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NOTA TÉCNICA DE 2020 feneis.pdf A Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos - Feneis, em defesa dos direitos dos surdos brasileiros, torna pública: NOTA DE APOIO E ESCLARECIMENTO SOBRE O DECRETO DA POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ESPECIAL Ao Ministro da Educação cópia à Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação - SEMESP cópia à Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos - DIPEBS cópia às demais entidades representativas de Pessoas com Deficiência cópia ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoas com Deficiência - CONADE cópia aos Deputados Federais e Senadores No dia trinta de setembro de dois mil e vinte foi assinado o Decreto nº 10.502, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Para a alegria das comunidades surdas brasileiras, que vêm lutando pela inclusão da educação bilíngue de surdos nas políticas educacionais, assim como pela inclusão de políticas linguísticas a essa discussão, esse decreto define e aborda várias questões relacionadas à educação bilíngue de surdos. Durante anos, as comunidades surdas brasileiras, lideradas por entidades representativas e sustentadas pelas comunidades surdas, em destaque, pela Feneis, participam do movimento surdo, com várias reivindicações e lutas. O texto legal em questão apresenta diversos pontos que atendem ao pleito das comunidades surdas, entretanto ainda existem aspectos relevantes a serem considerados para a efetivação dos direitos linguísticos, culturais e educacionais dos Surdos. É preciso destacar que para a efetividade de toda a política de educação bilíngue de surdos, as reivindicações das comunidades surdas só serão efetivas quando houver uma política de educação bilíngue de surdos dissociada dos princípios epistemológicos sobre os quais surgiu no século XIX. Por esse motivo, segue esta NOTA DE APOIO, mas também DE ESCLARECIMENTOS, exclusivamente sobre a educação bilíngue de surdos, fundamentada em inúmeras pesquisas no campo da Educação e da Linguística, as quais se dedicam às línguas de sinais, processos tradutórios e a educação de surdos. Essas pesquisas recomendam para os surdos sinalizantes a educação bilíngue de surdos, que tem como base uma língua de modalidade visuo-gestual, como bem inserida no decreto, como língua de INSTRUÇÃO, ENSINO, COMUNICAÇÃO e INTERAÇÃO, o que acarreta ao ensino um olhar sobre as especificidades linguísticas dos estudantes surdos, e demandam sua autonomia frente à educação especial, em concordância com o que consta em documentos legais como os que seguem descritos: a) na Declaração de Salamanca1: “19. Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e situações individuais. A importância da linguagem de signos como meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso a educação em sua língua nacional de signos. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais e unidades em escolas regulares”; b) no Parâmetro Curricular Nacional de Língua Estrangeira2: “As comunidades indígenas e em comunidades de surdos, nas quais a língua materna não é o português, justifica-se o ensino em Língua Portuguesa como segunda língua” (p.23) c) na Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência - ONU, promulgada como Emenda Constitucional pelo Decreto nº 6.949/20093, na qual especifica, no Artigo 24, a obrigatoriedade de o Estado Brasileiro prover: 1 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf. Acesso em: 03/10/2020 2 Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto - ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC/SEF, 1998. 3 BRASIL. Decreto nº 6.949 de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, 2009. http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf a. facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade linguística das comunidades surdas; b. garantia de que a educação de pessoas, inclusive crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados às pessoas e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social. A Convenção da ONU, em síntese, especifica a importância da promoção (e difusão) da identidade linguística das comunidades surdas. Diante disso, algumas reflexões se fazem necessárias: como é que podemos facilitar este processo uma vez que 95% do alunado surdo é oriundo de famílias ouvintes? Como promover o acesso à língua de sinais desde a mais tenra idade? À vista disso, as escolas e classes bilíngues de surdos, constituídas por estudantes surdos, surdocegos, com deficiência auditiva sinalizantes, com altas habilidades ou superdotação, assim como com outras deficiências, como preconiza o decreto em tela, são espaços de extrema relevância, pois constituem um ambiente linguístico adequado, que promove a identidade linguística de bebês, crianças, jovens e adultos surdos e a equidade de condições de aprendizagem, sem a necessidade da presença de tradutor-intérprete de língua de sinais em sala de aula, considerando que as aulas são ministradas por professores comprovadamente bilíngues, sendo, a Libras, novamente, a língua de INSTRUÇÃO, ENSINO, COMUNICAÇÃO e INTERAÇÃO. A LDB abriga a educação bilíngue de surdos na modalidade de educação especial, porque está baseada num modelo que ainda não incorporou a legislação mais recente, a saber, a estratégia 4.7 do PNE, Lei nº 13.005/2014, assim como a LBI, Lei nº 13.436/2015. Portanto, urge ser atualizada. O Decreto 10.502 traz um grande avanço ao definir a educação bilíngue de surdos como modalidade escolar, um grande mérito ao reconhecer as especificidades desse ensino, perfeitamente justificável, assim como o é a modalidade de educação indígena. Ao encontro dessa análise, não há nenhuma determinação, e nem justificativa, em nenhum documento oficial, pesquisa ou legislação, para que a educação bilíngue de surdos esteja vinculada à modalidade de educação especial ou que deva se dar em escola inclusiva comum para ouvintes, para que seja validada ou legitimada. Da mesma forma, não há justificativa, nem legitimidade, para qualquer tipo de pressão individual, coletiva ou institucional realizada sem representatividade dos surdos brasileiros, para que a inclusão de estudantes surdos, surdocegos, estudantes com deficiência auditiva, que optam pela Libras, surdos com altas habilidades e com deficiências associadas, aconteça em escolas comuns de ouvintes, nas quais adota-se uma única modalidade de escolarização, uma única língua de ensino, conforme registros da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva - PNEEPEI-2008. Destaca-se, inclusive, a recomendação de que as entidades federativas priorizem o repasse de verbas às instituições escolares que adotarem um modelo inclusivista, esse, sim, retrógrado e opressor. A PNEEPEI-2008 teve resultados que levaram à evasão escolar de muitos estudantes surdos. Evasão, sim, é segregação. Escola Bilíngue de Surdos, não! Uma Escola Bilíngue de Surdos é inclusiva, pois inclui os surdos com seus pares, de forma, inclusive, a identificar nos surdos mais velhos modelos bem sucedidos, oferece a escolarização e permite-lhes competir igualitariamente com outros cidadãos não surdos, porque têm garantida a equidade. Constata-se nessa nova política a preocupação em não deixar ninguém para trás. Em 1834, Jean Itard consolidava o intercampo Medicina e Pedagogia, que serviu de pano de fundo para o Congresso Internacional de Milão em 1880. Mantém-se uma história de classificação nosográfica da pessoa surda do século XIX (lembremo-nos de que já estamos no século XXI), quando os movimentos sociais dos surdos sinalizantes superaram a recomendação de Alexander Graham Bell, em 1883, que sugeria aulas conjuntas entre surdos e ouvintes com a presença de “codocência”, termo criado por ele em Memoir Upon the Formation of a Deaf Variety of the Human Race. Por tudo isso, é preciso desvincular a educação bilíngue de surdos da educação especial. O decreto, ao afirmar as Escolas Bilíngues de Surdos como escolas regulares, reforça o fruto da luta do movimento surdo que levou à determinação, na estratégia 4.7 do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), das Escolas Bilíngues para Surdos como modalidade regular de ensino possível ao: Garantir a oferta de educação bilíngue, em Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua, aos (às) alunos (as) surdos e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos do art. 22 do Decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como a adoção do Sistema Braille de leitura para cegos e surdocegos. A criação da Diretoria de Educação Bilíngue de Surdos - DIPEBS, nesse contexto, atende a uma demanda que se consolidou em 2013 no Grupo de Trabalho designado pelas Portarias nº 1.060/2013 e nº 91/2013 do MEC/SECADI, que resultou no Relatório sobre a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa4. A elaboração desse relatório contou com vários membros representantes das comunidades surdas, pesquisadores sêniores com larga produção acadêmica, representantes do próprio governo, entre os quais, membros da antiga Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). Conforme comprovam as assinaturas que o endossam, no final