Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A mulher gorda, mais do que o ho- mem, é segregada e anulada. Mas o peso que mais a incomoda não é aquele registrado na balança — é o da consciência. Quase inevitavelmente, as explicações dadas para a gordura apontam para o fracasso da própria mulher em controlar seu peso, seu apetite e seus impulsos. As mulheres que sofrem do problema da compul- são de comer (que ataca quase todas as gordas) suportam uma dupla an- gústia: sentem-se desajustadas social- mente e acreditam ser as únicas cul- padas por isso. Devido à ansiedade que isso acarreta e ao fato de que as diversas soluções oferecidas às mulhe- res no passado não as satisfizeram, tornou-se necessário o desenvolvimen- to de uma nova psicoterapia que lidas- se com o problema da compulsão de comer, dentro do contexto do movi- mento de libertação da mulher. É que se torna cada dia mais claro que a gor- dura é uma questão feminista. Ela é um problema social, nada tem a ver com a falta de controle ou de força de vontade da mulher, mas pode se tornar uma curiosa forma de protesto. Este livro não diz o que a mulher deve fazer para emagrecer. Ele trata de ajudá-la a conviver com o seu corpo, a aceitá-lo sem culpa, a perder o pe- so da consciência. A melhor maneira de emagrecer, como fica claro nestas páginas, é sentir-se desobrigada de fazê-lo. Ao examinar os motivos que levam as mulheres a engordar, Susie Orbach acaba por analisar a própria situação da mulher na sociedade. "O fato de a compulsão de comer", explica ela, "ser um problema majoritariamente feminino indica que está relacionada à vivência de ser mulher na socieda- de. Assim, podemos entender o ato de engordar como algo preciso e inten- cional; é um desafio dirigido, cons- ciente ou inconscientemente, à estereo- tipagem de papéis sexuais e a vivên- cias de feminilidade culturalmente de- finidas. A gordura", continua, "é uma resposta à desigualdade dos sexos. Re- presenta sentimentos de mulheres que raramente são examinados, muito me- nos tratados." O enfoque terapêutico aqui, diferen- temente de outros programas de ema- grecimento, não reforça os papéis so- ciais opressores que, de saída, levam as mulheres a comer compulsivamente e, em seguida, à gordura. O que Su- sie Orbach faz neste seu revolucioná- rio trabalho — fruto de pesquisa entre mulheres de todas as classes, entre os dezessete e os 65 anos — é um convi- te à libertação, ao fim da escravidão das mulheres, de sua submissão às die- tas e às indústrias de moda que, pri- meiro, estabelecem imagens ideais e, em seguida, incitam-nas a se encaixar nessas imagens. Gordura é uma questão feminista, um livro surpreendente e extremamen- te consciente, escrito por uma psico- terapeuta praticante, ensina, na verda- de, a mulher a perder peso sentindo prazer com a comida, com a vida e consigo mesma, livrando-a do círcu- lo vicioso dieta/abuso. Co-fundadora do Women's Center Institute, em Nova York, e do Wo- men's Therapy Center, em Londres, Susie Orbach é especialista no trata- mento da compulsão de comer. Com este trabalho, ela torna obsoletos to- dos os livros de dieta para emagrecer. Tradução de CINTHIA BARKI Título original norte-americano FAT IS A FEMINIST ISSUE Copyright © 1978 by Susie Orbach Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa em todo o mundo adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 — 20921 Rio de Janeiro, RJ — Tel.: 580-3668 que se reserva a propriedade literária desta tradução Impresso no Brasil PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922 Impresso por Gráfica Portinho Cavalcanti Ltda. Rua Santana, 136/138 (edifício próprio) Tel.: 224-7732 (PABX) Rio de Janeiro — RJ Para, Eleanor Anguti, Carol Bloom e Lela Zaphiropoulos Sumário Prefácio à edição brasileira Chovia e fazia frio em Londres. Já estava andando há al- gumas horas quando enfim encontrei a livraria que estava procurando. Sister Right, era o nome. Uma livraria femi- nista. Fui observando os títulos, selecionando livros que jul- gava serem interessantes. De repente, um me chamou atenção: Gordura é uma questão feminista. Juntei-o aos outros, mas a proposta do livro me intri- gava. As chamadas diziam: "Emagreça sem fazer regime", um livro antidieta, e outras coisas do gênero. Como havia engordado demais durante o inverno lon- drino, dei-me conta do quanto é difícil pertencer ao mun- do maravilhoso dos magros. Você cai no círculo vicioso terrível do engorda/sente culpa/come com culpa/engorda/se pesa/fica aflito/je- jua/segue tudo quanto é regime que aparece pela frente e assim por diante. Gordura é uma questão feminista é um livro intrigan- te que questiona as causas da sua gordura e leva você a re- fletir sobre ela e sobre o fato de estar gordo. A autora parte do princípio de que existe um desejo interno e inconsciente de ser gordo, e que você faz uso da gordura por algum motivo. 