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História das Religiões: Religiões Africanas e Orientais Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Me. Rosenilton Silva de Oliveira Revisão Textual: Prof.ª Me. Sandra Regina F. Moreira Religiões “Tradicionais” Africanas • Introdução; • Dificuldades ao Estudar as Religiões Tradicionais; • Aspectos das Religiões “Tradicionais” Africanas; • Distribuição das Religiões no Continente Africano; • Características Gerais das Religiões Tradicionais Africanas; • Noção de Deus; • Características das Religiões dos Complexos Banto e Sudanês. · Apresentar um panorama das religiões “tradicionais” africanas, seus principais aspectos cosmológicos, teológicos e rituais. OBJETIVO DE APRENDIZADO Religiões “Tradicionais” Africanas Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas Introdução O objetivo central desta Unidade é apresentar um panorama das religiões “tradi- cionais” africanas, seus principais aspectos cosmológicos, teológicos e rituais. Nesse sentido, a primeira coisa que nos vêm à mente é: o que, ou quais são as religiões tradicionais africanas? A essa dúvida primeira, podemos acrescentar outras: de quais “religiões”, “tra- dições” ou “África” estamos nos referindo? Seria possível pensar em “religiões tradicionais europeias” ou “asiáticas”? O judaísmo e o catolicismo ortodoxo seriam exemplos de “religião tradicional”? E a religião praticada no Egito Antigo? Enfim, perguntas como essas poderiam multiplicar-se ao infinito, portanto, para começar, vamos primeiro definir o que estamos classificando como “religiões tradicionais africanas”, para depois analisarmos mais diretamente os seus aspectos. Por que será que, na vida cotidiana, continuamos a usar topônimos para classificar gru- pos de regiões como se o espaço por si só fosse capaz de determinar os aspectos de uma cosmologia religiosa? Ex pl or Dividimos, portanto, este material em três partes: na primeira delas, vamos refletir sobre os aspectos sóciogeográficos do universo religioso africano e os principais pon- tos em comum da sua cosmologia; na segunda, apresentaremos algumas caracterís- ticas dessas religiões e, por fim, na terceira, nos fixaremos nos dois grandes grupos que influenciaram diretamente a configuração das religiões afro-americanas a partir do século XVI: os Bantos e os Sudaneses. Nossa análise será a partir de uma abordagem socioantropológica, e, embora o fio condutor seja o desenrolar dos acontecimentos seguindo o seu fluxo histórico, as reflexões serão mais gerais e não ficarão circunscritas a apenas um período histórico ou a um grupo étnico. Quando estiver pronto, podemos começar nossa viagem à África e seu univer- so religioso. Dificuldades ao Estudar as Religiões Tradicionais Ao se tratar das religiões tradicionais africanas, algumas dificuldades se sobressa- em e, de maneira geral, os estudiosos estão de acordo com o fato de que a oralidade se apresenta como o maior empecilho. Uma vez que esses grupos transmitem seus conhecimentos míticos e teológicos de geração em geração, a partir dos rituais de iniciação e durante toda uma vida, sem se valerem de um livro sagrado ou de textos 8 9 escritos, os pesquisadores têm dificuldades em acessar o conteúdo das crenças e de retraçar suas origens. Ao lado disso, Louis-Vicent Thomas e René Luneau (1995) acrescentam dois outros obstáculos: o caráter esotérico dessas religiões e a longevi- dade do ciclo ritual. Vejamos mais de perto esses aspectos e como eles podem ser contornados. Oralidade Diferente das religiões monoteístas (cristianismo, islã e judaísmo) e algumas religiões de origem oriental, que possuem um livro sagrado ou um conjunto de textos escritos que explicitam o conteúdo da crença e, em certa medida, organizam e orientam a prá- tica religiosa, isso não é observado no contexto religioso negro-africano. É verdade que as religiões africanas colecionam um conjunto de mitos que compõe sua cosmologia. Tais mitos e suas chaves de intepretação são transmitidos aos iniciados de maneira oral e, embora hoje tenhamos algumas obras reunindo boa parte dessas his- tórias, elas são fruto do esforço conjunto de pesquisadores e religiosos contemporâneos. William Bascom compilou o conjunto de poemas míticos que compõem o complexo jogo divinatório de Ifá, usado em muitas religiões do complexo iorubá. No Brasil, Pierre Verger recolheu um conjunto de mitos dos orixás no livro 1991. Ex pl or Tem-se, portanto, as narrativas míticas como uma grande fonte de informação so- bre as religiões africanas. Ao lado delas, o conjunto de informações coletadas pelos europeus que entraram em contato com esses grupos: funcionários públicos, membros das expedições militares, viajantes, comerciantes e missionários religiosos. Claro que as informações coletadas por esses sujeitos, ao serem acolhidas pelos estudiosos, passaram por depurações a fim de eliminarem alguns traços preconceituosos e interpretações enviesadas. Infelizmente, parte dos preconceitos que se observa sobre as cosmologias africanas advém de tais interpretações de suas crenças. Somente a partir das missões antropológicas (na virada do século XIX para o XX) é que se começou a coletar informações mais fidedignas sobre as religiões africanas, seguindo critérios científicos mais confiáveis. Isso infelizmente não impediu que ain- da fossem cometidos alguns equívocos. De todo modo, o conjunto de narrativas coletadas ao longo dos anos e as inúmeras observações e descrições etnográficas são capazes de fornecer elementos suficientes para compreender o universo religioso tradicional africano. Um bom exemplo do trabalho dos antropólogos sobre as religiões africanas pode ser en- contrado na obra Oráculo, bruxaria e magia entre os Azande, escrito pelo etnólogo inglês E. E. Evans-Pritchard (2004). Ex pl or 9 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas Esoterismo Importante! O termo esotérico, nesse contexto, refere-se ao caráter secreto das religiões, isto é, ao fato de que o acesso ao conhecimento a determinados elementos rituais, cosmológicos e doutrinários só é acessível aos fiéis por meio do processo iniciático sendo, portanto, vedado aos que não pertencemà religião. Importante! A segunda dificuldade com a qual nos deparamos ao estudar as religiões tradicionais africanas diz respeito ao seu caráter esotérico, isto é, os conhecimentos dos fundamen- tos religiosos só são acessíveis aos iniciados na medida em que completam determina- dos ciclos rituais específicos. Segundo Thomas e Luneau (1995, p.6, minha tradução): [...] não apenas os fiéis não são aceitos no mesmo grau de iniciação (há, por exemplo, trinta e três níveis a cumprir entre os pastores Fula), mas, ainda, é impossível um mesmo indivíduo possuir o conhecimento completo, isto é, ser iniciado em todos domínios. Os Fula (Peuls, em francês) são um povo localizado, sobretudo, na África Central, do norte africano até o Sudão e na região sudanesa, presentes em cerca de quinze países. Etnia nômade, versada no pastoreio, atualmente conta com uma população estimada entre 35 e 40 milhões, sendo que a maioria professa a fé islâmica, mas realizam também rituais das religiões tradicionais. Consulte LOPES, Nei. Dicionário de História da África – séculos XII-XVI. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. Ex pl or Considerando, portanto, esse aspecto do segredo, o acesso a determinados aspectos da crença, não estão acessíveis, nem a todos os iniciados, e muito mais distante aos pesquisadores. Vagner Gonçalves da Silva (2005), ao tratar desse tema, destacou que os antropólogos adotaram posturas distintas a fim de acessar esses conhecimentos: há casos em que eles se iniciam na religião, ou conseguem permissão especial do sacerdote responsável para assistir alguns rituais específicos, ou fiam-se nas narrativas dos vários fiéis. É, portanto, a partir da reunião desses vários fragmentos que o entendimento so- bre essas religiões é formulado. Tal como um quebra-cabeça, as várias descrições etno- gráficas e suas análises subsidiam novas pesquisas e ajudam a compor o entendimento sobre esse universo. 10 11 Ciclo Ritual Aliado ao aspecto esotérico (secreto) dessas religiões está o caráter ritual de suas prá- ticas. Como fora dito acima, o fiel adquire maior conhecimento sobre a sua crença na medida em que vai ultrapassando os vários graus de iniciação e pertencimento. Fato é que essas etapas podem chegar a oitenta anos, em alguns casos (Thomas e Luneau, 1995, p.7), de modo que é quase impossível para um indivíduo vivenciar em sua própria trajetória todos os rituais. É preciso ter em mente que tais ritos variam de acordo com o gênero, a idade e ao status social do indivíduo. Assim, em algumas sociedades, raramen- te um homem terá conhecimento dos rituais pelos quais passa uma mulher, e o contrário. A estratégia adotada pelos pesquisadores, nesse caso, é semelhante ao anterior: cada antropólogo descreve e analisa aqueles elementos a que consegue ter acesso e, a partir desses fragmentos, um entendimento maior é formulado. Tendo em conta essas dificuldades, Thomas e Luneau advertem que é preciso “des- confiar das hipóteses fáceis” (1995), isto é, explicações que tentam dar conta da to- talidade de cada uma das religiões tradicionais africanas sem considerar suas especifi- cidades. Claro que, a partir do conhecimento acumulado sobre esse tema, podemos enunciar algumas hipóteses mais gerais (como veremos mais abaixo), significando que, ao afirmarmos que nessas religiões o culto aos antepassados ocupa e encontra uma posição central, estamos considerando que, embora os modelos rituais possam variar, os ancestrais participam da vida social dos vivos. Aspectos das Religiões “Tradicionais” Africanas Conforme dissemos na Introdução, precisamos definir algumas categorias antes de prosseguirmos nossa viagem sobre o universo religioso africano. O primeiro deles diz respeito justamente ao emprego do termo “africano” à “religião”. Normalmente não falamos “religiões europeias” ou “religiões americanas”. Entretanto, empregamos “orientais” para nos referirmos a algumas religiões de origem indiana, japonesa e chine- sa; “africanas” para os vários povos localizados no continente africano e “ameríndias” para nos referirmos às cosmologias dos índios americanos. Perceba que boa parte das religiões praticadas no mundo são, de certa forma, classificadas genericamente a partir de um “pertencimento geográfico”. Ficam de fora dessa adjetivação toponímica ape- nas as três maiores religiões monoteístas: cristianismo, islamismo e judaísmo, embora possamos localizar as origens históricas e geográficas dessas três: o Oriente Médio. 11 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas Por vezes, chegamos a relacionar o islã aos árabes (sobretudo, devido à língua ritual ser o árabe), ou o catolicismo à Europa (uma vez que a sede da Igreja Católica se en- contra nesse continente, na Cidade-Estado do Vaticano), ou ainda, podemos identificar os judeus com os semitas e os conflitos entre Israel e Palestina. Entretanto, em nenhum desses casos pensamos essas religiões como étnicas, isto é, pertencentes a um grupo específico, tal como fazemos com os grupos ameríndios, africanos e orientais. Em par- te, isso se explica pelo fato de que os primeiros estudiosos do fenômeno religioso eram europeus (e boa parte deles cristãos), que passaram a analisar as outras cosmologias a partir da experiência cristã. Desse modo, enquanto o estudo das religiões abraâmicas estava reservado à produção de uma teologia, nos demais casos discutia-se se aquelas crenças, rituais e liturgias constituíam uma “religião verdadeira” tal como o catolicismo. Por outro lado, a produção do conhecimento sobre as populações americanas, orien- tais e africanas ganhou impulso no período colonial, isto é, no momento em que as potências europeias (sobretudo, França, Inglaterra, Portugal e Espanha) começam a ex- plorar os continentes americano e africano. Ao lado do processo de evangelização desses povos nativos, buscou-se também produzir um saber sobre os seus modos de vida, sua cultura e suas cosmologias. Nesse processo, ao tratar dos aspectos religiosos, elas foram consideradas como sendo “religiões étnicas”, isto é, pertencentes a um grupo específico, de modo que o sujeito já nasce dentro de uma religião, portanto, a adesão não se dá por meio da conversão, como no cristianismo ou no islamismo. Assim, ao estudar os Azande e os Nuer, o antropólogo E. E. Evans-Pritchard (1978) procurou descrever todos os aspectos da vida social de cada um desses grupos, sendo a religião um dos elementos que a compõe. A suposição de que a cada etnia corresponde uma cultura, uma organização social e uma religião, como um todo orgânico, dominou os estudos etnográficos a ponto de tais religiosidades serem consideradas como étnicas. Entretanto, o que se observou ao longo dos anos é que, apesar de cada grupo possuir uma religião, havia certos elementos que ultrapassavam os limites étnicos e poderiam ser universalizados. A partir dessa concepção, passou-se a falar em “religiões africanas” no sentido de que, apesar das especificidades de cada uma, há uma estrutura que per- passa todas elas. De maneira comparativa, podemos dizer que há muitos cristianismos (dividido, sobretudo, entre católicos e protestantes ou “evangélicos”), mas há uma mes- ma “estrutura cristã” que perpassa todas as igrejas. O termo “tradicional” foi acrescentado às “religiões africanas” justamente para distinguir aquelas expressões religiosas originárias no próprio grupo (ou região geo- gráfica), daquelas levadas pelos conquistadores (especialmente o islã e o cristianismo). 