do documento, foi feita a defesa devidamente justificada da importância da desvinculação de educação bilíngue da educação especial: A educação bilíngue de surdos não é compatível com o atendimento oferecido pela educação especial, pois restringe-se às questões impostas pelas limitações decorrentes de deficiências de um modo extremamente amplo, como se o surdo, ele próprio, pela surdez, fosse dela objeto em si mesmo. Considerado como parte de uma comunidade linguístico cultural, o estudante surdo requer outro espaço do MEC para implementar uma educação bilíngue regular que atenda às distintas possibilidades de ser surdo. Em decorrência, surdos com deficiências além da surdez devem ser atendidos em atendimentos especializados organizados com base nos princípios da educação bilíngue oferecida em Libras e português escrito como segunda língua (p. 6-7). Por isso, insistimos nessa desvinculação, cujas justificativas já foram por demais argumentadas, inclusive, com o financiamento de passagens e estadas para os membros do GT, que elaboraram o relatório citado, em suas idas e voltas a Brasília. O uso de verbas públicas para fins como esse deve trazer benefícios à efetivação de políticas públicas. Os participantes do GT são pesquisadores sérios e respeitados pelas comunidades surdas. Cabe salientar, ainda, que, por motivo incompreensível, em 2011 houve frontal ataque da SECADI, ao Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), que na ótica do então governo deveria ter a escola de surdos extinta. Contrariamente a essa atitude ditatorial, a Lei nº 13.005/2014 foi fruto de um processo democrático, no qual, legitimamente, pesquisadores surdos, pessoas com deficiência auditiva e outras, indígenas, quilombolas e suas entidades representativas foram ouvidos. Uma lei deve fazer valer o seu processo de elaboração, pois onera, em muito, não só os cofres públicos mas o tempo de seus protagonistas e a carga de trabalho extra que acumularam em seus empregos para fazer valer o que julgavam ser respeitado pela lei arduamente, e finalmente, sancionada em 2014. 4 Disponível em: Relatório sobre a Política Linguística de Educação Bilíngue ...www.bibliotecadigital.unicamp.br › document. Acesso em: 02/10/2020 http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=56513 http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=56513 http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=56513 A Feneis acrescenta que participou efetivamente da consulta pública à atualização da política em 2018 e nela já incluiu todas as suas demandas, entre as quais a desvinculação ora discutida. O mérito do decreto é grande e parabenizamos a DIPEBS pelo magnífico trabalho. Ao Ministro da Educação, solicitamos que aplique ainda o que falta: a autonomia da política de educação bilíngue de surdos. Se existe uma Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos e uma Diretoria de Políticas de Educação Especial, significa que há de haver duas políticas independentes: uma política de educação especial e uma política de educação bilíngue de surdos. Tendo em vista o exposto, após análise de pesquisadores/as atuantes em várias instituições federais e estaduais na área de Linguística e Educação de Surdos, elencados ao final desta nota, com anuência da Feneis, de forma objetiva, apontamos aspectos relevantes, omissos ou que demandam ajustes no decreto, em relação à educação bilíngue de surdos, assim como proposições para o futuro. ⇒ Aspectos Relevantes do Decreto 1. Educação bilíngue de surdos como modalidade de educação escolar; 2. Escolas e classes bilíngues com enturmação de surdos e surdocegos; 3. Escolas bilíngues como instituições de ensino da regular; 4. Surdos, surdocegos, surdos com outras deficiências associadas e surdos com altas habilidades ou superdotação estão contemplados na proposta de educação bilíngue de Surdos; 5. A língua de sinais brasileira (Libras), entendida como língua de instrução, ensino, comunicação e interação; 6. A língua portuguesa escrita como foco na educação bilíngue de surdos, uma vez que a oralização do português cabe à área da saúde e não à educação. ⇒ Aspectos Omissos ou que demandam ajustes 1. Desvinculação da educação bilíngue de surdos à educação especial; 2. Professores bilíngues sem detalhamento acerca da formação obrigatória e das avaliações periódicas de sua proficiência; 3. Falta de indicação sobre proficiência em língua de sinais brasileira para todos os envolvidos com a educação bilíngue de surdos; 4. Professores de Libras prioritariamente surdos nos termos da Lei nº 13.005/2014. ⇒ Proposições 1. Sanção de novo Decreto que institui a Política Nacional de Educação Bilíngue de Surdos como modalidade educacional, desvinculada da Política Nacional da Educação Especial; 2. Definição da formação mínima obrigatória dos professores bilíngues em Letras-Libras e em Pedagogia, ratificando o disposto no Decreto nº 5.626/2005, na Lei nº 13.005/2014 (Plano Nacional de Educação) e na Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência); 3. Instituição de banca de avaliação composta por surdos qualificados para verificação do domínio e proficiência dos professores bilíngues que atuarão nas escolas e classes bilíngues de surdos; 4. Discussão da Política de Educação Bilíngue de Surdos na LDB. Por fim, a Feneis, de antemão, agradece o empenho da DIPEBS, da SEMESP, do Ministro da Educação, em tornar realidade uma demanda que vem de longa data, nas lutas das comunidades surdas brasileiras, de forma a cumprir o lema da Convenção dos Direitos das pessoas com deficiência: “Nada sobre nós, sem nós!” Fomos vítimas da opressão, do desrespeito, do desserviço de muitos gestores que se acharam no direito de dizer o que seria melhor para nós. Os senhores deram um crédito à nossa demanda. Contamos com vocês para desvincular a educação bilíngue de surdos da educação especial, um feito tão esperado pelas comunidades surdas e que, em pequenos espaços, já vimos acontecer. Vislumbramos um futuro melhor para as crianças surdas do nosso país. Esperamos, em breve, colher os frutos dessas necessárias e profundas mudanças. Belo Horizonte, 6 de outubro de 2020. _________________________________________ Antônio Campos de Abreu Presidente da Feneis PESQUISADORES COLABORADORES: Dra. Flaviane Reis - Professora Adjunta da Universidade Federal de Uberlândia/UFU Dra. Marisa Lima Dias - Professora Adjunta da Universidade Federal de Uberlândia/UFU Dra. Mariana de Lima Isaac Leandro Campos - Professora Adjunta do Depto de Psicologia na Universidade Federal de São Carlos/Ufscar Dra. Marianne Rossi Stumpf - Professora Associada do Depto de Libras na Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC Dra. Patrícia Luiza Ferreira Rezende Curione - Professora Associada do Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES Dra. Regina Maria de Souza - Professora Associada em Educação de Surdos da Universidade de Campinas - Unicamp Dra. Sandra Patrícia de Faria do Nascimento - Professora Adjunta da Universidade de Brasília Msa. Mara Lopes Figueira de Ruzza - Mestre em Educação e Currículo pela PUC-SP Me. Valdo Ribeiro Resende da Nóbrega - Professor EBTT DIII da Universidade Federal de Paraíba - UFPB Eduardo Gheller Mörschbächer - Formado de Letras/Libras; Técnico Judiciário em Tecnologia da Informação, lotada no TRT 12ª Região OS DIREITOS LINGUÍSTICOS.pdf 343Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Línguas e culturas em contato nº 53, p. 343-358 OS DIREITOS LINGUÍSTICOS NO ENSINO DE SURDOS NO BRASIL: UMA VALORIZAÇÃO DE LÍNGUAS? Verônica de Oliveira Louro Rodrigues RESUMO Este trabalho trata do ensino de surdos no Brasil, em relação a seus direitos linguísticos de valorização da Lín- gua Brasileira de Sinais (Libras) e da Língua Portuguesa dentro do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), comparando o Plano de Desenvolvimento Ins- titucional com a Declaração Universal de Direitos Lin- guísticos de 1996 e com as principais políticas públicas do país voltadas para esse grupo minoritário. PALAVRAS-CHAVE: direitos linguísticos; surdos; língua “[...] A minoria é um lugar de transformação e passagem, onde se animam os fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder” (ORLANDI, 2014, p. 32) Introdução Este trabalho traz à tona um tema de muita importância: o ensino de surdos da educação básica no Brasil e, em específico, dentro do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) no Rio de Janeiro. Trata-se de comparar um dos documentos institucionais dessa instituição, conhecido como Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI-INES), com a Declara- ção Universal de Direitos Linguísticos de 1996, assinada em Barcelona de 6 a 9 de junho de 1996, e as principais políticas públicas do país voltadas para esse grupo minoritário, tais quais a Lei nº 10436 de 24 de abril de 2002, o 344 Rodrigues, Verônica de Oliveira Louro. Os direitos linguísticos no ensino de surdos no Brasil: uma valorização de línguas? Decreto nº 5626 de 22 de dezembro de 2005 e o Decreto nº 7.387, de 9 de dezembro de 2010. Objetiva-se, com essa comparação, fazer uma avaliação de políticas lin- guísticas sob os preceitos de Cooper (1997), Calvet (2002) e Severo (2013) no ensino para surdos da educação básica, em relação a seus direitos linguísticos de valorização da Língua Brasileira de Sinais (Libras) – língua minoritária e primeira língua (L1) – e da Língua Portuguesa – língua majoritária e segunda língua (L2). Justifica-se a escolha desses protagonistas, porque ingressei no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) para dar aula de português e litera- tura na Educação Básica em 2010. Até esse momento, nunca havia convivido com surdos, nas minhas esferas sociais anteriores, nem havia refletido sobre o processo de ensino-aprendizagem desse sujeito enquanto aluno.Chegando ao instituto sentia um misto de alegria e ansiedade, pois tinha muito a aprender em relação à surdez1 e me deparei com o enorme desafio de ensinar uma lín- gua com a qual muitos dos meus alunos não se identificam por meio de uma segunda língua (L2) que eu não dominava. Com o passar do tempo, fui ga- nhando mais confiança com a Libras, minha L2, além do espanhol, mas muito me preocupava com o modo de ministrar aulas de português como L2, na sua modalidade escrita. Meus alunos são, em sua grande maioria, do Ensino Médio (EM) noturno, ou seja, muitos jovens e adultos que enxergam na sua formação uma possiblidade de melhorar suas condições de trabalho e de vida. No meu exercício de profissão, dedico-me a ensiná-los a ler e escrever em por- tuguês, o que pode gerar uma série de questionamentos que me interessaria pesquisar para aprimorar o processo de ensino-aprendizagem em sala de aula. Com o tempo, observo que os alunos encaram as línguas de modo diferente: o português é sempre uma língua quase inalcançável, enquanto a Libras, aquela que os deixa confortáveis para expressão de sentimentos e ideias. Com isso, no momento, cabe investigar como as políticas linguísticas do Brasil têm-se de- dicado a garantir os direitos linguísticos, de valorização da Libras e da Língua Portuguesa, para os surdos da educação básica. 1 Todos os servidores que tomaram posse no instituto, em dezembro de 2009, tiveram um curso de capacitação de um mês, para aprender Libras pela manhã, e outro curso, de tarde, voltado para refletir sobre as especificidades do surdo em diferentes esferas sociais. 345Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Línguas e culturas em contato nº 53, p. 343-358 Contextualização Escolhe-se o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) como palco da pesquisa, porque, além de ser o lugar onde trabalho, reconhecido como um órgão específico, singular e integrante da estrutura organizacional do Ministério da Educação (MEC) - conforme Decreto nº 7.690, de 2012, vigente no momento - apresenta uma historicidade simbólica: primeira escola para surdos do Brasil, criada ainda no período imperial. Ademais, é a única escola na cidade do Rio de Janeiro que só atende alunos surdos e se caracteriza por oferecer uma educação bilíngue, cuja orientação é de que a língua de ins- trução e de comunicação seja a Libras em todos os espaços. Embora o PDI-INES – com atuação prevista de 2012 a 2016 – tenha sido elaborado para atender principalmente às demandas do Departamento de Ensino Superior do INES (DESU), foram analisados os objetivos e metas no que se refere às políticas públicas e relações institucionais, mas também à educação básica: o colégio de aplicação (CAp-INES). Esses trechos foram comparados a documentos legais que instituem, regulamentam e estabelecem parâmetros para valorização e promoção da Libras (Lei 10436/02 e Decreto 5626/05), além disso já completaram mais de dez anos de existência, portan- to, destaca-se um momento propício para uma avaliação de políticas linguísti- cas. Outros textos legais foram selecionados por tratar dos direitos linguísticos e fortalecimento das línguas minoritárias: a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos de 1996 e o Decreto 7.387 de 2010. Uma Breve Trajetória sobre a Política Linguística O surgimento do campo de estudo das Políticas Linguísticas tanto na Europa como nos Estados Unidos (EUA) se deu com o advento da Sociolin- guística. Constituíram-se como uma disciplina, a partir da segunda metade do século XX, e se consolidaram nos finais da década de 50 e nos anos 60. A Política Linguística e o Planejamento Linguístico se relacionam por áreas de pesquisa e interesse. Segundo Severo (2013), a primeira área tem se voltado para uma prática de caráter estatal-linguístico, enfocando o trabalho sobre a “oficialização de línguas, a escolha de alfabeto para a representação gráfica de uma língua, a 346 Rodrigues, Verônica de Oliveira Louro. Os direitos linguísticos no ensino de surdos no Brasil: uma valorização de línguas? hierarquização formal das línguas (línguas de trabalho, oficiais, nacionais, por exemplo) ” (p. 451). Já a segunda dá destaque à realização das decisões sobre a língua através de “estratégias (políticas), como as políticas educacionais, com vistas a influenciar o comportamento dos sujeitos em relação à aquisição e uso dos códigos linguísticos” (COOPER, 1989 apud SEVERO, 2013, p. 452). O autor pioneiro que desenvolveu esse conceito de planejamento linguís- tico foi Haugen (1961) que passou a trabalhar com as noções de status e corpus, diferenciando a forma da língua (planificação linguística) da função linguísti- ca (cultura da língua como, por exemplo, oficial, nacional, escolar etc.). Dessa forma, política linguística passou a ser delimitada como as grandes escolhas referentes às relações entre as línguas e determinadas sociedades, enquanto a planificação linguística é a política linguística colocada em prática, simboli- zando uma ação de autoridade (LAGARES; SAVEDRA, 2013). Calvet (2002) embasado em Haugen (1966) trouxe grandes contribuições ao observar o contato entre comunidades linguísticas diferentes. No campo do planejamento linguístico, quando uma ação planejada sobre a língua não é satisfa- tória, busca-se uma segunda situação que se deseja alcançar, por isso se observam determinadas funções sociais como a escrita, o léxico, a padronização, a neologia e a “prática social, em resposta às necessidades sociais, que desempenhou o papel motor” (CALVET, 2007, p. 68). As intervenções, surgidas por meio da inte- ração entre as comunidades linguísticas, caracterizam-se por in vivo, resultado das práticas sociais, e in vitro, relativo ao poder do Estado e dos pesquisadores, sem levar em conta os anseios e necessidades das comunidades em questão. Essa dicotomia constitui, portanto, as bases para o planejamento linguístico. No caso da minoria linguística de surdos no Brasil, a primeira interven- ção procede das práticas sociais como, por exemplo, a mobilização de surdos para reconhecimento de sua língua e as diferenças de sinais para designar um objeto. A segunda leva em consideração a opinião e estudos de pesquisadores, linguistas, mas, principalmente, de quem detém o poder, o Estado. A Libras já sofreu uma intervenção política, no caso, um planejamento de status ou uma intervenção “in vitro” (CALVET, 2007, p 29, 68), que diz respeito à intervenção sobre o reconhecimento e a função social da língua: “É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão, Língua Brasileira de Sinais – Libras (...) Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa”. (BRASIL, Lei 10436/02, art. 1º) 347Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Línguas e culturas em contato nº 53, p. 343-358 Como a Libras não tem um sistema de escrita consolidado entre os seus usuários, a língua portuguesa assume esse papel oficialmente de registro es- crito para os surdos. Essa lei tem muito a contribuir para o papel da língua portuguesa no ensino para os surdos, já que não se torna mais necessário en- sinar ao surdo a oralização na escola, para que aconteça a comunicação com os ouvintes, por isso as modalidades a serem privilegiadas devem ser a leitura e a escrita do português. Além disso, observa-se uma valorização da Libras, mas não em detrimento da Língua Portuguesa, ou seja, elas devem coexistir em modalidades diferentes. A língua majoritária não pode ser substituída nem equiparada à língua minoritária, portanto constata-se que a primeira detém um poder que a segunda não possui. Destacamos ainda o Decreto 5626/05 que regulamenta a Lei 10.436 de 2002 e artigo 18 da Lei 10.098 de 2000, asseverando sobre a inclusão da Libras como disciplina curricular; a formação do professor de Libras e do instrutor de Libras; o uso e a difusão da Libras e da Língua Portuguesa para o acesso das pessoas surdas à educação; a formação do tradutor e intérprete de Libras – Língua Portuguesa; a garantia do direito à educação das pessoas surdas ou com deficiência auditiva; a garantia do direito à saúde das pessoas surdas ou com deficiência auditiva; o papel do poder público e das empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos, no apoio ao uso e difusão da Libras. Notamos que o conceito de política linguística é complexo. Para o pes- quisador Noss (1971 apud SEVERO, 2013), a intervenção da política lin- guística se dá em três eixos: oficial – vinculada às decisões sobre a oficialidade das línguas; educacional – refere-se ao ensino das línguas; e o geral – ligado às línguas da