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Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6605-6 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 0 5 6 Código Logístico 59266 A política pública social é um instru- mento imprescindível ao serviço social, pois é por meio dela que os assistentes sociais constroem os encaminhamentos necessários para a efetivação dos direitos constitucionais, principalmente no que diz respeito ao direito à assistência social. Com este livro o leitor compreenderá que o direito à assistência social se mate- rializa por intermédio da sua política. Esta objetiva, entre outros propósitos, a con- cretização do Estado democrático de di- reito e, na mesma linha, a universalização da seguridade social brasileira. Essa pers- pectiva requer dos profissionais do serviço social uma postura interventiva, crítica, éti- ca, criativa e politicamente comprometida com a classe trabalhadora. P O LÍTIC A S SO C IA IS P Ú B LIC A S M IR IA N C R ISTIN A LO P ES Políticas sociais públicas Mirian Cristina Lopes IESDE BRASIL 2020 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: BoykoPictures/Elements.envato CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ L854p Lopes, Mirian Cristina Políticas sociais públicas / Mirian Cristina Lopes. - 1. ed. - Curitiba [PR] : Iesde, 2020. 90 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6605-6 1. Política social. 2. Políticas sociais públicas. 3. Bem-estar social. I. Título. 20-65667 CDD: 361.61 CDU: 364-7 Mirian Cristina Lopes Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Análise da Questão Social e graduada em Serviço Social pela mesma universidade. Professora em instituições de ensino superior, produtora de materiais didáticos, palestrante e ministrante de cursos de capacitação continuada em instituições públicas e privadas. Atua na implantação de projetos de extensão comunitária e como técnica de Serviço Social. Temas de interesse: políticas sociais, novas alternativas em educação e cultura política e suas relações com a desigualdade brasileira. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Fundamentos sócio-históricos da política social 9 1.1 O nascimento das políticas sociais na sociedade capitalista 9 1.2 A origem e a organização das políticas sociais no Brasil 14 1.3 Políticas públicas setoriais 21 2 As políticas afirmativas e os distintos sociais 31 2.1 O nascimento das políticas afirmativas 31 2.2 Distintos sociais x minorias sociais 37 3 O serviço social e as políticas sociais 62 3.1 O projeto ético-político do serviço social e a garantia de direitos sociais 62 3.2 Articulação histórica entre serviço social e políticas sociais 66 3.3 O trabalho do assistente social na política de assistência social 69 4 As políticas sociais na era dos desmontes de direitos 75 4.1 Avaliação de políticas sociais 75 4.2 Reformas e contrarreformas 79 4.3 Perspectivas para os tempos atuais 82 Gabarito 87 A política pública social é um instrumento imprescindível ao serviço social, pois é por meio dela que os assistentes sociais constroem os encaminhamentos necessários para a efetivação dos direitos constitucionais, principalmente no que diz respeito ao direito à assistência social. Com este livro você compreenderá que o direito à assistência social se materializa por intermédio da sua política. E esta objetiva, entre outros propósitos, a concretização do Estado democrático de direito e, na mesma linha, a universalização da seguridade social brasileira. Essa perspectiva requer dos profissionais do serviço social uma postura interventiva, crítica, ética, criativa e politicamente comprometida com a classe trabalhadora. Desse modo, reforçamos a importância da leitura integral de todos os capítulos, pois eles oferecem um amplo leque de informações a respeito da origem e da organização da política pública social, bem como sobre vários outros elementos essenciais à compreensão do universo da garantia de direitos e em relação ao trabalho dos assistentes sociais. O livro também aborda conteúdos sobre fenômenos e fatos sócio- históricos e socioculturais que podem nos ajudar a compreender as dinâmicas de discriminação, violência e criminalização, as quais constituem o cotidiano de vida de diversos grupos historicamente excluídos. Em suma, este estudo oferece conhecimentos gerais e específicos para que possamos compreender a importância das políticas públicas e das políticas públicas sociais. Os capítulos estão divididos de modo a levar ao entendimento da origem, da operacionalidade, das potencialidades, das limitações, das contradições postas no campo do debate dos direitos sociais e, principalmente, de onde e em que medida os assistentes sociais podem fazer a diferença. Desejamos que você aproveite esta oportunidade de aprimoramento. Bons estudos! APRESENTAÇÃOVídeo Fundamentos sócio-históricos da política social 9 1 Fundamentos sócio-históricos da política social As políticas sociais ocupam um lugar significativo na história das sociedades, pois é por meio delas que a humanidade tem conse- guido avançar no enfrentamento às desigualdades sociais. Para o serviço social, esse é o ponto central do debate da importância das políticas públicas sociais. É nesse sentido que a leitura deste capítulo se faz essencial, visto que você terá acesso aos fenômenos e fatos sócio-históricos que fizeram parte da construção e da organização das políticas so- ciais, desde o seu nascimento. 1.1 O nascimento das políticas sociais na sociedade capitalista Vídeo As políticas sociais emergiram na Europa, na segunda metade do sé- culo XIX, como medidas de Estado direcionadas a aquietar os reclames populares que se ampliavam significativamente com os novos níveis de desigualdade gerados pela implantação do sistema capitalista. Esse foi um período da história contemporânea marcado pelo agravamento das mazelas sociais já vivenciadas pelas populações e pelo nascimento de novos tipos de precariedade de vida. Segundo José Paulo Netto (2005), autor que estuda a origem da extre- ma desigualdade social, configurou-se um período inédito da história mun- dial, dado que a dinâmica da pobreza passou a se generalizar na Europa e nos demais países onde o processo de industrialização se instaurava. Se não era inédita a desigualdade entre as várias camadas so- ciais, se vinha de muito longe a polarização entre ricos e pobres, se era antiquíssima a diferente apropriação e fruição dos bens 10 Políticas sociais públicas sociais, era radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se generalizava. Pela primeira vez na história registrada, a pobre- za crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. (NETTO, 2005, p. 153, grifos do original) Esse contexto se apresentou, primeiro, na Europa e, depois, avan- çou para vários países do globo, conforme ampliou-se o processo de industrialização. A pobreza que já existia foi exacerbada e novas condi- ções sociais, como desemprego e violência, passaram a fazer parte do cotidiano da vida social. O sistema capitalista passou a se apresentar como um modelo de produção que, à medida que criava riquezas (para os donos dos meios de produção), produzia desigualdades aindamais extremas para a maioria da população – os que só tinham a mão de obra como força para sobrevivência. Devido às as características do novo sistema, os trabalhadores não possuíam meios para produzir, pois o acesso a bens e serviços passou a depender exclusivamente da dinâmica salarial. Assim, quem não ti- nha acesso a emprego, passou a viver aquém de condições dignas de vida. Os pobres não podiam mais contar com a divisão alimentar ad- vinda da produção de engenho e tampouco dispunham de meios para produzir no novo modelo econômico. Desse modo, o novo sistema econômico – que surgiu em sua fase concorrencial – alterou as formas de organização sociais existentes, bem como configurou novas relações sociais, conjuntura que fez nas- cer os conflitos de classe. A nova condição de extrema pobreza, o alto nível de exploração dos trabalhadores e a ausência de efetivas possibilidades de negociação entre as classes sociais foram os fatores que conduziram os traba- lhadores a iniciar movimentos de resistência e de luta contra a lógica industrial, ou seja, contra os moldes de acumulação de lucro, funda- mentados na exploração das capacidades de trabalho dos proletaria- dos (mais-valia), que resultavam em níveis extremos de injustiça social. A constituição de um fragmentado, miserável e “indigno” pro- letariado, acabou por gerar, progressivamente, um processo verdadeiramente revolucionário, constitutivo da modernidade liberal, permitindo que o livre acesso à força de trabalho tornas- se a base, a partir da qual se reestruturou toda a “questão social”. O protagonismo dos atores sociais, o proletariado pauperizado, no