12 13 Em síntese, como sublinha Gaarder e Hellern e Notaker (2005, p. 98) [...] ao agrupar as religiões africanas sob um só rótulo, deve-se ter em mente que seu número equivale ao de povos existentes na África. Cada uma tem seu próprio Deus, seus próprios rituais de culto, suas idiossincrasias. Por outro lado, elas apresentam também muitos traços em comum, pois os africanos não viveram uma existência estática, isolada. Sua história fala de diversas migrações, dos contatos que cruzaram as divisõestribais e da formação de grandes Estados. É necessário notar ainda que a maioria dos africanos não urbanos são agricultores e criadores de gado. Há apenas alguns grupos de caçadores-coletores. Distribuição das Religiões no Continente Africano Atualmente, ao falar da presença religiosa na África, é preciso ter em conta não apenas a presença do cristianismo e do islã (os dois nas suas várias vertentes), mas também a presença daquelas religiosidades originárias, que eram praticadas antes do período colonial e continuam até hoje. Como nas demais partes da Terra, o continente africano transborda em religiosidade. Na Figura 1, reproduzida por Tshibangu (2010, p. 609), é possível observar a distribuição religiosa na África. Mesmo nos países em que o Islã foi declarado religião oficial do estado (aplicando ou não a sharia), como Marrocos, Tunísia, Argélia, Líbia, Somália, Ilhas Comores e Mau- ritânia, não é possível observar que a população seja integralmente, ou quase integral- mente muçulmana. O Egito, por exemplo, que é majoritariamente muçulmano, abriga uma importante minoria cristã (os católicos coptas), responsável por menos de 10% da população, proporção semelhante àquela apresentada no Senegal (católicos romanos). Em muitos países, a proporção da repartição numérica entre cristianismo e islã constitui um desafio político relevante, como no Sudão, na Etiópia, no Chade, na Nigéria, em Camarões e na Tanzânia. Alguns destes países declaram oficialmente em sua Constitui- ção que o Estado é, no tocante à religião, “neutro” (TSHIBANGU, 2010, p. 608), isto é, não possui uma religião oficial. 13 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas Nenhuma tradição que atinja 50% Islã: mais de 50% Cristianismo: mais de 50% Religião africana tradicional: 50% OCEANO ATLÂNTICO OCEANO ATLÂNTICO OCEANO ÍNDICO MARROCOS ARGÉLIA SAARA OCIDENTAL Rabat Argel El Aiun MAURITÂNIA MALI NÍGER Nouakchott SENEGAL BURKINA- -FASSOGÂMBIA GUINÉ GUINÉ EQUATORIAL GUINÉ- -BISSAU SERRA LEOA GA NA Uagadugu Bamako Niamei TOGO BENIN NIGÉRIA Lomé Lagos COSTA DO MARFIM Porto Novo DakarBanjulBissau Conakry Freetown Abidijan Monróvia LIBÉRIA Trípoli LÍBIA TUNÍSIA CHADE CA MA RÕ ES Yaoundé Bangui REPÚBLICA CENTRO-AFRICANA ZAIRE Jamena Addis-Abeba JibutiSUDÃO ETIÓPIA JIBUTI Cairo Cartum EGITO Túnis Lago Chade Lago Victoria L. Malawi Lago Tanganyika GABÃO Cabinda CO NG O UGANDA QUÊNIA Nairóbi Brazzaville Kinshasa RUANDA BURUNDI Kigali Bujumbura TANZÂNIA ZANZIBAR Mogadíscio SO MÁ LIA Dar es-Salaam Luanda ANGOLA ZÂMBIA Lusaka Lilongwe Harare MALAWI NAMÍBIA Windhoek BOTSUANA Gaborone Pretória Maputo Mbabane ZIMBÁBUE SUAZILÂNDIA LESOTO MO ÇA MB IQ UE ÁFRICA DO SUL Maseru Antananarivo MADAGASCAR Accra Bata Libreville 0 500 1 000 milhas 0 800 1 600 km Figura 1 - Repartição do Cristianismo, do Islã e da Religião Tradicional africana na África, segundo estimativa de cada região É importante destacar que a grande influência das religiões tradicionais africanas não se mede pelo fato de serem ou não majoritárias em algum país, pois como constituidoras das sociedades elas são, por vezes, praticadas simultaneamente com a religião majoritária. E mesmo que haja um grande número de africanos que não realizem tais práticas, o tecido social configurou-se de tal modo que os valores mo- rais continuam a emanar da antiga crença, sobretudo, no respeito aos ancestrais, no patrimônio cultural e nos laços familiares. 14 15 Por esse motivo, sem hesitar, etnógrafos e historiadores tendem a afirmar que na África negra a religião penetra tudo e o africano pode ser definido como um ser “incuravelmente religioso”. Importante! O sentimento religioso africano pode ser sintetizado na defi nição de Marcel Griaule (1966): “um sistema de relações entre o mundo visível dos homens e o mundo do invi- sível regido por um Criador e por potestades que, sob nomes diversos e sendo manifes- tações desse Deus único, são especializados nas mais diversas funções”. Importante! Características Gerais das Religiões Tradicionais Africanas Abstraindo as especificidades de cada religião, podemos considerar que cada uma delas comporta em maior ou menor grau, dimensões do animismo, do totemismo, do culto aos ancestrais (ancestralismo), do naturismo, do fetichismo e do paganismo. RELIGIÕES TRADICIONAIS AFRICANAS TOTEMISMO ANIMISMO CULTO AOS ANCESTRAISNATURISMO FETICHISMO Figura 2 Vamos observar mais de perto o significado de cada um desses elementos e como eles estão presentes nas religiões tradicionais africanas. 