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ABORDAGENS DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA E PRÁTICAS INOVADORAS INTRODUÇÃO Prezado aluno, O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! História cultural e suas abordagens metodológica Caroline Silvei OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Descrever os principais referenciais teóricos da pesquisa em história cultural. > Reconhecer as estruturas metodológicas da pesquisa em história cultural. > Identificar as possibilidades de pesquisa dentro do eixo cultural. Introdução Realizar uma investigação científica no campo da história cultural, mobilizando seus conceitos e suas abordagens metodológicas, significa compreender a ação humana a partir de uma perspectiva que evidencie as representações que criam e reproduzem a cultura letrada, a cultura popular e as diversas manifestações sociais de determinados grupos, cotidianos, crenças, normas de condutas, sistemas de educação, cultura material, etc. Isso requer um olhar apurado para as fontes, a fim de encontrar evidências dessas apropriações, dessas representações, desses imaginários. Ao mesmo tempo, é igualmente importante possuir uma compreensão de cultura em interligação com as demais esferas da realidade, e não como um fenômeno isolado. Para tanto, a história se beneficiou sobremaneira da interdisciplinaridade e se complementou com conceitos e procedimentos de outras áreas para dar conta da intervenção dos seres humanos no mundo. Neste capítulo, você conhecerá os principais referenciais teóricos da história cultural. Compreenderá os procedimentos metodológicos para a delimitação do tema de pesquisa e das etapas da investigação. Por fim, estudará algumas possibilidades de pesquisa no campo historiográfico da história cultural. Os preceitos teóricos da história cultural Quando falamos em história cultural, é importante realizar uma distinção entre dois assuntos: primeiramente, a cultura enquanto objeto da historiografia, algo que ocorre desde o século XIX; e, por outro lado, a cultura abordada com determinado referencial conceitual e teórico, conformando um campo historiográfico oriundo das reflexões ocorridas na historiografia europeia e norte-americana durante o século XX. Além disso, é preciso lembrar que a cultura não é um tema de pesquisa exclusivamente dos historiadores, já que é partilhado com antropólogos, arqueólogos, cientistas políticos, educadores, sociólogos, etc. Neste capítulo, nos deteremos nas reflexões teóricas oriundas desse campo historiográfico constituído como reação a uma narrativa histórica factual, linear e circunscrita aos fenômenos políticos. Dessa forma, podemos afirmar que a história cultural se constituiu como um campo na disciplina histórica, por privilegiar aspectos que relevariam traços da cultura de determinada sociedade, como os costumes, as expressões artísticas, a imaginação e outros aspectos simbólicos da experiência histórica. Valendo-se de referenciais conceituais e teóricos oriundos da antropologia, das ciências sociais, da filosofia, das letras e da psicologia, os historiado- res puderam enxergar em suas fontes históricas fenômenos e experiências ignorados ou silenciados por abordagens que se interessavam apenas pela chamada alta cultura, ou por eventos políticos, ou ainda por aspectos da normatividade. Uma das principais apropriações feitas pelos historiadores veio do conceito de representação. Segundo a historiadora Sandra Pesavento (2005, p. 9): No início do século XX, os etnólogos Marcel Mauss e Émile Durkheim chamavam a atenção para essa construção social da realidade, realizada por meio de um mundo paralelo de sinais, o qual era surpreendido entre os povos primitivos que então estudavam. Tal realidade representada colocava-se no lugar do real “concreto”, até mesmo substituindo-o. Conceito de que os historiadores se apropriaram, as representações deram a chave para a análise desse fenômeno presente em todas Pesquisa em história cultural e suas abordagens metodológicas 3 as culturas, ao longo do tempo: os homens elaboram ideias sobre o real, as quais se traduzem em imagens, discursos e práticas sociais que não somente qualificam o mundo como também orientam o olhar e a percepção sobre essa realidade. Ação humana de reapresentar o mundo — pela linguagem, pelo discurso, pelo som, pelas imagens e, ainda, pela encenação dos gestos e pelas performances —, a representa- ção dá a ver — e remete a — uma ausência. Ela é, em síntese, um “estar no lugar de”. Com isso, a representação é um conceito que se caracteriza por sua ambiguidade, de ser e não ser a coisa representada, compondo um enigma ou desafio. Essa perspectiva abria um caminho inédito para os historiadores, e ques- tionava alguns de seus pressupostos epistemológicos: as fontes não reconsti- tuiriam o passado como ele foi; na verdade, apresentariam evidências de como os sujeitos interpretavam e davam sentido e significado para essa realidade. Tratava-se de um estudo sobre essas mediações do real por meio da cultura. Em outras palavras, a história cultural objetivaria narrar o passado: [...] por meio das suas representações, tentando chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressaram a si próprios e o mundo. Torna-se claro que este é um processo complexo, pois o historiador vai tentar a leitura dos códigos de um outro tempo, que podem se mostrar, por vezes, incompreensíveis para ele, dados os filtros que o passado interpõe. (PESAVENTO, 2005, p. 42). O surgimento da história cultural é tributário das mudanças ocorridas no mundo após 1968, que afetaram significativamente as ciências humanas e sociais, gerando o que alguns autores chamaram de crise dos grandes paradigmas explicativos da realidade. Segundo Pesavento (2005, p. 8): [...] com a crise de maio de 1968, com a guerra do Vietnã, a ascensão do feminismo, o surgimento da new left, em termos de cultura, ou mesmo a derrocada dos sonhos de paz no mundo pós-guerra [...] se insinuou a hoje tão comentada crise dos paradigmas explicativos da realidade, ocasionando rupturas epistemológicas profundas que puseram em xeque os marcos conceituais dominantes na história. Podemos situar a publicação do livro A nova história cultural, originalmente em 1989, da historiadora norte-americana Lynn Hunt (1992), como um marco na história da historiografia, por reunir diferentes pesquisas que giravam em torno desse novo paradigma historiográfico. A palavra “nova”, nesse caso, diz respeito à conformação de campo historiográfico, distinguindo-se da história intelectual e da história social, e como forma de demarcar um conceito de cultura mais amplo que o empregado até então (BURKE, 2005). De acordo com Peter Burke (2005), quatro pensadores, provenientes de diferentes áreas e com enfoques temáticos diversos, foram especialmente importantes para os historiadores que empreenderamesse movimento da nova história cultural: Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Os historiadores da história cultural, vinculados às contribuições do mo- vimento dos Annales e do marxismo britânico, compreendiam que a cultura não poderia ser interpretada apenas como uma superestrutura subordinada a uma infraestrutura material. Da mesma forma, procuravam se distanciar de uma dicotomização entre cultura erudita e cultura popular, e vislumbravam outras possibilidades de análise historiográfica da cultura para além da literatura. Seus objetos de preocupação eram as práticas, as representações, as experiências — como homens e mulheres comuns viam o mundo, pela análise dos seus conceitos, de suas ideias e de seus valores (PESAVENTO, 2005). Para dar conta desses temas, foi preciso investir em novas fontes e atentar para essas evidências, afastando-se das manifestações oficiais ou formais da cultura, passando a compreendê-la como “[...] um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo” (PESAVENTO, 2005, p. 15). Nesse sentido, foi fundamental para esses autores romper com as frontei- ras disciplinares que configuravam o campo das humanidades, possibilitando contatos intensificados com outras disciplinas, como a antropologia, para o debate sobre o conceito de cultura; da literatura, para reflexões sobre a escrita da história e a leitura dos textos literários; da história da arte, para análise das imagens; e da arquitetura e do urbanismo, para o desenvolvimento da área da história das cidades. Vamos aprender um pouco mais sobre as abordagens e os temas da história cultural nas próximas seções. Metodologia de pesquisa em história