Rumo a uma História visual

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Versão 2 (14.06.05) 
 
RUMO A UMA �“HISTÓRIA VISUAL�” 
 
Ulpiano T.Bezerra de Meneses 
Departamento de História �– FFLCH/USP 
 
 O título deste texto já deixa claro não se tratar de um balanço ou 
sistematização. �“Rumos�” pressupõe direção de caminhada, 
eventualmente obstáculos superados ou a superar. Quanto a �“História 
Visual�”, vem entre aspas, para indicar que não se trata de mais uma 
migalha, como diria François Dosse, na atomização pela qual a 
disciplina vem passando, mas simplesmente de um campo de operação 
de grande valor estratégico para o conhecimento histórico da 
sociedade, na sua organização, funcionamento e transformação. 
 
 Nessa perspectiva, também não tenho a pretensão de definir 
epistemologicamente o que seja História Visual -- sobretudo porque 
não identifico especificidade epistemológica suficiente. Aliás, os cortes 
e segmentos disciplinares costumam fundamentar-se menos em 
critérios epistemológicos e mais em critérios corporativos, políticos e 
administrativos: e este não é o caso. Assim, conviria incorporar a 
visualidade como dimensão possível de ser explorada em qualquer dos 
segmentos correntes da História. 
 
 Por fim, não procurei prioritariamente originalidade ou caminhos 
revolucionários. Antes, considerei oportuno levantar e sistematizar 
informações e problemas que têm estado no foco de minhas atividades 
profissionais de pesquisa e docência e que respondem a preocupações 
motivadas pelo exame do volume crescente de dissertações e teses em 
História, que enveredam por caminhos tortuosos ou simplistas, no 
domínio dos fenômenos visuais e, principalmente, no uso de fontes 
visuais. Com essa motivação, ao invés de tomar estudos substantivos 
para análise, preferi multiplicar as referências a trabalhos de 
compromissos teórico-conceituais e metodológicos, que pudessem 
fornecer um amplo referencial para fins de orientação imediata e abrir 
campo para a reflexão. 
 
 
QUADROS PARA UMA HISTÓRIA VISUAL 
 
 Vários especialistas, entre os quais Martin Jay1, pretendem que 
esteja ocorrendo uma verdadeira �“virada figurativa�” (pictorial turn), 
depois do linguistic turn que marcou as ciências sociais há algum 
tempo. Diz ele: 
 
 �“O modelo da �‘leitura de textos�’, que serviu eficazmente como 
metáfora principal 
para as interpretações pós-objetivistas de muitos diferentes 
fenômenos, está agora 
dando lugar a modelos de observação e visualidade, que 
recusam ser redescritos 
inteiramente em termos lingüísticos. O figurado está resistindo 
à subordinação sob 
a rubrica da discursividade; a imagem está reivindicando seu 
próprio modo de 
análise�” (p.1). 
 
1 Martin, Jay, �“Vision in context: reflections and refractions�”, in: 
Teresa Brennan & Martin Jay, eds., Vision in context. 
Historical and contemporary perspectives on sight, London, 
Routledge, 1996, p.1-14. 
 
 Não creio, porém, que esteja ocorrendo a repetição de algo tão 
abrangente quanto a virada lingüística. Creio, sim, que os problemas 
visuais têm despertado interesse crescente, juntamente com outras 
dimensões sensoriais da vida social. Afinal, é pela mediação dos cinco 
sentidos e seus suportes que a vida social é viável. De outra forma ela 
seria um conjunto de automatismos ou meros fenômenos mentais e 
psíquicos enclausurados. A História, porém, diferentemente da 
Antropologia e da Sociologia, não definiu uma problemática visual 
específica que pudesse concentrar sua atenção, mas privilegiou o 
tratamento da imagem �– e mesmo da imagem como documento 
discursivo, deixando de margem sua múltipla presença na vida social2. 
 
 A meu ver, um dos principais pré-requisitos para que a História, sem 
arrefecer seus recentes compromissos com as �“fontes visuais�”, passe 
também a considerar a dimensão visual presente no todo social, seria a 
organização paulatina de um quadro de referenciais, informações, 
problemas e instrumentos conceituais e operacionais (inclusive para 
cruzamento de dados), relativos a três grandes feixes de questões: o 
visual, o visível e a visão. Sem essas coordenadas, pouco se sairia do 
vôo cego, em que às vezes as nuvens permitem entrever somente 
pequenas paisagens desconexas. Trata-se não de objetos ou objetivos 
imediatos de pesquisa, mas de uma deposição paulatina e cumulativa, 
capaz de criar um capital cognitivo, uma espécie de vasto andaime que 
torne mais seguros e factíveis os projetos individuados. Naturalmente, 
esse quadro pode, desde já, servir de baliza ou de horizonte, ou ainda 
de orientação, para definir estratégias. Conviria, pois, examinar o 
conteúdo, de tais feixes de questões, observando que não se trata de 
classes estanques, sem interação, mas tão somente de espaços 
gravitacionais. 
 
 
O visual 
 
 É preciso procurar identificar os sistemas de comunicação visual, os 
ambientes visuais das sociedades ou cortes mais amplos em estudo. 
Assim também as instituições visuais ou os suportes institucionais dos 
sistemas visuais (p.ex. escola, empresa, administração pública, o 
museu, o cinema, a comunicação de massa, etc.), as condições 
técnicas, sociais e culturais de produção, circulação, consumo e ação 
dos recursos e produtos visuais. Enfim, é necessário circunscrever o 
que vem sendo chamado de iconosfera, isto é, o conjunto de imagens-
guia de um grupo social ou de uma sociedade num dado momento e 
com o qual ela interage. Não se pode tomar a iconosfera, obviamente, 
apenas como o elenco de imagens disponíveis (basta atentar para a 
Internet e concluir que tal tarefa seria inviável e de pouca serventia); 
trata-se, sim, de identificar as imagens de referência, recorrentes, 
catalisadoras, identitárias �– ou aquelas que, em linguagem não técnica, 
são conhecidas como emblemáticas ou ícones e integram aquelas 
redes de imagens, como as estudadas por Lina Bolzoni3 no Medievo 
italiano . 
 
 A maior parte da bibliografia se concentra aqui, já que neste nicho é 
que se localizam as questões mais relevantes associadas a imagens. 
 
 
2 Este texto desenvolve parte do que já expus em 2003, num 
quadro que procurava situar a História em relação à 
Antropologia Visual, à Sociologia Visual, à História da Arte e 
aos Estudos Visuais ( Ulpiano T. Bezerra de Meneses, �“Fontes 
visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, 
propostas cautelares�”, Revista Brasileira de História, v.23, n.45, 
São Paulo, ANPUH, 2003, p.11-36). 
 
3 Lina Bolzoni, La rete delle immagini. Predicazione in volgare 
dalle origini a Bernardino da Siena, Torino, Einaudi, 2002. 
 
 
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O visível 
 
 O visível (com, naturalmente, sua contrapartida, o invisível) 
representa o domínio do poder e do controle, o ver / ser visto, dar-se / 
não se dar a ver, os objetos de observação obrigatória assim como os 
tabus e segredos, as prescrições culturais e sociais e os critérios 
normativos de ostensão, ostentação ou discrição �– em suma, de 
visibilidade e invisibilidade. 
 