9 Numa abordagem individual e social bastante profun- da, o livro prende e provoca, e confesso que houve momen- tos em que eu o odiei. É claro, ele mexeu muito comigo, pois várias situações relatadas me serviram como uma luva. Através do livro, e com muita reflexão posterior, fui descobrindo e combatendo as causas da minha gordura, e hoje mantenho um peso considerado normal para a minha estatura e idade. Agradeço imensamente à Editora Record, pois foi quem acreditou no livro e resolveu editá-lo aqui no Brasil. Espero que a sua trajetória por estas páginas também seja esclarecedora e frutífera, como o foi para mim e para milhares de leitores nos Estados Unidos e na Europa. A autora fez a parte dela; eu, como agente e admira- dora de suas idéias, fiz a minha de trazer o livro até você. O resto está em suas mãos. Boa leitura! Sílvia Rocha setembro de 1986. 10 Prefácio Em março de 1970, fui ao Alternate U, na Sexta Avenida, na altura da rua 14, na cidade de Nova York, inscrever-me em um curso sobre compulsão de comer e auto-imagem, so- mente para mulheres. Entrei numa sala abarrotada com qua- renta mulheres, gordas e magras, que falavam sobre seus corpos e hábitos alimentares. Carol Munter, a organizado- ra do grupo, visivelmente encantada com a afluência de pes- soas, sugeriu que nos dividíssemos em quatro grupos. Era a primeira vez, desde o começo do movimento de liberta- ção da mulher, que mulheres ousavam aparecer em grupos de debates que tratavam especificamente de imagem cor- poral. O tema do curso dava a impressão de ser algo bur- lesco: feministas preocupadas com a aparência! Naquela época costumávamos rejeitar os ideais masculinos veicula- dos pela propaganda e pelo cinema e que ditavam nossa apa- rência. Éramos aparentemente felizes vestindo nossos jeans e camisetas. Não tínhamos o hábito de conversar com nos- sas amigas sobre roupas ou forma física; na verdade, havia uma sensação de alívio generalizada, podíamos ficar à von- tade com nossas roupas e corpos e não precisávamos preo- cupar-nos com o que era especialmente ligado à moda, provocante, ou atraente. Vestíamos as roupas da rebelião e não ligávamos para o que os outros pudessem pensar. Ou será que ligávamos? 11 Antes que formássemos os grupos, Carol Munter men- cionou duas coisas: a primeira, que conhecia uma pessoa que havia perdido muito peso sem fazer dieta; a segunda, que havia montado um espelho de quatro lados num closet ali perto. Quem quisesse podia ir lá, sozinha, olhar-se pe- los quatro lados o tempo que fosse preciso. Carol achava que duas coisas podiam ser a solução para a perda de peso: não fazer dieta e aceitar a si mesma. Mal prestei atenção. Pensava: O que estou fazendo aqui? Sempre me olho no espelho, não tenho medo de fazer isso... Sou mais magra do que algumas delas, será que as outras mulheres vão me aceitar? Nosso grupo marcou um novo encontro para a sema- na seguinte e nos separamos. Estava confusa, havia espe- rado por um debate sobrepadrões de nutrição nos Estados Unidos e no Terceiro Mundo, ou talvez um exame das in- dústrias da moda e de alimentos, ou algo sobre a incidên- cia da obesidade nos "países ricos". Vacilava em examinar o assunto da compulsão de comer fora do contexto de uma linguagem política, linguagem que colocava a família co- mo o ponto de articulação entre o patriarcado e a socieda- de ocidental. Estava perturbada, mas agarrei-me ao slogan de que o individual é político. Não teria voltado, salvo por um motivo. Apesar do mal- estar e da necessidade de comparar-me às outras mulheres, sentia também um alívio extremo em fazer parte de um gru- po de mulheres, gordas e magras, onde todas eram come- doras compulsivas. O problema estava identificado e talvez não me devesse sentir tão envergonhada. Há um ano, apro- ximadamente, vinha falando bastante sobre assuntos mui- to pessoais em grupos de conscientização e de repente fiquei muito animada quando Carol propôs que tratássemos do mesmo modo uma questão que havia permanecido tão ocul- ta e íntima. Deixei o grupo seis meses depois. Não me considerava mais uma comedora compulsiva e consegui estabilizar-me em um peso que achei aceitável. Ele ultrapassou um pouco aquele das minhas antigas fantasias do gênero Twiggy. A 12 comida não me apavorava mais e podia viver em paz com meu corpo. Isso ainda me deixa surpresa, diante daqueles dez anos tão sofridos de dietas, abusos e ódio de mim mes- ma. O que aconteceu então, no grupo, que causou essa trans- formação? Na verdade, muita coisa. Formamos um grupo convencional de mulheres e, uma a uma, fomos compartilhando nossos sentimentos a respeito de nossos corpos, atratividade, comida, modo de comer, magreza, gordura e roupas. Relatamos minuciosamente ca- sos de dietas anteriores e contamos histórias horripilantes de médicos, psiquiatras, clubes de dieta, hotéis de emagre- cimento e jejuns. Conhecíamos o suficiente para saber que todas as