cultural De acordo com a historiadora Sandra Pesavento (2005), os principais conceitos e temas que envolvem a história cultural são: representação e imaginário, o retorno da narrativa, os debates sobre a ficcionalidade da história, a ideia das sensibilidades, a leitura dos textos e a escrita da história. Já para Peter Burke (2005), os historiadores da história cultural preocupam-se com o âmbito simbólico e suas interpretações, seus sentidos e seus significados, o que pode ser encontrado em diferentes manifestações da cultura Pesquisa em história cultural e suas abordagens metodológicas 5 Quanto a essa orientação das abordagens metodológicas, Pesavento (2005, p. 32) se questiona: [...] como as elaborações mentais, produtos da cultura, se articulavam com o mundo social, a realidade da vida cotidiana? Como era possível estabelecer correspon- dências entre todos esses níveis e também objetos de estudo? Como era possível descobrir os sentidos e significados que os homens atribuíam a si próprios e às coisas? Até onde iam os limites da história, se precisassem diálogos com outros campos de conhecimento ou outras ciências? Utilizando essas perguntas como exemplo de problematizações da histó- ria cultural, podemos pensar sobre as formas de se estruturar uma pesquisa e configurar sua metodologia, estabelecendo suas etapas. Em relação à utilização das fontes pela história cultural, todos os vestígios podem ser utilizados para responder as problemáticas de pesquisa elaboradas pelo historiador. Assim, documentos oficiais, imprensa, livros didáticos, romances, músicas, cartazes, charges, filmes, qualquer material que traga consigo indícios de uma manifestação da cultura de uma época pode ser utilizado como fonte histórica. Como dito anteriormente, o conceito de representação aparece com fre- quência nas abordagens da história cultural. Mas como mobilizá-lo, como articular esse referencial teórico com a metodologia da pesquisa? Segundo o historiador Roger Chartier (1988, p. 27), uma das referências no emprego desse conceito para as análises da história cultural: É preciso pensá-la como a análise do trabalho de representação, isto é, das classi- ficações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceituais próprias de um tempo ou de um espaço. As estruturas do mundo social não são um dado objetivo, tal como o não são as categorias inte- lectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas), que constroem as suas figuras. São estas demarcações, e os esquemas que as modelam, que constituem o objeto de uma história cultural levada a repensar complemente a relação tradicionalmente postulada entre o social, identificado com um real bem real, existindo por si próprio, e as representações, supostas como refletindo-o ou dele se desviando. No âmbito da história cultural, Pesavento (2005) afirma existir diferentes abordagens: aquela que enfatiza o texto, compreendendo a história como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado, levando a estudos sobre produção e recepção textual; a micro-história, que busca reduzir a escala de análise, explorando intensivamente um objeto circunscrito; e a nova história política. Essas correntes, segundo a autora, conformam campos temáticos de pesquisa, cujos temas de predileção são as cidades, a relação da história com a literatura, as imagens, as identidades, a memória, etc. Nesse aspecto, é importante enfatizar um pouco mais as contribuições de Chartier, pois, além de marcar a história da historiografia, suas análises e discussões conceituais metodológicas e teóricas ajudam a compreender as etapas de uma pesquisa orientada pela história cultural. A obra de Roger Chartier Roger Chartier (1945–) é um historiador francês que se ocupou em desenvol- ver suas interpretações da realidade a partir do viés cultural. Seus objetos de predileção são as práticas de leitura, o livro enquanto objeto cultural, a disseminação de textos e a relação entre a cultura oral e a cultura escrita. Entretanto, sua grande contribuição para o campo historiográfico foi a elaboração das noções complementares de práticas e representações. Segundo o autor, as manifestações culturais de determinada sociedade em determinado espaço de tempo poderiam ser estudadas a partir da interação entre essas duas categorias. De acordo com Barros (2004, p. 76), analisando a obra do autor: [...] tanto os objetos culturais seriam produzidos “entre práticas e representações”, como os sujeitos produtores e receptores de cultura circulariam entre estes dois polos, que de certo modo corresponderiam respectivamente aos “modos de fazer” e aos “modos de ver”. Dessa forma, a abordagem metodológica da história cultural vislumbraria organizar pesquisas que evidenciassem práticas e representações, explorando não somente os documentos escritos e outras fontes mais convencionais, mas todo discurso, objeto ou prática que possibilitasse o estudo de sua dimensão cultural. Ao abordar certos objetos e temas a partir da história cultural, o historiador deveria atentar para a articulação, independência e reciprocidade entre os modos como os seres humanos criam narrativas sobre o mundo e como as consomem, em uma dinâmica entre produção e recepção. Vejamos um exemplo trabalhado por Chartier (1998, p. 16-17), a partir de um de seus temas prediletos, a história da leitura: A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros. Eis por que se deve voltar a atenção particularmente para as maneiras de ler que desapareceram em nosso mundo contemporâneo. Por exemplo, a leitura em voz alta, em sua dupla Pesquisa em história cultural e suas abordagens metodológicas 7 função: comunicar o texto aos que não o sabem decifrar, mas também cimentar as formas de sociabilidade imbricadas igualmente em símbolos de privacidade — a intimidade familiar, a convivência mundana, a convivência letrada. Uma históriada leitura não deve, pois, limitar-se à genealogia única de nossa maneira contempo- rânea de ler em silencio e com os olhos. Ela tem, também e sobretudo, a tarefa de encontrar os gestos esquecidos, os hábitos desaparecidos. Essa iniciativa é muito importante, pois revela além da distante estranheza de práticas antigamente comuns, estruturas específicas de textos compostos para usos que não são mais os mesmos dos leitores de hoje. Nesse excerto, evidenciam-se algumas preocupações da história cultural, e podemos apontar algumas distinções de abordagens frente a outros campos historiográficos. Ao contrário de pensar sobre o contexto intelectual do autor e suas condições de produção, o que se aproximaria de uma abordagem da história intelectual, ou de pensar sobre as interdições ou fomentos de deter- minadas obras, o que revelaria uma dimensão política mediante a censura ou a ideologia, a história cultural se atentaria para a gestualidade, para os hábitos, para as práticas de leitura. Em um de seus artigos, “O mundo como representação” (1991), Chartier explicita melhor como se dá a abordagem metodológica de sua prática his- tórica. O historiador afirma que seu espaço de trabalho: [...] organiza-se em torno de três polos, geralmente separados pelas tradições acadêmicas: de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro lado, a história dos livros e, para além, de todos os objetos que contem a comunicação do escrito; por fim, a análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações diferenciadas. (CHARTIER, 1991, documento on-line). Dessa forma, também percebemos quais fontes o autor costuma utilizar para suas análises. A proposição de Chartier de escrever uma história cultural do social por meio das representações significa escrever uma história: [...] que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos [...] que à revelia dos atores sociais traduzem as duas posições e interesses objetivamente confron- tados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse. (CHARTIER, 1988, p. 19). Em relação à definição de cultura, há uma rejeição por parte de Chartier da dicotomia cultura popular versus cultura erudita ou cultura letrada, para pensar uma noção mais abrangente de cultura, sem ignorar o componente de classe em suas análises, mas a compreendendo enquanto prática, sugerindo os conceitos de apropriação e representação, conforme apontado anteriormente. A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler [...] pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. [...] As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas (CHARTIER, 1988, p. 16-17). As noções complementares de práticas e representações têm