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FILOSOFIA E EDUCAÇÃO ensaios sobre autores clássicos Marcos Francisco Martins Ascísio dos Reis Pereira (Organizadores) “U M EdUFSCar SãoCarlos, 2014 FHFE I 4 AGOSTINHO EDUCADOR Nor! Dura Rossarro Vida e obra Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste,cidade norte-africana da atual Argélia. Participou dos círculos platônicos, neoplatônicos, céticos e maniqueístas de seu entorno. À influência mais visível em sua obra é a de Platão,apesar de ter conhecido apenas o Timeu e o Fédon. De Aristóteles, leu as Categorias, o Peribermeneias e os Tópicos. O neoplatonismo também é presença constante em sua obra mediante assimilação de textos de Porfirio, Cicero e Plotino. Converteu- -se aocristianismo e terminouseus dias em Hipona(Argélia), onde exerceu o episcopado. A conversão ao cristianismo ea ruína do Império Romanodo Ocidente são dois episódios marcantes em toda sua produçãointelectual. Escreveu inúmeroslivros, entre os quais se destacam o Delibero arbitro (395),as Confissões (400), o De trinitate (400-16) e o Decivitate Dei (413-26). Muitos dos temas tratadosnestas obras ainda exercem grandeinfluência nas discussões filo- sóficas, À temática do mal é uma delas. Contra o platonismo, dirá que o mal nãoresulta da falta de conhecimento do bem, mas de uma vontadedesviada, de uma má vontade. Ão recusar à tese maniqueísta do mal comoser (metafísico), afirmará, em troca, que o mal é umaausência de ser e, mais precisamente, um fazer (ético). Um dos temas centrais. das Confissões é o tempo. Rejeita a tese cosmológica do tempo como movimento dos astros e propóe uma novateoria em que o tempo é tomado como uma distensão da alma. O Decivitate Dei, por sua vez, constróigrande parte de sua argumentação em contraposição ideia greco-romanade eternoretorno e, em contrapartida,firma umavisão linear da história com base nos pressupostos da tradição judaico-cristã. Não obstante, aplicará a concepção greco-romana paraentender o que ele chama de história do mundo, cidade dos homens;e a verdadeira história, porsua vez,será traçada com base em personagense eventos únicose irrepetíveis tirados das escrituras bíblicas. Três textos de Agostinho, em especial, são apontadosentre a literatura pe- dagógica. O primeiro deles em ordem cronológica é o De magistro, escrito em 389, quandoo filósofo vivia em Tagaste, no norte da África. O De doctrina christiana é o segundoe foi escrito entre 396 e 427. O terceiro deles é o De catechizandis rudibus, escrito no ano 400. Diferentemente do De magistro, que investiga a própria possibilidade de ensinar e aprender mediante a transmissão de signos ou palavras, os dois últimos, compostos quando Agostinho já era bispo de Hipona, têm entre seus objetivosprincipais en- contrar o melhor método paraa leitura, interpretação e exposição dos conteúdos da doutrina cristá. Porisso, o de De doctrina christiana está incluído entre ostratados de hermenêutica. O De catechizandis rudibus, por sua vez, é um escrito catequético que se volta particularmente para o problema do conteúdoa ser transmitido e do melhor modo de ensinar um auditório formado pelosaspirantes ao cristianismo. Parafins de exposição, tomaremosos temas indicados nos própriostítulos dos três textos pedagógicos de Agostinho, segundoa sequência cronológica em queeles fo- ram escritos. O De magistro é o primeiro na ordem cronológica e, como sugereo título latino — O mestre ou Oprofessor —, encerra a questão básica que investiga a própria pos- sibilidade do professorensinar e do aluno aprender. É possívelensinar algo a alguém? A questão,além deatual, se insere na confluência das áreas de Filosofia e Educação. Outra questão não menos importante tem vinculação com a área de fundamentos da educação:o queé possível ensinar? FHFE I AGOSTINHO EDUCADOR DOCERE: É POSSÍVEL ENSINAR PELA PALAVRA? A relação entre o ensinoe a aprendizagem no De magistro está pensada desde uma perspectiva de corte platônico. O texto, tal comoos escritos platônicos, é um diálogoarticulado pelo método de exposição da pergunta e da resposta. Dois são os personagens do diálogo: o Mestre, que é o próprio Agostinho,e seu filho Adeodato, o discípulo. Umaperspectiva de leitura estrutural do texto,' que aqui adotamos, segue a seguinte divisão porcapítulos: 1) a introdução com a questão a respeito do objetivo da linguagem, dos signos ou das palavras proferidas (I a I]); 2) a discussão da tese de que nadase ensina sem ossignos(III a X); e 3) a discussão da tese contrária de que nadase ensina com os signos (XI a XIV). Naparte introdutória, Agostinho parte da questão que pergunta a respeito do objetivo da linguagem, dos signos ou palavras faladas. O que pretendemosquando fa- lamos? A resposta de Adeodato indica que as palavras proferidas ou servem paraensinar (docere) ou para aprender (discere). Agostinho não aceita integralmente resposta. Em um momentoinicial, ele eliminaa alternativa entre ensinar e aprender; e, em um mo- mentoseguinte, restringe o objetivo principal da linguagem apenas ao ensino. Daí se entende a presença do verbo “ensinar” (docere) e a ausência do verbo “aprender”(discere) nas duas questões que direcionam a totalidadedodiálogo,a saber: o que podemosensinar medianteas palavras? E antes disso, é possível ensinar? resoluçãodas questões está associada ao paradoxo do ensino que consiste em duas teses negativas e antagônicas: nada se ensina sem ossignos (1nihil sinesignis doceri) e nadase ensina com as palavras (nihil aliud verbis doceri). Comojá mencionamos, a primeira alternativa do paradoxo está desenvolvida entre os capítulos três e dez da PrimeiraParte