nossas tentativas anteriores de chegar ao peso e à forma certos haviam fracassado. Perguntávamos a nós mes- mas por que queríamos nossos corpos tão em forma e o que havia de tão poderoso naquele tipo específico de aparência para que tivéssemos todas tentado e conseguido perder pe- so dezenas de vezes. Não entendíamos por que não conse- guíamos nos livrar "dele", por que, toda vez que quase atingíamos nosso objetivo, "ele" voltava furtivamente, ou por que sempre saíamos do regime. Por que vivíamos tão atormentadas com nossas proporções e formas? Começamos a formular novas perguntas e a nos deparar com novas respostas. Formávamos um grupo de ajuda mú- tua quando a força do movimento de libertação da mulher nos estimulou a repensar muitos conceitos pre-estabelecidos. O poder criativo do movimento preparou um solo fértil onde as idéias feministas, alimentadas e desenvolvidas em inú- meros grupos de conscientização, em passeatas e manifes- tações e em campanhas políticas organizadas, encontraram novas aplicações e utilidades. A compulsão de comer era um dos campos onde essas idéias podiam ser aplicadas. A compulsão de comer é uma atividade muito penosa e, aparentemente, autodestrutiva. Mas o feminismo ensinou- nos a desconfiar de rotulações deste gênero. Ensinou-nos que certas atividades que parecem ser autodestrutivas são, invariavelmente, adaptações, tentativas de enfrentar o mun- do. Em nosso grupo, viramos às avessas nossas idéias for- 13 temente arraigadas sobre dietas e magreza. Carol lembrou- nos de sua amiga que perdera peso sem fazer dieta. Aos pou- cos e com insegurança, paramos com nossas dietas. Nada hor- rível aconteceu. Meu mundo não desabou. Carol levantou a questão principal: talvez não quiséssemos ser magras. É cla- ro que eu queria ser magra, eu seria... As reticências ficaram com a resposta. Eu magra seria diferente de quem eu era. De- cidi que não queria ser magra, não havia nada de mais nis- so. Os homens ficam mexendo com a gente, viramos objetos sexuais. Não, decididamente não queria ser magra... Desen- volvi um novo raciocínio político para não ser magra — não me tornaria aquilo que as revistas de moda queriam que eu fosse. Era uma beatnik judia e seria zaftig* Relaxei, comi o que quis e vesti as roupas que tinham a ver comigo. Senti- me até mesmo um pouco prosa. Ignorava as colunas de die- ta dos jornais, apreciava as diferentes fases gastronômicas pe- las quais passava e andava pelas ruas sentindo-me cada vez mais confiante. No entanto, aquelas reticências continuavam a me perturbar. Por que tinha medo de ser magra? Comecei a visualizar as coisas que me apavoravam. Ao mesmo tempo que as confrontava, perguntava a mim mesma como o fato de ser gorda poderia me ajudar naquelas situações? O fato de ser magra me causaria mais dificuldades em quê? Quan- do a imagem da minha personalidade gorda e magra se fun- diu, comecei a perder peso. Fiquei extremamente satisfeita em ter um corpo no qual me sentia bem e em não estar mais obcecada com relação à comida. Prometi a mim mesma que não seria eu a responsável por me privar das comidas de que gostava. Aprendera uma lição decisiva: era a mesma pessoa, gorda ou magra. Satisfeita, deixei o grupo. Juntas havíamos desenvolvido uma teoria e uma prática que faziam sentido. Eu e Carol continuamos a ajudar outras mulheres a resolver esse problema. Orientamos grupos. Tornamo-nos terapeutas e trabalhamos com mulheres em grupos e individualmente durante cinco anos. 'Pessoa gorda em ídiche. (N. do T.) 14 Este livro é uma tentativa de compartilhar esse trabalho. É minha visão do que aprendemos no primeiro grupo, com os grupos subseqüentes e no tratamento de mulheres indi- vidualmente, que dividiram seu problema da compulsão de comer conosco. Como tal é necessariamente limitado; seu alcance não é suficiente para fornecer um quadro abran- gente sobre a compulsão de comer, mas aponta para aspectos que não foram notados por aqueles que trabalham nesse campo. As observações e insights foram colhidos junto a mulheres dos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. Todas brancas e na faixa etária dos dezessete aos sessenta e cinco anos. Estão incluídas avós e mulheres solteiras. Pertencem à classe operária, classe média e classe média alta. Deseja- ria imensamente que este livro tivesse alguma utilidade pa- ra um público mais amplo, principalmente para mulheres negras e latinas, mas reconheço que suas vivências cultu- rais são diferentes daquelas de onde essas idéias se desen- volveram, e talvez não tenham muito a acrescentar-lhes. Muitos já se ocuparam do estudo da compulsão de co- mer, como psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, médicos, nutricionistas e endocrinologistas1. De modo geral, lidam com o problema ou tentando eliminar a obesidade ou tra- tando das causas subjacentes à ansiedade que gera a com- pulsão de comer. Esta nunca foi definida com precisão, mas para mim e para as mulheres com as quais trabalhei ela sig- nifica o seguinte: Comer quando a fome não é fisiológica. Sentir-se descontrolada com relação à comida, entrando para valer na dieta ou na comilança. Despender muito tempo com pensamentos e preocu- pações relacionados à comida e à gordura. Procurar ansiosamente, na dieta da moda, informações essenciais. 