comunicação, dos negócios e das relações entre estrangeiros. Spol- sky (2004 apud SEVERO, 2013) apresenta a política linguística como uma vinculação entre as políticas e as práticas locais, mostrando que seus elementos formadores tais quais a gestão de línguas – política explícita e oficial para o uso das línguas; as crenças e ideologias linguísticas em relação com os usos linguís- ticos; e as práticas linguísticas que têm a ver com os padrões interacionais. Por um lado, dá-se ênfase às relações de poder verticais, do Estado para a popula- ção, e, de outro lado, sobressaem as relações horizontais entre os sujeitos que estão inscritos nessa língua pela história. Diante das formas diferentes de delimitar planejamento linguístico, Coo- 348 Rodrigues, Verônica de Oliveira Louro. Os direitos linguísticos no ensino de surdos no Brasil: uma valorização de línguas? per (1997) recolheu doze definições de vários autores para, enfim, apresentar sua conclusão: “O planejamento linguístico (grifo nosso) compreende os esfor- ços deliberados para influir no comportamento de outras pessoas a respeito da aquisição, da estrutura ou da correspondência funcional dos seus códigos linguísticos”. De certo modo, sua definição estabeleceu os marcos descritivos para planejar uma língua tais como a função, a forma, a aquisição e a mudança social (COOPER, 1997, p. 10). A primeira se refere às funções da língua: oficial; municipal – quando ela se torna oficial apenas em uma cidade e não no território nacional –; comu- nicação comunitária – embora não seja oficial, cumpre funções comunicativas essenciais entre comunidades de línguas diferentes –; internacional – exerce seu papel para relações diplomáticas, turísticas e comerciais –; capital – se a comunicação, para exercer o poder político, o prestígio social e a atividade econômica, concentre-se na capital; grupal – símbolo de pertencimento a uma comunidade e meio básico de comunicação entre membros de um grupo cul- tural ou étnico –; educacional – língua como meio de instrução nos sistemas escolares em nível regional ou nacional –; disciplinar – como matéria no ensi- no médio e superior –; religiosa – uso linguístico para exortação, conversão e instrução religiosa – e literária. A segunda inclui atividades linguísticas como a criação de novas pala- vras, mudanças na ortografia e a adoção de um novo sistema de escrita, isto é, seleciona estruturas que beneficiem determinada função a cumprir, tais quais mudanças na representação gráfica (criação e desenvolvimento de um sistema de escrita), a normalização (escolha de uma norma dentre os dialetos regionais e sociais) e a modernização (criação de vocabulário para as necessidades origi- nárias das sociedades modernas). No caso do planejamento pela aquisição de língua, as ações estão vol- tadas para promover a aprendizagem de uma língua, seja por revitalização ou manutenção, seja como segunda língua (L2) ou língua estrangeira (LE), podendo ser, muitas vezes, estimulada e ensinada nas escolas. Em relação à mudança social, alguns fatores colaboram para a mesma: o meio físico, a população, o descobrimento e a invenção, a difusão cultural, a ideologia e a adoção de decisões. De qualquer forma, todo planejamento linguístico não se passa fora do contexto social nem da história que o origina. Ainda que atenda, frequentemente, aos interesses das elites, também servem 349Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Línguas e culturas em contato nº 53, p. 343-358 às massas para fins de identidade, dignidade, autoestima, pertencimento a um grupo e integração social. Antes de estabelecer os marcos descritivos de uma língua, Cooper (1997) utiliza-se de alguns critérios para avaliação de políticas linguísticas, ponderan- do não só “o que” planeja, “quem” e “para quem” planeja, mas também “por que”, “como”, “onde” e “quando”. Esses critérios serão detalhados mais adian- te, levando em consideração a valorização das línguas minoritária e majoritária para o ensino de surdos da educação básica. Há mais uma vertente, usada por Haugen (1971) e defendida por Gues- pin e Marcellesi (1986), a de nomear Glotopolítica todas as formas de ação social sobre a linguagem, podendo ser fruto da luta social, de estudos acadê- micos ou de órgãos do Estado, a fim de designar uma análise ou sem ao me- nos saber. No entanto, o pesquisador deve ter compromisso com o seu papel político, social e ideológico (ARNOUX apud LAGARES; SAVEDRA, 2013). Diante de todo esse panorama, em primeiro lugar, devemos esclarecer sobre as políticas que asseguram os direitos linguísticos dos surdos. Em segun- do lugar, elencamos os preceitos de Cooper (1997), Calvet (2002) e Severo (2013) para a avaliação de uma política linguística institucional no INES em comparação às políticas públicas direcionadas para essa minoria linguística na educação básica. Direitos Linguísticos e Avaliação de Políticas Linguísticas no Brasil Conforme apresentado anteriormente, as políticas linguísticas podem ocorrer por regulamentação e implantação de leis, decretos, pareceres, mas também pelo modo como a comunidade coloca em prática essas políticas, seja por movimentos da comunidade nas associações, federações, seja no âmbito social e nas escolas. Segundo Loubier (2002), o termo política linguística não é sinônimo de legislação linguística. Pode ser um conjunto de medidas adminis- trativas (leis, regulamentos e decretos), além de expressar o uso das línguas em um território, de modo que, sendo uma e/ou outra, cumpram-se os direitos e obrigações linguísticas. O direito linguístico, segundo a autora supracitada (2002), tem por obje- to o sistema linguístico ou a própria língua, sobretudo, para fixar regras de cer- 350 Rodrigues, Verônica de Oliveira Louro. Os direitos linguísticos no ensino de surdos no Brasil: uma valorização de línguas? to domínio social e, principalmente, garantir a proteção às minorias linguísti- cas. Assim, o direito linguístico sanciona, por meio de leis e outros dispositivos legais, os direitos linguísticos das pessoas e dos seus respectivos grupos sociais. No entanto, necessitamos considerar a partir de que momento é preciso inter- vir, por meios jurídicos, para estabelecer uma relação de forças entre dois ou mais grupos linguísticos; como uma lei pode distinguir os direitos individuais dos coletivos e quais são os limites dos domínios de intervenção possíveis? A fim de buscar a resolução desses impasses, criaram-se os princípios da territorialidade e da personalidade. O primeiro apoia que uma língua predo- minante no seu território tenha assegurada sua sobrevida. É necessário que a comunidade linguística não seja dispersa, mais sim concentrada em uma dada região. Ao adotar esse princípio, deve-se evitar os efeitos discriminatórios, estabelecendo uma política linguística que não só tome medidas eficazes de proteção linguística para grupos majoritários, mas também que implemente mecanismos de acomodação de grupos minoritários. Assim sendo, as institui- ções políticas têm a obrigação moral de facilitar a assimilação linguística dos imigrantes, por exemplo. O segundo princípio, por sua vez, relaciona-se ao direito do indivíduo em usar a sua língua materna (primeira língua) ou a língua oficial, se o país for bilíngue ou plurilíngue, ou seja, o Estado sustenta os direitos linguísticos individuais das minorias. Esse princípio da personalidade é altamente critica- do, pois o Estado tende a valorizar mais as minorias que apresentam influên- cias fortes na vida política, social e econômica da nação (LOUBIER, 2002). Apesar disso, diante dos dois princípios, a Libras estaria mais adequada ao da personalidade, porque os surdos não estão presos a um território único, além disso cada um tem o direito de usar sua primeira língua para expressar-se em todos os ambientes sociais, principalmente, na escola. Nesse conceito de direito linguístico, ressaltamos a importância da De- claração Universal dos Direitos Linguísticos (DUDL) de 1996, pois permite “corrigir os desequilíbrios linguísticos com vista a assegurar o respeito e o ple- no desenvolvimento de todas as línguas e estabelecer os princípios de uma paz linguística planetária justa e equitativa, como fator fundamental da convivên- cia social”. Esse dispositivo legal define os direitos linguísticos como simulta- neamente individuais e coletivos, defende os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas, mas também declara 351Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Línguas e culturas em contato nº 53, p. 343-358 que são inaceitáveis atos de discriminação contra as comunidades linguísticas com base em critérios econômicos, políticos ou sociais ou linguísticos por modernização ou normalização. No início do documento, foram esclarecidos alguns conceitos como co- munidade linguística e território. No artigo 1º, definem-se comunidade lin- guística como: toda a sociedade humana que, radicada historicamente num determinado espaço territorial, reconhecido ou não, se identifica como povo e desenvolveu uma língua comum como meio de comunicação natural e de coesão cultural entre os seus membros. A denominação língua própria de um território refere-se ao idioma da