 Muito devem os historiadores, neste campo, a sociólogos e 
antropólogos que, sem compromissos específicos, introduziram ou 
exploraram o problema da visibilidade/invisibilidade como ingrediente 
da vida social: a etiqueta como sistema visual (Norbert Elias), as 
relações em público e a teatralidade das práticas sociais (Erwin 
Goffman, Victor Turner), as marcas visíveis de identidade, status e 
crenças (Richard Sennett), a observabilidade da interação social 
(Georg Simmel), o Panopticum, o controle de loucos, criminosos, 
pobres, do corpo feminino, da identidade, a dominação patriarcal 
(Foucault), as expressões visuais da proxemística (Edward Hall) -- e 
assim por diante. 
 
 Os �“regimes escópicos�”, a espetacularização da sociedade e o 
oculocentrismo são outros temas centrais neste tópico �– os dois últimos 
pertinentes, sobremaneira, à sociedade capitalista. Guy Debord4 (1967) 
é o primeiro nome que vem à mente quando se falade sociedade do 
espetáculo �– espetáculo não como uma coleção de imagens, mas 
como uma relação social entre pessoas mediadas por imagens; em 
suma, o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna 
uma imagem. Aqui se tem a possibilidade de examinar a 
visibilidade/invisibilidade em funcionamento e em alta escala. 
 
 O oculocentrismo é o privilegiamento epistemológico da visão, cuja 
hegemonia caracteriza a modernidade. Desemboca na assimilação do 
conhecimento à visualização (como nos telejornais), à aceitação de que 
o evento se realiza na imagem ou não tem existência social. Aliás, a 
imagem acaba por dispensar o evento (é a pseudo-imagem de que fala 
Daniel Boorstin5 (1992). O oculocentrismo tem suscitado vasta 
bibliografia de crítica social6. 
 
 No pólo inverso, tem-se tratado a invisibilidade como conseqüência 
de um processo de desmaterialização da vida contemporânea, que 
acarreta a dispensa da visibilidade: o sensoriamento remoto, o 
diagnóstico médico por imagem, o desaparecimento da apreensão de 
tempo e espaço como categorias de experiência (veja-se, por exemplo, 
a inutilidade do olhar no registro dos resultados das competições nos 
Jogos Olímpicos). Valendo-se de Henri Lefebvre, José de Souza 
Martins7 retoma o tema da �“ditadura do olho�” associada ao 
desaparecimento do corpo: a visualização intensa redunda não numa 
iluminação, mas no rechaço da experiência e do vivido. 
 
 Em todo caso, poder e figuração visual são indissociáveis. 
Introduzindo a coletânea por eles organizada e intitulada Figurando o 
 
4 Guy Debord, , La société du spectacle, Paris, Gallimard, 1967. 
5 Daniel J. Boorstin, The image. A guide to pseudo-events in 
America, New York, Vintage Books, 1992. 
6 cf. Georgia Warnke, �“Ocularcentrism and social criticism�”, in: 
David Michael Levin, ed., Modernity and the hegemony of 
vision, Berkeley, University of California Press, 1993, p.287-
308. 
7 José de Souza Martins, �“A peleja da vida cotidiana em nosso 
imaginário onírico�”, in: J.de S.Martins, org., (Des)figurações. A 
vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole, São Paulo, 
Hucitec, 1996 p. 15-72. 
poder: representação visual e relações sociais, Gordon Fyfe e John 
Law8 assim se manifestaram: 
 
�“Uma figuração nunca é apenas uma ilustração É a 
representação material, o 
produto aparentemente estabilizado de um processo de 
trabalho. E é o lugar para 
a construção e figuração da diferença social. Entender a 
visualização, assim, é 
indagar sua proveniência e o trabalho social que ela realiza. 
Devem-se notar seus 
princípios de exclusão e inclusão, detectar os papéis que ela 
torna disponíveis 
entender o modo como eles são distribuídos e decodificar as 
hierarquias e 
diferenças que ela naturaliza�” (p.1). 
 
A visão 
 Compreende os instrumentos e técnicas de observação, o 
observador e seus papéis, os modelos e modalidades do olhar (o olhar 
de relance, o olhar patriarcal, o olhar reificador, o olhar masculino, o 
olhar turístico, o olhar erótico, o olhar casto, o olhar reprimido ou 
condicionado etc.). A pressuposição é a dupla mão de direção entre o 
olhar e seu objeto: James Elkins9 escreveu um livro intitulado O objeto 
olha de volta. Sobre a natureza do ver. Alguns estudos de gênero têm 
procurado aproveitar esse diálogo do olhar como mecanismo de 
interação e fixação das diferenças. 
 
 Jonathan Crary10, por sua vez, para entender as transformações da 
visão em torno da década de 1820, trata do surgimento da figura do 
observador, acompanhando as mudanças epistêmicas dos modelos 
clássicos de visualidade para as negociações entre o observador e o 
mundo, mudanças que vão de uma �“forma de conhecimento�” para um 
�“objeto de conhecimento�”. Tais mudanças levantaram questões sobre o 
corpo e a operação do poder social (formas institucionais e discursivas 
do poder) e redefiniram o status do sujeito que observa. Fica patente, 
assim, que a visão é uma construção histórica, que não há 
universalidade e estabilidade na experiência de ver e que uma história 
da visão depende de muito mais do que de alterações nas práticas 
representacionais. �“A visão e seus efeitos são sempre inseparáveis das 
possibilidades de um sujeito que observa, que é tanto um produto 
histórico como o lugar de certas práticas, técnicas, instituições e 
procedimentos de subjetivação�” (p. 5). 
 
 Numa linha diferente, e partindo da fenomenologia, Donald Lowe11, 
ao esboçar uma história da percepção burguesa, propõe pistas para 
retraçar a historicidade das estruturas perceptivas: o exame dos meios 
de comunicação (define quatro padrões fundamentais: cultura oral, 
quirográfica, tipográfica e eletrônica), as variáveis hierarquias dos 
sentidos e, enfim, as diferentes ordens epistêmicas (que ordenam o 
conteúdo da percepção). No campo da história da arte, o equivalente 
 
8 Gordon Fyfe & John Law, �“On the invisibility of the visual: 
editors�’ introduction�”. in: G.Fyfe & J.Law, eds., Picturing 
power. Visual depiction and social relations, London, 
Routledge, 1988, p.1-14. 
9 James Elkins, The object stares back: on the nature of seeing, 
New York, Simon & Schuster, 1996. 
10 Jonathan Crary, Techniques of the observer: on vision and 
modernity in the 19th-century, Cambridge Mass., MIT Press, 
1990. 
11 Donald Lowe, History of bourgeois perception, Brighton, 
The Harvester Press, 1982. 
 
 
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seria a obra de Baxandall12 (1972) sobre o Quattrocento italiano, à 
procura do �“olho da época�” (period eye), culturalmente gerado na 
experiência do cotidiano e capaz de fazer circular formas, informações, 
valores, competências cognitivas e juízos de valor entre pintores, 
comitentes e observadores e camadas urbanas da população. 
 
 Os estudos da visão incluem também os modos apropriados de ver 
(como aqueles que a fotografia ajudou a fixar). O famoso dito de Paul 
Klee, de que a arte não reproduz o visível, mas torna visível (o visível 
que estava fora da consciência) pode enriquecer a problemática 
histórica, como a da transformação da paisagem, operada em grande 
parte pela colaboração da imagem, de fato geográfico em fato 
cultural13. 
 
 Se quadros como estes já estivessem em montagem, ainda que no 
nível puramente empírico, acredito que o historiador já teria mais 
condições e estímulo para passar de uma história ainda marcadamente 
iconográfica para uma história da visualidade. 
 