15 Sentir-se péssima por não ter controle. Sentir-se péssima em relação a seu corpo. Nosso enfoque tem sido o de ver a compulsão de co- mer tanto como sintoma quanto como um problema em si mesmo. É sintoma no sentido em que aquele que come por compulsão não sabe como lidar com aquilo que está por trás deste comportamento e apela para a comida. Por ou- tro lado, a síndrome da compulsão de comer se propagou de tal maneira e é tão dolorosamente absorvente que deve também ser abordada diretamente como um problema. Con- seqüentemente, tratamos de ambos os aspectos. Examina- mos e desmistificamos o sintoma para descobrir o que está sendo manifestado no desejo de ser gorda, no medo da ma- greza e na vontade de se fartar e depassar fome. Ao mes- mo tempo, tentamos intervir diretamente para que os sentimentos e o comportamento com relação à comida possa modificar-se. Os problemas subjacentes devem ser revela- dos e distinguidos, mas não necessariamente trabalhados. A perspectiva é sempre a de perceber as dimensões sociais que levam as mulheres a optar pela compulsão de comer como uma adequação à pressão sexista da sociedade con- temporânea. Estamos cientes de que a preocupação contemporânea com a magreza é nova e restringe-se aos países ocidentais que aparentemente não sofrem de escassez de alimentos. A produção de alimentos desses países está quase toda nas mãos de empresas multinacionais2. Dominam totalmente o mercado, desde comidas com "alto teor de proteínas", "vi- taminadas" e "integrais", a doces dietéticos, geléias, sor- vetes, leites e refrigerantes. Às mulheres, as compradoras mais importantes de alimentos, é oferecida uma escolha apa- rentemente ampla. Elas têm de fazer escolhas inteligentes para a saúde e o bem-estar de suas famílias. Ao mesmo tem- po, toda mulher se defronta incessantemente com imagens de magreza e de boa forma e com recomendações para co- mer sensatamente, perder peso e ter uma vida feliz. Esta 16 preocupação geral com a magreza atinge tanto mulheres, como homens, e as pessoas são, muitas vezes, induzidas a emagrecer quando não estavam anteriormente com exces- so de peso. Deste modo tem início um ciclo de privação de comida e de compulsão de comer. As mulheres são espe- cialmente suscetíveis a esses apelos em favor da perda de peso porque são educadas para adaptar-se a uma imagem de feminilidade que confere importância ao peso e à for- ma. Somos ensinadas a nos enquadrar e a nos destacar ao mesmo tempo — mensagem realmente contraditória. Os homens estão sendo cada vez mais atingidos por esse tipo de pressão e, apesar de ter trabalhado com muitos ho- mens, não tentei formular uma teoria que descreva como o sexismo afeta o peso masculino. Este livro foi escrito como um manual de auto-ajuda. No entanto, alguns terapeutas talvez queiram incorporar este método a seus trabalhos com comedores compulsivos3. Espero que a experiência aqui relatada e vivida pelas mulheres tenha algo a dizer a todas aquelas que sofrem do problema da compulsão de comer. Susie Orbach Londres, 1978 17 Introdução A obesidade e o comer em excesso juntaram-se ao sexo co- mo questões fundamentais nas vidas de muitas mulheres hoje em dia. Estima-se que nos Estados Unidos 50% das mu- lheres têm excesso de peso. Todas as revistas femininas publicam uma coluna de dieta. Médicos e clínicas de ema- grecimento prosperam. Nomes de comidas dietéticas fazem agora parte de nosso vocabulário comum. A boa forma fí- sica e a beleza são, hoje em dia, o objetivo de todas as mu- lheres. Ao mesmo tempo que essa preocupação com a gordura e com a comida tornou-se tão comum que passa- mos a aceitá-la sem questionamentos, ser gorda, sentir-se gorda e a compulsão de comer em excesso são, na verdade, experiências sérias e dolorosas para as mulheres que as vi- vem. A mulher gorda é segregada e anulada. Quase inevita- velmente, as explicações dadas para a gordura apontam para o fracasso da própria mulher em controlar seu peso, seu apetite e seus impulsos. As mulheres que sofrem do pro- blema da compulsão de comer suportam uma dupla angús- tia: sentem-se desajustadas socialmente e acreditam-se as únicas culpadas. O número de mulheres que têm problemas com peso e que comem por compulsão é grande e vem aumentando. 