do De magistro, onde podemosler no final do capítulo dez (X, 17) a conclusão provisória: “Agostinho: Concluímos, pois, que nada se pode ensinar sem os signos...” (Confectum est igitur et nibil sine signis doceri...). A segundaalternativa, discutida entre os capítulos onze e catorze da Se- gunda Parte, conclui com o próprio livro nosseguintes termos (XIV, 1): “Adeodato: Admoestado portuas palavras, aprendi que de nada servem as palavras a nãoser para estimular o homem aprender...” (Ego vero didici admonitione verborum tuorum nihil aliud verbis quam admoneri hominem,ut discat...). Já podemosnotardesde já que a própria conclusão do livro, indicadana se- gunda alternativa, também não deixa deser paradoxal. Agostinho coloca nabocade Adeodato, e não na sua, a afirmação conclusiva de que, mediante as palavras do mestre, o discípulo aprendera algo. Mas o quedefato ele aprende? Aprende que as palavras do professor não ensinam, mas apenas incitam o aprendizado. É, na verdade, algo 1 CE Crosson(1989). 63FHFE I 64 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO:ENSAIOS SOBRE AUTORES CLÁSSICOS paradoxal. Porém,o alunofoi levadoa essa conclusão pelas palavras do professor, e não por uma descoberta solipsista ou autodidática. Adiante isso ficará mais claro. Ao longo das perguntas e das respostas que encaminham a exposição da segunda alternativa do paradoxo, Agostinho vai precisando cada vez maisa tese respeito da pos- sibilidade deutilizar as palavras paraensinar algo, chegandoaté a insinuar em certo mo- mento que, com as palavras, apenas ensinamosoutras palavras; e, com efeito, teríamos de cederpor fim à tese contrária de queas palavras nada ensinam a respeito das coisas reais. Com base nesta indicação parcial do texto de Agostinho,alguns apressadamen- te concluem que,ao final, ele simplesmente firmaria a conhecida tese da metafísica da interioridade, entendendoqueas palavras são apenas sinais exteriores e o conhecimen- to é dado tão somente pelo Mestre interior, identificado com Cristo. Outros, com base na mesmaalternativa, postulam a tese pedagógica do autodidatismo, segundo a qual o professorficaria dispensado da tarefa de ensinar, já que as palavras nada ensinam mesmo e quem ensina de fato é o Mestre interior. Se, por um lado, é verdade que a argumentação agostiniana vai levar à conclusão de que quem ensina é o Mestree as palavras interiores, por outro,isso não podeser tomado de formaisolada em relação àoutra alternativa do paradoxo, segundoa qual nadase ensina sem as palavras exterio- res. Como,então,entenderisso? Algo semelhante ao que iremos proporpara a resolução do paradoxo acima, só querestrito ao terreno dalinguagem,já foiindicado porPaviani* do seguinte modo: “a função dalinguagem relativamente ao conhecimento tem como pressuposto explícito a tese de que não se aprende pela repercussão externa das palavras, mas pela verdade que ensinainteriormente”; e ainda: “a tese de queos signoslinguísticos ensinam algo sobre as coisas deve necessariamente ser complementada pela afirmação de quesó se aprende graças à iluminação divina existente na mente humana”. Defato, a resolução do paradoxo do ensino não se dá sem levar em conta a complementaridade entre as duasalternativas. Porém, a nosso ver, melhor se explica essa complementaridade com base na teoria estoica do duplo logos, assumida pela leitura alegórica de Filon de Alexandria, que opunhaletra e espírito, daí incorporada por Agostinho. Em poucas palavras, a teoria do duplo logosintroduz distinção entre logos endiathetos, para significara palavra interior ou espiritual,e logosprophorikos, para a palavra exterior ou proferida. A via que parte da palavra exterior para a interior é a mesma quesai do sentido literal ou histórico da escritura para chegar ao espiritual, ramificado em trêssentidosbásicos: o moral, o alegórico ou tipológico e o anagógico. Daperspectiva da palavra interior — seja ela tomada como Mestreinterior em Agostinho ou mundo comum na hermenêutica filosófica atual —, pode-se quebrar com a ideia de umalinguagem privada, centrada no atomismo da primeira pessoa, que não leva em conta o sentido comum em que se ancora toda a possibilidade de 2. Paviani (1995, p. 10,12, respecuivamente) FHFE I AGOSTINHO EDUCADOR comunicação em uma comunidadelinguística. É aí que encontramos a hermenêutica contemporânea, sobretudo a de Gadamer, que, desde umaleitura em chave platônico- -agostiniana, põe no logosinteriora própria possibilidade de universalidade da herme- nêutica, implicando com isso na indicação de que não há umalinguagem puramente objetiva, neutra e sem pré-juízos. As palavras carregam consigo os preconceitos do próprio mundo em queestão inseridas com anterioridade e superioridade em relação aosindivíduos humanos. No De magistro, o uso dos vocábuloslatinos signum (signo), sobretudo napri- meiraparte, e verbo (palavra), na segunda, pressupõe desde o início a distinção entre palavra exterior e palavra interior, ainda que Agostinho não a explicite abertamente. Mas isso,a nosso juízo,faz parte daestratégia socrático-platônica que acompanhatodo o desenrolar do texto. É justamente este encobrimento parcial dos termos — que às vezes beira à ambiguidade — que permite articular até o fim dodiálogo a dialética entre a certeza depositadano uso cotidiano das palavras, que carregam consigo a tese de que é possível ensinar com signos, e a dúvida cética, que traz consigo implicadaa negação da possibilidade de ensinar mediante palavras. Só assim Agostinho pode conduzir o discípulo, na figura do filho Adeodato — e hoje na de seusleitores —, a aprofundar a questão enunciada inicialmente. Então, quanto