DOCUMENTO VISUAL E HISTÓRIA 
 
 As relações do historiador com o mundo visual se concentram, pois, 
na imagem. É sintomático que a maioria dos trabalhos com 
preocupação teórico-conceitual ou metodológica (que, aliás, são 
muitíssimo poucos) girem em torno da problemática da imagem, 
principalmente a problemática documental.14 Se levarmos em conta as 
narrativas historiográficas de tipo genealógico, que colocam como 
 
12 Michael Baxandall, O olhar renascente. Pintura e 
experiência social na Itália, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991 
(ed.or.: 1972). 
13 cf. Ulpiano T. Bezerra de Meneses, �“A paisagem como fato 
cultural�”, in: Eduardo A. Yázigi, org., Turismo e paisagem, São 
Paulo, Contexto, 2002, p.29-64. 
14 Apenas para exemplificar citem-se: Iconographie et histoire 
des mentalités, Paris, CNRS, 1971; Institut d�’Histoire moderne 
et contemporaine, Les historiens et les sources iconographiques 
(Table Ronde, 1981), Paris, CNRS, 1981; Image et histoire 
(Actes du Colloque Paris-Censier, 1986) Paris: Publisud, 1987; 
Hélène d�’Almeida-Topor & Maurice Sève, L�’histoiren et 
l�’image: de l�’illustration à la preuve (Actes du Colloque de 
Metz, 1994), Metz: Université de Metz, 1998; Ivan Gaskell, 
�“História das imagens�”, in: Peter Burke, org., A escrita da 
História, São Paulo, EDUNESP, 1992, p.237-272; Francis 
Haskell, History and its images: art and the interpretation of 
the past, New Haven, Yale UniversityPress, 1993; Eduardo 
Neiva (e debatedores), �“Imagem, História e Semiótica�”, Anais 
do Museu Paulista. História e cultura material, n.s., v.1, n.1, 
São Paulo, MP/USP, 1993, p.11-92; , Michel Vovelle, Imagens e 
imaginário na História. Fantasmas e certezas nas mentalidades 
desde a Idade Média até o século 20. São Paulo: Ática, 1997; 
Ciro F.S. Cardoso & Ana Maria Mauad, �“História e imagem: o 
exemplo da fotografia e do cinema�”, in: C.F.S.Cardoso & 
R.Vainfas, orgs., Domínios da História. Ensaios de teoria e 
metodologia, Rio de Janeiro, Campus, 1997, p. 401-418, etc. 
Até mesmo obras mais abrangentes, como Peter Burke, 
Testemunha ocular. História e Imagem, Bauru, EDUSC, 2004, 
preferem ater-se ao domínio da imagem. Este partido, por certo, 
é legítimo e necessário, mas seria bem-vindo um enquadramento 
mais preciso da História no campo já ocupado pela Antropologia 
Visual, Sociologia Visual, História da Arte, Estética e Estudos 
Visuais. Ressalve-se que o cinema e a fotografia mereceram um 
tratamento mais sistematizado e aprofundado do que outras 
modalidades de imagem. 
ancestrais dos bens e dos males da disciplina a Escola dos Annales (e 
algumas linhagens imediatamente posteriores, inclusive dissidentes), 
verificaremos que a ampliação da noção de documento por ela 
postulado beneficiou os registros visuais �– e isso, de forma mais 
corrente, apenas desde a década de 1960. Eles foram, sem dúvida, 
alforriados e ganharam direitos de cidadania no campo da disciplina. 
Mas se as imagens saíram da senzala, nem por isso deixaram de 
desempenhar funções ancilares e se transferiram para a casa grande. 
A dificuldade em dar conta da especificidade visual da imagem faz com 
que, muitas vezes ela seja convertida em tema e tratada como 
fornecedora de informação redutível a um conteúdo verbal. Ou então 
considerada como ponte inerte entre as mentes de seus produtores e 
os observadores, ou mesmo, no geral, entre práticas e representações. 
Ou, ainda, o que é pior �– mas já está suficientemente denunciado �– 
considerada como apta a desempenhar tão somente função ilustrativa. 
 
 Tal dificuldade, sem dúvida, deriva da formação logocêntrica do 
historiador e da natureza igualmente centrada na palavra de quase toda 
sua atividade profissional. Assim, além do ônus de um �“analfabetismo 
visual�” (a própria necessidade de recorrer a uma expressão de marca 
verbal já indica a dimensão do problema...), ele não necessita de 
experiência de campo e, trabalhando em geral apenas com 
representações e abstrações, elimina qualquer risco de contaminação 
com o concreto e o empírico. O historiador não se defronta, por 
exemplo, com problema crucial de antropólogos e sociólogos, levados a 
reconhecer no registro visual realizado durante a pesquisa uma parte já 
do processo de interpretação: quando se usa a fotografia, por exemplo, 
ou o filme, �“vê-se com a câmara, não através dela�”, nas palavras de 
Cheris Wright15. 
 
 No entanto se o historiador está acostumado a estudar os contextos 
técnicos e sociais da produção, circulação e consumo do café, ouro, 
aço, automóveis, edifícios, móveis e utensílios domésticos �– porque 
não estaria habilitado a fazê-lo também com bens simbólicos, obras de 
arte, imagens? Toma-se, assim, o circuito todo: a produção e os 
produtos, o artista, comanditários, motivações, mercado, museus, 
colecionadores, coleções, especialistas, crítica, história, teoria, 
reproduções, cópias, públicos, etc.etc. Nesse sentido desenvolveu-se 
uma �“História Social da Arte�” �– que muitos especialistas consideram 
mais propriamente uma �“Sociologia da arte�”. (Note-se que o último 
circuito, o do consumo é, de todos, o mais rarefeito). Paradoxalmente, 
este padrão não só marginaliza a especificidade visual da imagem, mas 
também seu caráter de artefato, pois desfazer sua natureza de objeto 
visual é trabalhá-la como abstração -- como mercadoria. 
 
 Contudo, se se trata de levar em conta a especificidade visual da 
imagem, o terreno é muito mais instável e o horizonte muito mais fluido 
�– principalmente se estiver em causa a imagem artística. As reflexões 
mais articuladas começam já a aparecer, mas ainda há muito chão que 
deve ser percorrido. Uma proposta que merece atenção é a de Artur 
 
15 Cheris Wright, �“The third subject. Perspectives on Visual 
Anthropology�”, Anthropology Today, v.14., n.4, London, RAI, 
1998, p.16-22 (p.19). Patrizia Faccioli e Giuseppe Losacco 
(Manuale di Sociologia Visuale. Milano, Franco Angeli, 2003, 
p.28-33), ecoando postura corrente, relativa ao uso da fotografia 
na pesquisa sociológica, prevêem três áreas metodológicas �– não 
coincidentes com aquelas que costumam balizar a pesquisa 
histórica credora de imagens, salvo, em certos aspectos 
vinculados ao filme documentário histórico: a Sociologia com as 
imagens (produção e uso de fontes), a Sociologia sobre as 
imagens (interpretação e explicação das imagens produzidas no 
curso de uma atividade social e de montagem das narrativas) e a 
restituição, a produção dos ensaios visuais. 
 