19 Devido à ansiedade que isso acarreta e ao fato de que as diversas soluções oferecidas às mulheres no passado não fun- cionaram, tornou-se necessário o desenvolvimento de uma nova psicoterapia que lidasse com o problema da compul- são de comer, dentro do contexto do movimento de liber- tação da mulher. Esta nova psicoterapia representa um reexame feminista da psicanálise tradicional. Um enfoque psicanalítico tem muito a oferecer para. uma solução dos problemas da compulsão de comer. Este enfoque nos fornece meios de investigar as raízes do pro- blema em nossas primeiras vivências. Mostra-nos como for- mamos nossa personalidade adulta, principalmente nossa identidade sexual — como uma menina recém-nascida torna- se moça e depois mulher e como um menino recém-nascido torna-se rapaz e depois homem. O insight psicanalítico nos ajuda a compreender o que significa ser gorda e comer em excesso para cada mulher individualmente, através da ex- plicação de seus atos conscientes ou inconscientes. No entanto, um enfoque baseado exclusivamente na psicanálise clássica, sem a perspectiva feminista, é insufi- ciente. Desde a Segunda Guerra Mundial, a psiquiatria, de modo geral, tem dito às mulheres infelizes que sua insatis- fação representa uma incapacidade em resolver o "complexo de Édipo". A gordura feminina tem sido diagnosticada co- mo um sintoma obsessivo-compulsivo relacionado à sepa- ração-individuação, narcisismo e desenvolvimento de ego insuficiente1. Ser gorda é encarado como um desvio e uma maneira de afastar os homens. O comer em excesso e a obe- sidade foram reduzidos a falhas de caráter, em vez de se- rem entendidos como a expressão de vivências dolorosas e conflituosas. Além disso, em vez de tentar descobrir e en- frentar os sentimentos desagradáveis das mulheres com relação a seus corpos ou com relação à comida, os profis- sionais se preocuparam com o problema de como torná-las magras. Assim, depois que psiquiatras, analistas e psicólo- gos fracassaram, cientistas começaram a procurar respos- tas biológicas e até mesmo genéticas para explicar a obesidade. Nenhum destes enfoques têm tido resultados con- 20 vincentes e duradouros. Nenhum deles chegou aos pontos fundamentais do problema da compulsão de comer que es- tão enraizados na desigualdade social da mulher. Uma visão feminista do problema da compulsão de co- mer da mulher é essencial se quisermos superar o enfoque ineficaz do tipo que diz que a culpa é da vítima2 e o insa- tisfatório modelo de tratamento de adaptação. Enquanto a psicanálise fornece meios valiosos de descobrir as origens mais profundas da ansiedade, o feminismo faz questão de dizer que essas dolorosas vivências pessoais advêm do con- texto social onde as meninas nascem e dentro do qual cres- cem e se tornam mulheres. O fato da compulsão de comer ser um problema majoritariamente feminino indica que es- tá relacionada à vivência de ser mulher em nossa socieda- de. O feminismo demonstra que ser gorda representa uma tentativa de romper com os estereótipos sexuais da socie- dade. Assim, podemos entender o ato de engordar como algo preciso e intencional; é um desafio dirigido, conscien- te ou inconscientemente, à estereotipagem de papéis sexuais e a vivências de feminilidade culturalmente definidas. A gordura é um mal social; a gordura é uma questão feminista. A gordura não tem a ver com falta de controle ou falta de força de vontade. A gordura tem a ver com pro- teção, sexo, criação, força, limites, maternidade, estabili- dade, afirmação e raiva. É uma resposta à desigualdade dos sexos. A gordura hoje representa sentimentos de mulheres que raramente são examinados, muito menos tratados. Em- bora tornar-se gorda não altere as raízes da opressão sexual, um estudo das causas subjacentes ou da motivação incons- ciente que leva as mulheres a comer compulsivamente pode indicar novas possibilidades de tratamento. Nosso enfoque terapêutico, diferentemente de outros programas de ema- grecimento, não reforça os papéis sociais opressores que le- vam as mulheres, de saída, à compulsão de comer. O que acontece com a posição social da mulher, que a leva a rea- gir engordando? A justificativa ideológica atual para a desigualdade dos sexos formou-se baseada no conceito das diferenças inatas 21 entre homens e mulheres. Somente as mulheres podem dar à luz e amamentar seus bebês e, dessa forma, forma-se uma relaçãode dependência primária entre mãe e filho. Embo- ra esta capacidade biológica seja a única diferença genética conhecida entre o homem e a mulher3, ela serve de base para uma divisão desigual do trabalho, do poder, dos pa- péis e das expectativas entre os sexos. A divisão do traba- lho está institucionalizada. A capacidade da mulher de reproduzir e alimentar relegou-a ao cuidado e à socializa- ção das crianças. A relegação da mulher aos papéis sociais de esposa e mãe tem muitas conseqüências significativas que são, em parte, responsáveis pelo problema de gordura. Em primei- ro lugar, para se tornar esposa e mãe ela tem de ter um ho- mem. Conseguir um homem é visto como um objetivo quase inatingível, porém essencial. Para conseguir um homem, a mulher deve