comunidade historicamente estabelecida neste espaço (UNESCO, 1996, p. 4). Entendemos o termo povo como “conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e interesses semelhantes, história e tradições comuns [...] Conjunto de pessoas que vivem um uma comunidade num determinado terri- tório; nação; sociedade” (HOUAISS, 2009), portanto os surdos brasileiros vi- vem na sociedade brasileira, desenvolveram uma língua, a Libras, como meio de comunicação natural do surdo e conexão cultural, além de ser instaurada pela história. Entendemos também que os surdos se encontram no seu pró- prio território e pertencem a uma mesma comunidade linguística, porque as coletividades estão “estabelecidas num espaço geográfico que partilham com os membros de outras comunidades linguísticas com antecedentes históricos semelhantes”. Nesse caso, os membros de outras comunidades linguísticas seriam os ouvintes, usuários de língua portuguesa e de outras línguas orais, viventes de acontecimentos históricos em comum em âmbito nacional. Considerando que o enfoque desse artigo é avaliar a garantia, no ensi- no, dos direitos linguísticos de valorização de Libras e Português aos surdos da educação básica, realçamos, no DUDL, a seção II, com oito artigos, sobre o Ensino para as comunidades linguísticas minoritárias, incluindo como deve ser o ensino, que direitos elas têm em relação à sua língua e cultura e ao acesso de qualquer língua para comunicação com outras comunidades. Destacamos, por isso, os Artigos 24º e 25º, já que ressaltam que as comunidades linguísticas têm 352 Rodrigues, Verônica de Oliveira Louro. Os direitos linguísticos no ensino de surdos no Brasil: uma valorização de línguas? direito a: decidir sobre como deve ser o grau de presença da sua língua em todos os níveis de ensino; dispor de todos os recursos humanos e materiais necessários para conseguir o grau de presença da sua língua em todos os níveis de ensino. Em relação à política pública brasileira, o Decreto 5626 de 2005 regula- mentador da Lei 10436 de 2002 que dispõe sobre a Libras, vem a confirmar, em parte, essa convenção internacional: “As instituições federais de ensino devem garantir, obrigatoriamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à informação e à educação [...], nas atividades e nos conteúdos curriculares de- senvolvidos em todos os níveis [...] de educação” (BRASIL, Decreto 5626/05, Art. 14º). Admoestamos que esse Decreto atende os direitos linguísticos par- cialmente, porque dirige a responsabilidade de garantir às pessoas surdas o aprendizado, a comunicação e a informação em Libras (e também os recursos humanos e materiais) somente às instituições federais, não cabendo a par- ticipação dos membros dessa comunidade linguística, conforme previsto na Declaração. Nesse sentido, pelos preceitos de Cooper (1997), o decreto falha nos critérios de quem e como se planeja essa política linguística para o surdo. Ressaltamos ainda que, em 2014, foi convocado pelo Ministério da Edu- cação (MEC) um grupo de trabalho, sobre a educação bilíngue para surdos, com a participação de membros dessa comunidade linguística, mais pesqui- sadores e acadêmicos da área, com o objetivo de propor mudanças no campo das políticas linguísticas para surdos no país, tais como uma educação bilíngue que vincule “uma educação linguístico/cultural e não a uma educação especial marcada pela definição da surdez como falta sensorial, como anomalia a ser reabilitada ou corrigida por tentativas cirúrgicas” (BRASIL, 2014, p. 6). Em- bora essa ação seja um dos primeiros passos, por parte do Estado, de garantir a presença da comunidade linguística na decisão sobre o uso da sua língua no ensino, esse relatório não foi levado adiante para discussão e implementação na educação brasileira. Mais uma vez, segundo as determinações de Cooper (1997), o Estado resolveria a falha nos critérios “quem” e “como”, no entanto não quis assumir essa responsabilidade na aplicação da política. As medidas supracitadas, tomadas pelo Estado, são consequências de uma política linguística brasileira que teve um longo período de “silenciamen- to e interdição das línguas em prol de um Estado Nacional alicerçado sobre a língua Portuguesa como única língua oficialmente reconhecida e promo- vida” (MORELLO, 2012, p. 32), porém, atualmente, há outros momentos 353Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Línguas e culturas em contato nº 53, p. 343-358 de afirmação e promoção da diversidade linguística: a Libras como meio de expressão e comunicação em território nacional; a cooficialização de línguas por município, como o pomerano em algumas cidades do Espírito Santo; a realização de programas de educação escolar bilíngues e a oferta de cursos uni- versitários visando à formação em línguas indígenas, de sinais e de imigrantes. Além disso, cabe lembrar que existem mais de 200 línguas faladas no Bra- sil entre indígenas, de imigração, de sinais, crioulas e afro-brasileiras, além do português e de suas variedades. Esse patrimônio cultural, muitas vezes, não se reconhece, porque a crença de que o Brasil é um país monolíngue permanece. Muitos grupos de civis e do governo tomaram a iniciativa de tentar mudar essa conjuntura e também conseguiram implementar o Decreto nº 7.387, de 9 de de- zembro de 2010, que instituiu o Inventário Nacional de Diversidade Linguística (INDL) como “instrumento de identificação, documentação, reconhecimento e valorização das línguas portadoras de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 2010). Esse inventário fundado, por meio de decreto assinado pelos ministérios da Cultura (MinC), da Educação (MEC), da Justiça (MJ), da Ciência e da Tecnologia (MCTI) e do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP), autoriza que as línguas sejam inventariadas, desde que tenham relevância para a memó- ria, a história e a identidade dos grupos que fazem parte da sociedade brasilei- ra. Depois disso, as línguas incluídas no INDL receberão título de “Referência Cultural Brasileira”, possibilitando, desse modo, valorização e promoção de políticas públicas por parte do poder público. É essencial sinalizar que essa ação deve contar com a contribuição de comissão técnica, órgãos, instituições desde a esfera municipal à federal, além de entidades da sociedade civil e de representações de usuários das línguas. Destacamos que esse decreto se tornou realidade, devido à luta incansável de algumas entidades civis e governamentais, e contribui muito para o reconhe- cimento, fortalecimento e motivação das línguas minoritárias por parte do governo, através de políticas públicas, e da população. Oliveira (2015, p. 26) afirma que “os direitos linguísticos no Brasil, pela legislação existente, foram alocados dentro dos direitos educacionais, embora na realidade, [...] sejam demandados em todas as situações de vida dos cida- dãos, e não apenas no âmbito escolar”, ou seja, observamos que as políticas linguísticas, no Brasil, são em grande parte operadas no interior das políticas 354 Rodrigues, Verônica de Oliveira Louro. Os direitos linguísticos no ensino de surdos no Brasil: uma valorização de línguas? educacionais. Dessa forma, busca-se analisar como são garantidos os direitos linguísticos dos surdos à valorização da Libras e do Português no Plano de Desenvolvimento Institucional do INES (PDI-INES). Esse documento está em vigor desde 2012 até o ano de 2016, no que se refere à educação básica, por alguns motivos. Em primeiro lugar, o INES é uma instituição que tem o seu colégio de aplicação (CAp/INES2), assegurado pelo de- creto nº 7.690, de 2012, capítulo III, seção II, artigo 35, que dispõe como uma das competências do instituto “promover a educação de alunos surdos, através da manutenção de órgão de educação básica, visando a garantir o atendimento educacional e a preparação para o trabalho de pessoas surdas”. Compreende-se, portanto, que essa é uma escola singular, já que só atende alunos surdos. Em segundo lugar, cabe observar como a instituição está construindo, atualmente, a trajetória educacional dos seus alunos, por meio do que se escreve no documento. Considerando os critérios de Cooper (1997) para esse dispositivo legal, elencamos as seguintes informações no planejamento da política linguística: Quem planeja: o INES O que: estimular a inclusão social e a cidadania das pessoas surdas nas políticas educacionais do Brasil em uma perspectiva bilíngue – Libras e Português; Para quem: Para as pessoas surdas a serem atendidas pelas políticas educacionais brasileiras, seus familiares e colegas da escola e do traba- lho, bem como por profissionais que atendam essas pessoas. Por quê: É um plano estratégico desenvolvido pela instituição de Educação Superior (DESU), porque realiza seu compromisso social, de acordo com a Lei nº 5.773, de 20063. 2 O Colégio de Aplicação do Instituto Nacional de Educação de Surdos (CAp/INES), sob responsabilidade do Departamento de Educação Básica do instituto (DESASI), oferece atendimento a crianças, adolescentes e adultos surdos, nos seguintes segmentos da educação básica: educação infantil e ensinos fundamental e médio. O CAp/INES possui também o Centro Atendimento Alternativo Florescer (CAAF) e o Núcleo de Estudos Avançados – Pré-Vestibular. Disponível em: <http://portalines.ines.gov.br/ines_portal_novo/?page_ id=262>. Acesso em: 03 jun. 2014. 