15 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas Animismo Em linhas gerais, o termo animismo designa a crença de que o mundo está povoado por espíritos (do latim anima, daí animismo) que regem os animais, a natureza e o pró- prio homem. O etnólogo inglês E. B. Taylor (1832-1917) foi um dos primeiros estudio- sos a considerar o animismo como sendo a primeira forma de religião experimentada pelo homem. Nesse sentido, ela pressupõe dois dogmas: “a crença na alma e na vida futura e, correlativamente, a crença nos deuses tutelares e nos espíritos intermediários” (LE MOAL, 2013, 3ª ed., p. 72. minha tradução). Por muito tempo, o termo foi utilizado para se referir de maneira genérica (e, por vezes, pejorativamente) às religiões tradicionais africanas e, no Brasil, às religiões afro- -brasileiras (GAARDER, 2005, p. 24). Atualmente, o termo não tem mais pretensão de designar um sistema religioso, mas [...] exprime a especialização da vida em figuras e poderes (donde a existên- cia de almas, gênios, espíritos, ancestrais divinizados, deidades associadas, derivadas ou intermediárias entre deus e o homem, que animam o universo e povoam os panteões tradicionais). (THOMAS; LUVEAU, 1995, p. 5. minha tradução). Mais do que classificar regimes de crenças distintos, o caráter animista está presente em todas as religiões tradicionais africanas, na medida em que todas elas dialogam com o fato de que a existência dos seres é animada por espíritos, os quais colocam todos em relação. Portando, dizer que uma religião possui elementos animistas passou a ser um ponto de partida para a investigação, e não mais o resultado da análise. É preciso levar em consideração que, em alguma medida, algumas religiões orientais e ameríndias também possuem aspectos do animismo. Totemismo Se E. B. Tylor considerou o animismo como a “religião primitiva” dos homens, o sociólogo Émile Durkheim localiza no totemismo a forma elementar da vida religio- sa. Gozando de uma longa tradição nos estudos antropológicos da religião, o termo totem foi emprestado dos Ojibwa, habitantes da região dos Grandes Lagos norte- -americanos, que o utilizavam para exprimir ligações de parentesco entre sujeitos e o pertencimento a determinado grupo clânico (cujo nome normalmente derivava de alguma espécie animal ou vegetal). De fato, o interesse principal no totemismo deve-se menos ao seu aspecto “re- ligioso” e mais ao fato de que ele permite entender formas de classificação social e o estabelecimento de linhagens de parentesco. Na década de 1960, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss revisitou esse tema para dar-lhe uma nova compreensão. Enquanto alguns autores consideravam que ao perceber a diversidade na natureza, o 16 17 homem passou a se auto classificar em clãs, tribos e fratrias (adotando espécies ani- mais e vegetais como totem, isto é, como símbolo distintivo que organiza a vida social), Lévi-Strauss (1962) inverte a sentença: foi justamente porque os seres humanos se perceberam diferentes que começaram a classificar a natureza dividindo-a em grupos: [...] os fenômenos chamados de totêmicos não se traduzem, segundo ele, con- forme a interpenetração da cultura e da natureza, mas ao contrário, uma fissura entre essas duas ordens é o que permite sua interpretação. A identificação nominal ou ritual (interdito alimentar), essa comparação de grupos sociais oude indivíduos com espécies animais ou vegetais distintos, resulta de um duplo movimento do intelecto: perceber a diferenciação das espécies na ordem da natureza e se servir das parcelas percebidas para se dar conta de uma dife- renciação no seio da ordem social (DÉSVEAUX, E. Totémisme. In: BONTE, Pierre; IZARD, Michael. Dictionnaire de l’ethnologie et de l’anthropologie. Paris: Puf, 2013, 3ª ed., p. 710. Minha tradução). Do ponto de vista das religiões tradicionais africanas, o totemismo é fundamental para compreender a afiliação dos fiéis aos deuses tutelares (aos quais são associadas espécies animais, animais, domínios da natureza, fenômenos atmosféricos e situa- ções da vida social) e suas restrições alimentares e de parentesco. O pai da psicanálise, Sigmund Freud também estudou sobre o totemismo, pois localizou ali a gêneses do tabu do incesto. Suas conclusões foram contestadas por Lévi-Strauss. Esse rico debate foi sintetizado por Ángel B. Espina Barrio em Freud e Lévi-Strauss: infl uências, contribuições e insufi ciências das antropologias dinâmica e estrutural, publicado no Brasil pela Fundação Joaquim Nabuco, em 2008. Ex pl or Culto aos Ancestrais Muitas religiões estabelecem, em algum grau, o culto aos mortos. Entre os cristãos católicos, por exemplo, existe a possibilidade de uma pessoa ser reconhecida como “san- ta” e, portanto, capaz de interceder junto a deus por aqueles que a invocarem. Já no universo das religiões tradicionais africanas, o ancestral ocupa um lugar de destaque, pois o culto aos ancestrais “tem por objetivo manter a ordem social e de assegurar a autenti- cidade do culto e das crenças” (THOMAS e LUNEAU, 1995, p. 6). Mais do que render homenagens àqueles que já morreram, nas religiões tradicio- nais africanas, podemos observar que a pessoa continua participando do mundo dos vivos de diversas formas. Essa diferenciação implica também no modo como os gru- pos percebem a morte e a vida. A morte não transforma necessariamente uma pessoa num ancestral. Há um con- junto de rituais que precisam ser observados para que essa passagem ocorra. Do mes- mo modo, nem todos os mortos são alçados à categoria de ancestral. Nesse sentido, 17 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas é preciso ter em conta a distinção entre os vários tipos de ancestrais: aqueles que representam uma família ou um clã (ou todo um grupo étnico). Essa posição pode ser definida por uma relação genealógica real ou mais ou menos fictícia. No primeiro caso, geralmente, o ancestral é circunscrito a um pequeno grupo (familiar ou estendido), cujos laços de parentesco podem ser relativamente traçados. Esse culto de alcance doméstico permite a coesão do grupo. Situação semelhante podemos observar em algumas sociedades orientais em que são realizados cultos aos antepassados da família, inclusive mantendo-se em casa pequenos altares em que são ofertados alimentos, incensos e velas. Quando falamos de um ancestral cujas linhas de parentesco genealógico são mais difíceis de serem provadas (dada sua extensão temporal ou geográfica), estamos diante de um [...] ancestral mítico, fundadores de um clã, de uma tribo ou de um grupo étnico. Os ancestrais míticos são, na maioria dos casos, figuras transcen- dentais, identificadas a animais totêmicos (sobretudo, entre as tribos austra- lianas e os índios norte-americanos) ou a heróis humanos, os quais, graças às suas características de ancestrais distantes, lhe são conferidas uma na- tureza próxima a dos deuses e, em alguns casos, chegam a ser divinizados (KRAUSKOPFF, 2013, 3ª ed., p. 66. Minha tradução). Por exemplo, entre os Sudaneses, sobretudo, os Yoruba, muitos