aprender a se ver como um artigo, uma mer- cadoria, um objeto sexual. Grande parte daquilo que ela sente e da sua identidade depende de como ela se vê e é vis- ta pelos outros. Como diz John Berger em Ways of Seeing: "Os homens agem, as mulheres aparecem. Os homens olham as mulheres. As mulheres se vêem sendo olhadas. Isto deter- mina não somente quase todas as relações entre homens e mu- lheres, como também a relação das mulheres consigo mesmas4." Essa ênfase à aparência como aspecto principal da exis- tência da mulher torna-a extremamente autocrítica. Exige que ela se ocupe com uma imagem de si mesma que os ou- tros achem agradável e atraente — imagem que transmita imediatamente que tipo de mulher ela é. Ela tem de se ob- servar e avaliar, examinando cada detalhe de si mesma co- mo se estivesse sendo julgada de fora. Tenta encaixar-se na imagem de feminilidade exibida em cartazes, jornais, revistas e na televisão. Os meios de comunicação apresentam a mu- lher ou dentro de um contexto sexual, ou dentro da famí- lia, refletindo os dois papéis estabelecidos para ela: o 22 primeiro, como objeto sexual, o segundo, como mãe. Ela é criada para "agarrar" um homem com sua boa aparên- cia e boas maneiras. Para fazer isso ela deve parecer atraente, natural, sensual, sexy, virginal, inocente, confiável, ousa- da, misteriosa, coquete e magra. Em outras palavras, ela oferece sua auto-imagem ao mercado do casamento. Co- mo mulher casada, sua sexualidade será sancionada e al- guém se responsabilizará por suas necessidades econômicas. Terá alcançado o primeiro degrau da feminilidade. A partir do momento que se ensinou às mulheres ter uma visão exterior de si mesmas enquanto pretendentes aos homens, elas se tornaram escravas das imensas indústrias de moda e dieta que, primeiro, estabelecem imagens ideais e, em seguida, incitam-nas a se encaixar nessas imagens. A mensagem é clara e enfática: o corpo da mulher não lhe per- tence. O corpo da mulher, do jeito que é, não satisfaz. Tem de ser magro, sem pêlos supérfluos, desodorizado, perfu- mado e vestido. Deve adequar-se a um tipo físico ideal. A família e a socialização escolar ensinam as meninas a se en- feitar do modo certo. Além disso, o trabalho não tem fim, pois essa imagem muda a cada ano. No início dos anos ses- senta, a única maneira de sentir-se aceita era ser magérri- ma, ter o busto achatado e cabelos longos e lisos. A primeira exigência era conseguida quase passando fome, a segunda enfaixando o busto com uma bandagem, e a terceira, pas- sando-se os cabelos a ferro. Em seguida, no início dos anos 70, a aparência ideal era ter cabelos encacheados e seios vo- lumosos. Altas e magras num ano, pequeninas e discretas no seguinte, as mulheres são continuamente manipuladas por imagens de uma feminilidade exemplar extremamente fortes porque são apresentadas como a única realidade. Aquelas que não levam em conta essas imagens, correm o risco de serem rejeitadas. As mulheres são estimuladas a amoldar-se, a ajudar a economia através do consumo in- cessante de bens e roupas rapidamente inutilizados pela mo- da da estação seguinte. Atrás de tudo isso, uma indústria de dez bilhões de dólares aguarda para remodelar os cor- pos de acordo com a última moda. Deste modo, espera-se 23 que as mulheres moldem-se a um padrão externamente de- finido e sempre em mutação. Mas tais modelos de feminili- dade são sentidos como irreais, assustadores e inatingíveis. Formam um quadro que está muito longe da realidade do dia-a-dia das mulheres. O que persiste nessas imagens é que a mulher tem que ser magra. Para muitas mulheres, comer compulsivamente e ser gorda tornou-se um meio de evitar ser vista como mer- cadoria ou como a mulher ideal: "Minha gordura diz 'da- ne-se' para todos aqueles que me querem como mãe perfeita, namorada, empregada e prostituta. Veja-me como eu sou, não como deveria ser. Se você está realmente interessado em mim, pode fazer um esforço para passar através das ca- madas de gordura e descobrir quem eu sou." Assim, a gor- dura expressa uma revolta contra a falta de poder da mulher, contra a pressão de ter de parecer e agir de uma determina- da forma, e contra o fato de ser julgada por sua capacida- de ou não de criar uma imagem de si mesma. Tornar-se gorda é, portanto, uma resposta da mulher à primeira etapa do processo de desempenhar um papel so- cial estabelecido, que exige que ela se amolde a uma ima- gem imposta externamente para conseguir um homem. Mas um segundo estágio acontece depois que ela alcança este ob- jetivo, após tornar-se esposa e mãe. Para uma mãe, as necessidades de todos os outros vêm em primeiro lugar. As mães são gerentes não remuneradas de pequenas organizações, fundamentais, complexas e exi- gentes. Podem não ter controle sobre os acordos financei- ros desta minicorporação ou sobre as principais decisões a respeito de sua localização ou gestos de capital, mas