 
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Freitas16, que formulou um �“eixo, aqui, muito simples, (que) consiste em 
propor que as fontes visuais, e sobretudo as artísticas, sejam vistas em 
função de três dimensões: a formal, a semântica e a social...�” (p.3). A 
argumentação é rica e bem fundamentada e procura ressaltar que o 
conhecimento artístico e o conhecimento histórico não só podem 
beneficiar-se mutuamente, como também são interdependentes. 
Parece-me, porém, que esta leitura que permite o uso da imagem 
artística como objeto histórico marca diferenças, não ontológicas, mas 
operacionais (de novo é a preeminência do problema documental), 
constituindo dois diferentes campos disciplinares legítimos: o da 
História e o da História da Arte. Talvez a diferença possa ser melhor 
conceituada como sendo apenas ou principalmente de escala. Com 
efeito, para a História a prioridade será sempre a leitura artística (e 
num patamar alargado, a leitura visual) da sociedade em sua dinâmica, 
mais que a leitura histórica da imagem artística. Talvez se devam tirar 
ainda mais implicações da citação muito pertinente que, ao fim de sua 
exposição, o autor faz de Baxandall, para quem �“não é apenas o 
ambiente sociocultural que pode aguçar nossa experiência de uma 
imagem artística, mas, revertendo a equação, que as próprias formas e 
os estilos visuais também �‘podem apurar a percepção que temos da 
sociedade�’ �” (p.17-18). 
 
 No campo das relações entre o poder e a visualidade, embora não 
sejam numerosas as monografias históricas, o historiador também se 
sente à vontade. A matriz principal continua sendo Foucault, nos 
estudos sobre o controle dos excluídos. 
 
 Todavia, é nos estudos de ideologia, imaginário, mentalidades, que 
se concentra, muito certamente, a exploração de imagens por 
historiadores. É aqui, também, que se encontram alguns dos melhores 
estudos no campo, no Brasil e fora dele. Vale salientar três tipos 
documentais que se têm prestado muito bem a pesquisas da espécie: a 
caricatura, a fotografia e o cinema. Em compensação, estranhamente, 
a pintura histórica, apesar das exceções, não recebeu o mesmo 
tratamento. Seja como for, é preciso também mencionar três aspectos 
de risco: o primeiro é o de fazer crer que os estudos históricos com 
imagem não dispõem de outra serventia que o conhecimento deste 
tripé de ideologia, imaginário e mentalidades (Nikos Hadjinicolau 
propunha que toda História da arte fosse uma história da ideologia sob 
forma de imagem!); o segundo é a redução da ideologia a fenômeno 
mental, psíquico, cognitivo, que pode ser expresso verbalmente sem 
consideração à forma material/visual que lhe serve de suporte (parece 
que a proposta de pensamento plástico, por Pierre Francastel teve 
menos eficácia do que merecia); o terceiro é a exclusão da imagem do 
jogo da vida social, por se deixar de considerar a ideologia como 
localizada efetivamentena interação social. 
 
 Para terminar as reflexões sobre o interesse redutor concentrado nas 
fontes visuais, diria que as limitações da �“história iconográfica�” não 
dizem respeito apenas ao foco de atenção prioritária concedida à 
documentação, em detrimento dos problemas históricos. Dizem 
respeito, também, à negligência no uso de outras modalidades de 
testemunho (verbal, material, visual) que possam responder às 
questões colocadas pelos problemas históricos em causa. Isto traz à 
tona a questão das hierarquia das fontes e do valor documental. É 
muito comum estabelecer-se uma subordinação (valorizando ou 
desvalorizando as imagens) ou estabelecendo uma complementaridade 
com outros referenciais. Claro que, se se está estudando algum 
aspecto da dimensão visual da sociedade, as fontes visuais hão que ter 
um papel estratégico. Claro, igualmente, que quando se está 
preocupado com o discurso realista na pintura, por exemplo, valeria a 
pena procurá-lo também na fotografia de identidade, na fotografia 
 
16Artur Freitas,, �“História e imagem artística: por uma 
abordagem tríplice�”, Estudos Históricos, n.34, Rio de Janeiro, 
FGV, jul.-dez.2004, p.3-21. 
médica e antropológica e assim por diante. Mas não é esse o ponto que 
gostaria de levantar e sim a inadequação de uma expectativa assídua, 
em que se imagina que as fontes devam forçosamente convergir para 
um mesmo ponto de fuga, embora diferencialmente. Tal expectativa 
corresponde a uma visão imprópria do funcionamento da sociedade e 
da cultura, em que se eliminou o conflito e a incoerência e, portanto, a 
possibilidade da presença de práticas e representações 
desencontradas. Sem indagar do papel social das fontes, sua 
interlocução com as demais fontes será sempre problemática. Também 
acredito que as ingenuidades das leituras empíricas, à cata de fatos e 
traços do referente (principalmente na fotografia), derivam deste 
mesmo campo de equívocos: proceder como se acreditasse que seus 
acervos documentais (principalmente fotográficos) desempenham os 
mesmos papéis que as coisas e eventos registrados. Ignora-se, assim, 
aquele entendimento que Alain Corbin17 confessa ter demorado a 
aceitar mas que lhe abriu os olhos (ele fala de literatura de ficção, mas 
nada seria estranho à imagem): a representação pode ser um modelo 
de prática, mas nunca, verdadeiramente, prova da prática. 
 
 Daí, portanto, as dificuldades apresentadas pela Iconologia de 
Panofsky (além de sua matriz idealista), pois pressupõe que haja 
correspondência entre a imagem como sintoma (a forma simbólica 
de Cassirer) e o foco homogeneizador do Zeitgeist 
 ( �“espírito da época�”), Weltanschauung (visão de mundo, em que as 
formas simbólicas regem o funcionamento da sociedade numa 
determinada época). Trata-se, em última instância, de uma História das 
idéias que talvez possam ser hegemônicas no campo das artes e 
outras manifestações de elite, mas que dificilmente dariam conta da(s) 
iconosfera(s) de sociedades complexas e do que elas podem revelar. 
 
 Sem dúvida, nada impede, por exemplo, que práticas e 
representações, em modo verbal e visual, possam eventualmente 
corresponder-se. Entretanto, é improvável que por natureza elas devam 
sempre fazê-lo, como se fossem peças apenas apresentadas em 
formas múltiplas, mas que, ao final, se encaixarão fatalmente umas nas 
outras, ordenadamente, como num puzzle. Além disso, o que é múltiplo 
e também pode ser contraditório são as temporalidades diversas das 
fontes, num mesmo recorte sincrônico. J.-C. Schmitt18 trata de um caso 
que pode excelentemente aclarar nosso ponto. Falando da obrigação 
que o historiador julga ter de buscar coincidência entre suas fontes 
visuais e verbais, ele cita o trabalho de Millard Meiss, que não 
encontrou, na pintura de Florença e Siena, depois da Peste Negra, 
nenhum impacto da tenebrosa epidemia que tanto marcou os cronistas 
e literatos. Mas a famosa imagem do Triunfo da Morte (cuja 
representação mais antiga parece ser o afresco de Buffalmacco no 
Campo Santo em Pisa) é anterior à Peste Negra. 
 
 Deve-se concluir que os registros de dicibilidade e visibilidade (e 
seus opostos) não são, realmente, os mesmos. Deve-se concluir, 
sobretudo, pela exigência de examinar as fontes visuais (e outras, é 
claro) mais do que como documentos, como ingredientes do próprio 
jogo social, na sua complexidade e heterogeneidade. 
 