dos deuses tutela- res são ancestrais divinizados fundadores e guardiões de cidades, como Xangô que teria sido rei de Oyó, ou Oxóssi, que fora rei de Ketu (SILVA, 2005). Em nossa sociedade contemporânea, a celebração da memória dos entes queridos mortos também ocupa um lugar importante. No Brasil, por exemplo, há um feriado nacional reser- vado para que sejam prestadas homenagens aos defuntos. A celebração de finados assume, portanto, vários significados nas mais variadas crenças. Quais rituais de reverência aos mortos você consegue identificar nas várias religiões presentes em nossa sociedade? Ex pl or Naturismo Assim como a noção de animismo, o termo naturismo também foi utilizado por estudiosos evolucionistas para definir as “religiões primitivas”. Trata-se, neste caso, da crença de que a natureza é animada por almas ou espíritos. Com a crítica às te- orias evolucionistas, esse modo de interpretação foi desconstruído. Atualmente, se entende que [...] longe de reduzir à adoração da natureza, como se acreditou outrora, o natu- rismo corresponde mais à atitude cosmomórfica, isto é, a percepção do mundo como um conjunto de significados, como linguagem viva, como um tecido de mensagens divinas a serem interpretadas. (THOMAS; LUNEAU, 2010, p. 6). 18 19 Importante! Não confundir com o naturalismo ou o modo de vida naturista! No primeiro caso, trata- -se de um movimento literário desenvolvido no fi nal do século XIX por artistas como Émile Zola. Já a fi losofi a de vida naturista pressupõe uma unidade do homem com a natureza, buscando sempre a harmonia entre os seres (vida ao ar livre, consumo de alimentos naturais, prática do nudismo, etc.) Importante! A compreensão de que a natureza é a manifestação do divino permite que os crentes constituam suas divindades a partir dessa realidade, isto é, sendo deus força, calor, luz e vida e estando no céu, os Mosi fazem de seu deus uma divindade solar, mas eles não adoram o sol. Os Diola, que praticam o cultivo do arroz, precisam da chuva, que é vida, mas eles não adoram a chuva. O que se torna objeto de culto são as realidades, suportes eminen- tes, susceptíveis de restabelecer a força aos homens e ao grupo social e que, sem ser deus, se apresentam como manifestação direta da força de Deus. (THOMAS; LUNEAU, 2010, p. 14). O Evolucionismo social ou cultural foi uma teoria difundida por estudiosos como Edward Burnett Tylor, Lewis Henry Morgan e Herbert Spencer, os quais se inspiraram nas teorias da biologia evolucionistas para explicar as transformações e a diversidade sociocultural da hu- manidade. Tendo a sociedade europeia do século XIX como paradigma de civilização e desen- volvimento, os demais povos eram classifi cados a partir de seu “grau de desenvolvimento”, nos vários campos do social: parentesco, economia, etc. No caso da religião, o menor nível era o naturismo, passando pelo animismo, fetichismo, politeísmo, até chegar ao monoteísmo. Andressa Nunes Soilo apresenta um resumo interessante sobre esse tema. Acesse: SOILO, Andressa Nunes. Do evolucionismo clássico ao particularismo histórico na antropolo- gia: principais ideias. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 1, p. 251-261, jan. /jun. 2014. https://goo.gl/nxZVbV Ex pl or Fetichismo Termo bastante controverso, em muitos casos, é utilizado como uma categoria depre- ciativa das práticas religiosas de origem africana e ameríndia. Nesse sentido, afirma-se que o fetichismo seria uma forma degenerada da prática religiosa, uma vez que o fiel estaria “desviando” a sua crença e os atos litúrgicos para seres materiais inanimados, ao invés de dirigi-los às realidades divinas imateriais, isto é, substituindo a coisa simbolizada pelo símbolo, ou ainda, a transferência do poder divino para coisas materiais como amu- letos ou talismãs; designa ainda atitudes “supersticiosas”. Por meio dessas concepções, muitos missionários cristãos ao observarem os rituais realizados por esses povos às suas deidades das religiões tradicionais materializadas em estátuas, pedras, altares, plantas etc., acusaram os africanos de praticarem idolatria. 19 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas As religiões afro-brasileiras foram classificadas como “animistas-fetichistas” pelos primeiros estudiosos que se inspiraram nas teorias evolucionistas para analisaro complexo religioso negro-brasileiro. O médico baiano Raimundo Nina Rodrigues, que foi o primeiro a realizar uma pesquisa “etnográfica” em terreiros de candomblé, assim nomeou seu livro: O animismo fetichista dos negros baianos (2006). Ex pl or Atualmente, os antropólogos utilizam o termo a partir do seu sentido etimológico, isto é, fetiche designa uma “coisa feita, a manipulação sagrada, manipulação do sa- grado, ação ordenada pelo homem sobre as potestades sagradas por meio da magia da palavra e da técnica sacrificial, a qual ilustra a interação universal das forças”. (THOMAS; LUNEAU, 1995, p. 6). Entendemos, portanto, que o fetiche não diz respeito às supostas religiões primi- tivas, ou a incapacidade dos fiéis em distinguir entre o suporte material da deidade e sua realidade divina. Bruno Latour (2002), ao refletir sobre o culto moderno aos deuses fetiches, a partir da relação entre os colonizadores europeus e os africanos (sobretudo, com relação à acusação de que as sociedades africanas seriam fetichistas, ao contrário dos cristãos vindos da Europa), afirma que [...] longe de ser esvaziado de sua eficácia, mesmo entre os modernos, o feti- che parece agir constantemente para deslocar, confundir, inverter, perturbar a origem da crença e a certeza de um domínio possível. A força que se quer retirar ao fetiche, ele a recupera no mesmo instante. Ninguém acredita. Os brancos não são mais antifetichistas do que os negros são fetichistas. Acontece que, somente os brancos estabelecem ídolos por toda a parte, entre os outros para em seguida destruí-los, multiplicando por toda parte, entre eles mesmos, os operadores que disseminam a origem da ação. (LATOUR, 2002, p. 29). Importante! “A religião tradicional africana é resultado de uma síntese ponderada de atitudes organizadas, vaiáveis de acordo com os modos de vida, provavelmente construídas ao longo do tempo segundo contingencias históricas atualmente perdidas e exprimindo diversamente a alma africana. Ora, o totemismo, o culto aos ancestrais, o animismo, o naturismo (ou melhor, o cosmomorfismo) e o fetichismo tornaram-se pontos de vista não exclusivos, mas compatíveis, talvez complementares, sobre a religião autêntica”. (THOMAS; LUNEAU, 2010, p. 6) Em Síntese Uma vez que estabelecemos as características gerais das religiões tradicionais africanas e entendemos que, ao tomarmos cada uma delas em separado, como fizeram alguns analistas, corremos o risco de tratá-las de modo pejorativo, vamos refletir sobre a noção de deus que permeia essas religiões. 