geral- mente controlam as operações do dia-a-dia. Para garantir sua sobrevivência, estima-se que a mãe trabalha dez horas por dia (dezoito, se trabalhar fora), garantindo a compra e o preparo da comida, a arrumação das roupas, brinque- dos e livros das crianças e que as coisas do pai estejam sempre em ordem. Ela torna a casa habitável, limpa e con- fortável; faz o trabalho de relações públicas organizando o horário em que a família vai dedicar-se a parentes e ami- 24 gos; fornece os serviços de baby-sitter e de motorista para seus filhos. Enquanto somos bebês e crianças, cuidam de nós. No entanto, quando adultas, espera-se das mulheres que alimentem e limpem não somente seus bebês, como tam- bém seus maridos, e somente depois, elas mesmas. Neste papel as mulheres se sentem especialmente coa- gidas a apelar para a comida. Após o nascimento de cada bebê, o peito e as mamadeiras tornam-se questões centrais. Geralmente a mãe é levada a sentir-se insegura com rela- ção à sua competência no desempenho de seu trabalho bá- sico. No hospital, o bebê é pesado depois de cada mamada para se checar se o peito da mãe tem leite suficiente. Pedia- tras e livros que ensinam a cuidar de bebês bombardeiam a nova mãe com conselhos autoritários mas divergentes so- bre, por exemplo, horário fixo de alimentação ou determi- nado pela necessidade do bebê, receitas de mamadeiras, ou sobre o início da alimentação sólida. À medida que as crian- ças crescem, continua-se a chamar a atenção da mulher so- bre sua incapacidade de proporcionar uma alimentação satisfatória. A indústria de alimentos, ao preço de bilhões de dólares por ano, aconselha-a como, quando e o que dar àqueles que estão entregues a seus cuidados. A propagan- da a induz a oferecer cafés da manhã nutritivos, salgadi- nhos para beliscar e jantares saudáveis. A obsessão dos meios de comunicação com o bom cuidado da casa e, espe- cialmente, com uma boa comida e alimentação, serve de ter- mômetro para aferir o desempenho sempre sofrível da mulher. Essa obsessão estabelece as regras para a prepara- ção da comida, de modo que a dona-de-casa é exposta a uma lista tão contraditória de permissões e proibições, que é um verdadeiro milagre conseguir fazer algo, seja o que for, na cozinha. Não é de surpreenderque uma mulher aprenda rapidamente a não confiar mais em sua intuição, seja para alimentar sua família, seja para sentir quais são suas próprias necessidades quando se alimenta. Durante o período da vida dedicado à criação dos fi- lhos a mulher está constantemente assegurando que a vida dos outros decorra tranqüilamente. Faz isso sem pensar se- 25 riamente que está trabalhando num emprego de tempo in- tegral. Sua própria vivência do dia-a-dia é como parteira das atividades dos outros. Enquanto prepara os filhos pa- ra se tornarem futuros trabalhadores e possibilita a seu ma- rido ser um produtor "eficiente", seu papel é o de produzir e reproduzir trabalhadores. Nesta posição, ela está constan- temente dando, sem receber, o crédito que confirmaria seu valor social. Em uma sociedade capitalista todos são definidos pe- -o trabalho. Homens de negócio, de carreira universitária ou profissionais têm mais status do que pessoas que traba- lham na produção ou em serviços gerais. O trabalho feito em casa pela mulher entra nesta última categoria. Apesar de ser geralmente descrito como subalterno, de ser consi- derado criativo, de ser menosprezado por ser fácil, ou de ser venerado como algo divino, o trabalho da mulher é vis- to como se existisse fora do processo de produção e é, por isso, desvalorizado. As mulheres, como grupo, têm menos liberdade de expressão do que os homens de sua mesma clas- se social. Por mais oprimidos que possam ser por uma classe social, os homens detêm mais poder que as mulheres. To- do homem tem de ser cauteloso com o patrão. Toda mu- lher tem de ser cautelosa temendo a reprovação de seu homem. As normas e pontos de vista atuais são masculi- nos. As mulheres são vistas como sendo diferentes das pes- soas normais (que são os homens), são vistas como o "outro"5. Não são aceitas em termos de igualdade com os homens. Sua plena identidade não tem a aprovação da so- ciedade onde crescem. Isto acarretará uma confusão para as mulheres. Estão presas ao papel de estranhas e, no en- tanto, lhes é delegada a responsabilidade de garantir a pro- dutividade das vidas dos outros. Visto que as mulheres não são aceitas como seres hu- manos em termos igualitários e, no entanto, espera-se que assim mesmo dediquem enorme energia às vidas dos outros, as distinções entre suas próprias vidas e as dos que estão próximos podem tornar-se pouco claras. Confundir-se com os outros, alimentar os outros, não saber como formar um 26 espaço para si mesmas, são assuntos freqüentes das mulhe- res. As mães estão constantemente dando de si e alimen- tando o mundo; as necessidades dos outros vêm em