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Quando em 2003 nasceu AACADE (Associação de apoio as comunidades afrodescendentes) na Paraíba eram conhecidas umas cinco ou seis comunidades negras rurais, entre elas Caiana dos Crioulos, Serra do Talhado, Pedra D´Agua. Em 2004, após a promulgação do decreto do governo Lula n° 4.887, a FCP (Fundação Cultural Palmares) emite as primeiras duas certidões de auto reconhecimento para as comunidades quilombolas de Serra do Talhado e Matão. No mesmo ano AACADE, em conjunto com outras entidades envolvidas, organiza o primeiro encontro das comunidades negras com a participação de 28 representantes de 14 quilombos. Na ocasião é criada a Comissão estadual e em seguida registrada o� cialmente como Coordenação Estadual das comunidades negras e quilombolas, CECNEQ. É o começo de um longo caminho que levará em dez anos a identi� cação na Paraíba de 39 (trinta e nove) comunidades quilombolas, 36 (trinta e seis) das quais tendo recebido a certidão de auto reconhecimento pela FCP. O presente livro conta um pouco desta história visando mostrar como a colaboração entre entidades de voluntariado e órgãos públicos, quando trabalham em sinergia e com os mesmos objetivos, pode levar a resultados apreciáveis e interessantes em prol das comunidades. Estrutura do livro Trata-se do primeiro estudo exaustivo sobre a realidade quilombola da Paraíba com enfoque na ação do INCRA e de duas entidades – AACADE e CECNEQ – atuantes com as comunidades quilombolas do Estado. Dois artigos introdutivos oferecem uma panorâmica sobre a questão quilombola no Brasil e na Paraíba. Seis capítulos são baseados na experiência de campo e nos trabalhos de 5 antropólogos que realizaram os Relatórios Técnicos de Identi� cação e Delimitação em 8 comunidades da Paraíba por conta do INCRA, órgão responsável pelos processos de titulação das terras quilombolas. Um artigo analisa a importância do acesso a direitos e parcerias para o desenvolvimento das comunidades. No capitulo conclusivo o antropólogo italiano Roberto Malighetti, baseando-se na sua experiência de trabalho de campo realizado no quilombo do Frechal (Maranhão), propõe uma re� exão sobre os valores paradigmáticos e sobre nacionais que implicam com os padrões da resistência e das novas práticas de cidadania do povo quilombola para os seus direitos. O livro termina com um levantamento bibliográ� co dos trabalhos acadêmicos sobre as comunidades quilombolas da Paraíba. QUILOMBOS a realidade de hoje e os desafi os para o futuro DA PARAÍBA Alberto Banal Maria Ester Pereira Fortes (organizadores) Q U ILO M B O S D A PA R A ÍB A a realid ad e d e h o je e o s d esafi o s p ara o fu tu ro A lb erto B an al M aria E ster P ereira Fo rtes (o rg an izad o res) Os trabalhos desta coletânea permitem-nos observar como as comunidades quilombolas em processo de luta e de mobilização elaboram uma percepção de justiça que passa necessariamente pela efetivação de seus direitos territoriais. O processo de emergência identitária é indissociável de semelhante percepção. As ligações com os territórios expropriados e sob ameaças de usurpação são mantidas e renovadas através de estratégias cotidianas de resistência, que pre� guram uma situação social de efetivação de suas práticas de uso comum dos recursos naturais, mesmo em situações em que a desagregação das grandes plantações propiciou condições para a emergência de uma autonomia produtiva e de uma existência individualizante. Pode-se falar de uma “paisagem de resistência” ao se elencar o repertório de práticas mobilizatórias e de discursos que se contrapõem ao ideário dos movimentos quilombolas. Eis uma questão relevante que insere esta coletânea num amplo debate, revelando a atualidade deste livro. Alfredo Wagner Berno de Almeida. “ “ 2013 QUILOMBOS DA PARAÍBA Alberto Banal Maria Ester Pereira Fortes (organizadores) QUILOMBOS DA PARAÍBA A realidade de hoje e os desafios para o futuro João Pessoa 2013 Copyright 2013 by os autores Capa: Alberto Banal Diagramação: Imprell Editora Fotografia da capa: Alberto Banal Dona Lurdes, Quilombo Grilo Fotografias: Alberto Banal Revisão: Q6 Quilombos da Paraíba: a realidade de hoje e os desafios para o futuro / Alberto Banal, Maria Ester Pereira Fortes (organizadores).- João Pessoa: Imprell Gráfica e Editora, 2013. 312p. ISBN: 978-85-8332-004-3 1. Quilombos - Paraíba. 2. Comunidades quilombolas - Paraíba. 3. Quilombolas - direitos. I. Banal, Alberto. II. Fortes, Maria Ester Pereira. CDU: 94(81).027(813.3) Agradecimentos Este livro que desde sua concepção teve o carinho e a dedicação primorosa de Alberto, é fruto do mutirão de muitas mãos solidárias. Está povoado de personagens e histórias, anônimas na maioria das vezes mas extremamente expressivas. Foi graças aos quilombolas que foi possível dar vida a este trabalho que pretende ser uma documentação, um relato, um estudo das problemáticas que envolvem os muitos quilombos que pontilham a Paraíba. Quer ser também uma provocação. Ao longo destes últimos dez anos, rostos, personagens, histórias outrora ignoradas ou desconhecidas foram tomando forma. Das sombras da história oficial foram aparecendo olhos, bocas, pensamentos feitos palavras dos quilombolas. Eles são os autores desta obra que permitiram que pesquisadores e amigos de caminhada pudessem fixar no papel aquilo que estava talvez se perdendo. Não podemos deixar de mencionar pessoas como Bidia, Geilsa, Valquíria, Leonilda, seu Miguel (em memória), Zé Paulo, Lourdes, Sebastião, Zé Pequeno, Gilmar, Ana, Geraldo, Eliane, e por meio destes todos os outros quilombolas, entre eles o patriarca seu Domingos, que nos introduziram nos quilombos e nos permitiram de pisar este chão fecundo e misterioso da memória e da ancestralidade. Quando iniciamos esta jornada com os quilombos não estava na nossa cabeça para onde levaria tudo isto: era um mundão desconhecido que estava se descortinando e foram muitas as surpresas, belas surpresas ao longo destes anos. A vida quilombola se tornou mídia, se tornou exposição (várias exposições) e agora se torna livro, livro da vida quilombola, do povo que está vivo e quer viver. Nosso carinho, nosso apreço e nosso agradecimento aos quilombolas da Paraíba e a quantos nos ajudaram a conhecer melhor esta realidade. Luís Zadra e Francimar Fernandes de Sousa - AACADE 7 Sumário Prefácio: Mobilizações étnicas não-tardias ........................................9 Alfredo Wagner Berno de Almeida “A Via Crucis” das comunidades quilombolas no Brasil e na Paraíba ....................................................................................................18 Alberto Banal Comunidades quilombolas na Paraíba ............................................. 44 Maria Ester Pereira Fortes – Fernanda Lucchesi A comunidade quilombola de Matão ............................................... 64 Rodrigo de Azeredo Grünewald A Comunidade Urbana de Serra do Talhado ....................................82 Maria Ester Pereira Fortes Nós somos outros: apontamentos em torno do exercício da pesquisa antropológica nos quilombos de Pedra D’água e Vaca Morta/PB .............................................................................................. 106 Rogério Humberto Zeferino Nascimento Grilo: das memórias de assujeitado ao direito quilombola .........128 Mércia Rejane Rangel Batista Comunidade Negra de Paratibe - De quilombo a bairro e de bairro a quilombo: 200 anos de posse da terra .........................................174 Maria Ronizia P. Gonçalves O quilombo de Pitombeira: terra, trabalho e esperança ............ 202 Rodrigo de Azeredo Grünewald Acesso a direitos e parceriastransformam paisagem quilombola do brejo paraibano ................................................................................... 226 Rosa Lima Peralta - Maristela Oliveira de Andrade 8 Exceder as Exceções. Práticas Quilombolas de Novas Cidadanias .................................................................................... 250 Roberto Malighetti Os quilombos da Paraíba nos trabalhos acadêmicos – Um levantamento bibliográfico .............................................................. 282 Alberto Banal - Francinete Fernandes de Sousa - Marco Antônio de Oliveira Tessarotto Sobre os autores ................................................................................. 