cenário da época, altera, portanto, o estatuto do pauperismo Fundamentos sócio-históricos da política social 11 para “questão social”. Isso põe no centro da luta de classe como fator determinante do surgimento da “questão social” enquanto tal e a necessária consciência política da classe trabalhadora de que somente a superação da sociedade capitalista permite a su- pressão da “questão social”. (CASTEL, 1995, p. 15 apud GUERRA; ORTIZ; VALENTE; FIALHO, 2007) Ao fim do século XIX, a insatisfação com o processo de industrializa- ção e urbanização já desencadeava diversos movimentos reivindicató- rios em toda a Europa. Com apoio de alguns intelectuais da época, os trabalhadores se organizaram, construíram ciência de sua condição de classe e cravaram o início das lutas contra as desigualdades sociais cria- das pelo capitalismo. Deixaram de aceitar que as problemáticas sociais fossem contrapostas apenas com ações de cunho caritativo, paliativo ou repressivo e passaram a exigir do Estado respostas mais efetivas diante das suas precárias condições de vida. Assim nasceram as políticas sociais, em pleno auge da expansão e do aprimoramento da exploração capitalista e no contexto do surgi- mento da pressão exercida pela organização dos trabalhadores – com vistas à exigência de direitos. Políticas estatais requeridas como res- posta às demandas a ele impostas. Contexto de exploração e de luta que, segundo Meirelles (2017, p. 14), resultou no nascimento da questão social, conceito muito utili- zado pelo serviço social para explicar a raiz da desigualdade, e que, na visão da autora, deve ser entendido como o “resultado da exploração do trabalho pelo capital e da concentração de renda e propriedade que configuram a desigualdade social”. É importante considerar que o fato de as políticas sociais terem emergido da pressão do movimento dos trabalhadores proletariados não significou que elas tenham sido criadas para atender apenas aos interesses dessa classe. Em meio ao “campo de tensões entre os inte- resses do proletariado e da burguesia” (NETTO, 2003, p. 16), os capita- listas perceberam que, além de aquietar a pressão dos trabalhadores, as políticas sociais também poderiam ser utilizadas para alavancar a própria economia, ou seja, para os seus próprios interesses. E nessa direção, as elites econômicas e políticas da época conduzi- ram o Estado a criar um sistema de proteção social que também ser- viu aos seus interesses capitalistas. A Alemanha, por exemplo, foi um 12 Políticas sociais públicas dos países europeus que, com os reclames sociais, pensou um novo modelo de Estado, voltado a implantar políticas sociais capazes de po- tencializar o modo de produção capitalista, ao mesmo tempo em que garantiria algum bem-estar ao todo da população. Um projeto político de desenvolvimento capaz de criar um Estado com base em uma ciência administrativa, capaz de promover um bem-estar social que implicasse a orientação de uma economia, volta- da à prática do mercantilismo, que, em suma, “gerisse eficientemente os impostos, intervisse com os instrumentos apropriados, técnicos, ad- ministradores e experts setoriais” (BRAGA, 1999, p. 194-195). Esses novos modelos de Estado, capazes de intervir mais efetiva- mente no social, foram chamados de Estado de bem-estar social, e passaram a ser implantados por meio de medidas interventivas (po- líticas públicas), tanto para reduzir desigualdades quanto para im- pulsionar planos de desenvolvimento econômico. Nesse ínterim, na segunda metade do século XIX, as políticas sociais foram implantadas em diversos países da Europa, sendo arranjadas de modo diferencia- do em cada território. Segundo Draibe e Henrique (1988), desde então os países capita- listas aprenderam que em determinados períodos históricos é pre- ciso equiparar a distribuição de renda para movimentar a base da economia e, ao mesmo tempo, impedir que os trabalhadores prole- tariados organizem uma revolução social. O que fez surgir um tipo de cidadania controlada, que tem suas facetas de concretude (WILENSKI, 1975; QUADAGNO, 1988). Contudo, para Marshall, o grau contraditório que constitui as políti- cas públicas sociais não se efetiva como um total impedimento à cria- ção de uma cidadania completa, visto que: o processo de ampliação progressiva da cidadania, manifestado na ampliação desses direitos, faz com que a igualdade formal e abstrata pressione no sentido da igualdade real e concreta, ao menos até que as diferenças existentes entre os indivíduos, no que se refere às suas condições de vida, não ofendam a concep- ção prevalecente em cada sociedade do que é ou não tolerável. (MARSHALL, 1950, p. 36) Segundo Wolf (2015), os quatro modelos de Estado de bem-es- tar social que foram criados na Europa Ocidental influenciaram várias outras nações que, posteriormente, também implantaram Fundamentos sócio-históricos da política social 13 experiências de Estados de proteção social. Os modelos matrizes apresentam as seguintes tipificações: o modelo anglo-saxão (Irlan- da e Reino Unido), o modelo continental (Alemanha, Áustria, Bél- gica, França, Luxemburgo e Países Baixos), o modelo escandinavo (Dinamarca, Finlândia e Suécia) e o modelo mediterrâneo (Espa- nha, Grécia, Itália e Portugal). O modelo anglo-saxão caracteriza-se pelo papel residual do Estado que, mediante o recolhimento de impostos, assegura o pleno funciona- mento do sistema econômico e algumas das necessidades fundamen- tais dos grupos sociais que vivenciam níveis de miséria e de pobreza. O processo é pouco efetivo com relação ao enfrentamento real das desi- gualdades sociais. No modelo continental, o Estado assume um papel interventivo su- perior ao do mercado, como mecanismo de resposta às necessidades individuais fundamentais. Esse processo é realizado por meio do pa- gamento de contribuições mais igualitárias. Nesse modelo de Estado verifica-se maior regulamentação do mercado de trabalho e níveis de desigualdade mais reduzidos. O modelo escandinavo garante benefícios sociais, independente- mente do pagamento de contribuições, financiados por meio de impos- tos. Verifica-se um grau elevado de coesão social, com níveis reduzidos de miséria e de pobreza. Por fim, no modelo mediterrâneo os benefícios e serviços sociais são bem reduzidos. O acesso à maioria dos benefícios existentesvaria em função do tipo de ocupação e, portanto, do valor de contribuição pago por cada sujeito. Há, também, benefícios concedidos, indepen- dentemente do pagamento de contribuições. Nesse modelo, verifica-se uma parcela expressiva da sociedade vivendo em situação de vulnera- bilidade, além de ser notável a maior incidência de práticas clientelistas e níveis extremos de desigualdades sociais, se comparados aos demais modelos (WOLF; OLIVEIRA, 2016). O nascimento das políticas sociais desenhou novos tipos de so- ciedade, principalmente no que diz respeito ao exercício efetivo da cidadania, pois ainda que os sistemas de proteções sociais im- plantados não tenham sido suficientes para que os trabalhadores pudessem construir “estratégias para confrontar, na mesma me- dida, as estruturas do poder econômico instauradas no âmbito do 14 Políticas sociais públicas Estado”, é inegável que as “políticas sociais garantiram aos traba- lhadores, o acesso a melhores condições de vida e de participação na agenda política” (LOPES, 2014, p. 133). 1.2 A origem e a organização das políticas sociais no Brasil Vídeo Como estudamos na seção anterior, os modelos de proteção social passaram a ser implementados com a concepção de que o Estado deve se impor como mediador da relação capital/trabalho, a fim de intervir com vistas à proteção social dos sujeitos que se encontrem em situação de risco e/ou vulnerabilidade social. Para tal, instituíram-se tipos de entendimento e prática de Estado voltados ao bem-estar social das nações, uma alteração significativa na história da humanidade, contexto que resultou tanto da organiza- ção dos trabalhadores e da reorganização estratégica do capitalismo, após sofrerem o questionamento dos movimentos populares quanto às desigualdades criadas, quanto das experiências pós-guerras, que alteraram a forma de pensar o social na maioria das sociedades que compõem o globo. No que concerne à realidade brasileira, ainda há divergência a res- peito da existência ou não da implantação de um Estado de bem-estar social no Brasil. A literatura se apresenta heterogênea e diversificada com relação à definição de um padrão brasileiro de proteção social, dado que a experiência brasileira, no que se refere às políticas sociais, é ainda muito recente (em termos históricos). Também, há de se considerar que a maioria dos estudos realizados tem focado o aspecto da denúncia, no que diz respeito à importância das políticas sociais para a efetividade de direitos (estudos sociais) e/ou sobre a ausência delas (diagnósticos). Segundo Vianna e Silva (1989), isso ocorre porque a “política social brasileira não tem sido examinada, no seu conjunto, sob a ótica analítica do Welfare State” 1 . Em comparação com os tipos de Estado de bem-estar social implan- tados em outros países, identificam-se, no Brasil, semelhanças e distin- ções no que diz respeito à configuração das políticas sociais. Em suma, questiona-se a real implantação de um Estado de bem-estar social no país, dado que a realidade brasileira apresenta tipos incompletos de Para compreender me- lhor as experiências da humanidade com relação às grandes guerras, vale a pena assistir a série de documentários intitulada O Mundo em Guerra. Disponível em: https://www. dailymotion.com/video/xzgnf6. Acesso em: 28 jul. 2020. Filme Também denominado Estado de bem-estar social. 