OS USOS DA SEMIÓTICA 
 
 A ausência de uma base teórico-conceitual sólida e suficientemente 
debatida e, conseqüentemente, de critérios metodológicos pertinentes, 
tem introduzido soluções de cartilha, que conduzem a camisas de força 
responsáveis por empobrecer a pesquisa. Entre nós, na produção dos 
 
17 Alain Corbin, Historien du sensible. Entretiens avec Gilles 
Heuré, Paris, La Découverte, 2000. 
18 Jean-Claude Schmitt, �“L�’historien et les images�”, in: Le corps 
des images. Essais sur la culture visuelle au Moyen Âge. Paris: 
Gallimard, 2002: p.35-62 (p.58-59). 
 
 
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cursos de pós-graduação, pode-se perceber que, depois de uma voga 
das análises iconográficas panofskyanas, é a Semiótica que, agora, 
vem ocupando a dianteira, como chave-mestra, capaz de abrir todos os 
acessos para a História �“feita com imagens�”. 
 
 Há, porém, muita incerteza e tem-se discutido muito qual o tipo de 
Semiótica que convém �“adotar�”, como instrumento genérico de 
produção de conhecimento histórico. A Semiótica de base saussuriana 
parece mais reduzida, a peirceana parece abrir mais possibilidades; 
propõe-se também passar-se de uma Semiótica sígnica, da 
comunicação, para uma Semiótica das significações, sígnicas e não 
sígnicas. Introduzem-se métodos de leitura, como o quadrado semiótico 
greimasiano. 
 
 Todas estas questões mereceriam discussão mais aprofundada �– 
que, obviamente, não caberia aqui. Meu objetivo definido é tão somente 
apontar que me parece impróprio tomar a Semiótica como um caminho 
natural e acabado de produção do conhecimento histórico. Por isso a 
questão dos modelos de escolha está mal colocada, ao menos antes 
de definir os problemas históricos específicos que a pesquisa pretenda 
encaminhar. 
 
 Nas últimas quatro páginas de seu Tratado geral de Semiótica, 
Umberto Eco19 faz observações inesperadas para um semiótico e 
esclarecedoras para os cientistas sociais. Partindo do pressuposto de 
que o trabalho da produção sígnica constitui uma forma de crítica social 
(e, definitivamente, uma das formas da práxis) ele se pergunta 
honestamente onde ficou, no seu livro, o sujeito da Semiótica, o ator da 
prática semiótica. Trata-se de um �“fantasma�”, onipresente mas apenas 
implícito. Explicitá-lo seria a responsabilidade dos historiadores, 
sociólogos, etc. 
 
 Com efeito, a Semiótica é, por excelência, uma disciplina que 
privilegia o sincrônico e a estrutura: como dar conta, assim, do 
histórico? Veja-se, por exemplo, o trabalho de um dos mais respeitados 
especialistas em Semiótica Visual, Jean-Marie Floch20.Ele parte da 
premissa de que um fenômeno semiótico comum percorre os objetos 
de seu estudo (tela de Kandinsky, casa do arquiteto Georges Baines, 
uma fotografia de E.Bouybat, dois anúncios publicitários, uma história 
em quadrinhos, desenhos de Barthes) e procede ao acoplamento de 
categorias do significante visual �– opondo as cores, as formas ou os 
valores �– com certas categorias conceituais, tais como natureza/cultura, 
identidade/alteridade, vida/morte, etc. O historiador, por certo, sente-se 
incomodado com o idealismo e cerebralismo que perpassa este 
encaminhamento, e que, para ser eficaz, exige total convergência de 
atributos estáveis e imanentes, a fim de produzir tal estrutura. A 
dinâmica não condiz bem com este quadro. 
 
 Não é de estranhar, pois, que a Semiótica esteja ocupando um lugar 
em que há pouco dominava a Iconografia/Iconologia de Panofsky, com 
a mesmaênfase na estrutura, na imanência, e até mesmo num certo 
essencialismo, acompanhado, muitas vezes por um subreptício 
fetichismo no tratamento das imagens. 
 
 No entanto, os problemas assumem gravidade quando se fala de 
linguagem das imagens, não num sentido metafórico, mas técnico, 
confundindo potencial lingüístico com natureza lingüística. Tal redução 
pelo modelo lingüístico tem sido freqüentemente denunciada: �“Em uma 
palavra, a abordagem semiológica da cultura material é reducionista 
por que ela não se interessa pela materialidade enquanto tal, em sua 
relação com a construção do sujeito e à sua objetivação na ação�”, diz 
 
19 Umberto Eco, Tratado geral de Semiótica, São Paulo. 
Perspectiva, 4ª.ed., 1993, p.255-8. 
20 Jean-Marie Floch, Petites mythologies de l�’oeil et de l�’esprit, 
Pour une sémiotique plastique, Paris, Hadès, 2000. 
Jean-Pierre Warnier21. Falando da imagem artística, o mesmo Warnier 
diz que o próprio dela é que uma parte do humano não possa tomar 
corpo e expressão senão pelo gesto e pela matéria: �“A arte, por 
excelência, tende à afasia: a expressão material {visual, acrescentaria 
eu} começa a tornar-se necessária aí onde o discurso não dispõe de 
nenhuma palavra para dizê-lo�” (p.124-5). Se assim não fosse, como 
entender o mictório de Duchamp, transmutado em �“fonte�” ao ser 
entronizado como obra de arte no Museu de Arte Moderna de Nova 
Iorque? Consta que a crítica procurou justificativas semióticas para a 
transgressão instauradora do artista, apontando a sensualidade das 
curvas, o branco leitoso da superfície e o que mais fosse... 
 
 É preciso ter-se em conta, também, diante de uma tendência 
pansemiótica cada vez mais entusiasmada, a existência de situações 
em que mesmo os sistemas lingüísticos se encontram 
descompromissados com a produção e comunicação de sentido. 
Muitas imagens, por exemplo, existem para agir e não para comunicar 
sentidos, ou envolvem outras conotações e componentes, como no 
caso do duplo e da imagem de culto (o ícone bizantino, por exemplo, 
em oposição à imagem devocional). Sem estas considerações, estudos 
da iconofilia (e as diversas escalas de vínculo subjetivo com a imagem, 
como a adoração e a veneração) e da iconoclastia se veriam 
consideravelmente prejudicados. 
 
 A dissociação dos componentes, mesmo na língua natural, vem 
sendo estudada cada vez mais, principalmente por antropólogos 
interessados na eficácia imediata da palavra mágica. Nenhuma análise 
semiótica �– nem fonética, lexicológica etc. �– do vocábulo �“abracadabra�” 
dará conta de seu conteúdo pragmático, aquele que efetivamente 
conta. (E, para não nos esquecermos da imagem visual, no vudu é bom 
preocupar-se menos com os conteúdos semióticos do boneco -- que 
não representa, mas é o �“duplo�” do destinatário da magia -- do que 
procurar rapidamente neutralizar a eficácia interna das ações. Na 
Índia, na tradição védica (1500-700 a.C.) não é ocorrência excepcional 
a ausência de fusão entre significante e significado. Os esforços de 
preservação não cuidam dos sentidos: podem até ocorrer, mas se 
consideram passatempo individualístico e indigno de consideração. O 
objeto da preocupação dos brâmanes, porém, é preservar o som para a 
posteridade, manter sua pureza. Um último exemplo22: a propósito de 
seu estudo sobre os Songhay do Níger, P. Stoller deixa cristalinamente 
claro como o poder está nas palavras em si e não no referente que elas 
convocariam. Há palavras que não são representação de algo, mas 
instrumentos imediatos de ação, inseparáveis da ação. Stoller 
completa, com crítica ampla à epistemologia ocidental, em que se 
concebe/percebe o mundo em termos de espaço mais do que de som �– 
mas a língua pode, em muitos casos, ser apenas uma corporificação 
de som. 
 