306 Siglas ......................................................................................................312 Comunidade Senhor do Bonfim Munícipio de Areia Quilombos de Areia de Verão e São Pedro dos Migueis Mobilizações étnicas não-tardias Alfredo Wagner Berno de Almeida 12 Os trabalhos de pesquisa que compõem esta coletânea constatam, sem nenhuma surpresa, das tantas que refletem atualmente a dramática situação das “comunidades remanescentes de quilombos”, que, completados 25 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988, neste outubro de 2013, há uma tendência absolutamente decrescente das titulações das terras destas comunidades e o menosprezo total dos sucessivos governos pela aplicação de medidas inerentes às políticas de reconhecimento e titulação iniciadas com a redemocratização. Neste quarto de século, emitir a certidão de identificação das referidas comunidades se tornou mais complicado. Obstáculos burocráticos sucessivos tem prolongado em demasia e até inibido o registro do autoreconhecimento. Titular suas terras se tornou quase que impossível, mediante a inocuidade da ação oficial e as repetidas concessões governamentais aos interesses voltados para a reestruturação formal do mercado de terras em expansão, diretamente vinculados aos agronegócios. Além disto, no atual governo, com a implementação de medidas desenvolvimentistas, se agigantam os condicionantes ao uso efetivo dos recursos naturais em terras tituladas em nome das comunidades quilombolas1. Verifica-se uma prática oficiosa de repascer-se em um modus operandi retrógrado de recusa da titulação definitiva das terras das comunidades quilombolas, evidenciando uma prática de dominação intimamente ligada à ideologia da concentração fundiária como sinônimo de “progresso”, numa economia agrário- exportadora, apoiada na monocultura, na concentração fundiária e em formas de imobilização da força de trabalho – características das “novas plantations” e da circulação de commodities, que remetem, de certo modo, à sociedade colonial. Assim, até setembro de 2012, ou seja, em 24 anos, contados desde a Constituição de 1988, foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares apenas 1.826 comunidades quilombolas das quase cinco mil reivindicadas pelos movimentos sociais. Por outro lado, até janeiro de 2013, haviam sido abertos pelos órgãos fundiários 1 A ilustração maior desta diretriz pode ser verificada com o Decreto presidencial de 29 de setembro de 2011, relativo ao Território Quilombola Brejo dos Crioulos, localizado no Norte de Minas Gerais, que converte os direitos territoriais das comunidades remanescentes de quilombos em direitos de “superficiários”, do mesmo modo que restringe suas terras ao solo, juridicamente separado do subsolo, o qual, consoante menção explícita do Art. 4º, estaria disponível prioritariamente à exploração de empresas petrolíferas, de gás e de mineração. 13 oficiais somente 1.227 processos e apenas 156 editais de Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID). Os resultados relativos à titulação das terras das comunidades quilombolas revelam-se, portanto, inexpressivos. Até o presente foram emitidos pelos órgãos fundiários oficiais (INCRA, ITERPA, ITERMA, ITESP, INTERBA) 138 títulos correspondentes a 995.000 ha. Este resultado corresponde aos 25 anos de instituição pela CF do Art.68 do ADCT. Em outras palavras a capacidade operacional da burocracia dos órgãos fundiários procede a conta-gotas e, sem dirimir os conflitos, traz a incerteza da reprodução física e cultural às comunidades quilombolas. Em outras palavras não se permite às comunidades qualquer projeção sobre seu futuro próximo, gerando um clima de tensões sociais agudizadas. Haja vista que o total de hectares proclamado pelos movimentos quilombolas em suas pautas reivindicatórias encontra-se acima de 20 milhões de hectares. As dificuldades de reconhecimento e titulação mostram-se agravadas pela tendência ascensional dos conflitos sociais, atingindo as comunidades quilombolas. A violência tornou-se uma constante nas ocorrências de conflitos registradas nos últimos três anos em pelo menos 14 unidades da federação. O mais recente destes trágicos episódios concerne ao assassinato a facadas do líder quilombola Sr. Teodoro Lalor de Lima, na região portuária central de Belém (PA), em 19 de agosto de 2013, no momento em que desembarcava na capital portando uma petição a ser entregue ao Ministério Público Federal sobre a ação violenta de grandes proprietários de terras na Ilha de Marajó2. Estudiosos que interpretam tal processo chamam a atenção para os assassinatos e para a constante criminalização dos líderes das comunidades quilombolas, como tentativas de fragilizar os movimentos sociais, deixando o campo livre para a flexibilização dos direitos territoriais das comunidades tradicionais, considerada imprescindível pelas forças ruralistas para a expansão das monoculturas de cana de açúcar, soja, milho, pinus, eucalipto, acácia e dendê. As terras tradicionalmente ocupadas pelas 2 Para maiores detalhes sobre esta ocorrência de conflito consulte-se: Rodrigues, Eliana Teles e Acevedo Marin, R. – “Quilombolas do Rio Arari e Gurupá na mira de ações e ameaças de fazendeiro de Cachoeira do Arari” in Acevedo Marin, R. ; Almeida, A.W.B. - Quilombolas: reivindicações e judicialização dos conflitos. Manaus.PNCSA.UEA.2012 pp.49-61 14 comunidades tradicionais e notadamente pelos quilombolas ao serem mantidas sob regime de uso comum dos recursos naturais contrariam a regra básica do mercado de terras, porquanto não são passíveis de atos de compra e venda e não fazem parte dos diferentes circuitos mercantis de troca. O título definitivo das terras é emitido em nome das associações comunitárias e não em nome de indivíduos, condicionando seu uso aos interesses comuns das unidades familiares e impedindo sua “livre” aquisição ou venda. Exatamente neste ponto é que os interesses de mercado colidem com os movimentos quilombolas seja em audiências no legislativo, no Supremo Tribunal Federal, com ações de inconstitucionalidade, ou em órgãos do executivo. Nos termos desta coletânea que ora prefaciamos pode-se considerar discutível a afirmação usual de que o Estado da Paraíba teria chegado tardiamente às mobilizações e lutas pelos direitos quilombolas. A noção de tardio ao pressupor temporalmente um dado começo, em que os agentes sociais revelam autoconsciência e capacidade de mobilização política, poderia ser revista. Edward Said rompe com esta sequencia necessariamente temporal e propõe que se pense o tardio consoante uma concomitância, isto é, como “fazendo parte” e ao mesmo tempo como “estando à parte” do presente3 (Said, 2009:44). Com esta noção pode-se interpretar que, de tal modo mostra-se monótona a ação oficial, procrastinando as certificações e titulações, e tamanhas tem sido as dificuldades dos diferentes movimentos quilombolas de orquestrarem uma ação conjunta, que é possível asseverar que estas lutas estariam num “estágio” aproximado. Não obstante os avanços no processo de autoconsciência, que configuram novas realidades localizadas e novas maneiras de percebê- las, abrangendo não apenas a Paraíba, mas também o Ceará e o Amazonastem-se também uma multiplicação das formas organizativas diferenciadas, que mostram uma cultura de resistência em consolidação. Deste modo o argumento de que a Paraíba teria chegado tarde nas lutas pelos direitos territoriais dos quilombolas, pode ser relativizado, sobretudo quando se constata um quadro de atomização das organizações do movimento quilombola, com sua capacidade de mobilização relativamente comprometida. As 3 Cf.Said, Edward W. – Estilo Tardio. São Paulo. Companhia das Letras .2009 múltiplas formas organizativas, que convergem diferentemente para a CONAQ (Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), estão a requerer maior acuro na construção social de critérios de representatividade e na composição de pautas reivindicatórias capazes de assegurar grandes mobilizações políticas. Este é um desafio constante numa quadra em que a CONAQ estaria vivenciando uma transição, caracterizada pela passagem de uma entidade de militantes para uma entidade de massas, com representação ampla e diferenciada, de comunidades quilombolas heterogeneamente constituídas em âmbito nacional. A propósito, como lembram os autores desta coletânea, na Paraíba já foram identificadas 39 comunidades quilombolas, sendo 36 certificadas pela FCP. Não há, todavia, registro de titulação, o que direciona as interpretações para o exame da força dos “velhos” padrões de relação política apoiados nos agronegócios através das grandes plantações e da concentração fundiária. As situações sociais quilombolas tem se constituído em objeto de reflexão de pesquisadores, vinculados às universidades, aos órgãos fundiários oficiais, às associações voluntárias da sociedade civil e aos movimentos sociais. Os debates teóricos balizam os procedimentos operacionais, mas de modo algum seria possível falar em “antropologia aplicada”. Não há conceitos e modelos a serem testados nem tão pouco exercícios de demonstração de eficácia de esquemas explicativos pré-elaborados. A oposição rural/urbano não é tomada como dualismo geográfico e sim como um dualismo conceitual, que transcende às pré-classificações de “espaços físicos”. O significado de “quilombo urbano” estaria marcado por esta dinâmica absolutamente teórica. Estas distinções e cortes permitem, pois, aproximações, quanto ao gênero dos trabalhos em questão e aos seus propósitos, designando-os como “artigos”. Nos oito artigos, referidos a situações empiricamente observáveis na Paraíba, que compõem a presente coletânea, observa-se que pelo menos cinco dentre eles foram construídos com dados e informações extraídos de Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID). Um dentre eles remete simultaneamente a trabalho acadêmico. Um sexto concerne a dados obtidos em trabalho de campo para elaboração de dissertação de mestrado, enquanto o sétimo refere-se a exercício de pesquisa acadêmica e o 16 derradeiro refere-se a reflexões produzidas a partir da experiência de atividades de antropólogas como servidoras do INCRA. A reflexidade, descrevendo as relações de pesquisa e de entrevista, definidoras do próprio trabalho antropológico, permite aproximá- los e conferir uma certa unidade à coletânea. Apenas um artigo não se refere à Paraíba, com características que combinam noções teóricas com exercício descritivo, e diz respeito a uma conhecida situação histórica de quilombo do Estado do Maranhão, mais exatamente a de Frechal, que foi a primeira área selecionada pelo Projeto Vida de Negro (PVN), da SMDDH e do Centro de Cultura Negra, em 1989, para integrar pauta reivindicatória de titulação e que em 1992 tornou-se um quilombo reconhecido como Reserva Extrativista (RESEX). Os trabalhos desta coletânea permitem-nos observar como