sido bastante úteis aos historiadores culturais, sobretudo porque, por meio delas, podemos examinar não apenas os objetos culturais produzidos e os sujeitos produtores e receptores de cultura, mas também os processos que envolvem a produção e a difusão cultural, os sistemas que dão suporte a estes processos e sujeitos e, por fim, as normas a que se conformam as sociedades pela consolidação de seus costumes. Nesse sentido, diversos historiadores reconhecem a importância de Char- tier para a prática historiográfica. Segundo Julio Lima (2011, p. 188): Roger Chartier ampliou o conceito de fonte histórica, ultrapassando os limites do texto escrito para abordar também as práticas culturais a qual estes estabeleciam ou se inseriam, as formas de produção, reprodução e recepção dos textos. Assim, Chartier valoriza não somente a materialidade, mas também a oralidade, a forma de ler ou dizer, que segundo ele, em alguns momentos da história e, em determinadas sociedades, foi utilizada para perpetuação do poder. Assim, podemos afirmar que uma das principais contribuições de Chartier para a historiografia foi o estudo da produção das representações sociais, entendidas como a relação entre os sujeitos e o mundo que os cerca. A partir dessa perspectiva, a realidade é concebida por meio de representações ela- boradas pelos sujeitos a partir de sua experiência. Nesse contínuo processo de apropriação da realidade, são elaboradas práticas e representações que se sucedem em um processo contínuo de produção de normas culturais e valores. Exemplos de pesquisa em história cultural Assim como outros movimentos historiográficos, a história cultural também é caracterizada por uma pluralidade de interesses. Lynn Hunt (1992), em sua obra A nova história cultural, fez uma divisão em quatro grupos: Pesquisa em história cultural e suas abordagens metodológicas 9 a história da cultura, como escrita por Michel Foucault; a história da cultura produzida por historiadores, analisando as pro- duções de Edward Thompson e Natalie Davis; a história da cultura de inspiração antropológica, desenvolvida por Clifford Geertz; a história cultural e sua interlocução com a crítica literária, apresen- tando as contribuições de Hayden White e Dominick LaCapra. As diferenças entre essas abordagens e esses autores demonstram o ecletismo que caracteriza a proposta da história cultural. Para Cardoso e Vainfas (1997), existem três características que podem ser apontadas para conformar um perfil de conjunto para a história cultural: recusa do conceito vago de mentalidades; preocupação com o popular; valorização das estratificações e dos conflitos socioculturais como objeto de investigação. A seguir são listadas as outras formas que autores sugerem para clas- sificar os historiadores, as obras e os interesses que se reivindicam como pertencentes desse campo (CARDOSO; VAINFAS, 1997). A história da cultura praticada pelo italiano Carlo Ginzburg, nota- damente suas noções de cultura popular e de circularidade cultural presentes quer em trabalhos de reflexão teórica, quer nas suas pes- quisas sobre religiosidade, feitiçaria e heresia na Europa quinhentista. A história cultural de Roger Chartier, historiador vinculado, por origem e vocação, à historiografia francesa — especialmente os conceitos de representação e de apropriação expostos em seus estudos sobre leituras e leitores na França do Antigo Regime. A história da cultura produzida pelo inglês Edward Thompson, especial- mente na sua obra sobre movimentos sociais e cotidiano das classes populares na Inglaterra do século XVIII. Nos últimos anos, novas correntes historiográficas vêm se formando a partir das considerações delineadas pela história cultural. Essas correntes são tributárias em grande parte dos diálogos interdisciplinares entre a his- tória e outros campos do saber, como a antropologia, a ciência política e a linguística, para citar alguns exemplos. De acordo com Barros (2011, p. 60): A história cultural, enfim, tem permitido precisamente o estabelecimento de um novo olhar sobre objetos que habitualmente têm sido beneficiados por um tratamento historiográfico econômico, político ou demográfico. Sua expansão, por conseguinte, vai muito além dos objetos e processos habitualmente tidos por culturais, de modo que é sempre oportuno enfatizar como a história cultural tem se oferecido cada vez maiscomo campo historiográfico aberto a novas conexões com outras modalidades historiográficas e campos de saber, ao mesmo tempo em que tem proporcionado aos historiadores um rico espaço para a formulação conceitual. Nesse sentido, retornamos a um dos objetivos de Lynn Hunt (1992), que era demonstrar como a delimitação de novos objetos e enfoques para o estudo da cultura exigiu que os historiadores fortalecessem os diálogos interdisci- plinares. Podemos citar, portanto, as seguintes aproximações entre a história e outras disciplinas, para dar conta de seus objetos e temas de análise: história e antropologia, para o trabalho com o conceito de cultura; história e linguística, para a problematização do texto histórico e suas especificidades; história e arte, para uma correta abordagem a respeito das imagens; história e arquitetura e urbanismo, para o estudo da cidade, suas imagens e representações. Uma das principais contribuições da história cultural para a historiografia foi chamar a atenção para a historicidade das práticas, representações e demais códigos que chamamos de “cultura”. Dessa forma, houve uma amplia- ção do universo temático e de objetos, propiciada também pela utilização de novas fontes documentais. Porém, a história cultural também legou uma série de desafios para a prática historiográfica, enunciados em três tópicos por Sandra Pesavento (2005): 1. o historiador e o público leitor devem assumir a dúvida como um princípio de conhecimento do mundo; 2. outro desafio para o historiador é uma espécie de nostalgia da to- talidade ou dos modelos globais, que se sintetizaram em um texto harmônico e compreensível com uma explicação acabada; 3. um desafio final é aquele trazido pela incorporação da subjetividade no trabalho do historiador. Pesquisa em história cultural e suas abordagens metodológicas 11 Primeiro, o desafio dá-se pela consciência da própria subjetividade do historiador, com sua intuição, sua individualidade, sua trajetória de vida e sua inserção no mundo acadêmico e social. Depois, quando se leva em conta a subjetividade dos atores a resgatar no passado. Uma das características da história cultural foi trazer à tona o indivíduo, como sujeito da história, recompondo histórias de vida, particularmente daqueles egressos das camadas populares (PESAVENTO, 2005, p. 118). Como legado da história cultural, podemos citar não somente os novos enfoques e as novas temáticas, mas também algumas mudanças epistemoló- gicas: há uma reorientação em relação à percepção da realidade e, com isso, um questionamento sobre a função social da história e do historiador. Isso se deveu principalmente aos debates acerca da ficção e da narrativa na história. Para alguns, se tratava de uma contraposição irreconciliável entre modernos e pós-modernos. Para a historiadora Sandra Pesavento (2005), esse debate no campo historiográfico repercutiria nas concepções de verdade sobre o passado. Compreendendo o campo da história cultural como uma defesa do paradigma da pós-modernidade, a autora afirma que: [...] no campo da história cultural, o historiador sabe que a sua narrativa pode relatar o que ocorreu um dia, mas que esse mesmo fato pode ser objeto de múl- tiplas versões. A rigor, ele deve ter em mente que a verdade deve comparecer no seu trabalho de escrita da história como um horizonte a alcançar, mesmo sabendo que ele não será jamais constituído por uma verdade única ou absoluta. O mais certo seria afirmar que a história estabelece regimes de verdade, e não certezas absolutas. (PESAVENTO, 2005, p. 51). Citemos o exemplo do historiador italiano Carlo Ginzburg, em sua conhecida obra O queijo e os vermes (1998). Além de ser um trabalho de micro-história, trata-se de uma análise que problematiza a hierarquização entre cultura erudita e cultura popular, a partir da visão de mundo de um moleiro do século XVI, Domenico Scandella, mais conhecido como Menocchio, da região do Friuli, na Itália. Publicado em italiano em 1976, o livro utiliza como fonte de predileção o processo da Inquisição que condenou Menocchio à morte na fogueira pelo crime de heresia. A partir de seu contato com obras e interpretações que circulavam naquela