ele diz, por exemplo, queos signos ouas palavras nada ensinam, temos de perguntar imediatamentepelo tipo depalavra. Serão as palavrasexteriores ouas interiores? Parece evidente que, no diálogo,ele supõe, em um primeiro momento, de acordo com o uso ordinário da linguagem, que nada se ensina sem o auxílio dossignos exteriores. E isso vale para entendera alternativa contrária, que se apoia no argumentocético de que nada se ensina com as palavras exteriores. Esse jogo com os termos, articulado pela dialética entrea certeza dalingua- gemordinária e a dúvida cética, permite a Agostinho estabelecer a complementaridade entre as duas teses opostas. Por um lado, não se pode ensinar verdadeiramente só com o auxílio das palavras exteriores, pois apenas se ensina a verdadepela palavra interior; e de outro, nadase pode ensinar sem o auxílio das palavras exteriores, porém, com elas apenas, não se chega a algumaverdade. De acordo com nossa hipóteseinicial de que há uma complementaridade dia- lética entre asteses, fica, então, salvaguardadaa necessidade da linguagem noensino, enquanto signo ou palavra exterior a ser transmitido, como elemento indispensável no processo de ensino e aprendizagem; e, de igual modo,fica assegurado o papel do professor, como Mestre exterior. E, com isso, em um primeiro momento, Agostinho responderia positivamente à questão queinvestigaa respeito da possibilidade de ensi- naralgo a alguém medianteo uso de signos ou palavras exteriores. Contudo,a resposta ainda não está completa. A concessão da palavra exterior e do professor no ato de ensinar apenas indica parte do caminho ser percorrido. 3 Tdibido pos 65FHFE I 66 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: ENSAIOS SOBRE AUTORES CLÁSSICOS A admissão deste primeiro momento fará com quealguns comentadores encon- trem um possívelrealismo no projeto pedagógico agostiniano,que não cederia ao ver- balismo ou ao nominalismo das palavras, mas levaria em contaa realidadedascoisas. A propósito disto, é preciso ter presente quea ontologia agostiniana se inscreve na tra- dição platônica e, comotal, seu realismo não pode ser em hipótese algumaentendido no sentido dorealismo escolástico ou dos empirismos modernose contemporâneos. Tal suposição levaria a concluir que, no De magistro, haveria a defesa de um pontode partida empírico depositado na palavra exterior, identificada com as coisas sensíveis. Não se pode pôr em questão o pressuposto de que o platonismo de Agostinho entende que a verdadeira realidadeestá situada no Mundo das Ideias, e não no das sombras da empiria. As ideias, sim, são reais; o sensível é sempre cópia. E, então, o termolati- no “res” não pode ser simplesmente tomado como correspondente natural do termo “coisa” em português, como normalmente se traduz, denotandoo significado decoisa sensível ou derealidade empírica. Em geral, tais ilações trazem consigo, de forma mais ou menos velada, os resíduos do realismo da escolástica tomista, corroborado pela carga semântica dos empirismos modernos e contemporâneos. Não podemosdeixar de observar que, além disso, numaperspectiva gnoseoló- gica, o pontode partida do conhecimento é sempre das Ideias para as coisas sensíveis, e não o contrário. E o mesmo vale para a pedagogia agostiniana. Assim, as coisas sensíveis — e no caso do ensino,as palavras comosinais passivos e exteriores — apenas incitam ou estimulam a alma, como parte interiore ativa, a conhecer ou aprender. A aprendizagem, ao fim e ao cabo, não se dá sem a iluminação divina. Porém,a teoria agostiniana dailuminação divina não implica naatividadedas coisas sensíveis no pro- cesso de conhecimento. Só Duns Scot,no final do século XIII, desde um agostinismo assimilado partir da escolástica aristotélica, vai atribuir um papel ativo às coisas sen- síveis no processo de conhecimentoporiluminação, admitindo quea mente também é iluminada pelas coisas. É a conhecida tese do duplo exemplar.* Paraser mais preciso, paraele, tanto o exemplar presente na mente divina(as Ideias) quanto o exemplar pre- sente nas coisas empíricas (as species sensibilis e as species intelligibilis) vão concorrer de forma ativa na confecção dos conceitos. Em Agostinho, parece valer ainda o princípio platônico de que o inferior não afeta ativamente o superior, mas apenas o estimula,e não o princípio escolástico-aristotélico de que não há nadanointelecto quenão tenha passado pelossentidos. Por fim, apresentamos algumas das possíveis conclusões do De magistro de Agostinho com base nessa perspectiva deleitura. Uma delas é a de que o professor pode ensinar no sentido estrito do termo ao mostrar ou exibir o significado das palavras exteriores, mas somente o Verbo interior ensina a verdade, que não pode ser alcançada mediante a simples transmissão de sinais exteriores. Com isso, não 4 Duns Scor (1985,p. 247) FHFEI AGOSTINHO EDUCADOR corroboramosa tese da impossibilidade de ensinar mediante a transmissão desinais ou palavras pelo professor ao aluno,pois, temos deterpresente o postulado agos- tiniano de que só se ensina mediante palavras ou sinais exteriores. De igual modo, não pretendemosdizer com isso quea possibilidade do ensino se resolve toda desde um sentido socrático-platônicorestrito a uma posição autodidática. Se é verdade que a aprendizagem não pode ser reduzida à pura e simples re- cordação do significado dos sinais exteriores, transmitidos pelos professores, o que configuraria uma pedagogia bascada na memória, também verdade que o aluno extrai o conhecimento de si próprio, emboraisso não implique na forçosaeliminação do professor de sua função de proferir o verbo, e assim ensinar com o auxílio das