1 https://www.dailymotion.com/video/xzgnf6 https://www.dailymotion.com/video/xzgnf6 Fundamentos sócio-históricos da política social 15 cidadania: cidadania regulada; cidadania cooptada; cidadania residual e cidadania fragmentada (ABRANCHES, 1982; DRAIBE, 1995; ESCOREL, 1993; SANTOS, 1987). A cidadania regulada refere-se à cidadania oriunda de um sis- tema de estratificação ocupacional, e não de um entendimento de código de valores políticos. Dito de outro modo, trata-se de um tipo de cidadania ditada e fiscalizada pelo sistema estatal, por meio de medidas de padronização do que é ser cidadão (indústria cultural, mecanismos de policiamentos etc.). Já a cidadania cooptada se ca- racteriza pelo controle do entendimento dos benefícios sociais, no sentido de materializá-los, não como direito, mas como privilégio (apesar de garantidos pelo Estado). Na mesma linha de análise, observa-se que a cidadania residual é aquela que se institui com o beneficiamento de determinados grupos, com base em critérios de renda mínima, com vistas ao privilegiamento de grupos de risco (crianças, gestantes, nutrizes, deficientes e idosos). E a cidadania fragmentada traz luz ao debate acerca da dualidade existente entre uma minoria rica que vive na extrema riqueza e é con- templada por diversas oportunidades da vivência cidadã e uma maioria pobre que vive à margem do exercício da cidadania (ABRANCHES, 1982; DRAIBE, 1991; ESCOREL, 1993; SANTOS, 1987). Os países latino-americanos objetivaram construir, até os anos 1970, as estruturas básicas de seus modelos de Estados de bem-estar social; porém, iniciaram o movimento de modo descontextualizado das suas particularidades. Uma tentativa de encaixe de modelos de Estado não encaixáveis em suas realidades. A influência do contexto internacional deu tom à realidade bra- sileira, no sentido de ensaiar a implantação de um Estado de bem- -estar social. Foram criados direitos políticos, algumas políticas de saúde e se desenhava a construção de medidas voltadas ao ordena- mento de recursos para o financiamento da previdência social. Em alguns estados brasileiros, por exemplo, já se debatia proposições de medidas interventivas mais amplas no campo da habitação, ali- mentação e da nutrição (DRAIBE, 1995). Contudo, o que realmente se efetivou foi a influência internacio- nal de um Estado configurado por reformas institucionais voltadas a modificar e reestruturar a máquina estatal, sob a perspectiva do “pri- 16 Políticas sociais públicas vilegiamento e do planejamento direto, da racionalização burocrática e da supremacia do saber técnico sobre a participação popular”. Esse período demarca a passagem do Estado populista para o tecnocrático (PEREIRA, 2002, p. 135). Na sequência, o Estado brasileiro foi regido pelo regime militar que, de 1964 a 1985, restringiu e eliminou os poucos direitos existentes na época, como os direitos políticos – um exemplo foi o Ato Institucional n. 5 (AI-5), instaurado em dezembro de 1968, pelo general Costa e Sil- va, que decretava a suspensão das atividades do Congresso Nacional e autorizava a perseguição a opositores. Ao total, foram promulgados 18 atos institucionais que eliminaram significativamente a perspectiva de um Estado de direito e de bem-estar social, modelo de Estado que se instaurava pelo mundo (NAPOLITANO, 1998). Além da retirada dos direitos políticos, houve forte repressão a qualquer manifestação de opinião diversa à do regime, ou seja, a li- berdade de expressão não era permitida. Em termos econômicos, os militares buscaram empréstimos com o capital estrangeiro e instau- raram medidas de corte de despesa, como a redução dos salários e dos direitos dos trabalhadores, o aumento de tarifas dos serviços pú- blicos e a restrição de crédito, o que proporcionou, inicialmente, o fortalecimento da economia nacional, mas, posteriormente, em 1985, resultou na quebra do país, devido à crise instaurada pelo montante da dívida internacional. Neste período o país foi governado por militares como os gene- rais Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emilio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueredo. Vale ressaltar que no governo Médici conhecido como “Anos de Chumbo” de- vido ao aumento da repressão e censura o país também passou por um “Milagre Econômico” com o objetivo de desenvolvimento era conseguido com grandes projetos financiados pelo capital externo, com isso, de 1968 a 1973 a economia brasileira cresceu a uma média de 12% ao ano, os fatores que contribuíram foram os empréstimos externos e investimentos estrangeiros, a expan-são industrial (automóveis e eletrodomésticos), aumento das ex- portações industriais e produtos agrícolas (soja, laranja), mas os salários ficaram baixos a mortalidade infantil aumentou, cresceu a miséria da população e também foi a época das grandes obras entre elas, a ponte Rio – Niterói e a estrada Transamazônica, foi também nesta época que o Brasil sagrou-se tricampeão mundial de futebol no México em 1970 todos esses “fatores positivos” era Fundamentos sócio-históricos da política social 17 usado pelo governo militar como propaganda a seu favor. ‘O país vai bem, mas o povo vai mal (Reconhecimento de Médici em visi- ta ao nordeste)’. (BOULOS JR., 2009, p. 232-233) A resistência ao regime ocorreu, inicialmente, por meio da organiza- ção de estratégias de fuga do forte sistema de controle instituído pelos militares (Serviço Nacional de Informação – SNI). Artistas manifestavam crítica ao cenário opressor com peças, poesias e festivais de música que continham mensagens implícitas, jornalistas elaboraram jornais alternativos, como O Pasquim, e panfletos que ofereciam conteúdos teóricos e menções ideológicas, sindicalistas, estudantes e intelectuais se organizaram e planejaram atos de resistência e enfrentamento ao regime. O movimento conhecido como Diretas Já foi a organização que reuniu diversos grupos de oposição ao regime militar, instituiu passea- tas e diversas manifestações. Em suma, tratou-se de um capítulo peculiar da história brasileira que deixou cicatrizes. O endividamento do setor público também foi uma das heranças deixadas pelo regime militar, visto que na ten- tativa de “compensar” a retirada dos direitos políticos, realizaram descomunais empréstimos internacionais a fim de promover o cres- cimento econômico e a modernização no país. Contudo, o equilíbrio econômico instaurado não beneficiou a distribuição de renda e o resultado foi a ampliação da desigualdade social no país. Contexto que também exerceu forte influência na organização popular contra as arbitrariedades do governo. A transição do regime militar para o Estado democrático de direi- to se deu mediante dois grandes marcos históricos: a eleição do novo presidente da República, em 15 de janeiro de 1985 (empossa Tancre- do Neves, que logo adoece e acaba falecendo, e assume seu vice, José Sarney), e a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. A Constituição Federal (CF) brasileira foi instaurada e, com ela, o país inaugurou um amplo leque de direitos fundamentais – direitos retira- dos pela ditadura foram retomados e novos direitos instituídos, com base nos aprendizados resultantes do período ditatorial. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi- dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos A série Os dias eram assim retrata o contexto viven- ciado pela população brasileira do período do regime militar até o acon- tecimento do movimento Diretas Já. Esse contexto histórico é de extrema importância para o nascimento das políticas públicas sociais. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=eq5U8DKCzTE. Acesso em: 28 jul. 2020. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=eq5U8DKCzTE https://www.youtube.com/watch?v=eq5U8DKCzTE https://www.youtube.com/watch?v=eq5U8DKCzTE 18 Políticas sociais públicas termos desta Constituição; II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desu- mano ou degradante; IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença re- ligiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a ima- gem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação [...]