as comunidades quilombolas em processo de luta e de mobilização elaboram uma percepção de justiça que passa necessariamente pela efetivação de seus direitos territoriais. O processo de emergência identitária é indissociável de semelhante percepção. As ligações com os territórios expropriados e sob ameaças de usurpação são mantidas e renovadas através de estratégias cotidianas de resistência, que prefiguram uma situação social de efetivação de suas práticas de uso comum dos recursos naturais, mesmo em situações em que a desagregação das grandes plantações propiciou condições para a emergência de uma autonomia produtiva e de uma existência individualizante. Pode-se falar de uma “paisagem de resistência” ao se elencar o repertório de práticas mobilizatórias e de discursos que se contrapõem ao ideário dos movimentos quilombolas. Eis uma questão relevante que insere esta coletânea num amplo debate, revelando a atualidade deste livro. A via crucis das comunidades quilombolas no Brasil e na Paraíba Seu Domingos - Quilombo os Rufinos Município de Pombal Alberto Banal 19 20 No dia 18 de abril de 2012 o ministro Cezar Peluso, presidente do STF, proferiu seu voto pela procedência da ação da ADI 3239, ajuizada pelo DEM contra o Decreto 4.887/2003 e, portanto, pela inconstitucionalidade do decreto questionado. De acordo com o ministro, teria sido melhor que o Congresso Nacional tivesse editado uma lei, em vez de o Poder Executivo editar uma série de normas sobre o assunto, muitas vezes umas revogando as outras, configurando uma verdadeira “legislação perversa”. Por consequência seria melhor acabar com o decreto porque na realidade não só não ajudou a causa quilombola, mas, pelo contrário, transformou o caminho para os quilombolas obterem a titulação de suas terras em “uma verdadeira via crucis”.1 Melhor deixar os quilombolas ao seu destino na espera de o Legislativo aprovar uma lei aplicativa do artigo 68 do Ato das Disposições Constitutivas Transitórias da Constituição de 1988 que diz: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Sabemos que os efeitos da lei foram, por muito tempo, inviabilizados por falta de decretos aplicativos, mas também pela oposição e entraves colocados por várias forças politicas ligadas aos interesses dos grandes latifundiários, grileiros, mineradoras, entre outros. Na década de 1990, houve um avanço na compreensão da questão quilombola, graças às novas teorizações da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), O termo ‘quilombo’ deixa de ser considerado unicamente como uma categoria histórica ou uma definição jurídico-formal, para se transformar nas mãos de centenas de comunidades rurais e urbanas, em instrumento de luta pelo reconhecimento de direitos territoriais (TRECCANI, 2006 pag. 14). Vale refletir sobre afirmações do professor e advogado Dimas Salustiano da Silva: Sendo os quilombos não apenas resquícios do passado, em relação aos quais deve ser prestada homenagem à memória 1 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=205330, acesso em 23 de junho de 2012) 21 dos heróis e mortos na luta contra a escravidão, é precípuo que sejam encarados como um desafio do presente, em respeito ás centenas de comunidades negras espalhadas pelo Brasil privadas do legítimo acesso à terra e para as quais a liberdade ainda não chegou. Mas também como compromisso com o futuro, uma vez que representam a mais importante parcela formadora do processo civilizatório nacional, e suas futuras gerações não sobreviverão em suas terras, mesmo porque nunca conheceram outro chão. Negar-lhes esse direito é crime de lesa pátria. (NUER, 1997, p.57). Neste contexto, para favorecer a aplicação do artigo 68 da Constituição, se tornou fundamental o decreto do governo Lula n° 4.887 de 20 de novembro de 2003. No artigo 2° se afirma: Consideram-se remanescentes das comunidades de quilombo os grupos étnico-raciais segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidadenegra relacionada a opressão histórica sofrida. E mais: Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade (2.1). São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural (2.2). O Decreto, além de garantir o direito à autodefinição como único critério para identificação das comunidades quilombolas, determinou a responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA/INCRA em fazer cumprir as determinações constitucionais no que diz respeito às áreas de quilombos no Brasil: Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a identificação, reconhecimento, 22 delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades de quilombos (2.3). O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação... (13.2) Em aplicação do Decreto o INCRA emana a Instrução Normativa nº 16/2004 para regulamentar o processo de titulação das terras de quilombo. A exigência mais importante é a redação de um relatório conciso de identificação do território baseado num levantamento geral de informações históricas, agronômicas, geográficas e cartográficas e contendo um cadastramento das famílias quilombolas, além de um levantamento da cadeia dominial. A reação para impedir a aplicação do decreto não se fez esperar. Alegando a inconstitucionalidade do decreto, o PFL (atual Democratas), no final de junho de 2004, ingressou no STF com a ADI nº 3239, com o objetivo de sustar seus efeitos jurídicos. Em sua ação, o partido alega que ele não tem uma base legal que o sustente e questiona as principais disposições do decreto, dentre elas o critério para a identificação de uma comunidade quilombola, o critério para a delimitação do território a ser titulado e a necessidade de desapropriação de terras particulares, de titularidade de não-quilombolas, que estiverem dentro dos territórios a serem titulados (TELLES 2004). Não tem duvidas sobre as consequências no caso a ADIN fosse julgada procedente: qualquer tutela dos direitos dos quilombolas seria impossibilitada, pondo em risco a sua sobrevivência. O processo está ainda em andamento no STF, no entanto foram muitos os juristas que se pronunciaram contra o pedido dos Democratas. Entre eles o procurador da República Daniel Sarmento: o qual, entre outras considerações afirma: É constitucional a definição de terras ocupadas por remanescentes de quilombo constante no Decreto 4.887/03. A definição estabelecida pelo Decreto leva em consideração a finalidade essencial do art. 68 do ADCT – permitir que as comunidades quilombolas continuem existindo e vivendo 23 de acordo com seus costumes e tradições – e o sistema constitucional brasileiro, que impõe uma leitura do referido dispositivo constitucional que se harmonize com o art. 215 da Lei Maior, que trata da tutela de direitos culturais. Tal conceito, ademais, está em perfeita consonância com a Convenção 169 da OIT (SARMENTO, 2008 pag. 40). Frente a ADIN 3239, o INCRA se apressa a elaborar uma nova normativa, n° 20/2005, baseada em critérios mais rígidos e impondo a obrigatoriedade de um antropólogo para a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) com a consequência que o processo de identificação e delimitação se tornou muito mais complicado. Não é por nada que entre 19 de setembro de 2005 e 30 de setembro de 2008 foram concluídos e publicados no Diário Oficial da União somente 50 RTIDs (CHASIN, 2009). No entanto se multiplicaram as ações dos contrários à questão quilombola. Ao longo de 2007 a mídia – televisão, revistas e jornais em nível nacional – publicou inúmeras matérias acusando o Governo federal de reconhecer falsos quilombos agindo contra os direitos constitucionais no que diz respeito à propriedade privada. Tratou-se de um poderoso coral polifônico a sustentação do projeto de Decreto Legislativo (nº 44/2007) apresentado pelo deputado federal Valdir Colatto (PMDB-SC) contra o decreto 4.887/2003. Em seguida a rejeição da proposta considerada inconstitucional, o mesmo deputado se apressou a apresentar um novo projeto de Lei (nº 3.654/2008) visando dar uma interpretação restritiva do artigo 68 da ADCT. A pressão da mídia e das forças contrárias à questão quilombola teve efeito sobre a ação do Governo Federal que, em julho de 2007, constituiu um grupo interministerial com o intuito de estudar e modificar o Decreto 4.887 e a IN n° 20/2005 do INCRA no que diz respeito à demarcação das terras quilombolas. Com o texto já pronto e definido a Advocacia Geral da União (AGU) decidiu para uma consulta pública com os representantes das comunidades quilombolas. O evento aconteceu entre os dias 15 e 17 de abril de 2008 em Luziânia (GO) e contou com a presença de 250 quilombolas. Difícil afirmar que foi uma verdadeira consulta pública porque não foi dada nenhuma possibilidade de negociar 24 e propor modificações. Com efeito, o Governo ficou surdo às sugestões dos quilombolas e manteve quase na íntegra as suas propostas de alteração em sentido restritivo das normas do INCRA. Por consequência o próprio INCRA passou a emitir novas normas que levaram a um verdadeiro retrocesso à regulamentação então vigente.2 A IN n° 49/2008 do INCRA estabeleceu uma série de novos empecilhos à elaboração e conclusão dos relatórios... De acordo com a nova norma, o relatório deverá conter, dentre outras coisas, uma introdução apontando o referencial teórico e metodologia utilizados e uma lista de itens obrigatórios, como um levantamento de dados sobre as taxas de natalidade e mortalidade do grupo; uma identificação e caracterização dos sinais diacríticos da identidade étnica da comunidade; um mapeamento das redes de reciprocidade intra e extra-territoriais, além da descrição das formas de representação política da comunidade; só para citar alguns poucos exemplos. Tais informações podem ser de grande relevância para uma pesquisa científica, de longo prazo, sobre o grupo em questão, mas não devem estar atreladas ao processo de titulação do território. As consequências dessa mudança serão maiores gastos de dinheiro público e uma demora incalculável na conclusão dos processos. Ou, o que é ainda mais provável, a paralisação no andamento dos poucos procedimentos que já tiveram seu RTID iniciado (CHASIN – PERUTTI, 2009, p. 10-11). De acordo com Chasin e Perutti, apesar da alegação, por parte do governo federal, de que a nova norma garantiu a sustentabilidade do Decreto n.