conjuntura, Menocchio realizou um processo de apro- priação dessa cultura, e elaborou uma interpretação muito peculiar sobre a origem do universo, que acabou lhe custando a vida: “Tudo era um caos, isto é, terra, ar, fogo e água juntos; e de todo aquele volume se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram anjos” (GINZBURG, 1998, p. 36-37). Essa visão de mundo contrariava os preceitos religiosos católicos, e resultou na condenação de Menocchio à morte. A análise do autor possibilitou uma interessante conceituação de cultura para compreender como Menocchio realizou esse processo de apropriação dos conhecimentos e saberes disponíveis no espaço e no tempo em que viveu. Ginzburg (1998, p. 27) compreende a cultura como “[...] uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um. Com rara clareza e lucidez, Menocchio articulou a linguagem que estava historicamente à sua disposição”. No trabalho metodológico e teórico com as fontes, Ginzburg mobiliza determinadas práticas ou preceitos da história cultural. Primeiramente, está ciente das limitações de sua fonte, que traz uma perspectiva dos inquisido- res, e a aborda não como a verdade sobre Menocchio, mas como o olhar dos inquisidores sobre Menocchio. Em segundo lugar, o objeto de análise poderia ser caracterizado como uma história vista de baixo, porque aborda as formas de circulação e apropriação da cultura por indivíduos que geralmente não foram abordados pelas historiografias oficiais. Devido à multiplicidade de temas abarcados pelos historiadores que se dedicaram ao estudo das manifestações culturais, é difícil elaborar uma síntese de suas contribuições e obras. Contudo, podemos citar ao menos três pesquisadores que se destacaram na ampliação da concepção de cultura e romperam com certos esquematismos e falsas dicotomias: Michel de Certeau, Pierre Bourdieu e Roger Chartier. Para esses historiadores, a cultura extra- polaria a produção realizada nas instâncias oficiais de uma sociedade, mas também incorporaria os usos e os costumes, as formas como as pessoas “[...] falam e se calam, comem e bebem, sentam e andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam seus loucos ou recebem os estrangeiros” (BARROS, 2004, p. 77). Referências BARROS, J. D. A nova história cultural: considerações sobre o seu universo conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 12, n. 16, p. 38-63, 1º sem. 2011. BARROS, J. D. O campo da história: especialidades e abordagens. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. BURKE, P. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (Orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodo- logia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difusão Editora, 1988. CHARTIER, R. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP, 1998. CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, jan./abr. 1991. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&p id=S0103-40141991000100010. Acesso em: 31 dez. 2020. GINZBURG, C. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. HUNT, L. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. LIMA, J. C. R. Roger Chartier, o universo simbólico e a escrita da história. Nearco, Rio de Janeiro, v. 1, p. 181- 189, 2011. PESAVENTO, S. J. História & história cultural.Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Leituras recomendadas http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&p Pesquisa em história cultural e suas abordagens metodológicas 13 CARDOSO, C. F.; BRIGNOLI, H. P. Os métodos da história: introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográfica, econômica e social. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. SOUZA, L. M. Aspectos da historiografia da cultura sobre o Brasil colonial. In: FREITAS, M. C. (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998. p. 17-38. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas Jefferson Cavalcanti Lima OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Descrever os principais referenciais teóricos da pesquisa imagética em história. > Identificar as estruturas metodológicas da pesquisa imagética em história. > Reconhecer as diferentes possibilidades de pesquisa dentro do eixo de pesquisa imagética. Introdução Durante muito tempo, a utilização de indícios imagéticos na pesquisa historio- gráfica foi encarada com desconfiança. A pretensão de tornar a historiografia um campo científico, semelhante aos outros campos do conhecimento, tornou o diálogo entre a história e determinadas expressões subjetivas uma experiência infértil. Contudo, tanto pelas transformações internas ao campo (inclusive a própria institucionalização da área do conhecimento) quanto pelas tensões provocadas pelo contato com outras ciências humanas, diversos historiadores passaram a reconsiderar a relação entre historiografia e conteúdo imagético. Tal processo, longe de corresponder a uma linha evolutiva capaz de interseccio- 2 Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas nar história e imagem, foi fruto de suposições e contraposições, experimentos e dialogias. Neste capítulo, você vai conhecer os principais referenciais teóricos relativos aos diálogos entre história e imagem. Você também vai ler sobre modelos metodológicos experienciados e reelaborados no âmbito da pesquisa ima- gética, situando-se na pluralidade que essa área é capaz de abarcar. Por fim, você vai estudar algumas perspectivas críticas, mas também relevantes para a ampliação da pesquisa imagética em história. Referenciais teóricos da pesquisa imagética em história Como você sabe, o contato de seres humanos com conteúdos imagéticos é parte de um denso e complexo processo civilizatório. Tais conteúdos in- corporaram, ao longo de períodos distintos da história, múltiplas funções e discursividades. Nesse sentido, as imagens não apenas registram deter- minado contexto, mas também atuam como interpretações produzidas por determinados atores sociais. Do Mesolítico, período no qual registros eram gravados em espaços e em artefatos, aos primeiros modelos imagéticos das civilizações do Crescente Fértil, passando pelas alegorias da Antiguidade Clássica, pelos murais de cidades do Vale do Rio Indo e pelos contributos do império Axum, as socieda- des humanas se caracterizaram pelo esforço de representar, em uma relação intrínseca com a produção imagética. A imagem, como afirmou o situacionista Guy Debord em “A sociedade do espetáculo”, é uma forma de interagir, mas também de representar e justificar a existência. Diante da representação imagética na história e também na historicidade de determinadas civilizações, cabe questionar qual é o papel do historiador e também da historiografia na interpretação de tais registros. Nos termos de Burke (2004), estão em questão as formas de dialogar com os indícios do passado no presente. Antes de responder a essa questão, vale a pena refletir, mesmo que bre- vemente, sobre o uso da expressão “indícios do passado no presente” em detrimento do uso do termo “fonte”, comum entre alguns historiadores. Veja o que afirma Burke (2004, p. 24): Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas 3 Tradicionalmente, os historiadores têm se referido aos seus documentos como “fontes”, como se eles estivessem enchendo baldes no riacho da Verdade, suas histórias tornando-se cada vez mais puras, à medida que se aproximam das origens. A metáfora é vívida, mas também ilusória visto que subentende a possibilidade de um relato do passado que não seja contaminado por intermediários. É certa- mente impossível estudar o passado sem a assistência de toda uma cadeia de intermediários, incluindo não apenas os primeiros historiadores, mas também os arquivistas que organizaram os documentos, os escribas que os escreveram e as testemunhas cujas palavras foram registradas. A necessidade de retomar esse tema relaciona-se sobretudo aos olhares que historiadores mais objetivistas dirigiram ao uso de imagens enquanto forma de acesso aos elementos estruturais de determinada sociedade. As imagens, enquanto indícios do passado, foram tratadas durante muito tempo como materiais inconsistentes, dotados de uma subjetividade própria, uma lógica particular, o que para alguns seria incompatível com a objetividade do ofício do historiador. Grosso modo, a historiografia, pretendente ao posto de ciência, ignorava a experiência sensível pela sua ambiguidade, mas também pela retórica da pureza do método. É nesse sentido que a citação anterior traz uma contri- buição: a possibilidade de perceber que a “invisibilidade do visual” para o historiador não era uma incompletude ou uma miopia seletiva, e sim uma intencionalidade, uma forma de produção teórica e metodológica da história. Feita essa reflexão, considere novamente a questão anterior: qual é o papel do historiador e também da historiografia na interpretação de registros imagéticos? Uma agenda em construção Num primeiro momento, as reflexões sobre os usos teóricos e metodológicos de imagens para o conhecimento historiográfico não partiram de uma escola de pensamento, uma perspectiva teórica legitimada pelos pares ou outras estruturas semelhantes. Na verdade, elas partiram de esforços esporádicos de historiadores e filósofos simpáticos à produção visual, motivados tanto por suas próprias inspirações e diálogos com outras formas de comunicação quanto pelo contato eventual com outros contextos (em certos casos, com expressões culturais africanas, asiáticas e de povos isolados da América). Não por acaso, muitas dessas discussões seriam alimentadas durante o período do imperialismo e do neocolonialismo. 