. (BRASIL, 1988) Desse modo, a CF/1988 consagrou um novo modelo jurídico de so- ciedade e de Estado, no qual o direito passa a ser entendido como in- trínseco à condição humana. A Carta Maior passa a ser, portanto, o principal instrumento com o objetivo de efetivação da cidadania. Um dos marcos inéditos para a realidade brasileira se localiza nos artigos constitucionais 203 (prevê os destinatários) e 204 (prescreve as ações governamentais, a destinação de recursos que as diretrizes base de funcionamento), transcritos a seguir. Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessi- tar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de defi- ciência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por Fundamentos sócio-históricos da política social 19 sua família, conforme dispuser a lei. Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade so- cial, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I - descentralização político administrativa, cabendo a coorde- nação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e muni- cipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II - participação da população, por meio de organizações repre- sentativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. Parágrafo único. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a programa de apoio à inclusão e promoção social até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, veda- da a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003); I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emen- da Constitucional nº 42, de 19.12.2003); II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003); III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamen- te aos investimentos ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003). (BRASIL, 2003) Assim, tivemos o nascimento da assistência social, prescrita como política social pública, aprimorada pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) em 1993, instituída como direito de todo cidadão que dela tiver necessidade. Trata-se de um conjunto integrado de ações estatais, voltado a assegurar os direitos sociais e o rompimento do caráter conservador (assistencialismo e filantropia) atribuído às políti- cas sociais nos anos que antecederam a CF/1988. A assistência social objetiva desenhar e implantar novos tipos de entendimentos e práti- cas diante da condição de vulnerabilidade e/ou risco social da popula- ção brasileira (BRASIL, 1993).A LOAS (Lei n. 8.742/1993) regulamenta os artigos 203 e 204 da CF/1988, reafirmando a concepção de assistência social como políti- ca pública universal e enfatizando a particularidade da necessidade e obrigatoriedade de que sua gestão se efetive de modo participativo. Desse modo, a responsabilidade da organização da assistência so- cial passa a ser designada às diferentes esferas do governo, situando-as 20 Políticas sociais públicas quanto à descentralização político-administrativa, à divisão com rela- ção a coordenação e a execução das ações, bem como às competências específicas da esfera federal, estadual e municipal. Coube também à LOAS assegurar o espaço de participação da sociedade (as organiza- ções não governamentais e os conselhos paritários e deliberativos), diante do controle e da gestão das políticas sociais (BRASIL, 1993). Na sequência dos marcos históricos que configuram a materiali- zação da seguridade social no Brasil, apresenta-se a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), estabelecida em 2004, mais de uma dé- cada após a promulgação da LOAS. A PNAS apresenta características peculiares responsáveis pela potencialidade do real acesso às políticas sociais e, portanto, pela efetivação da legalidade imposta pela LOAS. Para tal, enfatiza: a perspectiva socioterritorial, ou seja, a identificação e atuação diante das demandas, conforme as particularidades de cada região brasileira (cidades, municípios e bairros); e a elaboração de es- tratégias de atuação intersetorial, com vistas à constituição de serviços articulados em rede e à centralização sociofamiliar (BRASIL, 2004). De modo geral, a PNAS conduz atuações mais significativas quanto à seguridade social e confere maior grau de eficiência, eficácia e efe- tividade com relação à superação da desigualdade social brasileira. A melhor identificação dos diferentes níveis de vulnerabilidade e de risco (com base na realidade vivenciada em cada parte do território nacional) e a visibilização social dos grupos historicamente oprimidos. No ano seguinte da criação da PNAS, já em 2015, tivemos a ins- tituição do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), enquanto principal instrumento de implantação da PNAS. Um sistema que unifica cerca de 50 artifícios técnicos e políticos com o intuito de organizar e estabelecer ações, projetos e programas socioassisten- ciais. Uma das mais importantes propostas do sistema se refere ao direito de participação e protagonismo dos usuários da proposição ao uso dos serviços (SPOSATI, 2006). A base de operacionalização dos rumos e da gestão pública do SUAS é normatizada pela Norma Operacional Básica (NOB/SUAS), também aprovada em 2005. Essa norma estabelece: o estilo do sistema e suas funções, bem como seu financiamento; as instâncias de articulação e deliberação; e os níveis de gestão. Quanto aos princípios, é regida pela: universalidade; padronização; tipificação de atendimentos; descentrali- A Lei Orgânica da Assistência Social é um dos principais instrumen- tos interventivos com relação ao atendimento das pessoas que vivem em situação de extrema pobreza. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l8742compilado.htm. Acesso em: 28 jul. 2020. Leitura http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742compilado.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742compilado.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742compilado.htm Fundamentos sócio-históricos da política social 21 zação político-administrativa; fiscalização e controle; articulação de co- bertura com as demais políticas; manutenção do sistema democrático e participativo, juntura institucional com órgãos de sistemas de defesa dos direitos humanos; manutenção do sistema de gestão de pessoas e ges- tão e controle social da atuação por níveis de complexidade protetiva. Desse modo, com a CF/1988, a LOAS, a PNAS e o SUAS, o Brasil inau- gura uma nova era de seguridade para seu povo. De modo direto e indireto, estabelece o “tom e os rumos” do sistema de proteção social brasileiro e se configura como um dos principais mecanismos de dis- tribuição de renda do país. Incide a nível nacional, em processos am- plos, dinâmicos e complexos de democratização do acesso à garantia de direitos sociais, com base na garantia de condições de sobrevivência (renda e autonomia), acolhida e vivência familiar. 1.3 Políticas públicas setoriais Vídeo O século XXI tem sido demarcado por uma moderna gestão estatal que resultou em maior efetividade da função do Estado, bem como na democratização da participação cidadã – conferências, Conselhos de Direito, sistema de prestação de contas com maior transparência. A integração de novos atores da sociedade civil (do planejamento à fiscalização da política pública), o estabelecimento de parcerias com organizações sem fins lucrativos e a atuação particularizada, por meio da definição de setores, também foram significativas transformações desse período. Ao passo em que se ampliava a responsabilidade esta- tal, com a criação de políticas sociais, também se fortalecia a pressão do mercado para a terceirização dos serviços públicos. Uma das dimensões da organização do Estado, que bem caracteriza esse período, refere-se ao planejamento de ações e projetos direciona- dos a determinados setores da sociedade, isto é, às políticas públicas setoriais: setor agrário, saúde, assistência social, meio ambiente, entre outros, como o setor de educação. À medida que se constituíam os novos cenários no âmbito do Estado, a aplicabilidade das políticas públicas foi se tornando mais am- pla, complexa e organizada, com setores integrados, o que possibilitou uma visão mais totalitária das problemáticas da sociedade e o melhor encaminhamento das demandas. 