º 4.887/2003, o fato é que ela impôs uma série de restrições e entraves ao andamento dos processos de titulação que, na prática, significam retrocessos e dificultam ainda mais a (já lenta) efetivação do direito das comunidades quilombolas à titulação de suas terras (CHASIN – PERUTTI, 2009, p. 16). 2 A participação dos representantes do Governo na elaboração é documentada e criticada pelos funcionários do INCRA: “Esta IN contou com a participação efetiva de setores do Governo que demonstraram publicamente ser contra o processo de regularização, o que culminou com uma norma que burocratiza e mesmo obstrui a celeridade dos processos de regularização” (MOÇÃO DE REPÚDIO, 2009 em http://www.sintsefba.org.br/admin/ Uploads/wwwsint_web-rel_plenaria_condsef_24-10-2009.pdf, acesso em 23 de março de 2012) 25 No entanto a mesma Fundação Cultural Palmares tinha emitido em novembro de 2007 a Portaria n° 98 que dificultava ulteriormente o processo para a elaboração dos documentos para obter a certificação das novas comunidades no cadastro da entidade. Para entender o que significa a pressão das forças contrárias à questão quilombola vale a pena ver o que aconteceu no INCRA em 2009. Pressionadopelas sugestões dos antropólogos do setor quilombola o INCRA publicou uma nova normativa – a IN n° 56/2009 – com o intuito de remover os maiores entraves da IN 49/2008. A nova IN nem chegou a ser publicada porque, no prazo de 13 dias foi revogada e substituída com a republicação integral da antiga norma 49/2008 que passou a se chamar IN nº 57/2009.3 Assim podemos afirmar que o quadro atual é bastante desconfortável e pouco propicio com às comunidades quilombolas. Na tentativa de limitar contestações e ações jurídicas, criou-se um conjunto de disposições e regras que na pratica dificultam a aplicação do Decreto 3.887/03 e que são contrárias aos direitos dos quilombolas assegurados pelo próprio decreto. Entre outros se manifestou com preocupação também a 6° Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal a qual abriu um Inquérito Civil Público pedindo ao INCRA a mudança de alguns procedimentos: ... Considerando que o quadro geral relativo às políticas públicas voltadas ao atendimento da população quilombola, em especial da sua garantia do direito a terra, é alarmante, e denota grave e sistemática violação a direitos fundamentais positivados na Constituição federal e em tratados internacionais de que o Brasil é parte...(pag. 2).4 3 A reação negativa dos funcionários do INCRA se manifestou através da “Carta moção de repúdio ao governo pelo descaso apresentado em relação à luta pela regularização de territórios quilombolas”, 23 de outubro de 2009. Nela se afirma: “O Presidente do INCRA... devido à pressão de setores que são favoráveis a manutenção dos entraves na política de regularização, revogou a IN 56 e republicou a IN N.º 49 com um novo número, agora IN N.º 57. Assim sendo, nós funcionários da regularização quilombola do INCRA, viemos protestar e pedir um basta à situação que enfrentamos”. http://www.sintsefba.org.br/admin/Uploads/ wwwsint_web-rel_plenaria_condsef_24-10-2009.pdf, acesso em 23 março 2012. 4 Ministério Público Federal, 6° CCR – Portaria de Instauração de Instauração de Inquérito Civil Público, Brasília, 18 de novembro de 2009, disponível emhttp://6ccr.pgr.mpf.gov.br/ destaques-do-site/ICP_Quilombos.pdf, acesso em 23 de março de 2012. 26 Mais fácil falar que fazer O caminho para a titulação das terras é incrivelmente cheio de dificuldades e armadilhas jurídicas (quadro 1). Quadro 1: as inúmeras fase do auto-reconhecimento a titulação da terra das comunidades quilombolas Solicitação de Certidão de Auto- Reconhecimento para a FCP Solicitação de Certidão de Auto- Reconhecimento para a FCP Elaboração do RTID contendo as seguintes peças: a) relatório antropológico; b) relatório agronômico e ambiental; c) levantamento fundiário do território delimitado;; d) planta e memorial descritivo; e) cadastro das famílias da comunidade; f) verificação de sobreposição de interesses; g) parecer conclusivo da área técnica e jurídica Publicação do RTID por dois dias consecutivos no DOE edois dias consecutivos no DOU Consulta aos seguintes órgãos: I - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN; II - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, e seu correspondente na Administração Estadual; III - Secretaria do Patrimônio da União - SPU, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI; V - Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional - CDN; VI - Fundação Cultural Palmares; VII - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, e seu correspondente na Administração Estadual; e VIII - Serviço Florestal Brasileiro - SFB. notificação dos proprietários dos imóveis e ocupantes não quilombolas incidentes no território delimitado e dos confinantes do mesmo não há incidência de imóvel particular no território prazo de 90 dias para interposição de contestação por parte de qualquer interessado não há contestação contestação deferida indeferida prazo de 30 dias para interposicão de recurso deferidaindeferido portaria da presidência do Incra reconhecendo os limites do território quilombola concorda com RTIDdiscorda do RTID câmara de conciliação há incidência de imóvel particular no território decreto desapropriação por interesse social instauração de procedimento desapropriatório expedição de título de propriedade em favor da comunidade quilombola prazo de 30 dias para que os órgão opinem sobre o RTID 27 A demonstração disso está nos dados contidos no “QUADRO ATUAL DA POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO DE TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS NO INCRA” (Atualizado em 11/06/2013). De acordo com este quadro, frente a uma realidade de 2.278 comunidades certificadas pela FCP5, os processos abertos, atuados, protocolados e numerados são 1.264 (todas as Superintendências Regionais, à exceção de Roraima, Marabá-PA e Acre). A prossecução do processo prevê a produção de um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID. Até hoje, 11 de junho de 2013, foram publicados 157 Editais de RTIDs, totalizando 1.972.354.0965 hectares em benefício de 23.624 famílias (12,42% de sucesso). A fase sucessiva, que consiste na publicação no Diário Oficial da União (DOU) da Portaria de Reconhecimento do Território, produziu 73 Portarias, totalizando 302.885.1252 hectares reconhecidos em benefício de 6.552 famílias. No caso da área quilombola estar localizada em terras de domínio particular é necessário que o Presidente da República edite um Decreto de Desapropriação por Interesse Social de todo o território. Na atualidade existem 53 Decretos publicados, desapropriando 515.456,0822 ha em benefício de 6.080 famílias. A última fase consiste na emissão da titulação. Na regularização fundiária de quilombo, esta é a última etapa do processo e ocorre após os procedimentos de desintrusão do território. O título é coletivo, pró-indiviso e em nome das associações que legalmente representam as comunidades quilombolas. Não há ônus financeiro para as comunidades e obriga-se a inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade no título, o qual deverá ser registrado no Serviço Registral da Comarca de localização do território. Devido às diferenças de normatização, alguns títulos emitidos antes de 2004, 5 Site da FCP, atualizado em 26/08/2013. 28 pela Fundação Cultural Palmares, ainda se encontram na fase de desintrusão (INCRA, 2013). De acordo com os últimos dados atualizados em 29/01/2013foram emitidos 139 títulos, regularizando 995.009,0875 hectares em benefício de 124 territórios, 207 comunidades e 12.906 famílias quilombolas, assim distribuídos: - De 1995 a 2002 foram expedidos 45 títulos regularizando 775.321,1193 hectares em benefício de 42 territórios, 90 comunidades e 6.771 famílias quilombolas. Estes títulos foram expedidos por: FCP (13), FCP/INTERBA/CDA-BA (2), INCRA (6), ITERPA (16), ITERMA (4), ITESP (3) e SEHAF-RJ (1). Destes, 2 títulos do ITERPA foram expedidos a partir de parceria (técnica e/ou financeira) com o INCRA/MDA. - De 2003 a 2010 foram expedidos 75 títulos regularizando 212.614,8680 hectares em benefício de 66 territórios, 99 comunidades e 5.147 famílias quilombolas. Estes títulos foram expedidos por: INCRA (15), INTERPI/INCRA (5), SPU (2), ITERPA (30), ITERMA (19), ITESP (3) e IDATERRA-MS (1). Destes, 16 títulos do ITERPA e 14 do ITERMA foram expedidos a partir de parceria (técnica e/ou financeira) com o INCRA/MDA. – De 2011 a 2012 foram expedidos 19 títulos regularizando 7.073,1002 hectares em benefício de 17 territórios, 18 comunidades e 988 famílias quilombolas. Estes títulos foram expedidos por: INCRA (5), ITERJ (1), ITERMA (12) E ITERPA (1). (Fonte: INCRA-DFQ – março 2013) Se analisarmos estes dados oficiais devemos concluir que a “produtividade” do INCRA, no tocante à questão quilombola, é bem abaixo do esperado. Cabe dizer que muitos dos processos abertos, além