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INTERPRETANDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – ALGUMAS NOTAS Revista de Direito do Consumidor | vol. 5/1993 | p. 183 - 189 | Jan - Mar / 1993 Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor | vol. 1 | p. 161 - 166 | Abr / 2011 DTR\1993\18 Eros Roberto Grau Professor Titular da Universidade de São Paulo e Conselheiro Científico da Revista de Direito do Consumidor Área do Direito: Consumidor Sumário: A idéia de se falar a respeito da interpretação do Código do Consumidor é extremamente desafiadora. A necessidade de se interpretar os textos normativos decorre da circunstância de a linguagem do Direito ser alimentada pela linguagem natural, sendo esta potencialmente ambígua, isto é, um continente de palavras e expressões que, em inúmeras circunstâncias, aparecem plenas de ambigüidades ou de imprecisões. Isso é uma constatação importante quando falamos em interpretar. * Interpretamos signos a todo momento; qualquer tipo de leitura é interpretativo. Interpretar quer dizer, em sentido amplo, compreender, mas, quando cogitamos da interpretação do ambíguo, não basta interpretar no sentido de "compreender", mas, é necessário superar-se a própria imprecisão. Impõe-se a identificação dos sentidos que cada expressão e cada palavra adotam em um determinado contexto. Por essa razão, a grande verdade é que mesmo a afirmação de que "in claribus cessat interpretationes" (na clareza não há interpretação) é extremamente relativa. Ulpiano dizia que, embora claríssima a manifestação do pretor, sempre se deve cuidar da sua interpretação. Saber as leis não é simplesmente conhecer as suas palavras; é conhecer seu sentido e alcance. É dessa forma, pois, que tomamos interpretação - como descoberta do significado semântico das palavras e expressões contidas na norma jurídica. Evidente que, nessas curtas linhas, eu não teria a menor condição de discorrer sobre as possíveis metodologias de interpretação; evidente também que não é essa a ocasião para questionar a circunstância de não existir uma "jurisciência", mas, sim, uma "jurisprudência", o que vale dizer que o raciocínio jurídico é um raciocínio que se desenvolve segundo a lógica da preferência e não segundo a lógica da conseqüência. Vale dizer também que nós, que trabalhamos com o Direito, em qualquer plano nos colocamos sempre diante de um desafio que é muito mais grave que o desafio da Ciência. O desafio da Ciência é não ter resposta para uma determinada questão; o nosso desafio, o desafio da "prudência", é precisamente o de termos mais de uma resposta correta, porém nenhuma exata, para as mesmas questões. Por essa razão, é extremamente delicado o tema da interpretação. Apenas para introduzi-lo, já que não temos tempo para uma consideração mais ampla a propósito do método de interpretação, gostaria de exorcizar uma verdadeira falácia, que é a da "vontade do legislador". Já se disse que o legislador dos exegetas, titular da vontade que os intérpretes buscam, e o Deus dos teólogos são exatamente a mesma pessoa, porque são indistinguíveis: o direito positivo assume - para esses que buscam a vontade do legislador - um tom de algo sagrado; por isso podemos imputar, a esses que buscam a vontade do legislador, uma vocação de retorno ao passado, de permanecer no passado estaticamente, porque este é imutável e, se o que se busca é a vontade do legislador, se busca a vontade do legislador naquele determinado momento (isso para não falar do problema de INTERPRETANDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – ALGUMAS NOTAS Página 1 descobrir-se o fator psicológico da vontade do legislador). Carlos Maximiliano, grande jurista de Santa Maria, já qualificava a metodologia da busca da vontade do legislador de decrépita, e eu diria mais, fazendo um pouco de blague: na verdade, considerar-se que interpretação supõe a necessidade de buscar-se a vontade do legislador equivaleria a afirmar-se que, em todo gabinete onde se desenvolva o ofício jurídico, seria necessária a colaboração de dois tipos de profissionais não-jurídicos: um psicólogo, às vezes, um psicanalista, para discernir a vontade do legislador, e, em outras hipóteses, algum exercício de