22 Políticas sociais públicas A divisão setorial é organizada com foco no desenvolvimento de políticas que atendam às particularidades de determinados setores da sociedade. Em outras palavras, as ações, os projetos e os programas públicos abarcam recursos específicos referentes a cada setor: espe- cialidade técnica, recurso próprio, tecnologias peculiares, base teórica específica, bem como leis e diretrizes setoriais. Trata-se de um tipo de divisão estratégica que potencializa o estabelecimento de objetivos, plano de atuação, alocação de recursos econômicos e humanos. Contudo, a divisão setorial requer avanços, visto que apresenta certa propensão a desconexões e disputas entre setores, devido ao difícil mane- jo das relações sociais, tanto na questão do entendimento da necessidade de atuação interdisciplinar quanto da troca e do acompanhamento do ciclo de atendimentos. A articulação entre atores e instituições – intersetoriali- dade – é um desafio que compõe a aplicabilidade das políticas setoriais. A intersetorialidade se refere a práticas de aproximação e conexão entre diferentes setores. Trata-se, em suma, de uma estratégia que exige uma práxis mais maturada, voltada a fomentar e promover ações coope- racionais e integrativas, a fim de que as políticas públicas alcancem maior eficiência, eficácia e efetividade. No entanto, isso dificilmente se efetiva de modo integral, dadas as particularidades da cultura política brasileira, que ainda apresenta fortes heranças do Brasil colonial. A divisão setorial é um tipo de fragmentação estrutural que compõe o atual modelo de Estado. As políticas setoriais são cria- das e implementadas por meio de medidas que beneficiam o olhar mais focalizado na especificidade e potencializam a objetividade no trato de determinada problemática; contudo, na mesma medida, podem se tornar um deficit de gestão quando aplicadas de modo centralizado e desarticulado. Assim, o que se observa no Estado, seja em órgãos federais, estaduais e municipais é uma desarticulação na formulação e implementação de políticas públicas que gera uma ineficiência e ineficácia por parte do Estado, uma vez que se despedem re- cursos para programas ou políticas para tratar públicosseme- lhantes ou distintos que não atingem os resultados devidos. (LIPPI, 2009, p. 21) Contudo, as experiências têm sido mais positivas do que negativas. A assistência social, por exemplo, é um setor que tem exercitado uma divisão estratégica integrativa do funcionamento dos serviços e meca- Fundamentos sócio-históricos da política social 23 nismos. As políticas sociais apresentam alta capacidade de articulação, integração, ampliação e áreas de complexidade. A assistência social, como direito constitucional, é gerida pelo Mi- nistério do Desenvolvimento Social (MDS), órgão que objetiva atuar no enfrentamento à pobreza e no combate da pobreza extrema, frente que tem como base a PNAS. Em suma, compõem a gestão do MDS: o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); o Fundo Nacional de Assis- tência Social (FNAS); o Fundo Nacional de Combate e Erradicação da Pobreza (FNCP); o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS); a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e o Conselho Nacional de Segu- rança Alimentar e Nutricional (CONSEA). (BRASIL, 2018) O MDS é o principal responsável pela coordenação e implemen- tação do SUAS, estratégia de gestão compactuada com os estados e municípios, mediante repasses de fundos de financiamento. As Or- ganizações da Sociedade Civil (OSC) também integram esse sistema unificado. A articulação entre gestores federais, estaduais, municipais e sociedade civil é a estratégia de gestão organizacional que melhor corresponde à necessidade de rede de proteção e promoção social do país. O SUAS é extremamente moderno no que diz respeito à sua gestão e operacionalização, visto que seu planejamento e insti- tucionalização preveem a articulação de saberes e experiências do planejamento à avaliação, a cooperação entre diferentes setores e a participação de diferentes atores sociais. O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) conta em sua es- trutura com os órgãos de assistência direta e imediata ao Mi- nistro de Estado: Gabinete da Ministro (GM); Assessoria Especial de Controle Interno (AECI); Consultoria Jurídica (CONJUR); Se- cretaria Executiva (SE); Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), que faz a gestão da Política Nacional de Assistência So- cial e do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS); A Secre- taria Nacional de Renda de Cidadania (Senarc), que executa a Política Nacional de Renda de Cidadania e realiza as atividades de gestão do Bolsa Família e do Cadastro Único para Programas Sociais; A Secretaria Nacional de Promoção do Desenvolvimento Humano (SNPDH) é responsável pela formulação e implemen- tação de políticas e programas intersetoriais para a promoção do desenvolvimento humano, em especial para primeira infân- cia, adolescentes, jovens e idosos. Também coordena, super- visiona e acompanha a implementação do Plano Nacional da Primeira Infância; A Secretaria Nacional de Segurança Alimentar 24 Políticas sociais públicas e Nutricional (Sesan), que implementa a Política Nacional de Se- gurança Alimentar e Nutricional e realiza ações estruturantes e emergenciais de combate à fome e de inclusão produtiva rural. A Sesan exerce o papel de Secretaria Executiva da Câmara In- tersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN); A Se- cretaria de Inclusão Social e Produtiva (Sisp) é responsável pelo planejamento, implementação e monitoramento de planos, polí- ticas e programas de inclusão social e produtiva para os benefi- ciários dos programas do MDSA; A avaliação e o monitoramento das ações e programas desenvolvidos pelo MDS são atribuições da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (Sagi), que também realiza e divulga estudos e pesquisas e viabiliza ciclos de capacitação de agentes públicos e sociais; Instituto Nacional do Seguro Social que regula a Previdência Social, direito social, previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988 entre os Di- reitos e Garantias Fundamentais, que garante renda não inferior ao salário mínimo ao trabalhador e a sua família nas seguintes situações, previstas no artigo nº 201 da Carta Magna: I - cobertu- ra dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II proteção à maternidade, especialmente à gestante; III proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; IV salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segu- rados de baixa renda; V pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes. (BRASIL, 2018) A gestão do SUAS é executada entre a União – que tem a responsa- bilidade de formular, fiscalizar e coordenar as ações gerais do sistema –, os estados e os municípios – que têm seus papéis desenhados pela NOB/SUAS. O planejamento de gestão do SUAS prevê três níveis de evolução, segundo as particularidades e capacidades dos municípios: inicial, básico e pleno. Nesse ínterim, o maior campo de responsabilidade cotidiana fica a cargo dos municípios, que no nível inicial são responsáveis pela ga- rantia de existência de conselhos de direito, bem como pelo controle dos fundos e dos planos municipais de assistência social. Já no nível básico, compete aos municípios gerir com autonomia a gestão da proteção básica, e no nível pleno, o município assume a gestão total de suas ações socioassistenciais. A construção do processo de gestão descentralizada acontece tam- bém por meio dos espaços de troca e partilha, por intermédio de suas instâncias de pactuação: a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e as Comissões Intergestores Bipartite (CIB): Fundamentos sócio-históricos da política social 25 A CIT é um espaço de articulação e expressão das demandas dos gestores federais, estaduais e municipais. Ela negocia e pactua sobre aspectos operacionais da gestão do Suas e, para isso, mantém contato permanente com as CIBs, para a troca de informações sobre o processo de descentralização [...] cabe a cada ente organizar a assistência social por meio do sistema descentralizado e participativo denominado SUAS, de acordo com sua competência, em consonância com Constituição Fede- ral e os normas gerais exaradas pela União, de forma a otimizar os recursos materiais e humanos, além de possibilitar a pres- tação dos serviços, benefícios, programas e projetos da assis- tência social com melhor qualidade à população. Ademais, vale destacar que o Pacto de Aprimoramento do SUAS do quadriê- nio 2014- 2017, aprovado por meio da Resolução nº 18 de julho de 2013, do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, destinado à gestão municipal, prevê como prioridade a adequa- ção da legislação municipal ao SUAS, tendo como meta a atua- lização ou instituição por todos os municípios de lei que dispõe acerca do respectivo Sistema. (IGD/SUAS, 2014) Desse modo, a gestão setorial descentralizada tem se mostrado efe- tiva na ampliação da capacidade de execução da PNAS e do SUAS, dada a potencialidade à articulação prevista nos moldes da descentralização e da perspectiva de cooperação