de terem sido protocolados hávários anos, nunca foram trabalhados. Assim frente a 1.229 processos somente 139 (11,31%) chegaram a ser concluídos com a titulação num período de 10 anos. Calculando que as comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares são 2.278, significa que somente 6,1% alcançou o título da terra. Além disso, precisa salientar que os títulos emitidos pelo INCRA são 29 26 (18,7%), no entanto os restantes foram emitidos por instituições diferentes.6 É evidente que a baixa produtividade não depende, pelo menos na maioria dos casos, da má vontade ou falta de organização. Uma delas é com certeza devida à falta de pessoal: no seu quadro funcional o INCRA tinha até o ano de 2011 somente 20 antropólogos em todas as Superintendências regionais.7 Mas a causa maior é com certeza a complexidade das Instruções Normativas emitidas pelo próprio INCRA ao longo dos anos e as lacunas legislativas que facilitam as apelações judiciárias adversas. Um exemplo significativo disso se encontra se analisarmos os andamentos dos decretos das desapropriações. O Governo federal, sob a presidência de Lula, fez duas desapropriações em 2006, 30 em 2009 e 10 em 2010. Em 2011 o Governo Dilma publicou um decreto de desapropriação e 10 em 2012. Assim o Governo federal atualmente totaliza 53 decretos publicados que deveriam garantir a regularização da terra para 6.010 famílias com 502.158 hectares. Outro problema é a respeito do que acontece depois do decreto de desapropriação. Até dezembro de 2012, somente 10 das 53 áreas decretadas para desapropriação haviam sido tituladas (18,86%). Isto depende com certeza dos limites operacionais do Incra frente à magnitude da demanda envolvida mas, também, das estratégias prudenciais assumidas pela própria instituição e pelo Governo Federal na espera de um pronunciamento definitivo do STF sobre a ADI nº 3239. Quais as possíveis consequências? O maior problema na demora está no risco dos decretos caducarem já que a Lei nº 4.132 de 1962, que disciplina a modalidade de desapropriação por interesse social, dispõe no seu artigo 3º que o prazo para efetivar a desapropriação é de dois anos, que começa a correr a partir do decreto 6 Outras instituições que deram títulos às comunidades quilombolas: ITERPA: 29, ITERPA/ INCRA: 18, ITERMA/INCRA: 14, FCP: 13, ITERMA: 21, ITESP: 6, INTERPI/INCRA: 5, SPU: 2, FCP/INTERBA/CDA-BA: 2, IDATERRA-MS: 1, SEHAF-RJ: 1, ITERJ: 1. 7 Comissão Pro-Índio de São Paulo. Terras quilombolas – Balanço 2011. Disponível em: http:// www.cpisp.org.br/email/balanco11/img/BalançoTerrasQuilombolas2011.pdf, acesso em 14 mar. 2012. 30 da desapropriação. A desapropriação é considerada “efetivada” quando há acordo entre o Incra e o proprietário ou quando a respectiva ação de desapropriação é ajuizada. Já o Decreto-Lei nº 3.365 de 1941 dispõe que o decreto caduca se a desapropriação não for efetivada. Isso significa que o decreto de desapropriação não pode mais ser utilizado para efetivar a negociação com os proprietários cujos imóveis incidem nas terras ou para ajuizar as ações de desapropriação contra eles (CPISP, 2011, p. 11). Consciente da situação dramática com o encaminhamento dos processos, o INCRA decide em agosto de 2011 recorrer a um novo expediente para a realização dos laudos antropológicos utilizando o instrumento da licitação com pregão eletrônico. No final foram selecionadas dez empresas para elaborarem relatórios referentes a 158 terras quilombolas em 16 estados do Brasil com um investimento de 8,46 milhões. Como estas empresas que, em muitos casos, parecem não ter um perfil adequado e correspondente às exigências, podem confeccionar relatórios de qualidade, é a pergunta que muitos se fizeram a começar do Presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). A própria associação, “manifestou expressa preocupação com a qualidade dos laudos de identificação de territórios quilombolas a serem realizados ou entregues ao INCRA” e em seguida “atendendo a uma solicitação da 6ª Câmara da Procuradoria Geral da República, feita no âmbito de um Termo de Cooperação Técnica firmado entre a ABA e o Ministério Público Federal”, assinou com o INCRA Acordo de Cooperação Técnica (ACT) com o objetivo de fortalecer os trabalhos de regularização fundiária dos territórios quilombolas, desenvolvidos pelo INCRA. A atuação conjunta entre o INCRA e a ABA visa aumentar a efetividade dos trabalhos de regularização fundiária de territórios quilombolas de forma a contribuir para o alcance do disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal (ABA, 2011)8 De acordo com o cronograma dos contratos os relatórios antropológicos devem ser concluídos no prazo de seis meses. 8 http://www.abant.org.br/news/show/id/162, acesso em 23 de março de 2012). 31 Vale a pena lembrar que os antropólogos do INCRA têm um prazo de 20 dias para avaliar o relatório parcial e 30 dias para a avaliação conclusiva. É razoável pensar que seja muito difícil os prazos estabelecidos serem respeitados, se pensarmos que o número dos antropólogos do INCRA soma a 20. No entanto alguns fatos significativos aconteceram. O Ministério Público Federal de Minas Gerais, em agosto de 2011, obriga o INCRA a contratar antropólogos para identificar comunidades quilombolas alegando que O Incra tem como uma de suas atividades-fins identificar, reconhecer, delimitar, demarcar, titular e registrar as terras ocupadas por remanescentes de quilombos, que seriam apenas em Minas Gerais, mais de 400 comunidades. A etapa inicial desse processo é a elaboração de laudo antropológico. O problema é que o órgão possui apenas um único antropólogo para realizar esse trabalho, com uma carga de serviço exagerada em todos os sentidos”. Sendo assim “o correto seria que o Incra dispusesse de profissionais habilitados e em número suficiente para realização da tarefa de elaboração do relatório antropológico em cada uma das comunidades existentes”, mas “a realidade fática é outra”. Portanto, “nada impede que, mantendo a lisura que se espera em uma licitação, haja a contratação direta de profissionais para a elaboração do relatório, como pretendia o próprio Incra, sem que isso vá causar ao erário dano, pois o fato dar- se-á junto a instituições privadas sem fins lucrativos e públicas9 Na decisão, o juiz dá o prazo máximo de cinco dias ao Incra para que dê início aos procedimentos de contratação temporária dos profissionais que irão elaborar os laudos antropológicos das 15 comunidades citadas como prioritárias. A União também foi impedida de exigir o retorno, ao Tesouro Nacional, das reservas financeiras destinadas ao pagamento desses contratos. No entanto era efetuado o concurso (Edital INCRA/DA/no 01, de 08 de abril de 2010) para o provimento de vários cargos do quadro 9 MPF/MG: Justiça obriga Incra a contratar antropólogos para identificar comunidades quilombolas, em http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_indios- e-minorias/justica-obriga-incra-a-contratar-antropologos-para-identificar-comunidades- quilombolas-em-mg, acesso em 23 de março de 2012. 32 funcional do INCRA, entre eles 46 vagas de Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário com habilitação em antropologia. Em 09 de janeiro de 2012 uma portaria publicada no DOU confirma a nomeação de 16 antropólogos.10 Outra portaria de 26 de fevereiro de 2013 nomeia 24 novos antropólogos destinados a várias sedes do INCRA.11 É difícil propor uma conclusão unívoca frente à análise feita nas páginas precedentes. De um lado o quadro parece bastante negativo e desconfortante se pensarmos no número bem pequeno dos processos concluídos positivamente com a titulação de terras quilombolas. Do outro lado, sempre mais atuante é a ação da poderosa Bancada ruralista no Congresso. O sucesso mais recente aconteceu na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara que, no dia 21 demarço 2012, aprovouo parecer do deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), favorável à admissibilidade da proposta de emenda à Constituição (PEC) que transfere da União para o Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar e ratificar a demarcação de terras indígenas. A PEC 215, de autoria do deputado Almir Sá (PPB-RR), estava em tramitação no Congresso há 12 anos e “por acaso”foi aprovada num momento de grande tensão na espera da definição do novo Código Florestal. O texto foi aprovado por 38 votos a dois com o apoio de vários partidos aliados do Governo a demonstração de quanto ampla seja a influencia da Bancada ruralista. A PEC prevê que a demarcação de terras indígenas será atribuição exclusiva do Congresso e que os parlamentares poderão ratificar ou não também as terras demarcadas anteriormente. Em palavras pobres isso significa que os congressistas poderiam simplesmente acabar com as terras indígenas e quilombolas. Em nome do Governo a ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República,- demonstrou preocupação com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215. De acordo com Luiza Bairros, atualmente, essa competência é do Poder Executivo, mas a bancada ruralista pressiona para promover mudanças, por intermédio da PEC, assegurando que os empresários rurais tenham “mais influência 10 http://www.incra.gov.br/index.php/noticias-sala-de-imprensa/noticias/11743-incra- antecipa-nomeacao-de-candidatos-aprovados-em-concurso-publico acesso em 23 de março de 2012. 