3 Esse Lei dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de institui- ções de educação superior e cursos superiores de graduação e sequenciais no sistema federal 355Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Línguas e culturas em contato nº 53, p. 343-358 Como: Por meio de objetivos e metas para as Políticas Públicas e Relações Institucionais; Educação Superior; Educação Básica; Saúde, Surdez e Educação; Gestão do Conhecimento e Gestão Institucional. Onde: Na Missão Institucional do INES. Quando: No período de 2012 a 2016. Enfocamos a análise do documento nas Políticas Públicas e Relações Institucionais e na Educação Básica. No caso do 1º objetivo, ressaltamos a participação na formulação e execução das políticas nacionais de educação, na perspectiva bilíngue (Libras e Português), que tem como meta entrar na dis- cussão e implementação do Plano Nacional de Educação (PNE); a promoção e apoio de políticas linguísticas que contribuam para a valorização e difusão da Libras como patrimônio imaterial do País e favoreçam a sua aquisição por membros da comunidade linguística, seus familiares ouvintes, colegas de es- cola e trabalho, bem como por profissionais que atendam essas pessoas. Tudo isso a fim de participar da comissão técnica responsável pelo INDL, além de metas institucionais, como criação de cursos de Libras à distância, maior oferta nos cursos presenciais e realizar o Exame Nacional de Certificação de Proficiência em Libras – Pró-LIBRAS. Em relação à Educação Básica, há um grande objetivo com muitas me- tas a serem realizadas: promover a educação dos alunos surdos, pelo órgão da Educação Básica, com o intuito de garantir a escolarização – educação infantil, fundamental, média e de jovens e adultos – a educação profissional e a passa- gem para o trabalho de pessoas surdas. Quanto às metas desse objetivo, damos destaque ao Edital de Concurso Público para o magistério da Educação Básica com valorização da experiência de trabalho com surdos e do conhecimento de Libras; promover reuniões conjuntas entre a equipe de Libras e a equipe de Língua Portuguesa, com o desejo de aperfeiçoar a proposta de educação bilín- gue e efetivar a Libras, como L1, e o Português, como L2, para leitura e escrita e ampliar a oferta de curso de Libras aos familiares dos alunos do CAp/INES. Observamos, desses objetivos e metas citados anteriormente, que há teoricamente um reconhecimento, uma promoção e um fortalecimento dos direitos linguísticos dos surdos de valorização da Libras (L1) e da Língua Por- de ensino (BRASIL, Lei 5.773/06). 356 Rodrigues, Verônica de Oliveira Louro. Os direitos linguísticos no ensino de surdos no Brasil: uma valorização de línguas? tuguesa (L2) na Educação Básica, no que diz respeito ao ensino no INES, à associação com algumas políticas públicas do país como o Decreto 5626/05, INDL, PNE e à conformidade com a Declaração Universal de Direitos Lin- guísticos sobre o pleno desenvolvimento das línguas que podem colaborar para a convivência social pacífica. Cabe, no entanto, estar atento às práticas escolares e sociais que efetivam essas ações ditadas nas políticas linguísticas (COOPER, 1989 apud SEVERO, 2013). Considerações Finais Percebemos que, embora o Brasil tenha tido um longo período de si- lenciamento das mais de 200 línguas faladas no Brasil entre indígenas, de imigração, de sinais, crioulas e afro-brasileiras, além do português e de suas variedades, há algumas políticas nacionais de fortalecimento e promoção da diversidade linguística. Dentre elas, destacamos que o INDL se tornou um instrumento de reconhecimento das línguas minoritárias brasileiras, reforçan- do uma orientação da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Por fim, considerando o objetivo deste artigo, evidenciamos as políticas educacionais que respeitam, em parte, os direitos linguísticos dos surdos à va- lorização da Libras e da Língua Portuguesa: a Lei nº 10436 de 24 de abril de 2002 – Institui a Libras como meio de expressão e comunicação no território brasileiro, mas não pode substituir a modalidade escrita da Língua Portuguesa; o Decreto nº 5626 de 22 de dezembro de 2005 – estimula o ensino da Libras, com recursos materiais e humanos, em todos os níveis da educação, mas sem a participação dos membros da comunidade linguística; o PDI-INES – depois de avaliado sob os critérios de Cooper (1997) – reconhece, promove e fortalece os direitos linguísticos dos surdos, mas sempre cabe um olhar atento às práticas escolares e sociais que efetivam as ações ditadas nas políticas linguísticas. Referências ______. Decreto nº 5626 de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Si- nais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Dis- ponível em: <http://www.presidencia.gov.br/ccivil/ _Ato2004-2006/2005/ Decreto/D5626.htm>. Acesso em: 18 ago. 2015. 357Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Línguas e culturas em contato nº 53, p. 343-358 ______. Decreto nº 7.690, de 2 de março de 2012. Aprova a Estrutura Regi- mental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gra- tificadas do Ministério da Educação. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7690.htm>. Acesso em 28 nov. 2015. ______. Decreto nº 7.387, de 9 de dezembro de 2010. Institui o Inventá- rio Nacional da Diversidade Linguística e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/ D7387.htm>. Acesso em: 13 mai. 2016. ______. Lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planal- to.gov.br/CCIVIL/LEIS/2002/L10436.htm>. Acesso em: 18 ago. 2015. ______. Plano de Desenvolvimento Institucional do Instituto Nacional de Edu- cação de Surdos (PDI-INES). Disponível em: <http://www.ines.gov.br/uploa- ds/institucional/PDI-2012-2016.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2013. BRASIL/MEC/SECADI. Relatório do Grupo de Trabalho designado pe- las Portarias nº 1.060/2013 e nº 91/2013. Subsídios para a Política Lin- guística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa – a ser implementada no Brasil, 2014b. SBU: Sistema de Biblio- tecas da Unicamp. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/ document/?code=56513 – Acesso em 6 mar. 2016. CALVET, Louis-Jean. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Editorial: IPOL, 2007. COOPER, Robert L. 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Recebido em: 31/05/2016 Aprovado em: 18/10/2016 http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/viewFile/5132/4670 http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/viewFile/5132/4670 RelatórioMEC_SECADI_FENEIS.pdf Relatório sobre a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa Grupo de Trabalho, designado pelas Portarias nº 1.060/2013 e nº 91/2013 do MEC/SECADI Adriana da Silva Thoma Ana Regina e Souza Campello Carolina Ferreira Pêgo Enilde Leite de Jesus Faulstich Gladis Teresinha Taschetto Perlin Janaína Thaines Moreira José Nilton de Souza Filho Marianne Rossi Stumpf Marlene de Oliveira Gotti Nídia Regina Limeira de Sá Patrícia Luiza Ferreira Rezende Regina Maria de Souza Ronice Muller de Quadros Rosana Cipriano Shirley Vilhalva Solange Rocha Vera Lúcia Gomes Carbonari Colaboradores Cynthia Braga Silva Letícia Regiane da Silva Tobal Maria Cristina Viana Laguna Paulo André Martins Sandra Patrícia F. do Nascimento Valdo Ribeiro da Nóbrega Wilma Favorito Brasília, DF MEC/SECADI 2014 1 Relatório do Grupo de Trabalho, designado pelas Portarias nº1.060/2013 e nº91/2013, contendo subsídios para a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa 2014 2 SUMÁRIO 1 Introdução 3 1.1 Marcos legais relativos ao direito à educação 3 1.2 Educação bilíngue e seus objetivos 6 1.3 Educação Bilíngue Libras – Português e seu reposicionamento nas ações do MEC 6 2 Concepção de Política Linguística para a Educação Bilíngue de surdos 7 3 Os estatutos das línguas: Libras e Língua Portuguesa 8 3.1 O reconhecimento da Libras enquanto língua da comunidade Surda Brasileira 8 3.1.1 Aquisição da Libras 10 3.1.2 Ensino da Libras como primeira língua 10 3.2 O estatuto da Língua Portuguesa na educação bilíngue 11 3.2.1 O Português como Segunda Língua na Educação Linguística de Surdos Brasileiros 11 4 A cultura surda no espaço da educação bilíngue 13 5 Avaliação 14 5.1 Avaliação educacional 14 5.2 Exames institucionais 16 6 Formação inicial e continuada de professores, tradutores e intérpretes de Libras 17 7 Metas operacionais 18 7.1 Metas gerais 18 7.2 Metas referentes às línguas na educação bilíngue 19 7.3 Recomendações 20 3 1. Introdução No Brasil, 4,6 milhões possuem deficiência auditiva e 1,1 milhão são surdas, totalizando aproximadamente 5,7 milhões de pessoas1. No Censo do IBGE foram utilizadas 3 categorias para este levantamento populacional: "não consegue de modo algum" (supostamente, ouvir e escutar); "grande dificuldade" ou "alguma dificuldade". Segundo o Censo Escolar (INEP, 2012) o total de alunos surdos na Educação Básica é de 74.547, os dados indicam a fragilidade da oferta e, consequentemente, da matrícula na educação infantil (4.485); a dificuldade