entre governo federal, estadual e mu- nicipal. Um tipo de gestão complexa e altamente refinada. O MDS tem sido pautado para a exequibilidade da gestão da assis- tência social, pelas seguintes frentes: gestão compartilhada; capacitação permanente do apoio técnico (orientação e capacitação da equipe técni- ca responsável pela implantação dos serviços); vigilância socioassistencial (sistematização de dados e análise diante da demanda real e de serviços prestados); tipificação de serviços e financiamento (normas e diretrizes); efetivação do pacto de aprimoramento (ações de estruturação e aper- feiçoamento do SUAS: planejamento e acompanhamento da gestão, organização e execução dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais); entre outros, como a regulação do SUAS – elaboração de leis, regras, normas, instruções, além da assessoria normativa para o desenvolvimento da política de assistência social. (BRASIL, 2018) A aplicabilidade da gestão descentralizada da política de assistência social ocorre medianteimplantação de programas e serviços que obje- tivam garantir suporte de atendimento por tipificação de demanda, ou seja, um leque de serviços voltados a prevenir situações de violação de 26 Políticas sociais públicas direitos e outro leque de programas voltados a apoiar pessoas que já se apresentam na condição de direito violado. Em outras palavras, o Ser- viço de Proteção Social Básica e o Serviço de Proteção Social Especial. O Programa Bolsa Família é o programa de assistência social mais conhecido, devido à sua abrangência. Trata-se do programa de transferência de renda mais amplo do mundo (abrange 50 milhões de beneficiários), coordenado pelo MDS e articulado a outros progra- mas e serviços, como: Proteção e Atenção Integral à Família (PAIF); Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI); População em Situação de Rua; Programa Bolsa Família; Convivência e Fortalecimento de Vínculos; Equipes Volantes; Abordagem Social; Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosos e suas Famílias; Serviços de Acolhimento; Medidas Socioeducativas; Situação de Calamidade Pública; Benefício de Prestação Conti- nuada BPC; Acessuas Trabalho, assim como as Ações Estratégicas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Os programas e serviços são implantados por meio de mecanis- mos públicos, bem como em entidades sem fins lucrativos que tenham atuação direcionada ao atendimento assistencial de crianças e/ou adolescentes, mulheres vítimas de abuso e/ou violência, pessoas com deficiência, pessoa em situação de rua e idosos. Adentram esse univer- so: unidades de acolhimento (Casa Lar, Abrigo Institucional, República, Residência Inclusiva, Casa de Passagem), os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), o Centro de Referência Especializado de Assis- tência Social (CREAS), entre outros mecanismos, como os Centro-Dia de Referência para Pessoa com Deficiência e suas Famílias. Assim, a assistência social, como política setorial, por meio de um diverso campo de ações, projetos e programas, busca fomen- tar e promover novos cursos na condição de vida dos sujeitos que se encontrem em situação de vulnerabilidade e/ou risco social. Também desenvolve o papel de criar novas visões e valores diante da desigualdade social, bem como instituir melhor distribuição da renda construída socialmente. Trata-se, portanto, de uma política complexa, ampla e moderna, pois ainda que se trate uma política setorial, sua implantação apresenta inúmeros elementos que a caracterizam como política que se articula aos demais setores, tanto no que se refere à implantação intersetoriali- Fundamentos sócio-históricos da política social 27 zada dos serviços e programas (se articula a demais políticas setoriais) quanto à articulação de instituições e agentes. Portanto, a assistência social pode ser considerada uma das políti- cas setoriais que melhor apresenta potencial de efetividade, dada a sua potencialidade de construção e intensificação de redes de atendimento e suporte, bem como sua diversidade e qualificação de recursos huma- nos empregados, além de sua competência na geração de instrumen- tos, métodos e saberes inovadores. Principalmente no que se refere à superação dos padrões sócio-históricos de ausência e/ou negligência do Estado diante das condições do exercício da cidadania. Contudo, além de ainda estar em processo de implantação, na atual conjuntura (governo de Jair Bolsonaro), tem sofrido desmontes diversos, o que a impossibilita de cumprir o seu papel integral de política de seguridade social. CONSIDERAÇÕES FINAIS As políticas sociais são instrumentos essenciais a toda sociedade que tenha como meta a efetivação da democracia e/ou ao menos a ampliação da igualdade social. No serviço social, as políticas sociais ocupam lugar central, pois é por meio delas que os/as assistentes sociais desenvolvem a maior parte da sua atuação cotidiana. Não há como desenvolver um trabalho com vistas à emancipação humana sem os meios que possam concretizá-la. Portanto, as políticas sociais são instrumentos insubstituíveis (ao menos nas sociedades ca- pitalistas), visto que são capazes de promover os acessos necessários à garantia de condições mais dignas de vida, sejam econômicas, sociais, culturais, habitacionais, educacionais, relacionadas ao equilíbrio do psico- lógico humano e/ou à proteção social contra situações de violência, maus tratos e negligências sociais diversas. O nascimento das políticas sociais também é um marco no que diz respeito às conquistas efetivadas pelos trabalhadores. Demonstra a força da organização popular com relação ao avanço da humanidade, tendo em vista que suas lutas resultaram no aprimoramento de di- versos setores da sociedade. Nesse sentido, também comprova que o rumo social das nações não pode ser deixado apenas nas mãos dos grupos que historicamente ocu- pam os espaços de poder, dado que estes só voltam sua atenção aos gru- 28 Políticas sociais públicas pos menos favorecidos quando se sentem afetados drasticamente, sejam pelas crises econômicas que freiam a economia, seja pela violência que se exacerba devido à condição de extrema desigualdade social. ATIVIDADES 1. O contexto europeu do século XIX foi marcado por experiências de guerra, alterações no modo de produção, radicalizações diversas nos tipos de Estado e por intensos conflitos de classes; conjuntura social, econômica e política que desencadeou níveis extremos de desigualdade social, como o nascimento do desemprego e da pobreza extrema. Com essas experiências, a Europa compreendeu que não seria possível desenvolver-se enquanto sociedade sem medidas com relação à má distribuição de renda. Dado o contexto, qual foi a principal medida tomada pelos países europeus? 2. Além de ser a carta que formalizou o fim do regime ditatorial e a retomada da democracia no Brasil, a Constituição de 1988 inaugurou uma nova era para os brasileiros, no que diz respeito à proteção social. A nova proposta de seguridade social traz a assistência social como direito a quem dela precisar. Nesse sentido, em qual lei encontra-se fundamentada essa proposta de proteção social? 3. Uma das principais características do novo sistema de proteção social brasileiro é a sua dimensão organizacional estruturada por setores de atuação (educação, meio ambiente, habitação, saúde, assistência social etc.). Um elemento que resultou da própria característica democrática da Constituição de 1988, visto que a integração de novos atores da sociedade civil no planejamento e na fiscalização da política pública passou a ser fomentada e garantida como direito. Tendo em vista o contexto apresentado, explique o motivo de essa organização ser setorializada. REFERÊNCIAS ABRANCHES, S. H. The politics of Social Welfare development in Latin America. In: 12, CONGRESSO MUNDIAL DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CIÊNCIA POLÍTICA. Anais [...] Rio de Janeiro, ago. 1982. BOULOS JR., A. História: sociedade & cidadania. São Paulo: FTD, 2009. BRAGA, J. S. de S. Alemanha: império, barbárie e capitalismo avançado. In: FIORI, J. L. (org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999. BRASIL. Lei n. 10.741, de 1 de outubro de 2003. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 3 out. 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm Fundamentos sócio-históricos da política social 29 l10.741.htm. Acesso em: 28 jul. 2020. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Conselho Nacional de Assistência Social. Plano Decenal SUAS Plano 10. 