4 Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas De forma breve, pode-se exemplificar esse início da construção de uma agenda sobre a produção imagética e os seus usos no registro historiográfico por meio das contribuições de Jacob Burckhardt e Johan Huizinga. Burckhardt (1961), mesmo sem ter a pretensão de inaugurar uma nova escola de pensamento, acabou por romper com toda a historiografia do século XIX e com a filosofia da história dos seus contemporâneos hegelianos. Ao negar a existência da filosofia da história, Burckhardt (1961) aproximou-se de uma leitura mais contemplativa dos fatos, bem como de uma visão mais descritiva e sistemática de determinados períodos, dialogando com a cultura material a fim de acessar as formas estruturais de pensamento. Nos termos de Vermeersch (2003, p. 221), Burckhardt (1961) “queria captar o que sempre se repete, expressos no zeitgeist e volksgeist (‘espírito do tempo’ e ‘espírito do povo’). Esses dois elementos, as peças do vestuário do espírito humano,podiam ser compreendidos nas obras de arte”. Já para Huizinga (2005), a produção imagética seria a forma de acessar o passado. Neste ponto, é relevante atentar à noção de que o passado se mostra acessível. As justificativas de Huizinga (2005), inclusive, corroboram a sua percepção de que em períodos anteriores a escrita ocupou um espaço diferente em relação àquele ocupado na contemporaneidade. Desse modo, haveria a necessidade de que os historiadores acessassem a produção ima- gética e, a partir dela, interpretassem os grandes marcos dos ideais históricos de um tempo. Nesse ponto, Huizinga (2005) aproxima-se de Burckhardt (1961) na busca de um “espírito do tempo” por meio da imagem. Como complemento, Huizinga (2005) discorre, de modo indireto, sobre um tema relevante: a incidência de materiais impressos em outros períodos da história. Aqui, não se pode menosprezar o elemento técnico; ou seja, em determinados períodos, a oferta de imagens e também de materiais escritos era escassa. Dessa perspectiva, esses elementos eram tão inacessíveis aos vários setores de determinada sociedade como o são hoje, enquanto indícios, aos historiadores que a estudam. Nesse mesmo período, na cidade de Hamburgo, Aby Warburg iniciava, em torno de seu acervo, uma comunidade de historiadores e demais intelectuais interessados nas formas expressivas e na ciência da cultura. Desse contexto profícuo, derivam dois elementos importantes na produção teórica sobre a pesquisa imagética em história. Em primeiro lugar, apesar de o foco de muitos membros do círculo organizado por Aby Warburg ser a história da arte, houve naquele momento a ampliação das temáticas e dos mecanismos de análise. Assim, tanto as temáticas quanto os mecanismos de análise se tornaram Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas 5 mais plurais e preocupados com questões que ultrapassam a estética ou os parâmetros específicos do material em si. O acervo de Warburg, denominado “Biblioteca Warburg de Ciências da Cultura”, como afirma Santos (2019), acumulou vários registros, como docu- mentos sobre astrologia, astronomia, alquimia, magia e história da arte. Com a oferta plural de materiais, somada aos novos olhares, baseados também no valor comunicacional e no impacto sobre os receptores, a cultura imagética acabou por transcender a história da arte, tornando-se um campo interessante também para outras formas de produzir historiografia. O segundo elemento foi a construção, mesmo que preliminar, de uma rede de atores sociais que se debruçaram sobre um tema comum: a relevância da construção imagética para a pesquisa histórica. Frances Yates, Erwin Pano- fsky e Edgar Wind estão entre aqueles que se esforçaram para interpretar a produção imagética, contribuindo de certa forma para o desenvolvimento de determinados referenciais teórico-metodológicos. Quanto a esses dois novos elementos, é importante destacar que, se por um lado o conteúdo imagético se tornou relevante, por outro a historiografia desse contexto (passagem do século XIX para o XX, chegando até os anos 1930) era até então alheia a debates mais aprofundados. E é justamente nesse ponto que novas possibilidades se apresentam no âmbito da produção da historiografia, bem como na esfera da ampliação teórico-metodológica das análises sobre a produção imagética. Grosso modo, surge um diálogo entre os dois campos. Em paralelo, é importante destacar que a antropologia culturalista, ins- pirada na produção do judeu-alemão Franz Boas, já impactava a produção historiográfica em outros contextos, como nos Estados Unidos e no Brasil. A crítica de Boas ao método comparativo, tipicamente evolucionista e pautado em uma redução da experiência subjetiva de outras culturas, foi fundamental para a aproximação de pesquisadores aos artefatos, representações pictóricas e demais formas expressivas. No Brasil, a produção de Gilberto Freyre foi diretamente impactada, in- clusive nas tentativas de representar imagens etnográficas por meio de esboços, desenhos encomendados e fotografias do acervo do governo de Pernambuco e da família Freyre. Nos Estados Unidos, a marcha para o Oeste, ainda no século XIX, marcou todo um imaginário na produção estadunidense, incitando a criação de pinturas, registros fotográficos e, posteriormente, imagens fílmicas. 6 Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas Esse desenvolvimento em paralelo reforça a percepção de que não houve, na historiografia desse contexto, um enfoque único do uso da cultura ima- gética. Em linhas gerais, os caminhos para a valorização da imagem não obedeceram a uma lógica própria, até porque não representaram a construção de um campo autônomo de estudos, e sim um contributo material para novas formas de produzir conhecimento historiográfico. Apesar da inexistência desse campo autônomo, percebe-se, por meio das transformações mencionadas, aproximações entre linhas historiográficas e determinados usos da cultura imagética. No campo da teoria marxista, autores como Theodor Adorno e Walter Benjamin debruçam-se sobre formas mais sutis da coisificação da consciência e discorrem a respeito do impacto da técnica sobre o devir da relação entre o ser humano e a arte. Ocorre também a publicação da revista Annales d’histoire économique et sociale, e surge toda uma rede de pensamento que se solidifica em torno da Escola dos Annales. As imagens são, a partir de então, tomadas sob uma nova égide, além de selecionadas e analisadas sob critérios distintos. O livro “A sociedade do espetáculo”, do situacionista Guy Debord, foi um elemento importante no contexto dos acontecimentos de maio de 1968. Em acréscimo à obra escrita, uma versão imagética fílmica do material foi produzida em 1973. Além de apresentar as críticas já consagradas de Debord ao construto fetichizado na relação entre pessoas e imagens, o filme oferece a oportunidade de observar as relações entre produção textual e representação imagética fílmica, bem como as fissuras na relação entre objetividade e subje- tividade da produção intelectual. Para saber mais sobre a produção, confira o artigo “A sociedade do espe- táculo: uma autotradução como crítica”, dos pesquisadores Juliana Zanetti de Paiva e Robson José Feitosa de Oliveira. Esse artigo está disponível on-line; para encontrá-lo, utilize o seu site de buscas favorito. Estruturas metodológicas da pesquisa imagética em história Na primeira seção, você conheceu algumas nuances das linhas teóricas res- ponsáveis pela sistematização