palavras exteriores. Não obstante, o desempenho do professor não podeficar reduzido à simples função estimuladora da atividade intelectual do aluno. Através da palavra exterior, o professorterá de trabalhar a interioridade do aluno; e, invocando o que há de comum aos dois na figura do verbo interior, poderá despertá-lo desde dentro da própria palavra para a meditaçãoe a reflexão. E, além disso, pela palavra exterior, o professor poderá despertar a própria interioridade do aluno para que nela haja a descobertada verdade ainda oculta. Aqui o método socrático-platônico da maiêutica adquire seu mais profundosignificado em Agostinho:o detrazerà luza verdade que está oculta no interior do mestre e do aluno. Mesmo argumentando quea Verdade é Cristo, e queela reside na palavra interior, nada disso se revela espontaneamente. Difícil será negar também que a via de acesso ao verdadeiro conhecimento não obedeceaostrês níveis indicados pela conhecida fórmula agostiniana: do exterior para o interiore dointerior para o superior. Neste sentido,a própriafigura de Cristo, comopalavrainterior, é, a um só tempo, Mestre interior e Mestre exterior; e no caso da crença da encarnação no mundo, como Mestre exterior, ele aí se reveste da função mediadora (Verbo)similar àquela que o /ogos proferido, como palavra exterior, a nosso ver, adquire na pedagogia agostiniana. Em umapalavra: Cristo é, desde sempre, logos interior e, pela encarnação no mundo,assumea figura de logos exterioriorizado, como verbo revestido decarne. Dequalquer modo,o papel do educador agostiniano é o detrazerà luz aquelas verdades queestão encobertas: ou pela carne, nointerior da alma individual, ou pela letra, no interior das palavras proferidas ou escritas, principalmente as das escrituras bíblicas. Neste último sentido, se inscreve o instrumental metodológico legado pela hermenêutica agostiniana, ao qual está dedicado o De doctrina christiana. A função básica da hermenêuticaé a de desvelar o verbointerior contido naexterioridade das palavras bíblicas. Neste sentido, o De doctrina christiana já não coloca em xeque a possibilidade de ensinar ou de aprender, pois tem como objetivo central a busca de um método capaz de revelar e ensinar o verbo contido nointerior das palavras ou letras que compóem divinaescritura. Por isso, entendemos quea intenção principal deste 67FHFE I 68 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO:ENSAIOS SOBRE AUTORES CLÁSSICOS texto é a de assegurar um programade estudos que possibilite ensinara ler (lectio) ea interpretar (ars interpretandi) os conteúdosbíblicos. A questão agoraé comoler e interpretar a escritura. Comopassar dafria super- fície daletra para o seu núcleo interior espiritual? LECTIO E INTERPRETATIO: ENSINARA LER E INTERPRETAR A ESCRITURA O De doctrina christiana de Agostinho é umaobra pedagógica na medida em que indica um programa de estudospara formação do cristão. Como bem observa Gilson,diante do texto bíblico,tal comoo gramático diante de um texto de Homero ou deVirgílio, o cristão terá de saberler (lectio) para poder expor(enarratio), e assim deverá se apropriar das artes liberais, sobretudo aquelas herdadas dosescritores greco- -romanos, e das técnicas de interpretação assimiladas da vertente judaico-cristá. O próprio Agostinho assinala quea interpretação das escrituras se apoia em duas bases: o modode encontrar (modus inveniendi) o que deve ser compreendido e o modo de proferir (modus proferendi) o que foi compreendido. Podemos assim dizer que Agos- tinho leva em conta tanto a hermenêutica, comotécnica deinterpretação, quanto as artesliberais, comociências que auxiliam no aperfeiçoamento do raciocínio (Lógica), do bem falar (Retórica) e escrever (Gramática). Um texto carece de interpretação quando apresenta signos, frases ou narrativas que nãosão facilmente compreendidas. Duas são as principais causas de incompreen- são da letra para Agostinho: aquelas provenientes do sentido literal ou próprio e aquelas outras radicadas nosentido figurado ou transladado. Para sanar as incompreensões encontradas no sentido literal ou próprio, os remédios não são outros que os receitados atualmente. A incompreensão de alguns signos linguísticos advém do desconhecimento dosignificado das próprias palavras ou da ignorância do que significam as coisas mencionadas. Para melhor compreender as palavras, Agostinho aconselhará o estudo de línguas, sobretudoas línguas em que foram escritos os textos bíblicos — o hebraico e o grego —, para poder assim comparar com as traduções latinas. Para compreenderas coisas, não devem serignoradas as ciên- cias dos números, indispensáveis para o esclarecimento de muitas expressões figuradas, simbólicas e enigmáricas. Se, por exemplo, não soubermosque o número quatro está relacionado com o ritmo quaternário do mundo, comoa divisão do ano em quatro estações, os quatro pontos cardeais, as quatro partes do dia (manhá, meio-dia, tarde e noite), os quatro elementos(terra, água,ar e fogo)e à figura geométrica do quadrado, não poderemos entender o verdadeiro significado de jejuar quarenta dias. Ou ainda, 5 Gilson (1962, p. 179) 6 CE Agostinho (1979, 11) FHFE I AGOSTINHO EDUCADOR temos de entender relação das ciências dos números entre si: as sete notas musicais mantêm umavinculação harmônica com a música mundanadossete planetas (Astro- nomia), pois cada um deles toca umanota. Além disso, o conhecimento das proprie- dades naturais de algumas coisas mencionadas nas escrituras, como por exemplo alguns minerais ou plantas, podefacilitar a compreensão de um texto. Agostinho dá o exemplo do ramodaoliveira que a pombatraz aofinal do dilúvio (Gn 8,11), comosinal da paz perpétua. Se não conhecemos as propriedades da oliveira, que mantém suas folhas sempre verdes, e que seu óleo nãose altera com o passar do tempo, não entenderemos esta simbologia. De igual modo, continua Agostinho, a passagem dos Salmos (SI 51,9): “Tu me borrifarás com hissopo e serei purificado”, não será bem compreendida caso não soubermos que o “hissopo” é uma erva mitídae rasteira que, ao ser inalada, purifica os pulmões, os brônquiose a garganta. Muitos autores vão encontrar na divisão agostiniana entre palavras e coisas a origem do programadeestudos das escolas medievais posteriores. As escolas mo- násticas (dos cistercienses, vitorinos, clunicienses e beneditinos) e as escolas criadas em torno das catedrais (Chartres, Oxford, Paris, Leipzig, Siena, Salamanca) terão um programa baseado nas três artes do trivium (Gramática, Lógica e Retórica) e nas quatro do quadrivium (Geometria, Aritmética, Astronomia e Música). O trivium encerravaas ciências das palavras, isto é, a arte de bem falar, escrever e raciocinar; o quadrivium, as ciências dos númerosou das coisas do mundo. Os números dispostos no espaço e sem relação com o movimentosão tratados pela Geometria; no tempo e em movimento, pela Música; no tempo e sem movimento, pela Aritmética; e no espaço e com movimento, pela Astronomia. Não obstante, o estudo dessas disciplinas está vinculado estritamente à tarefa de interpretação das escrituras. É esse, para Agostinho,o objetivo principal do De doctrina christiana (II, 39,59): reunir em uma obra todo o conhecimento necessáriopara ler e interpretar escritura. Lemosno Prólogo do De doctrina christiana (1979): “A respeito da interpretação das escrituras existem certas regras que me parecem poder ser ensinadas com proveito ao quese dedica a esse estudo”. Vemosassim que o texto é predominantemente uma obra de hermenêutica e de pedagogia, na medida em quese dedica ao ensino das regras para bem interpretar as escrituras. Além deste aspecto mais técnico (doctrina artis) da hermenêutica agostiniana, Heidegger, em seu curso de 1923 (Ontologie. Hermeneutik der Faktizitar), chamava a atenção para a presença de uma hermenêutica viva e tota- lizante no texto agostiniano e observava por fim quese tratava da “primeira herme- néutica de grande estilo”.” Recentemente, alguns comentadores, desde a perspectiva da filosofia hermenêutica contemporânea, se voltam à fonte agostiniana para assinalar que, nela, o querer compreenderas escrituras não é nenhum procedimento indiferente, 7 CE Grondin (1999, p. 72) e Bocher (2005, p. 36) 69FHFE I 70 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: ENSAIOS SOBRE AUTORES CLÁSSICOS meramente epistêmico,que se dá entre um sujeito e um objeto, masa atestação de uma inquietação básica e de um modo de ser do intérprete queincorpora o sentido do texto emsuaprópria vida. Pelo que Agostinho enuncia entre os objetivos do De doctrina christiana, se pode dar por superada a questão principal que articulava todo o diálogo no De ma- gistro, a saber, se era possível ou não ensinaralgo a alguém. Além de Agostinho agora partir da adoção das disciplinas das artes liberais no programadeensino das escrituras, pretendesolidificar algumas regras de interpretação que, a seu juízo, terão deser ensina- das. Eis, então, umadastarefas básicas da hermenêutica agostiniana:elucidaras regras quefacilitam a melhor compreensão dostextos bíblicos. O pontodepartida de Agostinho é o de que há uma predominante presença do sentido próprio nas escrituras; e que, por isso mesmo, a tarefa do intérprete será trabalhar aquelas passagens obscuras ou ambíguas. Daí resulta uma primeira regra: as passagens obscuras ou ambíguas devem ser interpretadas com o auxílio de outras passagenscorrespondentes mais claras, escritas de modo direto, próprio ouliteral. Aqui poderíamos perguntarse bastaria tomar como regra geral seguir semprea letra dostextos bíblicos para obtermos umainterpretação criteriosa dos mesmos,tal como mais tarde proporá Tomásde Aquino. Parece quenão é só isso. Tal regra só se aplica a alguns casos. Provadisso é que Agostinho tem em vista tanto os problemas acarretados pelo exagerado recurso à explicação literal quanto os provenientes do mau uso da com- preensão espiritual. Para sanar estes dois desvios comuns à exegese de sua época,ele adverte queo apego exagerado à letra revela uma debilidade servil, do mesmo modo queas interpretaçõesvás e inúteis recaem igualmente em erros.” A perguntaque se impõe é a seguinte: comosaberquandose deve seguir a letra do texto e quando buscaro sentido oculto? Em resposta a esta questão encontramos a regra de ouro da hermenêutica agostiniana, que diz: “tudo quanto na divina palavra não pode ser referido em sentido próprio nem à honestidade dos costumes nem às verdades dafé, tem de ser tomado em sentido figurado”. A regra de ouro não só contempla o aspecto técnico da interpretação, a ars interpretandi, proveniente das tradicionais hermenéuticas bíblica, jurídica e literária, mastambém implica em umaexperiência de compreensão. A compreensão engloba a tradição, tomada aqui em termos dos conteúdos herdados da doctrina christiana, mais precisamentea tradição escrita e a não escrita a respeito das escrituras. Esse é um dos aspectos em que a hermenêutica medieval e filosofia hermenêutica contem- porânea se cruzam, sob o pressuposto de quea interpretação tem de estar ancorada 8 “Tomás de Aquino(1980,1, q. 1a 49) 9 CEAgostinho (1979,HI, 10). 