 
 Por outro lado, é preciso prever a ocorrência não só das imagens 
sem referente (fato para o qual os historiadores já estão atentos, seja 
por causa do foto-jornalismo, seja pelo conhecimento da imagem digital 
e, mais ainda, virtual), mas também o caso de trajetórias diferentes 
para a imagem e seu referente �– como acontece nos contextos de 
produção da celebridade. Um exemplo contundente é aquele relatado 
por Chris Rojek23 a respeito da famosíssima fotografia da II Guerra 
Mundial, que retrata três marines fincando a bandeira americana numa 
montanha da ilha de Iwo Jima, após combate feroz de 36 dias contra os 
 
21 Jean-Pierre Warnier, Construire la culture matérielle. 
L�’homme qui pensait avec ses doigts, Paris, PUF, 1999, p.124. 
22 Este ultimo exemplo e o seguinte são extraídos de David 
Howes, ed., The varieties of sensory experience. A sourcebook 
in the Anthropology of the senses, Toronto, University of 
Toronto Press, 1991, p. 20 n.5 e 8-10. 
23 Chris Rojek, Celebrity, London, Reaktion Books, 2001, p.21. 
 
 
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japoneses, em 1943, com baixas de 7.000 e 22.000 soldados, 
respectivamente. O destino da imagem foi tão glorioso que ela foi 
reproduzida em bronze, no cemitério para os heróis nacionais, em 
Arlington. Já o destino dos marines foi deplorável e conduziu-os ao total 
esquecimento: um deles morreu sem nunca querer discutir 
publicamente sua façanha; outro morreu alcoólatra e o terceiro era um 
obscuro porteiro por ocasião da pesquisa. A análise semiótica se 
interessará, obviamente, pela imagem e justificará sua trajetória. A 
pesquisa histórica, todavia, terá que se interessar por ambas as 
trajetórias. 
 
 Em conclusão, pode-se afirmar que a análise semiótica é um 
precioso instrumento de trabalho para o historiador. Mas não para 
trazer respostas: essas devem ser produzidas a partir das hipóteses 
formuladas pela interpretação histórica. O auxílio principal está, sim, na 
ampliação do leque de questões a levantar e que incluem o 
conhecimento do potencial semiótico dos documentos mobilizados. 
Portanto, perguntas, não respostas. De qualquer modo, o alcance da 
Semiótica decai quando se passa do domínio das imagens para o da 
cultura ou dos regimes visuais. E, em qualquer caso, a Semiótica não 
pode neutralizar ou enfraquecer o fato, tão importante para a História, 
de que a imagem, além de signo, também age, executa o papel de ator 
social, produz efeitos. 
 
 
SIGNIFICADOS E SISTEMAS DE AÇÃO 
 
 No território da História da Arte, já começam a ser percorridos os 
caminhos abertos por Alfred Gell24, prematuramente falecido, na sua 
tentativa de estabelecer parâmetros para uma Antropologia da arte 
(incluindo as sociedades complexas, e não apenas uma etno-estética). 
Em lugar da comunicação simbólica, ele propõe ver a arte como 
sistema de ação, voltado mais para mudar o mundo do que para 
codificar proposições simbólicas a seu respeito. Como está o sistema 
semiótico incorporado na prática social? Esta é uma questão preliminar. 
É possível, diz ele, ler as mensagens semióticas das imagens, mas 
elas muitas vezes são diferentes das intenções e efeitos das imagens, 
como coisas topicamente produzidas e empregadas25. 
 
 Nessa ordem de idéias, impõe-se a análise de enunciados, até o 
nível da performance. A abordagem centrada na ação é mais 
inerentemente antropológica, acredita ele, do que a alternativa 
semiótica, pois está preocupada com o papel prático mediador dos 
objetos de arte no processo social, antes que com a interpretação de 
objetos como se fossem textos. (Claro está que, para ele, sem excluir 
as ações, o suporte físico é essencial). Um exemplo que cai em cheio 
nas considerações de Gell é aquele dos Ongee, no sudeste asiático, 
estudado por Constance Clasen26, em que o odor é o sentido principal; 
daí o controle de odores, pois o cheiro se associa à identidade pessoal 
(viver em comunidade equivale a �“unir os cheiros�”). Em conseqüência, 
a pintura corporal com argila �– sempre muito importante �– tem por 
função esconder cheiros após ingestão de carne, o que poderia 
enfurecer os espíritos: uma análisesemiótica das imagens seria, aqui, 
um contra-senso. 
 
 
24 Alfred Gell, Art and agency: an anthropological theory, 
Oxford, Oxford University Press, 1998. 
25 Ver Eric Hirsch, �“Techniques of vision: photography, disco 
and renderings of present perceptions in Highland Papua�”, 
Journal of the RAI, n.s. v.10, n.1, London, RAI, 2004, p.19-39. 
 
26 Constance Clasen, Worlds of sense. Exploring the senses in 
History and across cultures, London, Routledge, 1993, p. 126-
121. 
 Talvez convenha fazer apelo a um exemplo mais próximo de nós, 
para esclarecer a abordagem pragmática proposta. Ao introduzir uma 
coletânea de estudos sobre paisagem e poder, W.J.T. Mitchell postula 
que se trate o termo �“paisagem�” como verbo e não como substantivo, 
transformando-a de objeto a ser visto ou texto a ser lido em um 
�“processo pelo qual se formam as identidades sociais e subjetivas�”. 
Seu modelo de abordagem não pergunta somente o que uma paisagem 
é ou, significa mas o que ela faz, 
 
 �“como ela funciona em termos de prática cultural. A paisagem, 
sugerimos, não 
 significa simplesmente ou simboliza relações de poder; ela é um 
instrumento de 
 poder cultural, talvez mesmo um agente de poder que é (ou 
freqüentemente se 
 representa assim) independente das intenções humanas�”27. 
 
 Anne Sauvageot, numa obra um tanto indefinida, parte no entanto 
de uma plataforma explícita e pertinente, para montar sua �“sociologia 
do olhar�”, em que procura apreender a construção social do visível, que 
tende a estabelecer uma certa relação do olho com o mundo. Ela se 
interessa pelas revoluções do olhar, que subentendem, de um lado, as 
reorganizações sucessivas do mundo material e, de outro, as 
mudanças de racionalidade que lhe correspondem. A arte, portanto, 
seria antes de mais nada um confronto com o mundo material, que ela 
transforma -- e não prioritariamente com o mundo das significações28. É 
claro que, a se manter o radicalismo da proposta, se teria, aqui 
também, o risco de cair num essencialismo anti-histórico na 
conceituação de arte. O que eu acrescentaria, porém, por ser mais 
coerente com minhas propostas, é que, ao invés de priorizar a 
construção social do visível, a autora tivesse preferido a construção 
visível do social. 
 
A IMAGEM COMO ARTEFATO 
 
 Estas últimas considerações derivam de um dado que raramente 
entra na percepção do historiador: as imagens não são puros 
conteúdos em levitação ou meras abstrações mas, antes de mais nada, 
constituem coisas materiais, objetos físicos, artefatos. Não é de hoje 
que se propõe tal perspectiva. Em 1935, Heidegger já insistia na 
necessidade de considerar que as obras de arte �“estão naturalmente 
presentes como coisas�”29. Isto, é claro, traz inúmeras exigências 
heurísticas. (Esta dificuldade confirma o que se disse anteriormente, 
em relação às suas fontes: raramente o historiador sai a campo, por 
exemplo, para coletar fotografias, registrando seus contextos de uso; 
estes, em conseqüência, costumam ter pouco peso em sua 
investigação). 
 