20 21 Noção de Deus Como você já percebeu, é possível considerar que há na África tantas religiões tradicionais quanto grupos étnicos; comparativamente, poderíamos dizer que o nú- mero de cosmologias ameríndias corresponde à quantidade de povos indígenas nas Américas. Por isso, não estamos apresentando os vários modelos rituais e suas crenças, mas estamos fazendo o esforço reflexivo de compreender quais são os elementos estruturantes que perpassam todas as religiões tradicionais africanas. O objetivo é que você possa ter uma visão geral desse universo, e, caso tenha maior interesse, aprofunde-se no estudo de um ou outro modelo ritual. Acima de tudo, estamos desconstruindo certos pré-conceitos ao mostrarmos que as categorias de classificação empregadas nesse universo possuem conotações distintas, portanto, é preciso tomar cuidado nas suas utilizações a fim de evitarmos, como no passado, hierarquizações e valorações das religiões. Com relação à noção de deus, em geral, essas religiões tradicionais concebem a exis- tência de um ser supremo, associado à criação, ao céu e a fertilidade, e, por vezes, é associado à terra e ao criador. Foi ele ainda [...] o responsável pelos decretos que regulam a sociedade, pelos costumes a que a tribo tem o dever de obedecer. Com frequência, ele é também o deus do destino, que governa a vida dos seres humanos e controla a boa ou má fortuna [sorte/azar] da tribo” (GAARDER, 2005, p. 100). Além do Criador, há também os deuses secundários (geralmente antropomórficos) que estão mais próximos dos homens, aos quais são consagrados rituais e preces. Por fim, gênios, espíritos e ancestrais compõe o panteão, sem necessariamente serem considerados deuses. Sendo responsável pela criação de tudo, o Deus Supremo, assume uma posição distante e apartada dos homens, cujo acesso se dá por meio de demiurgos ou deuses tutelares. Geralmente, os cultos que lhe são atribuídos são parciais ou indiretos, isto é, em seu nome são imoladas as vítimas nos ritos sacrificiais. A fim de conhecer a vontade dos deuses ou para acessar os destinos dos indivíduos ou da comunidade, os sacerdotes fazem usos de sistemas divinatórios diversos. Tais oráculos, normalmente, foram outorgados pelos deuses e guardam estreita relação com a mitologia do grupo. Nesse sentido, para interpretar as mensagens divinas é necessário que o adivinho possua grande conhecimento da cosmologia sagrada e da sociedade, o que pressupõe vários graus de iniciação. Alguns autores tendem a afirmar que as religiões tradicionais africanas são de fato monoteístas, sendo que as deidades tutelares (ou intermediárias, ou ainda, suplemen- tares) seriam extensão desse mesmo deus supremo. Nesse sentido, o politeísmo é negado ou, mais especificamente, é entendido como sendo o modo pelo qual o deus criador se manifesta. 21 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas Parece que essa forma de conceber o panteão africano tenta impor certa visão eurocêntrica sobre as manifestações religiosas fora da África, revelando resquícios do evolucionismo cultural que apresentava o monoteísmo como sendo uma crença “superior” (ou mais “desenvolvida”) que o politeísmo. Rompendo com essa oposição entre monoteísmo e politeísmo, Thomas e Luneau (1995) apresentam-nos uma interpretação sobre os deuses africanos, que nos permite observar o quão complexo é o universo dessas religiões. Esses autores apresentam as noções de monoteísmo ontológico e politeísmo litúrgico. O monoteísmo ontológico coloca em evidência o fato de que as religiões tradicionais africanas reservam um lugar especial para o Deus-Criador, o qual se estabelece como o ser supremo que rege o mundo. É ele também que atribui funções específicas aos seres intermediários, que não sendo especificamente deuses, são responsáveis em garantir a ordem do cosmos: gerir os fenômenos naturais (movimento dos astros celestes, das marés, dos ventos, etc.). Geralmente, não possuem um culto específico, mas são reverenciados junto com o deus supremo ou os deuses secundários. Umas análises aprofundadas dessas entidades metafísicas revelam que elas podem ser consideradas como a materialização ou concretização das funções divinas (THOMAS; LUNEAU, 1995, p. 10). Com relação ao politeísmo litúrgico, segundo Thomas e Luneau (1995), sua prática é tão presente no universo religioso tradicional africano que, por vezes, ofus- cam a presença do deus-criador. De fato, os deuses secundários ocupam um lugar importante na crença africana, e são eles que estão presentes no cotidiano dos fiéis, recebem os sacrifícios e preces, gerem os vários setores da vida humana e da nature- za. Nas religiões onde o transe é manifesto, são esses deuses que se manifestam nos corpos dos fiéis e neles dançam, cantam e transmitem os oráculos divinos. Por vezes, os ancestrais ocupam esse lugar especial no panteão negro-africano. Os deuses secundários (ou intermediários) são, na sua maioria, antropomórficos, isto é, assemelham-se muito aos humanos: são dotados de sentimentos (amor, raiva, ciúmes, alegria, tristezas, são vingativos ou generosos etc.), constituem relações de parentesco (casam-se, tem filhos, são irmãos etc.) e podem morrer e renascer periodicamente. Ocupando, portanto, o centro da prática religiosa, os deuses secundários recebem nomes genéricos (Voduns ou Orixás, entre os Yorubas; Boekiin entre os Diola; Inquices entre os Bantos; Aziza, entreos Fon e Mina etc.), mas possuem nomes, características e personalidades próprias. É preciso lembrar que cabe a essas entidades estabelecer a ligação entre os homens e o Ser-supremo, geralmente muito longe para ser alcançado diretamente pelos fiéis. Assim, no momento em que os homens reconhecem a necessidade de dirigir suas oferendas e preces aos deuses secundários para que sejam atendidos, consi- deram que o deus-supremo também participa dessas liturgias, e também recebe as libações e sacrifícios. 