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As políticas afirmativas e os distintos sociais 31 2 As políticas afirmativas e os distintos sociais Este capítulo aborda a política afirmativa no contexto da sua relação com a desigualdade social e sua importância e perspectiva frente à garantia de direitos. A fim de fornecer um arcabouço mais completo, apresentaremos alguns dos fenômenos e dos fatos que configuram dinâmicas sociais de discriminação, violência e crimina- lização na vida de grupos historicamente excluídos. Ofereceremos suportes para a compreensão das políticas afir- mativas, enquanto medidas que visam amenizar e/ou eliminar as desigualdades sociais advindas de processos discriminatórios histó- ricos. Nesse sentido, apresentamos alguns elementos constituintes da história de grupos sociais distintos, com maior ênfase na política afirmativa voltada à pessoa com deficiência e à pessoa idosa. 2.1 O nascimento das políticas afirmativas Vídeo As sociedades são alteradas e aperfeiçoadas conforme os fatos e os processos vivenciados ao longo da história. Na mesma direção, as políticas públicas são resultados desses processos, portanto, também evoluem. Sua criação, revisão e inovação resultam das transformações sociais impostas pelos grupos que constituem a sociedade. Nesse ínterim, as políticas públicas surgiram como instrumentos voltados a implementar respostas às necessidades sociais. São medi- das sociais interventivas oriundas tanto do resultado das lutas sociais travadas pela organização popular quanto das ações impostas pelos grupos dominantes para manter uma estrutura social que lhes perpe- tue em postos de poder. Dito de outro modo, as políticas públicas e sociais continuam a ser implantadas em diferentes realidades e por diferentes projetos 32 Políticas sociais públicas de governo, em diversos países do globo, e um dos últimos aprimo- ramentos nesse quesito faz referência às políticas afirmativas, que visam intervir na organização das sociedadesem prol de enfrentar as desigualdades sociais históricas. O debate sobre as políticas afirmativas nasceu nos Estados Unidos, com os grupos e movimentos sociais americanos que, na década de 1960, ganharam força com reivindicações pela efetivação de uma de- mocracia ampliada que realmente viabilizasse a igualdade de oportuni- dades a todos, principalmente entre brancos e negros. A ação afirmativa não ficou restrita aos Estados Unidos. Expe- riências semelhantes ocorreram em vários países da Europa Ocidental, na Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros. Na Europa, as primei- ras orientações nessa direção foram elaboradas em 1976, uti- lizando-se frequentemente a expressão ação ou discriminação positiva. Em 1982, a discriminação positiva foi inserida no pri- meiro Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades da Comunidade Econômica Europeia. (MOEHLECKE, 2002, p. 199) Os movimentos que efervesceram nos Estados Unidos rapidamen- te também foram protagonizados na Europa e, posteriormente, na América Latina. A principal bandeira de luta enfatizava a supressão das leis segregacionistas e requeria o comprometimento do Estado para com o desenvolvimento de medidas que afirmassem condições iguali- tárias de desenvolvimento aos grupos historicamente excluídos. Assim, a reivindicação por políticas afirmativas passou a integrar o debate das políticas públicas e foi fortemente abraçada pelos mo- vimentos sociais. Os diálogos e embates tiveram como conquista a implantação de cotas obrigatórias de inclusão, leis de incentivo, pro- gramas e ações de enfrentamento à discriminação de sujeitos e grupos que, por sua condição de raça, gênero, etnia, religião, orientação sexual e/ou prática cultural, são historicamente excluídos e/ou negligenciados no sistema estrutural das sociedades. No contexto brasileiro, o debate das políticas afirmativas teve início ao final da década de 1960, conforme materializado na proposta de lei criada pelos técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho, em 1968. Tal proposta versava sobre a instituição obrigató- ria de cotas para contratação de negros e negras em empresas privadas, como uma medida de enfrentamento ao contexto de discriminação ra- cial existente no mercado de trabalho brasileiro (SANTOS, 1999). As políticas afirmativas e os distintos sociais 33 A proposta, contudo, não foi aprovada. Somente após a promul- gação da Constituição Federal de 1988 os movimentos sociais bra- sileiros tiveram acesso a meios e condições reais para projetarem a criação de políticas afirmativas. Os princípios constitucionais foram materializados por um conjunto de políticas públicas voltado ao en- frentamento da desigualdade social e ao desenvolvimento da eman- cipação dos brasileiros. A imposição de parâmetros técnicos e de profissionalização para implementação de políticas públicas, por exemplo, foi uma das princi- pais mudanças geradas pelo aparato constitucional, visto que possibi- litou que a perspectiva do direito imperasse sobre as antigas práticas que constituíam a cultura política brasileira. Essas práticas foram usa- das por séculos pelas elites políticas e econômicas para condicionar a maior parte da população brasileira a depender de ações de benevo- lência, de caridade e de negociações de favores (LOPES, 2014). Esse processo de superação de muitas das práticas políticas imediatistas, fragmentadas, restritas e excludentes protagonizou no país o exercício da proteção social integral, da democracia e dos direitos humanos, por meio de atuações preventivas e do comba- te processual da desigualdade social brasileira (de modo direto e indireto); elemento que se constitui como prova concreta de que as políticas públicas e sociais se caracterizam como uma das principais frentes de resposta às injustiças sociais. Os aprendizados resultantes das experiências diante da nova conjuntura imposta pelo acesso às políticas públicas alteraram, tam- bém, os tipos de reivindicações, dado que a implantação das políti- cas públicas e sociais oportunizou à população brasileira a vivência da era dos direitos e, portanto, a participação no processo de cria- ção da coisa pública. A partir do momento que a era do favor perdeu espaço para a era dos direitos, uma parte representativa da popula- ção brasileira passou a ampliar suas bandeiras de lutas e a instaurar novos marcos reivindicatórios. Na década de 1990, o movimentos negro, feminista e outros grupos, bem como os movimentos sociais, passaram a exigir do Estado brasi- leiro políticas públicas e sociais que pudessem transcender as ações já existentes, com relação à efetivação de direitos. Assim, entrou em pauta a necessidade de uma inclusão pensada sob a ótica das peculia- ridades que constituem os diferentes. 34 Políticas sociais públicas Como resultado desses processos, tivemos o nascimento das polí- ticas afirmativas no Brasil, caracterizadas por um conjunto de ações, projetos e programas estatais e privados voltados ao pagamento de dí- vidas históricas; estas advindas de discriminações e exclusões arcaicas oriundas do berço da maioria das sociedades. Essas políticas sociais seriam voltadas a amparar, de modo in- tegral, as necessidades peculiares dos sujeitos e dos grupos que tiveram e/ou ainda têm formação identitária comprometida, prin- cipalmente com relação à ausência de valor e de respeito às suas características peculiares. Sujeitos que, por sua cor, raça, cultura, práticas, características linguísticas e/ou físicas, orientação sexual, prática cultural e/ou seus valores, foram e ainda são excluídos, ne- gligenciados e/ou desamparados legalmente. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (BRASIL, 2005), por exemplo, é umas das macropolíticas que tem em sua estrutura medi- das voltadas à afirmação de direitos dos sujeitos e dos grupos histori- camente excluídos. A PNAS é uma política pública social especializada, particularizada, desmercadorizável, genérica e universalizante. Sua implantação proporcionou a identificação de demandas sociais histo- ricamente invisibilizadas 1 Invisibilidades que marcaram e ainda marcam a vida de milhões de brasileiros (as) que consti- tuem a população-alvo das polí- ticas afirmativas, principalmente as populações que residem em aglomerados, favelas e regiões de distanciamento de estruturas essenciais como o saneamento básico. 1 , além de ter abarcado territorialidades e intersetorialidades nunca antes priorizadas na história do Brasil. A vivência do leque de acessos proporcionado pelas políticas públi- cas sociais como a PNAS resultou em aprimoramentos diversos para a população brasileira, visto que abrangem aspectos para além do econômico. Essa é uma condição essencial para a afirmação de direi- tos das populações historicamente excluídas, visto que o preconceito estrutural é um impeditivo à constituição de outros tipos de capitais como o capital social e o capital cultural. Configuram o público-alvo das políticas afirmativas os sujeitos e gru- pos vítimas de preconceitos históricos, como as negritudes, os indígenas e as mulheres. Incluem-se, também, as vítimas de discriminações por ques- tões mais contemporâneas, como os sujeitos transgêneros e os demais sujeitos que compõem as populações LGBTQIA+ 2 LGBTQIA+ é a sigla utilizada para fazer referência a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais,transgêneros, queer e intersex e assexuados. No livro História da Sexualidade, Foucault oferece um excelente material para quem busca compreender a raiz dessas questões. As autoras Simone de Beauvoir, Saffioti e Altmann também abarcam, de modo significativo, o debate acerca do gênero e da sexualidade. 