 Esta aceitação da imagem como puro sentido acarreta 
conseqüências que podem ser extremamente comprometedoras. 
Maurice Daumas30, ao iniciar uma das poucas obras de síntese, neste 
domínio, uma história das funções da imagem nas sociedades da 
Europa moderna, aponta essa concepção deformada que temos das 
imagens como resultante de um �“efeito-museu�” e demonstra como isso 
 
27 William J.T. Mitchell, ed., Landscape and power, Chicago, 
The University of Chicago Press, 1994, p.1-2. 
28Anne Sauvageot, Voirs et savoirs. Esquisse d�’une Sociologie 
du regard, Paris, PUF, 1994, p.32-33. 
29 Martin Heidegger, �“The origin of the work of art�”, in: David 
Farrell Krell, ed., Martin Heidegger: basic writings, London, 
Routledge, 2nd.ed., 1978, p.145 (agradeço a André Melo Araújo 
por me ter chamado a atenção para este texto). 
30 Maurice Daumas, Images et sociétés dans l�’Europe moderne, 
Paris, Armand Collin, 2000, p.97. 
 
 
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acarreta seqüelas redutoras. Por exemplo, os lugares de concentração 
das imagens, no século XV, eram bastante diferentes do que ocorrerá 
no século XVIII: respectivamente igreja, prefeitura, festas e procissões 
em tempos determinados; mais tarde, com a difusão assegurada pela 
litografia, espalham-se, inclusive no campo, as gravuras, almanaques, 
calendários, tornando-se a imagem um bem de consumo acessível a 
todos e em tempos variados e dilatados. Ora, esse contextos 
diferenciados contêm implicações que é impossível minimizar. 
 
 Na Antropologia, estão começando a aparecer recomendações 
nesta linha, principalmente no domínio da fotografia. Patrick Maynard, 
G.Batchen, C. Gosden, Y.Knowles e Elizabeth Edwards são alguns dos 
nomes que cumpre ressaltar. Esta última direcionou seu foco para a 
fotografia etnográfica, mas depois, ampliou seu horizonte31. A 
fotografia, diz ela, não pode ser tomada meramente como o 
instrumento de uma inscrição indexical, mas sim como uma tecnologia 
para exibição visual experimentada como significante. A materialidade, 
assim, traduz o abstrato e representacional da �‘fotografia�’ em 
�‘fotografias�’ que existem no tempo e no espaço. Utilizando a 
terminologia da estética de Susanne Langer, que os estudos de cultura 
material já haviam feito circular, propõe que se pense na imagem 
visual tanto em termos de formas discursivas, quanto �“exibitórias�”32. 
 
 A aceitação de que toda imagem é, antes de mais nada, um objeto 
tridimensional (e não somente uma abstrata projeção de três 
dimensões num plano) introduz, automaticamente, dois outros 
problemas: as coisas, imersas na vida social e suas contingências, 
também podem contar com uma biografia. A segunda questão é a 
participação da imagem na �“instituição�” das pessoas sociais. Estes dois 
problemas incluem integralmente as imagens. 
 
 Já na década de 1980 Igor Kopytoff havia levantado a questão da 
biografia cultural das coisas em relação à �“comoditização�” como 
processo, num capítulo de coletânea também sugestivamente intitulada 
de A vida social das coisas. Commodities em perspectiva cultural33. 
Embora preocupado prioritariamente com o universo das commodities, 
Kopytoff fornece um modelo em que as trajetórias e histórias de vida 
dos artefatos podem ser consideradas em geral �– inclusive porque, 
para ele, a commodity não é uma espécie de coisa, de preferência a 
outra, mas uma fase na vida de algumas coisas. O mecanismo básico a 
ser analisado é a oposição dialética entre as tendências de 
singularização e homogeneização dos artefatos. 
 
 
 Finalmente, reconhecer o caráter de coisa material às imagens 
obriga a também lhes reconhecer o que dizia Roy Wagner, citado por 
J.Reginaldo Gonçalves34: os objetos, de certo modo nos inventam. As 
imagens, portanto, participam da nossa �“instituição�” como pessoas 
sociais. Completa Gonçalves: 
 
 
31 Elizabeth Edwards, �“Material beings: objecthood and 
ethnographic photographs�”, Visual Studies, v.17, n.1, London, 
IVSA, 2002, p.67-75; ver também Elizabeth Edwards & Janice 
Hart, �“Introduction: photographs as objects�”, in: E.Edwards & 
J.Hart., eds., Photographs, objects, histories. On the materiality 
of images, London, Routledge, 2004, p.1-15. 
32 Op.cit., p.68-69. 
33 Igor Kopytoff, �“The cultural biography of things�”, in: Arjun 
Appadurai, ed., The social life of things, Cambridge: Cambridge 
University Press, 1986, p.64-94. 
34 José Reginaldo Santos Gonçalves, �“O templo e o fórum. 
Reflexões sobre museus, antropologia e cultura�’, in Helena B. 
Bomeny et alii, A invenção do patrimônio, Rio de Janeiro, 
IPHAN, 1995, p. 55-66. 
 �“Desse modo, mais do que simplesmente expressar nossas 
identidades pessoais e 
 coletivas, os objetos, na verdade, nos constituem enquantopessoas; na medida em 
 que aprendemos a usá-los, eles nos inventam. Em outras palavras, 
sem os objetos 
 não existiríamos; pelo menos não existiríamos enquanto 
pessoas socialmente 
 constituídas sem eles�” (p.61). 
 
 Estas questões nos conduzem diretamente para o problema 
seguinte, da �“recepção�” da imagem visual. O termo tem limitações e 
ambigüidades que estão fora de propósito discutir aqui. Aponte-se 
apenas que se trata de tentativas �– muito promissoras, acredito, mas 
ainda problemáticas �– de adaptar ao campo visual (e principalmente à 
História da Arte35) aquilo que já há tempos está mais consolidado no 
campo da História da Literatura, partindo do chamado grupo de 
Constança, na Alemanha, em torno de nomes como Jauss ou Iser: 
trata-se da estética e da psicologia da recepção, eventualmente 
acopladas à história do gosto e do juízo e utilizando categorias como 
�“estética do efeito�”, �“horizonte de expectativa�”, �“fortuna crítica�”, etc. 
Naturalmente, há um trabalho de investigação intra-imagem (o 
�“observador implícito�”) e extra-imagem (recorde-se a famosa frase de 
Duchamp: �“são os observadores que fazem os quadros�”). Sem dúvida, 
tal perspectiva coloca problemas específicos para a História, sobretudo 
no campo documental. Tais problemas, porém, estão longe de poder 
ser considerados intransponíveis: as pistas na documentação corrente 
começam a aparecer desde que se tenha consciência da problemática. 
Talvez haja aqui um percurso semelhante àquele que permitiu a 
passagem da História do texto à História da leitura �– hoje especialidade 
disciplinar consolidada. Seja como for, parece sensato o conselho dado 
por Gamboni36, para quem a �“teoria�” da recepção sugere, antes uma 
problemática, que uma metodologia. 
 
 Mas, para tornar o horizonte mais seguro é bom lembrar ainda, com 
Donald Lowe acima mencionado, que, se não temos por ora uma 
verdadeira história da percepção, já estamos plenamente conscientes 
da historicidade das estruturas perceptivas. 
 