22 23 Por outro lado, e aqui retomamos a noção de totemismo, a organização cultu- ral se deixa deduzir a partir da organização do panteão. Sem dúvida, Deus pode ter seus próprios altares (por exemplo, Amma entre os Dogon), mas geralmente os santuários são destinados às divindades secundárias (como o tempo de Oxum em Oxogbó, na Nigéria, entre os Yorubas) e as entidades (espíritos e ancestrais) encarregados de “conduzir” a oferenda para o Deus. Conforme dissemos acima, a distribuição geográfica e funcional desses locais de culto pressupõe também uma re- partição das funções sagradas e dos sacerdotes responsáveis por rituais específicos (THOMAS; LUNEAU, 1995, p. 11). Considerando a diversidade ritual das religiões tradicionais africanas, descrever as suas liturgias não é tarefa fácil. Diferente do catolicismo, ou de outras religiões que possuem livros normativos que orientam as funções dos fiéis e sacerdotes, no universo africano, é a vivência da religião a partir dos seus múltiplos ritos de iniciação que garante ao sujeito o conhecimento paulatino de suas práticas. Mesmo assim, tal como afirma- mos acima, a divisão das funções sagradas entre vários membros dificulta (e por vezes impede) que um só sujeito detenha todo o conhecimento sobre o culto. De modo geral, podemos observar duas classes de sacerdotes: os adivinhos e os curandeiros. Em alguns casos, a mesma pessoa pode desempenhar as duas funções. Cabe ao adivinho a interpretação das mensagens divinas, atender os consulentes (transmitindo os vaticínios, aconselhando e até mesmo diagnosticando os males físicos ou espirituais que os afligem). As práticas divinatórias variam bastante, mas normalmente pressupõe o emprego de objetos (búzios, como entre os Yorubas; vegetais, entre os Bantos; ossos e madeiras entre os Chona; galinhas entre os Azande etc.) e narrativas sagradas como mitos e poemas. Em alguns casos, o uso dos objetos está relacionado à interpretação das narrativas míticas, como ocorre no sistema divinatório de Ifá, na Nigéria. Importante! Não cabe ao adivinho apenas “tirar a sorte” com os números ou outros métodos, mas interpretar a respostas dos deuses e transmiti-la ao consulente. Se ele for também um curandeiro, deverá consultar as entidades sobre qual terapêutica deve ser empregada para resolver o problema ou garantir o sucesso da empreitada. Importante! No caso do curandeiro, sua responsabilidade é manipular o sagrado propriamente dito: dirigir os cultos e os ritos, iniciar os neófitos, perscrutar os desejos dos deuses (ouvindo os adivinhos) e aplicar os feitiços. Cabe também a esse sacerdote, a cura das doenças físicas e espirituais por meio da realização de efusões, poções, remédios, venenos e banhos rituais. Seu conhecimento recai, portanto, não somente sobre o conteúdo da crença e seus rituais, mas também abrange a fauna e a flora que com- põem a paisagem onde o grupo está localizado. Há diferentes graus de sacerdotes e 23 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas a cada um deles é atribuída funções específicas, por exemplo, se há sacrifícios de ani- mais, pode haver uma pessoa responsável pela imolação e outra pela manipulação do animal sacrificado, seja para oferecer aos deuses, ou servi-lo numa refeição comunal para toda a comunidade. O sacrifício ocupa um lugar central nas religiões, seja de modo simbólico, como no cristianismo, ou com a imolação de animais (como no islã, no judaísmo e nas religiões de origem africanas), ou de vegetais e minerais (como nas religiões de origens africanas e orientais), pois eles per- mitem restabelecer a ordem e a energia do universo, dos deuses e dos homens. Marcel Mauss e Hubert, no livro Sobre o Sacrifício (2005), analisam esse fenômeno religioso. Ex pl or No ato de manipular o sagrado, o emprego de artefatos materiais é acompanha- do pela pronúncia de palavras sagradas, em forma de prece ou canto. A linguagem não é apenas instrumento de comunicação, mas é expressão da força criadora. Se a divindade cria a partir da sua palavra e seu sopro sagrado, por meio da ação ritual e da prece do sacerdote, a criação é prolongada e a ordem recolocada. “A palavra ritmada (em forma de oração ou canto sagrado) não está apenas na origem do mundo, mais ainda, ela constitui o tecido ontológico do qual é feito o universo.” (THOMA; LENEAU, 1995, p.18, minha tradução). Importante! “Os panteões africanos são sistemas orgânicos de símbolos, ponto sobre o qual os an- tropólogos africanistas têm grande interesse em investigar. O pensamento simbólico joga, portanto, sobre duas faces: a representação ou expressão, e com a intervenção. Ou mais exatamente, ela tem quatro finalidades: a) senso econômico, pois ela resume, con- densa e aproxima; b) uma função operatória, pois é um verdadeiro jogo de permutações que torna possível a passagem da coisa simbolizada para os diversos elementos do campo simbólico; c) um valor de uso, que lembre as regras de ação e mostra a união da obrigação e do desejável; d) função de sugestão (ela quebra a imaginação) ou expli- cação (é o índice mais seguro de correspondências e participações). Enquanto imagem, ela é figurada; como hierofania, torna-se potência.” (THOMA; LENEAU, 1995, p. 31). Em Síntese Hierofania: é a manifestação visível do sagrado. Ex pl or Agora que já refletimos sobre as principais características das religiões tradicio- nais africanas, vamos observar alguns aspectos dos complexos Banto e Sudanês, pois foi a partir desses grupos que foram constituídas as religiões afro-americanas a partir do século XVI. 24 25 Características das Religiões dos Complexos Banto e Sudanês Para além do que já dissemos anteriormente sobre as características rituais e cos- mológicas das religiões tradicionais africanas, é importante ter em mente que os aspectos geográficos e históricos também influenciam nas crenças e suas práticas. Sem dúvidas, a cada grupo étnico uma língua, uma cultura e uma religião, apesar dos aspectos estruturais em comum que apontamos aqui. Essa grande diversidade cultural, social e religiosa africana, costuma ser agrupa pelos pesquisadores a partir de um referencial: os troncos linguísticos. Assim como é feito na Europa, em que podemos observar grandes grupos linguís- ticos como as línguas “neolatinas” (francês, italiano, português, romeno, espanhol, galego etc.), na África, os grupos foram organizados a partir das raízes comuns de suas línguas. Nesse contexto, temos dois que se destacam, uma vez que foi a partir deles que vieram, de