2 , idosa, em situação de rua, dentre outros, e a pessoa com deficiência. Sujeitos que, por sua con- dição étnica, religiosa, de gênero, de sexualidade, por características linguísticas, físicas e/ou culturais, são discriminados pelos demaisgru- pos da sociedade e, portanto, ignorados e/ou excluídos de processos transgênero: termo que faz referência aos sujeitos que não se identificam com o gênero que diz respeito ao seu sexo biológico. É importante pontuar, também, que a questão de identidade de gênero não está necessariamente relacionada com a orientação sexual dos sujeitos. Glossário As políticas afirmativas e os distintos sociais 35 sociais que são essenciais ao desenvolvimento de um aprimoramento humano mais justo e igualitário. Discriminações estruturais configuram uma dura realidade que se manifesta em séculos de histórias de vidas prejudicadas. Esse contex- to de vida se materializa em números absurdos de vidas retiradas em todo o mundo e, no Brasil, aumentam mais a cada dia. O povo indígena, por exemplo, é um dos grupos brasileiros que mais necessita de políticas afirmativas. Além do genocídio que eliminou milhões de indígenas nos tempos do Brasil Colônia, reduzindo essa po- pulação em 90%, na atualidade continuam sendo assassinados cerca de 100 indígenas por ano. Mesmo após 500 anos de história, o Brasil continua a desrespeitar e a eliminar os verdadeiros donos do território nacional (CIMI, 2018). A demarcação das terras dos povos indígenas é uma promessa constitucional que ainda não se cumpriu, e a população indígena conti- nua sendo assassinada. O Estado brasileiro é o maior responsável pelo genocídio indígena. Primeiro porque a não demarcação deixa a popu- lação indígena vulnerável diante dos conflitos gerados pela disputa da terra; segundo por não punir efetivamente os culpados pelos crimes cometidos contra os povos indígenas; terceiro porque garante supor- te aos interesses dos ruralistas, agropecuaristas e garimpeiros (grupos que visam tomar posse das áreas onde vive a população indígena); quarto porque não concretiza políticas públicas que sejam mais efeti- vas para a afirmação da cultura indígena; e, por último, porque o Esta- do ainda se apresenta como uma instituição que reforça, em diversos aspectos, concepções e práticas indigenistas, racistas e etnocêntricas. O povo negro recebe do Estado e da sociedade um tratamento ainda pior, visto a falta de demarcação de terra ao povo de origem africana, que ergueu as bases deste país por meio do trabalho es- cravo. A eles foram destinados os territórios periféricos, os cortiços, as favelas e as encostas dos morros localizados no meio urbano, ou seja, há segregação social. Ao povo negro foi destinado o trabalho mais pesado, o salário mais baixo, a desqualificação da beleza, a criminalização da cultura, a prostituição, a naturalização da violência contra seus corpos e a miséria. As mulheres continuam a ser vítimas de feminicídio, sendo assassi- nadas pelo simples fato de serem mulheres, e o Brasil ocupa o 5º lugar 36 Políticas sociais públicas dentre os países que apresentam os maiores índices de feminicídio no mundo. A maioria das vítimas são negras e pobres que vivenciam coti- dianamente diversos tipos de exclusão e violência devido a uma cultura estrutural machista e patriarcal que impõe a ideia da superioridade do masculino sobre o feminino. A elas tem sido destinada a naturaliza- ção do abuso e a responsabilização pelo estupro de seus corpos. Elas compõem o maior grupo populacional do mundo, mas são minoria nos espaços e postos de poder (CIMI, 2018). As mulheres carregam fardos extremos, são condenadas à sub- missão ao masculino e à procriação como função social, têm suas liberdades condicionadas, são reprimidas em seus pensares, este- reotipadas segundo a vontade masculina e agredidas quando se posicionam no enfrentamento. E, assim, se estabelece a violência contra a mulher, enquanto resultado de uma construção social es- trutural de desigualdade nas relações de força e poder entre ho- mens e mulheres. Um construto que se reproduz pela cultura e que culmina na morte de milhões de mulheres. Os casos de discriminação contra as negritudes, os povos indíge- nas e contra as mulheres, contudo, têm sido debatidos com mais fre- quência na atualidade. Com o advento da internet, o mesmo pode ser dito sobre a discriminação contra a população LGBTQI+; uma conquista comprovada da militância incansável e histórica dos movimentos so- ciais que representam esses grupos populacionais. Esse sujeitos computam séculos de luta e avançaram tanto na pu- blicitação de suas pautas quanto em relação a produções científicas no campo da luta pela efetivação de seus direitos. Tal contexto se compro- va com o quantitativo de produções acadêmicas existentes acerca des- sas temáticas, bem como pela frequência com que o debate aparece nas redes sociais e nos demais espaços de produção e disseminação de conhecimento e comunicação. Quanto à população em situação de rua, compreendemos que já é um campo bastante demarcado pelo senso comum, em relação a uma consciência social coletiva que afirma seu próprio precon- ceito e discriminação diante dessa parcela da população. Observa- mos, também, certa priorização dessa pauta na abrangência dos debates, dada a atual conjuntura pandêmica em que vivemos: o surto de Covid-19. As políticas afirmativas e os distintos sociais 37 Nas próximas seções, daremos maior ênfase à pessoa com deficiên- cia e à pessoa idosa, pois entendemos que a discriminação desses dis- tintos grupos sociais ainda se estabelece de modo mais velado e, por vezes, mascarado. Mas, antes, pontuaremos um importante debate acerca do uso dos termos: distintos sociais e minorias sociais. 2.2 Distintos sociais x minorias sociais Vídeo Aos poucos, o debate das políticas afirmativas também ganhou prioridade nos espaços acadêmicos e ampliaram-se as pesquisas volta- das ao levantamento das condições de existência de grupos inicialmen- te intitulados minorias sociais – não em relação à quantidade, mas no sentido do abarcamento dos direitos. O termo minorias sociais está em debate no campo das ciências so- ciais, visto que há discordância acerca da real adequação do uso desse termo para fazer referência aos grupos excluídos por suas característi- cas peculiares. Ele tem sido usado para retratar uma dimensão quanti- tativa da realidade e para tipificar grupos e classes sociais. Essa confusão terminológica oculta detalhamentos importantes acerca dos diferentes debates, além de não contribuir para o desenvolvimento da consciência da maioria da população, com relação à ausência de igual- dade de oportunidades. No sentido de fomentar o debate, enfatiza-se a necessidade de se eleger um termo que realmente possa fazer jus aos grupos que requerem uma proteção especial e particularizada, no que diz respeito às vulnerabilidades que vivenciam. Um termo que expresse que a diferença não pode ser “utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a promoção de direitos” (PIOVESAN, 2005, p. 38). Para melhor compreensão desse debate, cabe observarmos o exemplo das mulheres. Estas são quantitativamente majoritárias em quase todas as nações do globo e, juntas, formam o maior grupo de indivíduos do planeta, ao mesmo tempo que são minoria com relação aos sujeitos que possuem melhores salários. No mesmo tipo de exer- cício comparativo, são minoria entre os sujeitos que ocupam cargos de melhor prestígio e nas profissões nas quais a mecânica, a física e as tecnologias imperam. Pertencem ao grupo que mais sofre violência de gênero e computam o maior quantitativo de vítimas de morte por agressão do mundo. São, portanto, minorias ou maiorias sociais? 38 Políticas sociais públicas Vejamos, também, outros elementos: a vivência de uma mulher rica é extremamente diferente da de uma mulher pobre; há, inclusi- ve, significativa divergência entre a vida de uma mulher branca e de uma negra, assim como existem diferenças significativas no campo do acesso entre as mulheres que são mães e as que não são respon- sáveis por crianças e/ou adolescentes. Observamos distinção, ainda, entre mulheres que são as únicas mantenedoras
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