do estudo imagético na história. Em linhas gerais, tais proposições se originaram do campo da história da arte, passando pelos primeiros teóricos da ciência da cultura, com menções aos construtos Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas 7 historiográficos, e chegando até a Escola dos Annales. Agora, você vai conhecer novos paradigmas da historiografia que se impõem metodologicamente à pesquisa imagética, sobretudo para a criação de pesquisas multissituadas, ou seja, que não necessariamente dialoguem com um único indício do passado, mas que abarquem uma série de disposições discursivas, numa relação tanto de sobreposição quanto de complementariedade. Iconografia e iconologia A noção de que as obras de arte e a cultura imagética de determinadas ci- vilizações poderiam representar uma forma de acesso a essas civilizações não necessariamente nasceu dos debates historiográficos do século XIX ou das aspirações positivistas, na sua busca pela ordenação do mundo e das experiências. A composição imagética, enquanto forma expressiva, fora utilizada por diversos teóricos, ensaístas e orientalistas antes mesmo da sistematização conhecida como “historiografia”. É possível mencionar a relevância de estudiosos como Cesare Ripa, ico- nógrafo italiano que viveuno século XVI. Ele participou de um contexto em que manuais de iconologia eram publicados não somente para nortear a interpretação, mas também para serem utilizados como materiais de consulta para determinados autores, em seus esforços por construir um material simétrico e em diálogo com os padrões estéticos renascentistas. Esse ideário de sistematizar não somente a leitura, mas também a produção igualmente se fez presente no século XVIII, quando manuais de iconologia também cola- boraram para o projeto da sociedade ilustrada. Nesse período, havia ainda um esforço de padronização. No entanto, mesmo que isto não configure ineditismo, coube sim aos historiadores a tentativa da criar um método sistemático e rigoroso para a compreensão de construções imagéticas. Nesse sentido, surgiram as con- cepções de iconografia e iconologia contemporâneas. Em linhas gerais, o conceito de iconografia contemporânea surgiu ainda na transição do século XIX para o século XX, no círculo de Hamburgo, ou seja, em torno do espaço mediado por Aby Warburg. Foi nesse círculo que Erwin Panofsky pôde sistematizar as suas impressões sobre o modo como a obra de arte era tratada até aquele momento, bem como sobre o potencial da análise de indícios imagéticos para a interpretação de determinado período, em determinado contexto. Panofsky (2002), nesse sentido, colabora ao sis- tematizar o passado e sobretudo ao aprofundar perspectivas que seriam utilizadas posteriormente. 8 Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas Veja como Panofsky (2002, p. 54) definiu a iconografia: O sufixo “grafia” vem do verbo grego graphein, “escrever”; implica um método de proceder puramente descritivo, ou até mesmo estatístico. A iconografia é, portanto, a descrição e classificação das imagens, assim como a etnografia é a descrição e classificação das raças humanas; é um estudo limitado e, como que ancilar, que nos informa quando e onde temas específicos foram visualizados por quais motivos específicos. É justamente nesse ato de descrever que Panofsky (2002) observa a possibilidade de acessar as primeiras proposições analíticas. O método de Panofsky, em linhas gerais, parte do descritivo ao analítico, nesse ponto aproximando-se realmente da etnografia; para tal, estrutura-se por meio de uma logicidade. Esta é baseada na possibilidade de que o pesquisador des- creva os significados primários durante a observação, o que o autor denomina “etapa pré-iconográfica”. Nessa etapa, caberia ao historiador a expansão de suas próprias referências, seja pelo método comparativo (isto é, comparando a produção em questão com outras imagens), seja pelo diálogo com outros indícios, como documentos e obras sobre o contexto. Em um segundo momento, Panofsky (2002) supõe a necessidade de que a imagem seja observada com mais rigor, a fim de que histórias e perspectivas alegóricas sejam identificadas. Nesse ponto, os termos “história” e “alegoria” são tratados em dois níveis distintos: a primeira é estabelecida nas relações perenes, a segunda, num nível mais abstrato. No entanto, não se trata de um modelo antitético, e sim de uma sobreposição. Por fim, a partir de um mapeamento, Panofsky (2002) observa a presença de um logos, um discurso. Essa discursividade possibilitaria aos historiadores a profusão de experiências e propostas investigativas. Nessa etapa, haveria a viabilidade de diálogos em perspectiva com outros pressupostos, como os da filosofia, da história e da antropologia. Ao vincular o conteúdo imagético à busca pelo logos, o autor desterrito- rializa a imagem do âmbito da individualidade, tornando-a uma expressão mediada e, por que não, composta por simbolismos que se manifestam no plano do coletivo, da sociedade. Para além disso, surge a possibilidade de que essa perspectiva social torne a experiência iconológica uma experiência historiográfica, na qual a busca por parâmetros e a proposição de estilos sejam demarcadas por uma temporalidade e também por uma estrutura de pensamento não apenas artístico, mas referente ao próprio contexto histórico. Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas 9 É a partir dessa possibilidade, da insistência em localizar o Zeitgeist, que Panofsky (2002) se aproxima dos teóricos de Hamburgo. Ele defende, inclusive, que a história da arte não deveria ser uma área estanque, e sim um afluxo para a compreensão de um contexto cultural mais amplo. Observe isso na síntese do próprio autor: Nem é preciso dizer que, de modo inverso, o historiador da vida política, poesia, religião, filosofia, e situações sociais deveria fazer uso análogo das obras de arte. É na pesquisa de significados intrínsecos ou conteúdo que as diversas disciplinas humanísticas se encontram num plano comum, em vez de servirem apenas de criadas umas das outras (PANOFSKY, 2011, p. 63). Nesse sentido, a proposta de Panofsky (2002) intensifica a busca por uma linha metodológica amplamente sistematizada, em que a história da arte não seja uma “criada” de outras áreas do conhecimento, mas um modus operandi na construção da escrita e da interpretação, respectivamente iconografia e iconologia. Em paralelo, quando se verifica a relevância dessa proposta, percebe-se o seu distanciamento do método formalista, pautado por uma leitura descritiva e objetiva da imagem. Tal proposta se vincula à noção de que, mais do que buscar o indício na experiência imagética, os historiadores poderiam fazer suposições sobre mecanismos perceptivos e impactos externos para a compreensão de uma história da cultura. Desdobramentos Como sugere Burke (2004), os historiadores teriam a possibilidade de, a partir do modelo de Panofsky, aprofundar a proposta metodológica iconográfica/ iconológica. Isso se daria tanto no sentido de construir aproximações quanto no de sistematizar críticas, a fim de pressupor novas formas de leitura de materiais imagéticos. No seio dessas possibilidades, Burke (2004, p. 254) identifica algumas ten- dências, entre as quais destacam-se “o enfoque da psicanálise, o enfoque do estruturalismo ou da semiótica, e o enfoque (mais precisamente os enfoques no plural) da história social da arte”. No que se refere à psicanálise, a inversão do significado é o primeiro aspecto a ser considerado. Se no modelo de Panofsky, por exemplo, os sig- nificados conscientes aludiam à interpretação, na perspectiva psicanalítica sobre o conteúdo imagético, sobretudo em seu diálogo com a historiografia, o inconsciente seria o meio de acesso aos modelos subjetivos, não apenas coletivos, mas também individuais. Por exemplo, Ernst Gombrich, ao pôr em 10 Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas xeque a busca pelo todo, questiona as distorções intencionais, dimensionais e de escala, estas intrínsecas às representações imagéticas. Em linhas gerais, Gombrich (2005) questiona uma série de inconsistências do método iconoló- gico e a sua busca pelo espírito do tempo. Tais inconsistências se baseariam na possibilidade de o indivíduo, o propositor, estar em diálogo com outras instâncias, não necessariamente sociológicas ou conscientes, mas num nível inconsciente e pessoal. Na conferência “Sobre a interpretação da obra de arte: o quê, por que e como”, Gombrich (2005) aprofunda tais argumentações, sistematizando uma série