maneira forçada para a América, os africanos em situação de escravidão: Sudaneses e Bantos. Como se vê no mapa abaixo, os Sudaneses estendem-se desde a costa oeste afri- cana (do atual Senegal) até o Golfo da Guiné, passando pelo Sul do atual Camarões, sendo limitado pelo Rio Nyong. Nessa região, há um conjunto de grupos étnicos com suas cidades-estados, suas línguas, cultura e religiões. Os povos que viviam nesta par te da floresta guineense e na savana circun- dante eram os fon, ou aja, da atual República do Benin, os iorubas (na atual Nigéria), os ijó, do delta do Níger ao centro, os ibo, a Nordeste do delta, os ibíbio e, diversas etnias dos Camarões Meridional. (ALAGOA, 2010. p. 509) Para o Brasil, vieram os iorubás e os nagôs (ijexá, egbá, entre outros), jejes (ewe ou fon), fanti-achantis e também muitos que praticavam o islã, além das religiões tradicio- nais africanas: haussás, tapas, peuls, fulas e mandingas. A dificuldade emestabelecer com clareza a origem dos africanos que vieram para o Brasil dá-se, sobretudo, pelo fato de que muitos homens e mulheres foram aprisionados no interior do continente e enviados para a América ou Europa a partir de postos localizados na costa. Nesse processo, seus laços de parentesco e seus nomes eram apagados. 25 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas LEGENDA Sudaneses Bantos Continente Africano Reinos, cidades e grupos étnicos pré-coloniais OCEANO ATLÂNTICO OCEANO ÍNDICO Península Ibérica Península Arábica Egito Turquia Pérsia Índia Comores Madagascar Forte de São Jorge da Mina Forte de Arguim Arquipélago de Cabo Verde Cabo Bojador Arq. Canárias Ilha da Madeira Tânger Fez Granada Constantinopla Arq. dos Açores Roma Cartago Palestina Alexandria Cairo Medina Meca AxumNúbia Meroé Senar Etiópia Moçambique Zanzibar Quiloa Angoche Quelimane Sofala Inhambane Monomotapa Darfur Canen Bornu Songai TombuctuGana MaliBambuk Bure Axante Daomé Abomé Alada Jené Oyo Loango Pinda Ambiz Luanda Congo Ambula Malamba Lozi Cazembe Ifé Benin Golfo de Benin Golfo d e Áden Golfo Pérsico Gaó São Tomé e Príncipe Figura 3 - O Continente Africano Fonte: portaldoprofessor.mec.gov.br Com relação aos Bantos, eles compõem um dos maiores troncos linguísticos, reu- nindo centenas de línguas e grupos. Localizados na África Central, estendem-se desde o Golfo do Benin, ao sul do atual Camarões (limitados ao norte pelo Rio Nyong), até o leste da África do Sul, compreendendo a oeste o arquipélago de São Tomé e Príncipe e a leste, até Moçambique. Essa vasta extensão territorial forneceu a maior parte dos africanos que foram trazidos para o Brasil. Entre congos, angolas e moçambiques, vieram para o continente americano: angolas, caçanjes e benguelas. 26 27 Com relação à religião, é importante destacar, como assinala Vagner Gonçalves da Silva (2005, p. 29) [...] os contatos ente as várias nações africanas e entre estas e os bran- cos já eram frequentes em períodos anteriores à deportação dos grupos negros para o Brasil. Devido às relações de aliança ou de dominação entre os reinos africanos, era comum que cultos e divindades se di- fundissem de uma região para outra, como a adoração pelos iorubás de alguns deuses do Daomé e vice-versa. O islamismo, proveniente da África Oriental, também já havia se estendido até a costa ocidental, e o colonialismo europeu, a partir do século XVIII, intensificou o contato re- ligioso entre brancos e negros. Pela ação da catequese religiosa, muitas tradições étnicas foram transformadas. Vimos, portanto, nessa Unidade, que as religiões tradicionais africanas, na sua diversidade de crenças e ritos, possuem elementos estruturantes que podem ser identificados: a oralidade na transmissão dos conhecimentos, o aspecto iniciático (que confere graus distintos de participação no culto), o politeísmo, o culto aos ancestrais (por vezes divinizados), a presença do totemismo, do animismo e do fetichismo. Vimos, ainda, que os aspectos geográficos e linguísticos não impedem os diálogos culturais entre os grupos e a permuta de símbolos e ritos. 27 UNIDADE Religiões “Tradicionais” Africanas Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Os Mestres Loucos, 1995 https://youtu.be/z2jG3rQ0MNA Leitura Os Mestres Loucos https://goo.gl/yKnp De Africano a Afro-Brasileiro: Etnia, Identidade, Religião PRANDI, Reginaldo. De Africano a Afro-Brasileiro: Etnia, Identidade, Religião. Revista Usp, São Paulo, N.46, Junho/Agosto 2000. P. 52-65. Resumo: O artigo trata da presença negro-africana no Brasil, ressaltando suas origens bantu e sudanesas. https://goo.gl/3W1y5Y História Geral da África - V: África do Século XVI ao XVIII OGOT, Allan Bethwell (ed.). História geral da África, V: África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010. Resumo: Esse volume da coleção História geral da África, descreve e analisa os principais povos que compõe o continente africano, realçando aspectos históricos, econômicos e sociais. Os capítulos 15 (Do delta do Níger aos Camarões: os fon e os iorubas, p. 519), 19 (O Reino do Congo e seus vizinhos, p. 647) e 29 (A história das sociedades africanas de 1500 a 1800, p. 1057) são especialmente bons para aprofundar os conhecimentos sobre alguns grupos que foram atraídos para o Brasil durante o período colonial brasileiro. https://goo.gl/W5sdpv Traços do Proprium Cultural Africano e sua relação com o Sagrado CANTARELA, Antonio, Geraldo. Traços do proprium Cultural Africano e sua relação com o Sagrado. Horizonte: revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, 2013, Vol.11(29), pp.88-108. Resumo: O artigo reflete sobre o princípio do “sagrado” e sua relação com os demais aspectos das culturas africanas. https://goo.gl/iRi5EY 28 29 Referências ALAGOA, E.J. Do delta do Níger aos Camarões: os fon e os iorubas. In: OGOT, Bethwell Allan. História geral da África, V: África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010. p. 509. BARRIO, Ángel B. Espina. Freud e Lévi-Strauss: Influências, Contribuições e Insuficiências das Antropologias Dinâmica e Estrutural. Recife: Fundação Joaquim Nabuco em 2008. BASCOM, William. Ifá Divination: communication between gods and men in West Africa. Bloomington and Londres: Indiana University Press, 1991. DÉSVEAUX, E. Totémisme. In: BONTE, Pierre; IZARD, Michael. Dictionnaire de l’ethnologie et de l’anthropologie. Paris: Puf, 2013, 3ª ed. EVANS-PRITCHARD, E. E. 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