10 Id.ibid, IH, 10,14 FHFE I AGOSTINHO EDUCADOR no próprio âmbito da cultura como tradição vivida e interpretada. Neste sentido, a hermenêutica contemporânea retoma, embora em outro nível e com outro objetivo, a dinâmicacircularidadeentre explicar e compreender; e, enfim, a mútua implicação entre interpretar um texto e interpretara própriavida.” Desde umaperspectiva estruturalista, algunsirão encontraro texto de Agosti- nho naorigem daatual semiótica; porém, observam de formacrítica quea estratégia de interpretação agostinianajá nasce contaminadapelospressupostos da cultura cristá que, de antemão,se impóem como paradigmadesde o qualse decide o que, quando e comointerpretar.” A doutrinacristá, então, serve como umaespécie de texto ausente que, previamente,seleciona o que tem de serinterpretadoe filtra os próprioscritérios da interpretação. Não vamosentrar aqui no mérito das atuais discussões querelacionam a herme- nêutica e o estruturalismo linguístico. Basta apenas apontar a importância do texto de Agostinho nestas discussões. Além disso, sugerimos um último ponto de aproximação com as discussões atuais no tocanteà relação entre hermenêutica e ética. Se observarmos atentamente veremos que um dos critérios queestá nabase da hermenêutica agostinia- nase apoia justamente em um pressuposto ético, a saber: a honestidade dos costumes. Por fim, cabe mencionartrês regras adicionais indicadas por Agostinho para a interpretação da escritura. A primeira diz respeito à improbabilidade doutrinal e orienta no sentido de que aquelas expressões textuais que parecem mandar fazer o mal ou praticar a iniquidade não podem ser tomadas literalmente. A segunda regra é a propósito das improbabilidades materiais, indicando que todas aquelas passagens improváveis não devem ser lidas de modoliteral. Um exemplo é aquela dolivro do Gênesis que afirma que todosos animaisse alimentavam com ervase frutos. A terceira regra sugere a interpretação das passagens que induzem à prática do mal: são os casos em que o texto parece sugerir uma prática imoral mais pela ausência do positivo que pela presença donegativo. Cabe notar que, exceto a regra que manda comparar uma passagem bíblica com outra, todaselas são paradigmáticas e não sintagmáticas. E isso implica em dizer que, fundamentalmente, os critérios de interpretação não são derivados do próprio texto a ser interpretado. A necessidade ética, expressa pela honestidade dos costumes, e a imposição doutrinal, indicadapelas verdadesdafé, não estão contidas abertamente no texto bíblico. Também constatamosoutrosdois problemas que acompanharão a quase totalidade da chamada lectio historiae (leitura da história) medieval. Da perspectiva alegórica, não há um dispositivo metodológico capaz de frear a exagerada proliferação dos símbolos. Daperspectiva tipológica,a interpretação é limitada demais na medida em que não podeultrapassar a barreira impostapelo tipo Cristo, que se transforma em m CERicoeur (1978, 2002). 12 Todorov (1992). nFHFE I me FILOSOFIA E EDUCAÇÃO:ENSAIOS SOBRE AUTORES CLÁSSICOS um tipo transcendente, criando assim um enorme deficit de racionalidade histórica, poisa história posteriora este evento deixa deser pensadaefetivamente. A propósito dos limites apontados na proposta agostiniana, entendemos que nem mesmo o clássico método medieval dos quatro sentidos da escritura — a saber: o literal, o moral, o alegórico e o anagógico —, em plenavigência ao longo da Idade Média, sanará suficientemente essas dificuldades. Mas não vamos nos estender mais nisso. Passemosao último ponto. ENARRATIO: O QUE E COMO ENSINAR? Segundoa ordem cronológica queestabelecemosinicialmente, o De catechizan- dis rudibus é o último escrito agostiniano que incluímosno rol dos que tratam mais declaradamente a questão do ensino e da aprendizagem. Comojá assinalamos,o texto tem umaintenção instrutiva ou catequética, enfrentandoa discussão a respeito da me- lhor maneira de transmitir um conteúdo sem provocar o tédioe a falta de atenção do auditório como também não ser um pesado fardo para o próprio expositor.A resposta a esta preocupação,expressa pelo diácono cartaginês Deogratia em carta ao bispo de Hipona, dará origem esse texto catequético. O Decatechizandis rudibus traz, certamente, umaintenção didática que não carece de atualidade. Que professor não se queixa a respeito dos alunos desatentos e desinteressados em seguir o conteúdo repassado em sala de aula? Que professor não fica indeciso na hora de escolher o conteúdo mais apropriado para uma turma? E que aluno não reclama dos conteúdosexcessivos e entediantes repassados pelos professo- res? Ou dosconteúdosquenão lheservirão em nada para a vida ou para o ingresso em algumaprofissão? O problemapara Agostinho é duplo. Primeiramente,diz respeito ao conteúdo do texto bíblico a ser ensinado. Em segundo lugar, a preocupaçãoreside em ensinar a expor(enarratio) o texto da melhor maneira possível. Com este duplo propósito, ele delimita o conteúdoa serensinado e sugere algumas técnicas que, segundo ele, facilitarão a instrução dos catecúmenos. Apesar da carta do diácono não perguntar diretamente pelo conteúdo a ser ensinado, dando por suposto o costume de expor a narrativa bíblica, Agostinho vê a necessidade detrataro primeiro tópico antes do segundo. Assim, a primeira parte do texto investiga o problemareferente ao conteúdo ser ensinado — o que ensinar? —, e a segundase dedica ao modo de ensinar — comoensinar? —, arrematando com algunsconselhos de ordem didática. Contudo,seria incorreto afirmarque, para ele, a delimitação do conteúdoesteja separada totalmente do próprio modo deexposição e o público ao qual se dirige a palavra. FHFE I AGOSTINHO EDUCADOR Comecemospelo tópico relativo ao conteúdo a ser ensinado: o que deve ser ensinado aos catecúmenos? O conteúdo