de aspectos em torno da inadiável crise do modelo iconográfico/ iconológico. Aqui, é destacado o papel proeminente da psicanálise: Cito em primeiro lugar a filosofia do progresso, condensada no slogan da vanguar- da. Em segundo lugar a pretensão científica da arte, cujas ideias, com frequência, parecem obscuras e ininteligíveis ao homem comum, o que leva, muitas vezes, a que sejam aceitas sem discussão. O terceiro fato, oposto ao anterior, é o culto do irracional, que para muitosse oferece como refúgio ante o mecanicismo da vida moderna. Em quarto lugar, as teorias de Freud e, com elas, a ideia de que o artista deve ser um caudilho do inconsciente protestando contra a uniformidade da ci- vilização ocidental. Em quinto lugar, a busca de novidade própria dos marchands, que corresponde ao desejo de novidade da indústria da moda. O sexto elemento, a influência das novas correntes no ensino da arte, que começa no ensino primário e incentiva a ideia da autoexpressão. Em sétimo lugar, o enorme impacto da fotografia e a necessidade que tem o artista de buscar alternativas à representação visual da natureza. O oitavo elemento é algo que hoje em dia poderia ser considerado uma singularidade do passado: a reação contrária ao realismo social que se produziu com patrocínio oficial nos países do Leste. Por último, a ampliação de um novo tipo de tolerância, a disposição do público para participar da diversão sem ter de se ocupar de profundas teorias (GOMBRICH, 2005, p. 23). Apesar da relevância dessa ruptura, bem como dos contributos da psica- nálise, vale destacar o que Burke (2004) elenca como os dois obstáculos na relação entre psicanálise e história. Em um primeiro momento, destaca-se o questionamento acerca da antinomia indivíduo e sociedade. Ou seja, está em jogo a compreensão de que a psicanálise estaria alocada mais no nível individual, enquanto a história e o seu bojo metodológico teriam como en- foque modelos societários, mesmo que numa análise da micropolítica. Num segundo momento, destaca-se que o acesso da psicanálise ao passado se dá somente pelos indícios materiais; logo, haveria um limite para o método. Apesar das ressalvas de Burke, o enfoque psicanalítico ainda acompanharia a historiografia em determinadas perspectivas metodológicas, inclusive nas relações entre a produção propagandística e o desejo. Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas 11 Outra vertente importante na historiografia e também nas ciências hu- manas lato sensu é o estruturalismo. Em síntese, como afirma Cezar (1995, p. 131), o estruturalismo na historiografia dialogou com novas temáticas da linguística de Ferdinand de Saussure, sobretudo com os temas relacionados ao modelo estrutural de signos e à interação entre emissor, mensagem e receptor. Ademais, dialogou com o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, na antropologia. A Escola dos Annales, em certa medida, facilitou tais aproximações. Embora o pensamento de Lévi-Strauss se apresentasse, em certo ponto, a-histórico, a sua leitura sobre a temporalidade e sobre formas elementares da subjetivi- dade acabaram por aproximar algumas perspectivas relacionadas à busca do modelo científico para uma nova historiografia. Essa leitura estruturalista, de certo modo, chegaria ao tema dos indícios imagéticos por meio da intenção de tornar o material em si um sistema de signos e, dessa forma, algo passível de captação e compreensão. Em outros termos, caberia ao método estruturalista identificar não somente a composição, mas também os elementos externos, antitéticos e sobrepostos. Ainda no modelo estruturalista, mas de outra perspectiva, Foucault (2000) destaca-se como um intelectual preocupado com o tema da representação. No primeiro capítulo da obra “As palavras e as coisas”, Foucault (2000) analisa o quadro de Diego Velázquez intitulado “Las Meninas”, datado de 1656. Por meio do que o autor denomina “representação da representação”, há a possi- bilidade de que o próprio Velázquez seja colocado numa relação de dubiedade, sendo ao mesmo tempo o pintor e um modelo presente no registro imagético. Para além disso, a presença de modelos nomináveis (como o rei Felipe IV), a incidência de luz e os espelhos tornam o quadro uma alegoria daquilo que Foucault pressupõe ser uma nova ordem dos saberes: nos termos de Ribeiro (2013, documento on-line), “o conhecimento como luz, a representação como espelho e o conhecimento como representação”. Por fim, destaca-se a teoria praxiológica de Pierre Bourdieu, como acena Chartier (2002). Ao dialogar com categorias como internalização de determina- dos conceitos, reprodução de valores e externalização de padrões adquiridos, Bourdieu traz para a história e para a historiografia contribuições viáveis para o estudo imagético (com especial atenção à história da arte). Contudo, isso se dá numa perspectiva permeada por diálogos com outros indícios. Como terceira possibilidade, destaca-se o pós-estruturalismo, perspec- tiva teórica que irrompe do estruturalismo e integra à análise de conteúdos imagéticos o tratamento semelhante ao que determinados autores deram ao construto de narrativas. Em linhas gerais, para a ciência positivista, a lingua- 12 Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas gem era o caminho para o conhecimento, e a imagem era uma objetividade em si. Já para a perspectiva pós-estruturalista, aqui tomada de modo mais geral, há uma construção fronteiriça que consegue entender a imagem não apenas como uma representação coletiva de um período, tampouco como um aglomerado de signos desconexos e sem agenciamento. Para conferir uma análise detalhada do quadro de Diego Velázquez, leia o texto “Las Meninas segundo Foucault”, escrito pelo historiador e teórico do cinema Marcelo Ribeiro, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Esse texto está disponível on-line; para encontrá-lo, utilize o seu site de buscas favorito. Possibilidades da pesquisa imagética Nesta seção, você vai conhecer as múltiplas possibilidades da pesquisa ima- gética, que não são apenas temáticas, mas também analíticas. Tenha em mente que as possibilidades não se limitam às tratadas aqui. A intenção, por ora, é provocar você a refletir sobre algumas abordagens e sobre a relevância do assunto. Para começar, considere a teoria feminista. Relevante inclusive para a gui- nada ao pós-estruturalismo, essa teoria precisa ser entendida também como uma possibilidade de pesquisa e análise de determinadas representações imagéticas. Os trabalhos de Linda Nochlin e Griselda Pollock surgem não como um receituário ou um manual feminista sobre a produção e a representação imagética na pesquisa em história, mas como uma análise crítica e a contrapelo da produção artística e historiográfica sobre o tema. Nochlin (2016), questionando por que não há artistas femininas desde o título de sua obra, não busca uma solução para a problemática por meio de uma equiparação entre artistas com base na variável gênero, mas desenvolve uma crítica ao próprio ideário de arte e, em paralelo, aos seus espaços de consagração. Pollock (1988), por sua vez, dirige um olhar retrospectivo sobre o papel da mulher na produção imagética. Ela discorre sobre a mulher como um modelo, muitas vezes objetivado por uma perspectiva masculina, bem como sobre a negação da mulher enquanto produtora de indícios imagéticos. Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas 13 O que Pollock busca em sua agenda de pesquisas não é a introdução da mulher enquanto cânone da historiografia ou da produção imagética, mas a formulação de uma crítica sistemática aos operadores da cena artística e das instituições responsáveis, além de um olhar historiográfico sobre o que foi produzido. Neste ponto, atente para a possibilidade de que, por meio dessa perspectiva, ainda incipiente, seja possível elaborar tanto um eixo temático quanto uma crítica aos métodos e modelos epistemológicos apresentados anteriormente. Outra perspectiva importante diz respeito aos diálogos entre a pesquisa em história e a fotografia. Os usos da fotografia por historiadores são tão potentes que podem instrumentalizar a reflexão sobre diversos temas, como a análise de mobiliários, indumentárias, expressões corporais e questões relativas ao desenho deespaços construídos. Não raro, o uso da fotografia permeou as pesquisas relativas ao espaço urbano, colaborando intrinseca- mente para análises urbanísticas. Para além disso, como afirma Carvalho et al. (1994), a fotografia, para historiadores, é uma forma de acessar os conceitos de memória, passado, tempo histórico, realidade visível e representação visual. No âmbito da re- presentação visual, a fotografia traz aos historiadores a aproximação não somente com a objetividade imagética, mas também com os padrões de solenidade, os domínios sobre as corporeidades, as relações hierárquicas e as possibilidades de acesso ao registro. Nesse sentido, pode-se problematizar a questão da técnica e do acesso ao registro fotográfico em tempos e contextos distintos. Num segundo plano, os diálogos entre história, historiografia e fotografia oferecem a possibili- dade de tratar o conteúdo imagético com base em uma série de categorias temáticas, incluindo, por exemplo, o motivo de sua execução e os meios de difusão. Neste ponto, lembre-se da relevância da proposição metodológica, ou seja, do rigor em torno do material acessado, que implica diálogos com outros indícios e atribuições teóricas. Ainda na esfera da relação entre pesquisa histórica e fotografia, destaca-se o aumento da representatividade visual na contemporaneidade. A disponi- bilização massiva de meios tecnológicos transformou parte da mediação e da comunicação entre pares em uma experiência visual, tornando a relação entre produtor e consumidor muitas vezes uma falsa oposição. Como afirma Canabarro (2005), está em trânsito uma cultura fotográfica responsável por ressignificar a experiência imagética considerando não apenas espaços es- pecíficos ou propostas de grandes fotógrafos, e sim a profusão imagética do 14 Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas cotidiano. Nesse sentido, para os historiadores, as possibilidades analíticas se tornam tão múltiplas quanto o repertório visual contemporâneo. Outro aspecto a ser considerado diz respeito aos espaços de pesquisa para historiadores. Durante muito tempo, o acesso aos acervos implicava necessariamente a busca de documentos oficiais, o que tornava a pesquisa imagética suplementar. No entanto, a ênfase na imagem, seja na fotografia ou nos seus desdobramentos para o design ou para a propaganda, redefiniu o peso da relação imagética para a compreensão de determinado contexto. Outra perspectiva consiste em considerar a análise de imagens fílmicas por meio da historiografia. Assim como na fotografia, novamente os olhares são múltiplos e amparados pela difusão em maior proporção nas últimas décadas. Quanto se avaliza a multiplicidade, permite-se que a utilização de imagens fílmicas colabore tanto para uma reflexão metateórica sobre o cinema (isto é, uma história da história do cinema) quanto para uma reflexão sobre os seus entornos (ou seja, os diálogos com a sociedade que protagoniza e inspira a experiência expressiva). Ademais, a imagem fílmica contribui enquanto agente da história, ou seja, ela é capaz de assumir um espaço de proposição. Assim, o historiador deve inquirir também sobre os usos da imagem fílmica, os seus espaços de circulação e a adesão a ela. Como pontua Marc Ferro, não foi por acidente que governos utilizaram a expressão “imagética fílmica” a fim de gerar consenso ou educar (FERRO, 1992). Filmes sobre higiene pessoal, datas comemorativas, hábitos e intervenções de agentes públicos marcam todo um imaginário acerca da vida de pessoas mediatizadas pelas imagens fílmicas. Cabe ao historiador debruçar-se sobre circunstâncias relativas à produção e também aos hábitos de consumo dessas imagens. Durante determinado período da história e da produção historio- gráfica, os indícios imagéticos foram relegados a segundo plano e acusados de subjetivismo incompatível com o ofício do historiador (ou, no melhor dos cenários, utilizados como elemento secundário na produção intelectual). Contudo, a ruptura paradigmática e a construção de perspectivas teóricas em campos fluidos de pesquisa tornaram essa invisibilidade do visual menos enfática. Assim, a pesquisa historiográfica se abriu a novos indícios. Pesquisa imagética em história e suas abordagens metodológicas 15 Referências BURCKHARDT, J. Reflexões sobre a história. Rio de Janeiro: Zahar, 1961. 280 p. (Biblioteca de Cultura Brasileira). BURKE, P. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: Edusc, 2004. 264 p. (Coleção História). CANABARRO, I. Fotografia, história e cultura fotográfica: aproximações. Estudos Ibero- -Americanos, Porto Alegre, v. 31, n. 2, p. 23–39, dez. 2005. Disponível em: https://re- vistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/1336. Acesso em: 17 dez. 2020. CARVALHO, V. C. et al. Fotografia e história: ensaio bibliográfico. Anais do Museu Paulista – História e Cultura Material, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 253–300, jan./dez. 1994. 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Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os edito- res declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300400176_ARQUIVO_Teoria- Ensino de história e desenvolvimento do pensamento crítico Thiago Cavalcante dos Santos OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Reconhecer o impacto do conhecimento do histórico no desenvolvimento do pensamento crítico. > Diferenciar o debate analítico da opinião anedótica a partir do uso do co- nhecimento histórico. > Analisar os impactos sociais e culturais dos períodos históricos que limitaram o pensamento crítico da população. Introdução As relações entre ensino de história e formação do pensamento crítico são deter- minantes, tanto em termos didáticos individuais quanto em termos de formação e rumos nacionais. Nesse sentido, é necessário investigar o surgimento da própria noção de história como disciplina lecionável. Ademais, é preciso ter claro o que significa o conceito de veracidade da história, sobretudo diante do advento de fake news, sem esquecer que a história é incorporada dentro da esfera de poder do Estado, determinando os caminhos de conquistas e perdas no seu ensino. Neste capítulo, você verá a importância da disciplina de história para a for- mação de cidadãos críticos, capazes de discernir debates analíticos de opiniões anedóticas. 2 Ensino de história e desenvolvimento do pensamento crítico História e criticidade Um dos livros mais importantes sobre o papel da história e o ofício do historia- dor é Apologia da História, de Marc Bloch (1997). Escrito durante o nazifascismo e encerrado abruptamente durante o fuzilamento do autor, a obra é fruto da lembrança de um questionamento feito pelo seu filho sobre qual seria a função do historiador. Obra consagrada, uma das falas mais eloquentes de Bloch (1997) é a afirmação que o papel da história é lembrar aquilo que a sociedade esquece ou tenta em esquecer. Desde o surgimento do que se entende como a história enquanto disci- plina de estudo, em fins do século XVIII, historiadores se propuseram a dar uma resposta objetiva aos anseios da sociedade e do poder, mas pautados por um senso de organização científica. Essa forma diferia do que havia até então sido marcado pela noção de historia magistra vitae. Introduzida por Cícero (106 a.C–43 a.C.), propunha pensar a história como aquela capaz de legar aprendizagem do passado para o presente. No século XIX, o modelo rankeano veio a caracterizar o que seria fazer e pensar história. Inserido em um contexto dos nacionalismos europeus e do romantismo nostálgico, pautou-se pelos grandes nomes do passado, pela crença em documentos e pela ênfase nos episódios de outrora. Embora criticada como uma visão de cima dos eventos históricos, há de se valorizar a coleta de documentos históricos por essa prática de verniz positivista. Na instauração do ensino de história na educação de base, a concepção positivista e rankeana conferia a educandos uma didática linear e teleológica. Assim, resgatava-se a conhecida afirmação de Cícero de que o homem que desconhece a história seria sempre um menino. A história era o ensino do passado visto como mote para entender o presente e chegar até o futuro. Por aqui, a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasil (IHGB), em 1838, tinha a função de contar uma versão oficial do país e do povo brasi- leiro. Na esteira do IHGB, outros institutos históricos e geográficos surgiam nas províncias. Eram esses órgãos os responsáveis por manter documentos do período colonial, e assim encontrar heróis do passado, em um evidente movimento direcionado ao indianismo e ao romantismo. A perpetuação de um ensino calcado em heróis continuava a ser uma marca e aprofundou-se com a disseminação dos ideários positivistas nas instituições brasileiras,
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