de acesso à educação profissional (370), a predominância de matrículas no ensino fundamental (51.330); a queda das matrículas no ensino médio (8.751); a crescente evolução de matrícula na EJA (9.611). De acordo com o Censo da Educação Superior (INEP,2011), há um total de 5.660 estudantes matriculados em cursos superiores, sendo 1.582 surdos, 4.078 com deficiência auditiva e 148 com surdocegueira. Nota-se, portanto, que até o último Censo, os surdos e a surdez foram inscritos na ordem da dificuldade em escutar e ouvir. As conquistas dos movimentos sociais, em especial, as dos movimentos surdos deslocaram a questão da diferença de ser surdo - como elemento nucleador de um povo - da condição auditiva; um povo, ou comunidade, com cultura própria. Os surdos são diferenciados pela lei de Libras, do ponto de vista sociolinguístico, como pessoas surdos usuários de uma língua – a Libras. A escolarização dos surdos pede imediata revisão de sua política de base, já que a atual política reforça premissas que já sustentaram outras modalidades de escolarização que fracassaram (as escolas especiais com seriação dupla interrompida no ensino primário ou fundamental; as escolas de integração com classes de reforço, e agora, como variante do período integracionista são disponibilizadas as escolas inclusivas com AEE etc). Em nenhum desses modelos houve o rompimento com a lógica de que os surdos devem ser surdos em português por dever e em Libras por concessão. É essa a lógica a ser rompida. Desse modo, a escolarização dos surdos não pode estar vinculada à condição auditiva do estudante, embora a ele deva ser garantido, na área da saúde, o acesso à oralização em suas modalidades (próteses interna e externa - implante coclear e AASI) com suporte vinculado ao espaço clínico e suporte pedagógico vinculado ao espaço escolar. Com base nessas premissas será defendida, nos próximos tópicos, a Educação Bilíngue de Surdos. 1.1 Marcos legais relativos ao direito à educação Dentre as leis e decretos promulgados na última década, e que motivaram a ampliação do campo de atividades referentes aos surdos, destacam-se: o reconhecimento da Libras (Lei 10.436/2002 regulamentada pelo Decreto 5.626/2005); o direito de surdos e seus familiares (se ainda crianças) optarem pela modalidade escolar em que se sintam mais confortáveis; o direito a terem na escola professores bilíngues qualificados desde a educação infantil até o nível superior, direito que se vincula ao dever de universidades de introduzirem a disciplina Libras em todas as licenciaturas bem como a apoiarem ações de formação de educadores bilíngues Libras-Português para a Educação Básica; o direito a terem intérpretes e tradutores graduados. 4 O Decreto 5.626/2005 foi ratificado a luz do Decreto 6.949/2009 e pelo Decreto 7.611/2011. O texto do Decreto 6.949/2009 há pontos a serem destacados, tais como os artigos 4, inciso 3, e o artigo 24. O primeiro – artigo 4 - determina que entidades representativas das pessoas com deficiência sejam consultadas e envolvidas, por instâncias governamentais, na formulação de políticas públicas. Anterior mesmo à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, tem-se a 24.ª Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, promovido pela UNESCO em Barcelona em 1996, enfatiza que: Todas as comunidades linguísticas têm direito a decidir qual deve ser o grau de presença da sua língua, como língua veicular e como objeto de estudo, em todos os níveis de ensino no interior do seu território: pré-escolar, primário, secundário, técnico e profissional, universitário e formação de adultos. Se os surdos constituem uma comunidade linguística, e se têm o direito de decidirem a forma como seria a participação de sua língua em todos os níveis de ensino, se esta escolha aponta uma educação bilíngue, então quais seriam os dispositivos de governo para vinculá- los à educação especial? A compreensão dos direitos de uma pessoa usuária de outra língua que não a oficial, expressa na 24ª Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, se mantém na Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, em relação aos surdos, nos seguintes artigos: Artigo 24: a. Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade linguística da comunidade surda; e b. Garantia de que a educação de pessoas, inclusive crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados às pessoas e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social. Artigo 30, § 4: As pessoas com deficiência deverão fazer jus, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a que sua identidade cultural e linguística específica seja reconhecida e apoiada, incluindo as línguas de sinais e a cultura surda. Considerando os termos da 24ª Declaração e os direitos garantidos aos surdos a partir da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência supracitada, a FENEIS (2013) caracteriza as escolas bilíngues da seguinte forma: • As escolas bilíngues são aquelas onde a língua de instrução é a Libras e a Língua Portuguesa é ensinada como segunda língua, após a aquisição da primeira língua; essas escolas se instalam em espaços arquitetônicos próprios e nelas devem atuar professores bilíngues, sem mediação de intérpretes na relação professor - aluno e sem a utilização do português sinalizado2. As escolas bilíngues de surdos devem oferecer educação em tempo integral. Os municípios que não comportem escolas bilíngues de surdos devem garantir educação bilíngue em classes bilíngues nas escolas comuns (que não são escolas bilíngues de surdos). 5 A estratégia 4.7 da Meta 4 do PL 8035-2010 do PNE em tramitação no Congresso Nacional garante a educação bilíngue Libras e Língua Portuguesa: “garantir a oferta de educação bilíngue, em Língua Brasileira de Sinais – Libras como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua, aos alunos surdos e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos do art. 22 do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30 da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como a adoção do Sistema Braille de leitura para cegos e surdocegos.” Além dos textos acima mencionados, que vinculam a Libras à educação bilíngue necessariamente, em 2010 foi promulgado o Decreto 7.387 (BRASIL, 2010), que institui a ação governamental de realizar o primeiro inventário nacional das línguas brasileiras. O compromisso estatal com as línguas inventariadas e reconhecidas pelo governo federal está explicitado por meio dos seguintes artigos: Art. 2o As línguas inventariadas deverão ter relevância para a memória, a história e a identidade dos grupos que compõem a sociedade brasileira. Art. 3o A língua incluída no Inventário Nacional da Diversidade Linguística receberá o título de “Referência Cultural Brasileira”, expedido pelo Ministério da Cultura. Art. 4o O Inventário Nacional da Diversidade Linguística deverá mapear, caracterizar e diagnosticar as diferentes situações relacionadas à pluralidade linguística brasileira, sistematizando esses dados em formulário específico. Em seu artigo 5, o Decreto 7.387 determina que: “As línguas inventariadas farão jus a ações de valorização e promoção por parte do poder público.” Foi adotada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional;/Ministério da Cultura a categorização das línguas minoritárias brasileiras que incluiu: línguas indígenas, variedades regionais da língua portuguesa, línguas de imigração, línguas de comunidade afro-brasileiras, língua brasileira de sinais e línguas crioulas. Como um dos resultados desse inventário, houve, novamente, o reconhecimento da Libras como língua nacional e, consequentemente, o direito dos brasileiros oriundos das comunidades surdas à preservação de sua língua – Libras - e cultura, do que decorre, novamente, o direito de terem escolas específicas e formação de educadores graduados com currículo que atenda e respeite as diferenças linguísticas e culturais dessas pessoas3. No que se refere à educação bilíngue de surdos, movimento decorrente da concepção acima, a proposta é retirá-la da educação especial, deslocando-a para uma diretoria, ou setor, que cuide de políticas educacionais bilíngues e multiculturais brasileiras no MEC. 6 1.2. Educação bilíngue e seus objetivos As garantias de direitos constitucionais e infraconstitucionais acima conquistados, os surdos devem ser vinculados a uma educação linguístico/cultural e não a uma educação especial marcada pela definição da surdez como falta sensorial, como anomalia a ser reabilitada ou corrigida por tentativas cirúrgicas. As Escolas Bilíngues de Surdos são específicas e diferenciadas e têm como critério de seleção e enturmação dos estudantes, não a deficiência, mas a especificidade linguístico- cultural reconhecida e valorizada pela Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, em vista da promoção da identidade linguística da comunidade surda, bem como do favorecimento do seu desenvolvimento social. Decorrência direta dos estudos linguísticos da Libras nas comunidades surdas é uma compreensão nova da relação da pessoa surda e identidade cultural, que rompe com o paradigma atual. Da mesma forma, o atendimento escolar dos estudantes surdos e surdoscegos