catecismo haveria de ser praticado, dada a impossibilidade de se descobrir essa vontade. Não, não é isso que se busca no enunciado normativo. O que se procura, quando se pretende interpretar uma norma, interpretar o Direito, é simplesmente o significado de enunciados semânticos. Para tanto, e agora colocando a questão precisamente no plano do Código do Consumidor, o que se demandaria seria um "modelo operativo", que se sustentaria sobre uma série de diretrizes lingüísticas, sistêmicas e funcionais. Isso porque a interpretação, em sentido estrito, se desenvolve em três grandes contextos: a) o contexto lingüístico; b) o contexto sistêmico e c) o contexto funcional. Não há tempo para esboçar qualquer linha nesse sentido, mesmo e até porque o grande problema que se coloca é a não existência de unia meta-regra sobre a aplicação das regras de interpretação. Afirmá-se, com razão, que as regras de interpretação apenas prescrevem procedimentos de interpretação, não nos dando, entretanto, um dado elementar, ou seja, aqueles casos em que se deve aplicar esta ou aquela regra de interpretação. Permitam-me, num parênteses, dizer que esse precisamente é um dos graves e grandes problemas que sé coloca nos movimentos mais modernos de questionamento da aplicação do Direito, p. ex., o Direito Alternativo: como se fixar a regra da aplicação das regras. A minha proposta, que será logo mais enunciada, me parece ponderada na medida em que ela põe, como sugestão, a prática do exercício de interpretação a partir dos princípios, pelo que, ou em função do que, nós podemos falar modernamente numa jurisprudência dos princípios, como algo que sucederia a jurisprudência dos conceitos, a jurisprudência dos interesses e uma referível jurisprudência de valores que ficaria para além do Direito. O Código do Consumidor, como alguns outros diplomas normativos que começaram a aparecer sobretudo nos últimos dez ou quinze anos, apresenta um tipo de norma bastante peculiar, que aparece no art. 4.º, e que diz mais ou menos o seguinte: a política nacional de relações de consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores com respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção dos seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência. Eu aprendi na Faculdade, e suponho que os senhores também tenham aprendido, que as normas jurídicas classificadas desde uma determinada perspectiva são "normas de conduta" ou "de organização". De repente, eu me dou conta de que existem profusamente no Direito - e o caso do art. 4.º do CDC é exemplar - normas que não cabem nem no modelo da norma de conduta, nem no modelo da norma de organização. Que tipo de norma jurídica é essa? Quando se começou a discutir a natureza jurídica do "Plano", no direito soviético, os juristas passaram a observar - isso a partir da década de 70 - que normas no "Plano" estabeleciam direitos e obrigações de diversos organismos, organizações, instituições, indicando um determinado resultado a ser alcançado, e ponto final; não dispunham sobre os meios a serem ativados para que esses resultados fossem alcançados. A partir da década de 70 surge, então, a idéia de que existem normas que definem fins, que estabelecem policies, que podemos e devemos chamar, eu proponho de "normas-objetiva"; nem norma de conduta, nem norma de organização. O Estado, até um determinado momento no início desse século, era responsável apenas pela manutenção da ordem e segurança. A partir de outro instante, passa a atuar sobre o processo econômico e social - e o Direito é um instrumento de transformação da realidade. O Estado do nosso tempo se caracteriza precisamente por ser o Estado das INTERPRETANDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – ALGUMAS NOTAS Página 2 "políticas públicas", quer dizer, é um Estado que atua sobre a realidade, não apenas para assegurar a ordem e a segurança, mas tambémno sentido de implementar o desenvolvimento, implementar a defesa da saúde pública, implementar a defesa do consumidor etc. - eu poderia enunciar aqui uma série de políticas públicas; cada uma dessas políticas públicas voltada a determinado ou determinados fins. De repente, nos damos conta. Mas o fenômeno já se manifestara. Passam a