 Estes cuidados são importantes par evitar um risco que ronda os 
estudos históricos nos quais os documentos visuais passam a ter mais 
relevância do que os problemas históricos (que eles permitiriam 
identificar, montar e encaminhar): a fetichização. Esta autonomização 
da imagem, transformando-a em detentora de suas próprias 
significações, constitui grave deslocamento das práticas e relações 
sociais (onde se produzem os sentidos e valores) para as coisas (que 
são condição de vida social, em geral e, em particular, da socialização 
e operação desses sentidos e valores). 
 
CAUTELA FINAL 
 
 Até agora, falou-se de dimensão visual, de imagem visual, 
visualidade, visibilidade, visão. É bom saber que pesquisadores 
militantes do que já se vem denominando �“Antropologia dos sentidos�” 
 
35 cf. Wolfgang Kemp, �“The work of art and its beholder. The 
methodology of the Aesthetic of Reception�”, in Mark A. 
Cheetham, Michael Ann Holly & Keith Moxey, eds., The 
subjects of art history. Historical objects in contemporary 
perspective, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 
180-196. 
36 Dario Gamboni, �“Histoire de l�’art et �‘reception�’: remarques 
sur l�’état d�’une problématique�”, Histoire de l�’art, v.36, n.336, 
Paris, oct.1996, p.9-14. 
 
 
 
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ou da �“sensorialidade�” têm tecido pesadas críticas à hegemonia da 
visão e seu peso epistemológico, desde a noção de �“visão de mundo�” 
(de caráter espacial, como se fosse um panorama fixo, por oposição a 
alternativas que levam em conta dimensões temporais e forças em 
atuação) até, por exemplo, a contestação da TV como mídia 
essencialmente visual, salientando não só em muitos casos a 
predominância de suas características aurais, mas, sobretudo, sua 
natureza como objeto doméstico. É preciso, pois, levar em conta as 
sinestesias. 
 
 Pareceu-me, assim, útil fechar estas reflexões com o esboço de um 
caso que venho estudando e que comprova a necessidade de inserir a 
visualidade num quadro sensorial mais amplo. 
 
 A sociedade grega antiga sempre foi considerada modelarmente 
como uma �“sociedade escópica�”, sociedade de hegemonia da visão. 
Aliás, ao pensamento grego se creditaram as raízes do oculocentrismo 
no Ocidente moderno e contemporâneo na consideração da visão 
como �“o mais nobre dos sentidos�”: Descartes não fazia senão repetir 
Platão. As pistas para tais inferências são numerosas: a ubiqüidade da 
imagem e seu caráter público (em santuários, necrópoles, ginásios, 
estádios, pinacotecas, procissões), a inexistência, praticamente de 
secrecidades (o culto de mistério mais importante, o de Elêusis, chegou 
a desenvolver política de ampliação de acesso), a relevância do teatro 
(palavra originada do verbo theáomai, que significa ver), a visão como 
ato político numa cultura da performance �– que requer publicidade 
visual da competição (Tucídides fala de discurso visto, espectador do 
discurso e não de ouvinte), a formulação de teorias óticas e a própria 
concepção do pensamento como imagem, a fertilidade do vocabulário 
(ícone, ídolo, idéia, teoria, autopsia e dezenas de outras palavras são 
de ascendência grega direta), a presença no imaginário e no mito 
(desde a cegueira de Édipo até o mau-olhado), a filosofia (as teorias da 
mimese, da fantasia, da ilusão etc.etc.). Tudo levaria a crer que 
�“sociedade escópica�” seria uma etiqueta tranqüilamente justificada e 
definitiva. 
 
 
 Contudo, um segundo exame revela inúmeras brechas nessa 
interpretação. Em primeiro lugar, porque ela assume uma 
homogeneidade problemática. Basta lembrar que se trata de uma 
sociedade que foi durante muito tempo exclusivamente de 
comunicação oral e ao longo de sua história posterior sempre teve na 
oralidade/auralidade um suporte fundamental (mesmo com a difusão da 
escrita). Em seguida, �“visualidade�” não pode ser tratada em monobloco, 
pois ela está sujeita a variações, combinações, recombinações. Jaa 
Elsner37, por exemplo, distingue dois tipos de visualidade. O primeiro é 
o da mimese, da semelhança, do observador à parte do mundo 
observado e, portanto, das imagens, que operam ilusionisticamente. O 
segundo é o da visualidade centrada no rito e na imagem sacra e que 
prevê uma relação direta: o observador penetra no campo em que vive 
a imagem e a relação se consuma como uma �“olhada recíproca�” (daí a 
importância do olho e do olhar das esculturas). 
 
 Mas, há outras �“impurezas�”, muito comuns nos mitos. Por exemplo, 
um mito tão explorado para sustentar a hegemonia da visão na Grécia 
antiga é o de Narciso e sua imagem reflexa, a paixão nele provocada e 
sua perdição. Ora, personagem esquecida desse mito é a ninfa Eco 
(encarnação do tom puro), cuja atuação, porém, é fundamental e se 
perfaz mediada pela voz �– não é preciso dizer que ela não foi ouvida 
por Narciso. Além disso, os temas do reflexo/reflexão precisam ser 
lidos na ótica da filosofia e do imaginário, de Euclides (séc.III a.C.), até 
 
37 Jaa Elsner, �“Between mimesis and divine power. Visuality in 
the Graeco-Roman world�”. in: Robert S.Nelson, ed., Visuality 
before and beyond the Renaissance. Seeing as others saw, 
Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 45-69. 
Ptolomeu (séc.II A.D.), que colocavam ênfase no aspecto táctil da 
visão, verdadeira penetração. Assim, inclusive, é que se concebia o 
olhar erótico, espécie de verdadeiro toque. 
 
 Se examinarmos com mais atenção a arquitetura, o urbanismo, as 
artes visuais arcaicas, ou a geometria, verificaremos a atuação do tato 
interagindo com a visão. A arquitetura é caso sintomático, pois não se 
trata de construção de espaço, mas de volumes visuais, como já 
observou William M. Ivins38, que a considera mais próxima da escultura. 
No entanto, os esquemas compositivos da arquitetura grega 
(principalmente a do templo) são de matriz essencialmente táctil,que 
preserva, na fórmula modular, a personalidade dos componentes. Um 
templo é uma série de unidades modulares que se articulam 
analiticamente com rigor, como num jogo de montar. No próprio 
urbanismo, seja nas cidades, seja nos santuários, há ausência 
manifesta de uma ordem visual organizada e global. A relação entre as 
partes não é visual, é também táctil. A figuração arcaica (que teve 
muitas repercussões) é de caráter ostensivamente analítica. A 
escultura não contempla relações espaciais, mas a identidade das 
partes, cuja articulação permanece sempre apreensível. Na Geometria, 
diversamente do que ocorre no Ocidente moderno, no qual o que conta 
é como as formas aparecem ao espectador, na Grécia antiga era como 
as formas podiam ser sentidas, como pelo tato39. 
 
 Resta concluir que, tanto no caso grego, quanto em qualquer outro, 
não se pode deixar levar pelas aparências e imaginar existir sempre a 
hegemonia de um sentido, principalmente nas sociedades complexas. 
Estudar a dimensão visual da sociedade tem que incluir o lugar da 
visualidade entre os demais sentidos. 
 
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38 William M. Ivins Jr., Art and geometry. A study of space 
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39 Para as questões aqui propostas e outras conexas, ver Goldhill, 
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viewing�”, in: Teresa Brennan & Martin Jay, eds., Vision in 
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