11 http://conexaoto.com.br/2013/02/26/incra-nomeia-candidatos-aprovados-no-ultimo- concurso-publico-para-o-orgaoacesso em 18 de março de 2013 33 sobre as homologações”.12São muitos os que afirmam que o Governo não seja isento de responsabilidades nesta história. O deputado Luiz Couto (PT-PB), criticando duramente os setores que se mobilizaram para aprovar a PEC, lembrou também que ele havia sido o relator original da matéria, mas quando apresentou o seu parecer contrário à constitucionalidade da proposição foi substituído pelo Governo.13 Ainda mais critico com o Governo foi o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto, que declarou: o governo não fez nada para evitar a votação da proposta, pois o líder do governo não apareceu durante a sessão para tentar uma interlocução. Nem no momento em que a situação ficou tensa ele apareceu para demonstrar solidariedade. Estamos entendendo que, pelo contrário, ao não agir diretamente, o governo optou pela base vinculada ao agronegócio e à bancada evangélica.14 O sentimento do povo indígena e quilombola bem se resume nas palavras do deputado Edson Santos (PT-RJ): É para lamentar que, no dia 21 de março, data em que se comemora o Dia Internacional de Luta contra a Discriminação Racial, a Comissão de Constituição e Justiça tenha dado provimento à PEC que visa exatamente dificultar o processo de regularização fundiária das comunidades quilombolas em nosso País. A República já negou à população negra, quando da Abolição da Escravatura, o acesso à terra. Mais uma vez, parece que o Congresso Nacional caminha para reafirmar a não concessão desse direito às comunidades remanescentes de quilombo no Brasil.15 12 http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-03-22/ministra-demonstra-preocupacao- com-aprovacao-de-pec-sobre-demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolaacesso em 27 de março de 2012 13 http://www.informes.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10767:petis tas-irao-recorrer-de-aprovacao-pec-que-ameaca-direitos-indigenas&catid=42:rokstories &Itemid=108acesso em 27 de março de 2012 14 http://www.informes.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10767:petis tas-irao-recorrer-de-aprovacao-pec-que-ameaca-direitos-indigenas&catid=42:rokstories &Itemid=108 acesso em 27 de março de 2012 15 http://www.informes.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10767:petis tas-irao-recorrer-de-aprovacao-pec-que-ameaca-direitos-indigenas&catid=42:rokstories &Itemid=108 acesso em 27 de março de 2012 34 No entanto continua a grande incógnita ligada à ADI 3239, proposta pelo partido DEM (Democratas), que está tramitando no STF desde 2004 constituindo, caso seja acolhida, uma grande ameaça para o futuro das comunidades quilombolas. Depois de oito anos de espera, o relator do caso, o não saudoso ministro Cesar Peluso, decide dedicar o seu ultimo dia como presidente do STF a discussão da tão discutida e controversa ADI. No dia 18 de abril de 2012, a conclusão de uma longa, confusa e contraditória analise, com utilizo improprio e incorreto de muitos dados da Comissão Pro-Índio de São Paulo, Peluso declara inconstitucional o decreto nº 4.887/2003 que regulamenta a regularização fundiária dos territórios quilombolas. Frente à abnormidade da decisão que contrária manifestações anteriores do mesmo ministro Peluso, o julgamento foi suspenso, após pedido de vista da ministra Rosa Weber.16 Depois do afastamento compulsório por limites de idade do ministro Peluso no dia 3 de setembro 2012, quem está envolvido com a causa dos quilombolas, espera num clima mais propício e aberto para os pareceres dos outros membros do STF. Esta é a situação no final de 2013. O futuro das comunidades quilombolas é sempre mais obscuro, haja vista a ação poderosa das forças contrárias e a indecisão estratégica do Governo. Parece-me também ambígua a implementação sempre mais atuante das políticas sociais do Governo com as Comunidades quilombolas. É inegável que neste campo a atuação legislativa e concreta teve avanços significativos. Sendo assim o risco é que as comunidades quilombolas se tornem objeto de temporárias políticas assistenciais que, poderão sim ajudar nos problemas emergenciais atuais, mas que não podem representar a solução para o futuro. Sem a solução do problema da terra as comunidades quilombolas são condenadas a uma rápida dissolução. Será esta a vontade do Governo e da sociedade brasileira? A situação na Paraíba O Estado da Paraíba chegou tarde ao cenário das lutas quilombolas pelos direitos. Mas, graças à intervenção de várias entidades, 16 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=205330acesso em 27 de junho de 2012 35 em primeiro lugar a Associação de Apoio as Comunidades Afro Descendentes - AACADE e a Coordenação das Comunidades Negras Quilombolas – CECNEQ, o quadro mudou bastante na última década. Quando, em 2003, AACADE começou oficialmente o trabalho com as comunidades afrodescendentes, na Paraíba ninguém podia imaginar a existência de um número significativo delas espalhadas por todo o território da Paraíba, do litoral ao sertão. Serra do Talhado e Caiana dos Crioulos eram as mais conhecidas, a primeira por causa do documentário Aruanda (diretor Linduarte Noronha, 1960), a segunda por causa do seu grupo tradicional de ciranda. O primeiro encontro das comunidades negras da Paraíba, organizado em 2004 pela AACADE e outras entidades envolvidas, viu a participação de 28 representantes de 14 quilombos. Na ocasião foi criada a Comissão Estadual das comunidades negras e quilombolas, em seguida registrada oficialmente como Coordenação Estadual das comunidades negras e quilombolas. Somente duas comunidades até o momento tinham alcançado o certificado de Autorreconhecimento emitido pela Fundação Cultural Palmares Serra do Talhado (04 de junho de 2004) e Matão (17 de novembro de 2004). A partir deste momento o panorama das comunidades quilombolas da Paraíba mudou radicalmente em pouco tempo (Grafico 1). Grafico 1: Comunidades quilombolas da Paraíba certificadas pela Fundação Cultural Palmares Fonte: AACADE-CECNEQ – Elaboração Alberto Banal 2013 36 Até hoje, outubro de 2013, foram identificadas 39 comunidades. Na quase totalidade trata-se de quilombos rurais, contando apenas com três quilombos urbanos, Paratibe em João Pessoa, Os Danielem Pombal e Talhado Urbano em Santa Luzia. A estimativa é de 2.693 famílias com aproximadamente 12.000 pessoas. Na atualidade, 36 são as comunidades certificadas pela Fundação Palmares e três estão em processo de autorreconhecimento, representando um fenômeno que abrange toda a realidade do estado (Quadro 2). Quadro 2: Mapa dos quilombos da Paraíba Fonte: AACADE-CECNEQ – Elaboração Alberto Banal 2013 Vinte sete (27) comunidades têm processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para a regularização dos seus territórios (Quadro 3 e 4). O primeiro passo deste processo consiste na realização do relatório técnico de identificação (RTID) elaborado por antropólogos. Até o fim de agosto de 2013, foram concluídos e publicados nos Diários Oficiais do Estado e da União, 37 os RTIDs de Senhor do Bonfim (Areia); Matão (Gurinhém); Comunidade Urbana do Talhado (Santa Luzia), Grilo (Riachão de Bacamarte), Pedra D’Água (Ingá) e Paratibe (João Pessoa). Sucessivamente o INCRA encomendou nove RTIDs nas comunidades de Pitombeira (Várzea), Vaca Morta e Barra de Oitis (Diamante), Ipiranga e Gurugi (Conde), Fonseca (Manaíra), Mundo Novo (Areia), Negros das Barreiras (Coremas) e Contendas (São Bento). A maioria deles já foram concluídos e estão na espera dos passos sucessivos. Quadro 3: Processos em andamento (Superintendência Regional do INCRA na Paraíba) Fonte: INCRA-DFQ 38 Quadro 4: Demais processos abertos (Superintendência regional do IN- CRA na Paraíba) Fonte: INCRA-DFQ O quilombo Senhor do Bonfim, no município de Areia, é a primeira e única comunidade da Paraíba que, em 2009, conseguiu alcançar a posse da terra depois de ter percorrido o longo e difícil caminho do processo de identificação, auto definição, reconhecimento, delimitação, demarcação do território, desapropriação e desintrusão, faltando somente a titulação coletiva, devido aimprevistos problemas na indenização de alguns antigos proprietários. Em 2011 foi publicada a portaria do Quilombo Urbano Serra do Talhado, em 2012 foi a volta da portaria de Pedra d’Água e, no começo de 2013, foram oficializadas as portarias de Matão e Grilo. Frente estes dados, podemos concluir que a ação do INCRA na Paraíba tem índices de realização mais altos da média nacional. 39 Uma vez completados os novos RTIDs será alcançada uma meta de 15 RTIDs em relação aos processos abertos (55,5% frente a 12,7% da média nacional) e do 41,6% (6,1% média nacional) em relação ao número das comunidades certificadas. Isto não significa ter resolvido o problema da titulação das terras quilombolas na Paraíba, mas com certeza representa um passo importante para alcançar o objetivo. Infelizmente nos últimos tempos, de acordo com a denúncia da Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi), a ação do setor quilombola do INCRA vem sendo inviabilizada e obstaculizada por uma opção política do próprio Governo. A nota denuncia que alguns processos ficam esquecidos na sede do Incra, em Brasília, e em suas 30 superintendências regionais, dependendo apenas de uma assinatura para ser publicada a portaria de reconhecimento. Ao todo, 36 dos 164 processos que tramitam no Incra estão paralisados ou com o andamento atrasado na sede da autarquia. “O que nos preocupa, enquanto servidores públicos responsáveis diretos pela execução da política de regularização dessas áreas, é a protelação ainda maior desse processo, que ocorre, aí sim, por uma opção política do governo federal, que cria uma série de rotinas administrativas injustificadas – algumas inclusive desrespeitam as próprias normas vigentes”, aponta Ramon Chaves, diretor da Cnasi17. No que diz respeito a situação dos processos mais avançados na Paraíba é evidente a protelação dos mesmos: entre o edital no DOU do RTID e a portaria no DOU do quilombo Matão passaram 3 anos e 2 meses, no caso do quilombo Pedra d’Água 2 anos e 4 meses e no caso do quilombo Grilo 1 ano e 11 meses. A Comunidade Urbana de Serra do Talhado Santa Luzia teve o Edital do RTID publicado no DOU no dia 04/12/09 e conseguiu a assinatura da portaria no dia 12/04/11: há 2 anos e 5 meses a comunidade está na espera da titulação (não precisa a portaria no DOU tratando-se de terra pública). 