proposto para a instrução dos catecúmenos não é diferente da- quele já estabelecido pela tradição cristá até aquele momento. Lembra Agostinho: “A narração é completa quandoo catecúmeno instruído partir do início da Escritura — “noprincípio Deuscriou o céu e a terra' — até os temposatuais da igreja”.” Trata-se, pois, de ensinar a narrativa contida nas escrituras e aquela correspondente à História da Igreja. Não obstante, a narrativa bíblica não compõe certamente uma unidade coerente. Por isso, além dar um sentidoa esses relatosdíspares,distribuindo-os dentro de uma sequência coerente, que, no caso, implica na aplicação de um esquemapara dividir a totalidadeda história, Agostinho propõe que,para efeitos de exposição,sejam selecionados os fatos mais atrativos, de modoa evitar o aborrecimento do auditório. De saída, ele aconselha a deixar de lado a excessiva preocupação em apresentar em detalhes a narratio historicae, mas tomaro conteúdo de forma “sumária e globalmente, escolhendo nessesartigos os fatos mais admiráveis, que se ouvem com maiorprazer, para apresentá-los como em pergaminhos, desenrolando-os lentamente[....]”.4 Ato seguido, Agostinhorevela o esquemahistórico utilizado para reunir osdistin- tos acontecimentossignificantes da narrativa bíblica: é a teoriadas sete idades do mun- do. Respondendo,então,à questão que indaga a respeito do conteúdoa serensinado,ele afirma que devem ser tomadas algumas unidades sintéticas, de acordo com as sete idades do mundo. Aofinal, de acordo com as sete idades, ele seleciona umalista de momentos áureos que constituirão o conteúdo programático a ser ensinado pelo catequista. São eles: 1) criação, 2) o dilúvio, 3) a aliança com Abraão, 4) os temposdo rei Davi, 5) a libertação do cativeiro da Babilônia, 6) a encarnação e 7) a ressurreição de Cristo. Por que Agostinho selecionaestes momentos extraordinários e não outros? Primeiro, ele tem em vista a subdivisão da história da humanidade que começa em Adãoe termina com o Juízo Final, de acordo com o esquemadas sete idades do mundo.A divisão agostinianaporsete idadesé a seguinte: 1) de Adão a Noé; 2) de Noé a Abraão; 3) de Abraão a Davi; 4) de Davi ao Cativeiro da Babilônia; 5) do Cativeiro a Cristo; 6) de Cristo ao Juízo Final. A sétima idade, emulandoo sétimo dia do mito da criação em que criadordescansa, estaria reservada para a eternidade. Em segundolugar, ele seleciona um “fato mais admirável” de cada um dossete períodosdahistória, tendo em vista que estes acontecimentos darão maior prazer ao auditório. Não é necessário insistir que esses momentos extraordinários sãopartes constitutivas de umanarrativa que conta a manifestação divinana história humana, e porisso não são episódiosda história humana propriamente dita. Conforme já alertou Hannah Arendt, em Agostinho, a 13 Agostinho (1984, p. 38). 14 Jd.ibid1,5, p.38 15 Arendr (1972). 73FHFE I Ta FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: ENSAIOS SOBRE AUTORES CLÁSSICOS verdadeira história, aquela que começa em Adãoe termina com o Fim do Mundo,está composta de acontecimentos únicos irrepetíveis, enquantoa história humanase cons- tituí deciclosrepetitivos de eventos efêmeros e sem importância. A seleção defatos admiráveis, com finalidade de deleitar o auditório, também pode ser entendida em chave retórica. Comona antiga técnica da arte da memória, que é um dosartifíciosda retórica, Agostinho seleciona os momentos importantes e ossitua em sete lugares (/oci) de uma sequência narrativa. Assim, o catequista, além de manter o auditório atento, poderá facilmente lembrá-los de memória durante sua exposição, sem precisar lero texto causando cansaço e enfado no auditório. A exposi- ção de fatos admiráveis (mirabilia), com o objetivo de satisfazer o público ouvinte, é um procedimentoretórico semelhante ao que osantigos oradores romanosdeleitavam o auditório. Lembremos que, além de ensinar (docere), as outras duas finalidades da retórica eram o deleite (delectare) e a comoção do público (movere). Porfim,a frase acimacitada do De catechizandis rudibus encerra com um conse- lho didático: a apresentação terá deserfeita de modo a chamara atenção dos ouvintes, tal como quandolentamente se desenrola um pergaminho.Esta frase evoca um proce- dimento muito semelhante ao que hoje fazemos ao projetar imagens em umatela de cinema. Certoé queo platonismo agostiniano,assim como grandeparte do medieval, segue umavia queprioriza a pedagogia por imagens, em que, por meio delas, todos poderão indistintamenteter acesso ao conhecimento das coisas maisaltas (Mundo das Ideiasplatônico). Caso contrário,seria difícil transmitir as ideias aos nãofilósofos — ou mais precisamente:aos apaidós(ignorantes), aos rudibus —, que constituíam a maioria dos convertidosàs fileiras do cristianismo primitivo. Há aqui uma democratização do acesso ao logos, tal como no Menon de Platão em que até um escravo poderá chegar à verdade,coisa mais tardereservadaa alguns poucos(aristocracia) ou apenas ao filósofo. A segundadificuldade que o De catechizandis rudibus enfrenta é à respeito da questão: comoensinar? Na verdade,esta é a dificuldade que, de fato, está na origem do texto agostiniano e que ele trata em segundo lugar. Inicialmente, Agostinho sugere como parte do ensino o conhecimento do au- ditório ao qual se dirige a palavra. É importante levar em contaas aspirações,os an- seios e as implicações que o aprendizado terá em suas vidas. Depois, ele tece algumas considerações a propósito do próprio catequista que, a seu ver, deve comunicar com simpatia, amizade e transparência; e, além disso, deverá manter a alegria (hilaritas) e o bom humor. Tudo