necessita de ajustes pelos sistemas de ensino, uma vez que é reconhecido e assegurado por dispositivos legais, o direito a uma educação bilíngue de surdos em todo o processo educativo. A Educação Bilíngue de surdos envolve a criação de ambientes linguísticos para a aquisição da Libras como primeira língua (L1) por crianças surdas, no tempo de desenvolvimento linguístico esperado e similar ao das crianças ouvintes, e a aquisição do português como segunda língua (L2). A Educação Bilíngue é regular, em Libras, integra as línguas envolvidas em seu currículo e não faz parte do atendimento educacional especializado. O objetivo é garantir a aquisição e a aprendizagem das línguas envolvidas como condição necessária à educação do surdo, construindo sua identidade linguística e cultural em Libras e concluir a educação básica em situação de igualdade com as crianças ouvintes e falantes do português. Neste documento, a Educação Bilíngue Libras - Português é entendida, como a escolarização que respeita a condição da pessoa surda e sua experiência visual como constituidora de cultura singular, sem, contudo, desconsiderar a necessária aprendizagem escolar do português. Demanda o desenho de uma política linguística que defina a participação das duas línguas na escola em todo o processo de escolarização de forma a conferir legitimidade e prestígio da Libras como língua curricular e constituidora do pessoa surdo. 1.3. Educação Bilíngue Libras – Português e seu reposicionamento nas ações do MEC Historicamente, a Educação de Surdos esteve vinculada à Secretaria de Educação Especial (SEESP), de onde emanaram as políticas públicas para a área, a qual tem como foco o atendimento educacional especializado ao alunado com deficiências. Atualmente, as políticas para a Educação de Surdos encontram-se no âmbito da SECADI – Secretaria de Alfabetização Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, o que é um avanço interessante para a comunidade surda, pois a questão da surdez, definitivamente, não se inscreve na área da Educação Especial, conforme argumentado acima. Os surdos que demandam atendimento especializado são os que têm outros comprometimentos (por exemplo, surdocegos, surdos autistas, surdos com deficiência visual, deficiência intelectual, com síndromes diversas ou com outras singularidades). A Educação Bilíngue de surdos não é compatível com o atendimento oferecido pela Educação Especial, pois restringe-se às questões impostas pelas limitações decorrentes de 7 deficiências de um modo extremamente amplo, como se o surdo, ele próprio, pela surdez, fosse dela objeto em si mesmo. Considerado como parte de uma comunidade linguístico- cultural, o estudante surdo requer outro espaço do MEC para implementar uma educação bilíngue regular que atenda as distintas possibilidades de ser surdo. Em decorrência, surdos com deficiências além da surdez devem ser atendidos em atendimentos especializados organizados com base nos princípios da Educação Bilíngue oferecida em Libras e Português Escrito como segunda língua. Partindo das premissas e argumentações acima expostas, a desvinculação da área da Educação Especial é fundamental para que uma nova arquitetura educacional formal e pública se consolide na perspectiva da Educação Bilíngue de Surdos. Para tanto, é necessário que seja feita uma reestruturação da organização da SECADI relativa à educação bilíngue de surdos. 2. Concepção de Política Linguística para a Educação Bilíngue de surdos4 Política linguística representa um tipo de intervenção social em uma determinada comunidade. Uma política linguística vai determinar decisões quanto ao uso das línguas em um determinado país ou comunidade linguística5. A partir disso, instaura-se um planejamento linguístico que objetiva implementar a política linguística traçada. Os idealizadores de um planejamento linguístico conduzem as decisões a respeito do uso das línguas em uma comunidade específica, podendo ou não coincidir com os interesses da própria comunidade, assim como já observado, por exemplo, com as comunidades surdas6. Fica muito claro que um planejamento linguístico é dirigido por decisões políticas e, portanto, envolve questões complexas, uma vez que não são apenas questões de ordem linguística que o define, mas implica questões éticas da perspectiva das comunidades envolvidas. Mudar as relações entre várias línguas determina a complexidade de um planejamento linguístico. Há dois tipos de planejamento linguístico de intervenção: planejamento de corpus e planejamento de status7. Planejamento de corpus refere a intervenções na forma da língua (por exemplo criar ou modificar formas escritas, criação de neologismos, controle de empréstimos, padronização, etc.). Por outro lado, planejamento de status refere intervenções no status social da língua e na sua relação com as demais línguas (promoção de uma língua, uso na educação, uso na mídia, status oficial, etc.). Nesse sentido, a política linguística instaurada por meio do Decreto 5.626/2005 ao regulamentar a Lei 10.436/2002 tem como consequência um planejamento linguístico de status, pois reconhece a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como língua nacional usada pela comunidade surda brasileira e de intervenção, pois desdobra uma série de ações de implantação e implementação da Libras no Brasil. A regulamentação dessa lei apresenta uma série de intervenções que promovem a Libras no país e determina a educação bilíngue de Surdos. Os instrumentos instaurados para a promoção da Libras envolvem, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino de Libras para todos as licenciaturas e curso de fonoaudiologia; o compromisso dos órgãos públicos em garantir o acesso às informações na Libras para os Surdos; a criação dos cursos de formação de professores de Libras; professores de Português como segunda língua para Surdos e formação de tradutores e intérpretes de Libras e 8 Português. O capítulo IV do Decreto5626/2005 prevê um planejamento linguístico para a difusão da Libras e da Língua Portuguesa para o acesso das pessoas surdas à educação. Fica claro neste documento legal, uma política que instaura um processo para o reconhecimento da Libras e a sua promoção por meio da educação. Essa educação caracteriza-se por uma perspectiva bilíngue, pois reconhece a Libras como primeira língua e a Língua Portuguesa como segunda língua das pessoas surdas, encaminhando o reconhecimento desse status no âmbito educacional. As instituições educacionais devem oferecer o ensino da Libras, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua, contar com professores regentes que conheçam a situação bilíngue dos estudantes Surdos, além de contar com intérpretes de língua de sinais. Neste capítulo, o Decreto inclui a recomendação quanto a criação de um ambiente bilíngue, uma vez que orienta a difusão da Libras entre todos os professores e funcionários, direção da escola e familiares. Ainda orienta quanto ao reconhecimento da Língua Portuguesa como segunda língua, no sentido de adequar o ensino e as avaliações relativas à escrita observando-se esse aspecto, inclusive adotando avaliações em Libras. Diante desse planejamento linguístico relativo ao uso e difusão da Libras no Brasil, torna-se necessário viabilizar a educação bilíngue de Surdos. 3. Os estatutos das línguas8: Libras e Língua Portuguesa 3.1. O reconhecimento da Libras como língua da comunidade Surda Brasileira A Língua Brasileira de Sinais (Libras) é uma língua de sinais nacional, pois conta com reconhecimento social, cultural e legal. A Lei 10.436/2002, chamada de Lei de Libras, reconhece a Libras como uma língua nacional usada nas comunidades surdas do Brasil. Essa Lei foi regulamentada por meio do Decreto 5.626/2005 que apresenta um planejamento linguístico, prevendo a educação bilíngue de os surdos (Libras como L1 e Língua Portuguesa como L2), a formação de professores de Libras, de tradutores e intérpretes de Libras e Língua Portuguesa e de professores de Língua Portuguesa como segunda língua. As línguas de sinais do mundo, mais do que “línguas esquecidas”, são “língua sem risco esquecidas”, tendo sido sistematicamente postas de lado inclusive do debate sobre línguas em risco9. As causas desse esquecimento em um panorama histórico, interessantemente, se mostra pertinente a todas as línguas de sinais no mundo: até a década de 60, quando foram publicados os trabalhos seminais de William Stokoe sobre a língua de sinais americana (ASL), as línguas de sinais nunca haviam sido vistas pela academia e pela sociedade como línguas naturais, com o mesmo estatuto das línguas orais – fato associado ao estatuto deficitário atribuído às pessoas surdas, que nunca haviam sido vistas como um grupo social dotado de uma língua e cultura particulares. Essa situação histórica como uma situação de “negligência benigna”10, talvez para destacar o fato de que foi muito mais um desconhecimento do que uma atitude autoritária de não reconhecimento dessas línguas que motivou o obscurecimento histórico do patrimônio linguístico e cultural das pessoas surdas. Consideramos o modelo tripartido de variedades de línguas de sinais:
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