17 http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/09/servidores-do-incra-criticam- lentidao-no-reconhecimento-de-areas-quilombolas-7691.html, acesso em 9 de setembro de 2013. 40 No entanto, nos últimos meses teve uma aceleração nas políticas públicas em prol das comunidades quilombolas da Paraíba, sobretudo graças a dois projetos inovativos, sendo o primeiro uma parceria entre o Cooperar e a AACADE e, o segundo, um projeto piloto lançado pelo Governo Federal. O Censo está sendo realizado pela Associação de Apoio às Comunidades Afrodescendentes (AACADE), em parceria com o Projeto Estadual Cooperar, por meio do financiamento do Banco Mundial. A iniciativa irá beneficiar aproximadamente 12 mil pessoas de 39 comunidades quilombolas existentes no estado, com o objetivo de identificar os indicadores sociais dessas regiões e traçar programas governamentais de acordo com as necessidades específicas de cada área. A coleta de dados é baseada no modelo do IBGE, mas é enriquecida por muitas informações suplementares como o georreferenciamento das casas, dos bens comunitários (centros comunitários, casa de farinha, cisternas coletivas...), dos pontos de água (cisternas, açudes, cacimbas, poços, nascentes, olhos de água...), pontos de coleta de lixo... Já foram coletadas e analisadas 190 amostras da água usada nas comunidades. “Algumas ações de coleta de dados já haviam sido realizadas anteriormente em determinadas localidades, mas sempre foram feitas através de informações básicas e de relatos das próprias lideranças quilombolas. A partir de agora, essas variáveis sociais e econômicas irão dar o suporte necessário para os programas governamentais traçarem diversos formatos de atuação, em benefício concreto dos moradores locais.” (Francimar Fernandes de Sousa, secretária executiva da AACADE e coordenadora do Censo Quilombola).18 O projeto piloto do Governo Federal foi anunciado no dia 19 de março e prevê os 23 municípios paraibanos que têm quilombos fazerem no mês de março de 2013 um grande mutirão dos órgãos competentes para cadastrar todas as famílias quilombolas no 18 http://www.paraiba.pb.gov.br/60193/governo-capacita-recenseadores-para-censo- quilombola-da-paraiba.htmlacesso em 19 de março de 2013 41 Cadastro Único do Governo Federal para que elas possam ter acesso as políticas públicas às quais têm direito.19 Não há dúvida sobre a importância destes dois projetos que com certeza levarão vários benefícios as comunidades quilombolas, mas, como já foi dito, a sua sobrevivência e desenvolvimento estão diretamente ligados ao conseguimento da posse da terra: sem território não pode existir quilombo nenhum. Referências bibliográficas Carta Moção de Repúdio ao Governo pelo descaso apresentado em relação à luta pela regularização de territórios quilombolas. http://www.sintsefba.org.br/admin/Uploads/wwwsint_web-rel_ plenaria_condsef_24-10-2009.pdf, acesso em 23 março 2012. CHASIN, Ana Carolina da Matta. 20 Anos de Regularização Fundiária de Territórios Quilombolas: um balanço da implementação do direito à terra estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Revista Política Hoje, Vol. 158 18, n. 2, 2009. Disponível em: http://www.politicahoje.ufpe.br/index.php/politica/article/ download/20/17 , acesso em 10 de out. de 2012. CHASIN, Ana Carolinada Matta;PERUTTI, Daniela Carolina. Os retrocessos trazidos pela Instrução Normativado Incran. o49/2008 na garantia dos direitos das Comunidade Quilombolas. Comissão Pró Índio. SãoPaulo,N/D.Disponívelem:http://www. cpisp.org.br/acoes/upload/arquivos/ARTIGO%20IN%2049. pdf,acessoem14mar.2012. Comissão pro-Índio de São Paulo. Terras quilombolas – Balanço 2011.Disponível em: http://www.cpisp.org.br/email/balanco11/ 19 http://www.paraiba.pb.gov.br/64937/comeca-em-marco-mutirao-para-inscrever- familias-quilombolas-no-cadastro-unico.htmlacesso em 19 de março de 2013 42 img/BalançoTerrasQuilombolas2011.pdf, acesso em 14 mar. 2012. GODOY, Renato. Servidores do Incra criticam lentidão no reconhecimento de áreas quilombolas. Disponível em: http:// www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/09/servidores- do-incra-criticam-lentidao-no-reconhecimento-de-areas- quilombolas-7691.html, acesso em 9 de setembro de 2013 MPF/MG: Justiça obriga Incra a contratar antropólogos para identificar comunidades quilombolas, em http://noticias.pgr.mpf.gov.br/ noticias/noticias-do-site/copy_of_indios-e-minorias/justica-obriga- incra-a-contratar-antropologos-para-identificar-comunidades- quilombolas-em-mg, acesso em 23 de março de 2012. NOTA PÚBLICA SOBRE ACT ABA-INCRA, 2011. 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IV Encontro - Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas/PB Assembléia no quilombo Cruz da Menina Comunidades quilombolas na Paraíba Quilombo Caina dos Crioulos Município de Alagoa Grande Maria Ester Pereira Fortes Fernanda Lucchesi 45 46 Segundo dados publicados pela Fundação Cultural Palmares em setembro de 2012, existem no Brasil 1.826 comunidades remanescentes de quilombos auto-reconhecidas e certificadas pela instituição. Na Paraíba, elas são 38; sabemos, no entanto, que este número não abrange todo o universo das comunidades negras no estado. Diante de tais números poderíamos nos perguntar: que realidade é esta de que estamos tratando, afinal? Quem são as chamadas ‘comunidades remanescentes de quilombos’? Como podemos compreender sua presença nesta parte do Nordeste Brasileiro e no estado da Paraíba particularmente, onde, até há alguns anos, a presença de uma população negra era considerada pouco significativa? Para refletirmos sobre esta questão, sigamos brevemente o percurso do que Arruti (2002) denomina de “fenômeno de etnização da política, como ele se apresenta no Nordeste brasileiro”.1 Da invisibilidade histórica à visibilidade política ‘Reservatório da nacionalidade’, ‘guardião da unidade brasileira’, de tradições associadas ao campo e a terra em oposição ao Sul contaminado pela industrialização nascente e pela ameaça potencial de uma população imigrante, o Nordeste passou a ocupar, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX, um lugar estratégico dentro da ideologia nacionalista que percebia na heterogeneidade do povo brasileiro um impedimento à constituição de uma identidade única: Para os pensadores autoritários da década de 30 ou anteriores, isso inviabilizava a própria nação, enquanto que para os socialistas isso inviabilizava aspirações de organização de classe. (Idem, p. 05) Naquele momento, as representações sobre o Nordeste produzidas pela literatura ou por intelectuais como Câmara Cascudo e Gilberto Freyre (em seu Nordeste, 1937) sublinhavam a oposição de matrizes culturais que dividiam a região entre uma “civilização agrária” vinculada à cana e ao escravismo e uma “civilização do 1A certidão de auto-reconhecimento como remanescente de quilombo é um documento expedido pela Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, a partir da solicitação da comunidade com base no seu auto-reconhecimento como tal. Este documento permite que a comunidade tenha acesso a um conjunto de políticas públicas destinadas especificamente a este segmento, dentre as quais a regularização do seu território. 47 couro”, pastoril nômade e não-escravocrata. Esta dualidade não chegava, entretanto, a romper com a imagem de um Nordeste unitário, antes “domestica a diversidade sob a forma de um novo dualismo instituidor de novas homogeneizações”; dualidade resolvida ao se estabelecer entre ambas uma hierarquia dentro da qual a civilização da cana detinha “os valores políticos, intelectuais, estéticos e culturais que teriam configurado a nação brasileira e seu sentimento de nacionalidade” (Arruti, 2002). Mais tarde, no contexto das rupturas políticas resultantes do golpe de 1964, o Conselho Federal de Cultura recuperou a ideologia da “mestiçagem”, transpondo-a para o campo cultural. Desta formulação, o Nordeste ressurgiu como a imagem da unidade nacional, resultante da “aculturação de etnias e pelo sincretismo de manifestações provenientes de diversas origens em uma síntese única, ainda que marcada por particularidades regionais.” (Idem) Dentro deste cenário e ao longo desse mesmo período, o estado da Paraíba, através de seus intelectuais, produziu também os discursos de sua identidade. Igualmente dividida entre uma economia canavieira desenvolvida ao longo da costa e, em menor escala, na região do Brejo e uma cultura pastoril predominante no interior em associação com a cultura do algodão, a Província da Paraíba não chegou a usufruir da prosperidade econômica de que gozou a vizinha Pernambuco durante o período colonial e o binômio ‘Casa Grande & Senzala’ não alcançou aqui as mesmas dimensões explicativas. A observação de Albuquerque Júnior (2008), com relação a uma diversificação nos discursos sobre o Nordeste parece, portanto, pertinente: Chamou-nos a atenção como, em muitos de seus textos, Cascudo vai fazer esta aproximação entre a história