surgir essas normas-objetivo inicialmente na Constituição. Vejam o antigo artigo 160, da EC 1/69: "A ordem econômica tem por fim realizar a justiça e o desenvolvimento nacional". O que é isso - uma norma de conduta? Não. A norma de conduta é aquela cujo objetivo imediato é disciplinar o comportamento dos indivíduos ou a atividade de grupos. Já as normas de organização são de dois tipos (estou me valendo de Miguel Reale): são normas de organização aquelas que, possuindo um caráter instrumental, visam a estruturar o funcionamento de órgãos ou a instrumentar a disciplina de processos técnicos de identificação e aplicação de normas. No primeiro grupo, eu diria, a Lei das S/A (Lei 6.404/76 (LGL\1976\12) ) é fundamentalmente uma grande norma de organização, assim como o foi, num determinado momento, o Dec.-lei 200 (LGL\1967\7) ; outro tipo de norma de organização, que eu daria como exemplo, seria o Código de Processo Civil, que instrumenta precisamente a aplicação de certas normas. É! Se compunha apenas disso o Direito, porque não era absolutamente necessário identificar fins. Todos nós sabíamos que os fins buscados pelo ordenamento jurídico eram só aqueles: "ordem e segurança". Mas, a partir do momento em que o Estado passa a ser um implementador de políticas públicas, os fins são especificados, de tal sorte que há normas que definem - normas-objetivo - não obrigações de meio, mas, sim, obrigações de resultado. O Direito, na visão clássica, se prestava unicamente a instrumentar. A partir do momento, no entanto, em que ele amplia a sua atuação e passa a desenvolver políticas, surgem no ordenamento jurídico normas sobre os "fins". É isso que deflui a nosso ver, do art. 4.º É como se ele dissesse: "há uma política nacional das relações de consumo" e os fins dessa política são os aqueles enunciados no próprio art. 4.º; ou seja, o art. 4.º é uma norma-objetivo; nem norma de conduta, nem norma de organização. Antes de tirar daí algumas conseqüências, quero ressaltar, desde logo e para evitar qualquer confusão, que não existe nenhuma relação entre norma-programática e norma-objetivo. Eu poderia classificar os meus colegas sob dois critérios: tantos usam óculos e tantos não usam óculos; supondo que alguns deles estivessem sem gravata, poderia dizer ainda que tantos estão de gravata e tantos não estão de gravata. Uma classificação não briga com a outra; envolvem critérios classificatórios distintos, pois é perfeitamente possível que um use óculos e esteja de gravata, um outro use óculos e esteja sem gravata e assim por diante. Quando eu falo no caráter programático de uma norma, refiro-me basicamente, a normas constitucionais, classificando-a segundo o critério de sua eficácia. Quando falo em norma de conduta, norma de organização e norma-objetivo, estou falando do conteúdo delas. Em regra, as normas programáticas estão, todas elas, dispostas no plano constitucional, enquanto que aquelas que chamo de normas-objetivo estão colocadas dispersamente tanto no plano constitucional como no plano infraconstitucional. Podem até ser norma programática, mas, também, estão colocadas no plano da legislação ordinária. Qual é o benefício se é que há algum, no discernimento dessas normas-objetivo? Eu diria que elas apresentam como grande virtude possibilitar a introdução no universo normativo dos fins perseguidos pelo sistema. Como? Na medida em que elas permitem - e não estou falando em interpretação, ainda - a análise do sistema segundo padrões teleológicos perfeitamente definidos. Em outros termos, a existência de uma norma-objetivo, dentro de um conjunto de normas jurídicas, importa em que estejam normatizados, isto é, transformados em jurídicos, determinados fins econômicos e sociais. Se é assim, e parece-me que seja assim, a importância que assume a introdução em um conjunto de normas definidas como tal, de norma-objetivo, é excepcional, porque, na prática do exercício de interpretação desse conjunto normativo, as normas-objetivo representam um papel fundamental, condicionando a interpretação. INTERPRETANDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – ALGUMAS NOTAS Página 3 Para encerrar a primeira parte dessa exposição, eu diria que o art. 4.