contribui para sanar o problema do auditório entediadoe desatento descrito pela carta do catequista. Por fim, ele fala dos três tipos de auditórios que o catequista terá deidentificar para poder melhor instruir. O auditório constituído por pessoas comuns tem pureza de intençõese se interessa por verdades básicas. O auditório culto não deveser en- sinado naquilo quejá sabe, mas ouvido naquilo quelhecausa dúvida. E, por im, o auditório intermediário aosdois, segundo Agostinho o mais difícil, deve ser tratado FHFE I AGOSTINHO EDUCADOR com cuidado,pois eles se perdem mais em meio às palavras que naprópria discussão de ideias. Ao final, Agostinho apresentaumalista do que mais causa irritação no catequista e no público ouvinte. São os seguintes itens: 1) não conseguir ser entendido; 2) ter de repetir sempre as mesmas coisas; 3) leitura ao invés dafala; 4) o sentimentode desprezo e o cansaço;5) o excesso de atividades; e, porfim, 6) as perturbaçõesdo espírito. Nãovamosnosdeter na explicação de cada um destes itens. Para concluir, basta assinalar queeles ainda continuam atuais e podem ser perfeitamente elencadosentre as causas do mal-estar de professores e alunos. ConcLusões Para concluir, remarcaremos os pontos principais do nosso estudo. Lembra- mos, por primeiro, que, em relação ao De magistro, empreendemos umadupla tarefa referente ao paradoxo proposto por Agostinho nas duas afirmações antagônicas: não se podeensinar sem signose não se ensina com palavras. A reabilitação da tese de que não se ensina sem ossignos,diferentemente de algunsestudosatuais, não dispensou a tese oposta de que nãose ensina com palavras, pois quem ensina verdadeiramente é o Mestre interior. Essa vinculação, de um lado,nãodeixa a segunda parte do De magistro rebaixada preconceituosamente a um assunto de interesse teológico que nada tem a ver com Filosofia. De outro lado, não permitever no texto de Agostinho apenas um tratadode filosofia da linguagem,que a toma em seuaspecto exterior, objetivo, neutro. Noterreno pedagógico, rompemos com a hipótese de que o métodosocrático professa um autodidarismo que acaba dispensando o professor. Em contrapartida, ao defendermos a mútua implicação das alternativas do pa- radoxo do ensino, afirmamos o método dialógico de Agostinho como um modo de conduzir o educandodo exterior aointeriore daí ao superior. Também sugerimosque a noçãodeinterioridade é análoga ao que hoje a hermenêutica filosófica entende como mundo comum. E assim se o mestre e discípulo estão situados em um mundo comum que é anterior, interior e superior a ambos,não há lugarpara o sujeito atomizado e descolado do mundo das epistemologias contemporâneas. Talvez umadas diferenças entre Agostinho e a hermenêutica atual resida no seguinte: enquanto a hermenêuti- ca contemporânea parte do princípio ontológico e linguístico de quejá estamos no mundoou nalinguagem, o filósofo africano concebe que é preciso sair do mundo e dalinguagem, enquanto exterioridades que têm de ser negadas, para que se ingresse numa região mais profunda e compartilhadada intimidade. A segundaparte tratou o De doctrina christiana sob dois aspectos. Em um sentido, mostrou que o texto de Agostinho não se dedicaapenas a umadiscussão à respeito dos fundamentosda educação, pois, seu objetivo precípuoé o de firmar uma 7FHFE I 76 FILOSOFIAE EDUCAÇÃO:ENSAIOS SOBRE AUTORES CLÁSSICOS metodologia queconsiga desvelar a exterioridade da letra. Neste sentido, sublinha- mosquea intenção principal do texto era estabelecer um programade estudoscons- tituído pordisciplinas básicas, voltadas parao ensino daleiturae dainterpretação das escrituras. Entre osresultadosalcançados, destacou-se a elaboração de uma proposta programática que integraas disciplinas indispensáveis para a análise de textos, o aper- feiçoamentodo raciocínio, a escrita e transmissão dos conteúdos, com aquelas que se dedicam mais precisamente interpretação. Naterceira e última parte, em quetratamos o De catechizandis rudibus, desta- cou-se que, por detrás da intenção instrutiva ou catequética do texto, que procurava ensinar algumas técnicas retóricas, no intuito de não entediar e cansar o auditório eo próprio expositor, há uma proposta condizente ao conteúdo programático a ser ensinado. Mostrou-se, assim, que Agostinho estabelece o conteúdo a ser transmi- tido de acordo com o paradigmahistórico-narrativo fornecido pela teoria das sete idades do mundo. Porém, além disso, a seleção dos conteúdos, dispersos ao longo da divisão histórica por sete períodos,utilizou um critério que, na ausência de outro termo, poderíamos chamar de estético-pedagógico. Tal critério possibilita a escolha dos conteúdos segundo o encadeamentode fatos admiráveis, que servirão tanto para conduzir mais facilmente o auditório, sem cansar o professore o aluno, como tam- bém para estimular a mente com as imagens sensíveis, caminho que conduz ao mais alto e abstrato grau de conhecimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AcosrinHo. De Magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os pensadores) . Obras de Agustín (De doctrina christiana). Madri: BAC,1979. (edição bilín- gue). + À instrução dos catecúmenos(Decatechizandisrudibus). Tradução de Maria da Glória Novak. Petrópolis: Vozes, 1984. - A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. Aquino,T. Suma teológica. Porto Alegre: Est; Sulina; UCS, 1980. ARENDT, H. Entre o passado e ofuturo. São Paulo: Perspectiva, 1972. BocHer, 1. Agustin dans la pensée de Paul Ricoeur. Paris: Facultés jésuites de Paris, 2003. Crosson, EJ. The estructure of the “De magistro”. 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