do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte e como vai procurar diferenciá-las da história de Pernambuco. [...] Na base desta definição poderia estar a vinculação de Cascudo a um lugar de fala distinto daquele de onde foi enunciado inicialmente o discurso regionalista nordestino e de onde foi inventado o Nordeste. [...] Se o Nordeste, elaborado pelas elites pernambucanas, teve São Paulo como o espaço outro, o espaço do qual se diferenciar, o Nordeste das elites cearenses, das elites norte-rio-grandenses e das elites 48 paraibanas, talvez em menor grau, deveria se diferenciar do Nordeste elaborado pelas elites pernambucanas [...] (Albuquerque Jr. 2008, p. 190). No intuito de adentrar o mundo dos homens e mulheres negras na Paraíba dos séculos XVIII e XIX e compreender como estas pessoas reorganizavam suas relações familiares dentro do contexto da escravidão, Rocha (2007) chama a atenção dos leitores para a produção discursiva sobre a história da Paraíba que dominou o cenário local entre finais do século XIX e meados do século XX. Preocupada em identificar a presença de uma população negra, escrava ou livre, em terras da Paraíba colonial, Rocha nota que esta produção minimizou a importância do negro na constituição da população local. Mais do que isto, a autora afirma que tal postura analítica marcou por muito tempo a produção histórica sobre o tema, reforçando, deste modo, a imagem de uma Paraíba mestiça e culturalmente homogênea. Rocha concentra-se sobretudo na obra de três consagrados historiadores paraibanos do período: Maximiano Lopes Machado (1821-95), Irineu Joffily (1843-1901) e Horácio de Almeida (1896-1983), sobre os quais dirá: Apesardos três primeiros autores diferirem quanto à época de elaboração de seus livros, quando confrontados apresentam semelhanças, pois elaboraram um conhecimento histórico no qual apenas as elites se fizeram presentes. Os estudos dos dois primeiros, respectivamente História da Província da Paraíba e Notas sobre a Paraíba, foram escritos e publicados entre os anos de 1880 e 1912, enquanto o último publicou o primeiro de seus dois volumes da História da Paraíba em 1966 e o segundo em 1978 (p. 52) A análise da obra destes historiadores oferece, segundo Rocha, pouquíssimas referências quanto à presença e ao trabalho dos negros na província durante o período colonial. Maximiano Lopes Machado não faz praticamente nenhuma menção a esta presença. Irineu Joffily por seu turno: (...) ao invés de privilegiar a colonização iniciada no litoral, valorizou o processo de (re)ocupação do sertão pelos portugueses e a cultura sertaneja. (...) Além disso, minimizou 49 a existência de escravos negros nos períodos colonial e imperial. Segundo ele, o indígena (denominado, por ele, de americano) “era quase o único a auxiliar o colono português nos serviços do campo”, no processo de expansão e apropriação da “nascente capitania”. (Idem, pp. 54/55) Além destes autores também José Américo de Almeida (1877- 1980) em A Paraíba e seus Problemas (1923) teria considerado como insignificante a presença de negros, principalmente no Sertão. Apareceriam em número maior no Litoral e no Brejo, mas já mesclados ao branco e ao índio, compondo a população pobre e mestiça dos “cabras do engenho”. No entanto, a historiadora Diana Galliza (1979) desfez alguns dos mitos sobre a escravidão na Paraíba consolidados pelos discursos de seus antecessores, dentre eles o de que não havia trabalho escravo na pecuária no sertão. Assim, ao lado dos discursos nacionalistas que atribuíam ao Nordeste uma população homogeneizada e mais ‘genuinamente’ brasileira, os discursos da intelectualidade paraibana até meados da década de 1970 reforçavam esta representação apagando da formação econômica e social do estado a presença tanto do escravo quanto de mulheres e homens negros e livres. No entanto, Rocha reitera: Esse grupo, os pretos livres, vinha aumentando numericamente na Paraíba desde o final do século XVIII. Nele estavam a maioria dos trabalhadores rurais, os agregados, os camaradas, os moradores. (p. 25) O povoamento da Paraíba se deu em duas frentes: uma delas partindo do interior em direção ao litoral, realizada por colonizadores vindos da Bahia ou Pernambuco que, estabelecendo-se no sertão, formaram fazendas de criação de gado; e outra que, partindo do litoral seguiu para o interior. Aos que escolhiam se fixar eram concedidas terras em sesmarias, que podiam variar entre 1 a 4 léguas em quadro, dando origem, também no sertão, a um sistema fundiário baseado no predomínio das grandes propriedades que perdurou, em grande medida, até os dias atuais. No final do século XVIII, o desenvolvimento têxtil na Inglaterra e a retração dos Estados Unidos, seu principal fornecedor, repercutiu 50 em todo Agreste paraibano e o algodão realizou aí uma verdadeira revolução, com o incremento do fluxo de migrantes, a reorganização do espaço agrário e a estruturação dos primeiros núcleos com características urbanas. Em 1817, o algodão era a base da economia de toda essa região, estendendo-se também para as terras do sertão. Assim, em meados do século XIX praticamente todo o território paraibano estava ocupado por grandes e médias propriedades rurais, produtoras de cana, algodão ou ocupadas com a criação de gado. As economias açucareira e algodoeira se apoiavam na mão-de- obra escrava, embora o número de escravos nas propriedades rurais paraibanas não fosse muito alto quando comparado a outros estados. Tomando como exemplo o ano de 1823, os registros apontam que a Paraíba tinha 16,33% de escravos dentro do total de sua população, enquanto Pernambuco possuía 31,25% de escravos (Medeiros & Sá, 1999). As razões para um menor número de escravos na então província da Paraíba eram diversas. As secas – a de 1877 foi causa da fome que dizimou parte da população tanto livre quanto cativa - a pobreza dos seus moradores, além de epidemias como a cólera, acentuaram o declínio da sua população escrava. Contribuíram ainda para a redução da população cativa as manumissões, as pressões criadas pelo movimento abolicionista, a proibição do tráfico negreiro em 1850 e a expansão das lavouras de café no sul do país, que provocaram não só a elevação do preço do escravo, mas também o deslocamento de escravos da Província para os cafezais do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais (Galliza, 1979; Medeiros & Sá, 1999). A menor proporção de escravos em relação à população como um todo, no entanto, não significou a ausência de uma população negra vivendo na Paraíba. Muitos filhos de escravos foram alforriados, passando à condição de trabalhadores agregados às fazendas canavieiras (Medeiros & Sá, 1999). O historiador José Otávio de Arruda Mello chama a atenção para o grande contingente de negros na composição da população paraibana da primeira metade do século XIX. Entre os anos de 1811 e 1841, a população escrava se mantinha em torno dos 14%, no entanto, a soma da população negra, incluídos aí escravos, negros livres e mulatos, ficava em torno de 60% do total da população da capitania. (Mello, 1997). A figura do morador, como elemento da estrutura produtiva 51 paraibana, surgiu nos canaviais e engenhos já em finais do século XVII, como resposta ao empobrecimento da província. Com as crises no comércio açucareiro, os senhores de engenho retraíram a produção e permitiram que agricultores sem terra tivessem um sítio no interior de suas propriedades. Dentro de cada engenho, a força de trabalho agrícola era representada, sobretudo, por estes trabalhadores-moradores. Tinham eles o direito de explorar pequenos sítios com lavouras de subsistência e eram obrigados a trabalhar a serviço do proprietário um certo número de dias por semana. Aos proprietários, desobrigados da manutenção de seus trabalhadores, tornou-se conveniente situar seus ex-escravos como agregados e cabras do eito. Era o chamado trabalho sob sujeição. Escravos e moradores conviveram no engenho até a abolição, após o que as senzalas foram desaparecendo e a paisagem passou a ser dominada pelo habitat disperso dos moradores, aos quais se somaram muitos ex-escravos que continuaram a trabalhar na propriedade do senhor, na condição também de morador (Mariano Neto, 2007). Nas plantações de algodão, o uso da mão-de-obra escrava ocorreu com mais intensidade até o ano de 1850, quando o tráfico foi extinto. O fim do tráfico, no entanto, causou pouco impacto na economia algodoeira, uma vez que sua produção não exigia um número muito grande de braços e estava ao alcance de pequenos sitiantes, moradores e mesmo de escravos. Além disso, à sua lavoura podia-se juntar o cultivo do milho, do feijão ou da mandioca, o que atraia o interesse dos homens livres para o trabalho nos roçados de algodão, pela alimentação variada que podia ser aí encontrada. Por outro lado, sendo curto o ciclo do algodão, não valia a pena aos produtores manterem escravos para ocupá-los somente de maio a dezembro, o que fazia com que nestas culturas, o trabalho livre fosse preferível ao escravo. Assim, também aqui se instituiu o sistema morador (Galliza, 1979). A situação que Medeiros e Sá identificam como características das relações de trabalho na Paraíba ainda durante o período escravocrata, se estendeu para além deste período e marcou a 52 relação entre o proprietário e seus subordinados ou sujeitos. Nesta relação, a condição de homem livre e de escravo podia se confundir, amenizando às vezes as relações senhor-escravo ou transferindo “ao trabalhador ‘assalariado’ situações típicas do trabalho escravo, fazendo com que
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