º do Código do Consumidor é uma norma-objetivo, porque define os fins da política nacional das relações de consumo, quer dizer, ela define resultados a serem alcançados. Todas as normas de conduta e todas as normas de organização, que são as demais normas que compõem o Código do Consumidor, instrumentam a realização desses objetivos, com base nos princípios enunciados no próprio art. 4.º. Para que existem, por que existem essas normas? Para instrumentar a realização dos fins definidos no art. 4.º. Assim, todas as normas de organização e conduta, contidas no Código do Consumidor, devem ser interpretadas teleologicamente, finalisticamente, não por opção do intérprete, mas porque essa é uma imposição do próprio Código. O que significa isso? Sabemos que a interpretação não é uma ciência, é uma prudência. Nela chegamos a mais de uma solução correta, tendo de fazer uma opção por uma delas. A circunstância de existirem normas-objetivo que determinem a interpretação de normas de organização e conduta estreita terrivelmente a possibilidade dessa opção, porque a única interpretação correta é aquela que seja adequada à instrumentação da realização dos fins, no caso, os fins estipulados no art. 4.º do CDC. Notem a importância disso, sobretudo no que diz respeito à interpretação das cláusulas gerais (e esse código está cheio delas). O intérprete deve repudiar qualquer, solução interpretativa que não seja adequada à realização daqueles fins inscritos na norma-objetivo do art. 4.º. Embora o art. 4.º enumere oito princípios básicos para a política nacional das relações de consumo, na verdade, há apenas três princípios, porque os demais são meras normas preceptivas. Há o princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, há o princípio da harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo (inc. III), e há, ainda, o princípio do inc. VI, coibição e repressão eficiente de todos os abusos etc. Qual é a importância de identificarmos estes princípios? Aprendemos na Faculdade que existem normas e princípios jurídicos. Errado. Princípio é norma. Se princípio não for norma não tem nada a ver com o Direito. O Direito, digamos assim, é um universo de normas. Então princípio é norma também. O sistema jurídico é uma ordem teleológica de princípios. Eu diria que norma jurídica é gênero que compreende duas espécies: as regras e os princípios. Temos que ir além do que tem afirmado o Direito clássico e a doutrina brasileira sistematicamente. É a frase de Agustin Gordillo, que "violar um princípio é mais grave do que violar uma norma". Não. Violar um princípio é mais grave do que violar uma regra - e por quê? Porque os princípios são normas que se colocam num plano distinto daquele em que se acham as regras. As regras não comportam exceção, é um "tudo ou nada"; já os princípios aceitam exceção. Isso significa basicamente o seguinte: quando temos duas regras em confronto - caso de antinomia - uma delas salta fora do sistema. Quando temos conflito entre princípios, nenhum deles é expulso do sistema. Quantas vezes o direito adquirido entra em conflito com o interesse público, quantas vezes privilegia-se o interesse público sem que se expulse o princípio do direito adquirido, e quantas vezes privilegia-se o direito adquirido sem que se expulse o princípio do interesse público? No caso do CDC, eu diria o seguinte: se o examinarem a partir dessas duas pautas em primeiro lugar observando que há aqui norma-objetivo em estado puro e, em segundo lugar, que há princípiosque jogam esse papel na sua interpretação - verificarão que a tarefa de interpretação encontra balizas claras traça das pelo legislador de 1990. O intérprete que delas se aproximar estará aplicando o CDC. Aquele que delas se afastar estará descumprindo a lei. * Palestra proferida no III Congresso Internacional de Direito do Consumidor, realizado em Canela-RS, de 10 a 14 de março de 1992. Transcrição de Carlos Alfredo Lopes Graieb e Luis. Revisão de Antônio Herman V. Benjamin. Não revisto pelo autor. INTERPRETANDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – ALGUMAS NOTAS Página 4 INTERPRETANDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – ALGUMAS NOTAS Página 5
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