primeiro lugar. Não é de surpreender que elas se sintam confusas com relação a suas próprias necessidades físicas e que tenham poucas maneiras de perceber seus interesses próprios. Uma forma de dar para si e de se preencher é através da comida. "Como muito porque estou sempre me abastecendo para a luta do dia-a-dia. Cuido de minha família, de minha mãe e de quem faça parte do meu dia. Sinto-me vazia em dar tanto de mim, por isso como para preencher os espaços e sentir-me forte para continuar a dar de mim para o mun- do." A gordura resultante tem a função de formar o espa- ço que as mulheres anseiam. É uma tentativa de responder à pergunta: "Se estou sempre me dando para todos, onde é que começo e termino?" Queremos ser e parecer sólidas. Queremos ser maiores do que o permitido pela sociedade. Queremos ocupar tanto espaço quanto o outro sexo. "Se me tornar tão grande quanto um homem, talvez seja leva- da a sério como um homem." O que acontece com a mulher que não se encaixa nes- se papel social? Apesar da imagem de objeto sexual ideal e de mãe supercompetente ser difundida socialmente, ela não só é limitadora e inatingível, como também incapaz de corresponder, hoje em dia, à realidade da vida de inúme- ras mulheres. A verdade é que atualmente a maioria das mu- lheres ainda se casa e tem filhos. Mas muitas também continuam a trabalhar fora depois do casamento, quer pa- ra satisfazer necessidades econômicas, quer para tentar rom- per com os limites de seu papel social. As mulheres estão sempre fazendo malabarismos com os inúmeros aspectos de suas personalidades, que são desenvolvidos e expressa- dos, com muito custo, diante desse cenário hostil. Nesse con- texto, assim como muitas mulheres engordam em primeiro lugar como uma tentativa de evitar sua transformação em objetos sexuais no começo de sua vida adulta, muitas ou- tras permanecem gordas como um meio de neutralizar sua identidade sexual aos olhos de outros que são importantes 27 para elas na medida em que suas vidas evoluem. Deste mo- do podem esperar serem levadas a sério em sua vida profis- sional fora do lar. Não é comum, para as mulheres, serem aceitas por sua competência nesse terreno. Quando emagre- cem, isto é, quando começam a se parecer com mulheres autênticas, percebem, de repente, que estão sendo tratadas frivolamente por seus colegas do sexo masculino. Quando as mulheres são magras, são tratadas com frivolidade: uma profissional magra, sexy e incompetente. Mas, se uma mu- lher emagrece, ela própria talvez ainda não consiga sepa- rar essa magreza da sexualidade que já vem estabelecida, e que a define como incompetente. É difícil adaptar-se a uma imagem idealizada pela sociedade (a de pessoa magra), sem também transformar-se na outra imagem (a de mulher sexy). "Quando estou gorda sinto firmeza. Sempre que ema- greço sinto que estou sendo tratada como uma bonequinha que não sabe nada de nada." Vimos como a gordura é uma rejeição simbólica das limitações do papel da mulher, uma adaptação que muitas mulheres fazem na penosa tentativa de levar adiante suas próprias vidas em meio às limitações impostas por sua fun- ção social. Mas para entendermos um pouco mais sobre o modo como o excesso de peso e, em especial, o comer em excesso atuam nas vidas das mulheres, temos de examinar o processo através do qual lhes é ensinado inicialmente seu papel social. É um processo complexo e irônico, pois as mu- lheres são preparadas para essa vida de desigualdade por outras mulheres que, elas próprias, sofrem as limitações des- sa vida: suas mães. A perspectiva feminista mostra que a compulsão de comer é, na verdade, uma manifestação das complexas relações entre mães e filhas. Se o papel social da mulher é o de tornar-se mãe, a cria- ção — a alimentação da família no sentido mais amplo do termo — é seu trabalho fundamental. De modo geral, é so- mente dentro da família que uma mulher possui algum po- der social. Sua competência como mãe e sua capacidade de ser um apoio afetivo para a família define-a e fornece-lhe . um contexto reconhecido onde existir. Para a mãe, uma par- 28 te fundamental do papel materno consiste em ajudar a fi- lha, assim como sua mãe fez com ela, a fazer uma suave transição para o papel social feminino. Com a mãe a meni- na aprende quem ela própria é e pode ser. A mãe fornece um modelo de comportamento feminino e dirige o compor- tamento da filha de um modo específico. Mas o mundo que a mãe deve apresentar à filha é um mundo de relações de desigualdade, entre pais e filhos, au- toridade e falta de poder, homem e mulher. A criança é ex- posta ao mundo das relações de poder através de uma unidade que, ela própria, produz e reproduz talvez como a mais fundamental dessas desigualdades. Dentro da famí- lia incute-se um sentimento de inferioridade nas meninas6. Embora seja óbvio que o processo de crescimento de meni- nos e meninas é imensamente diferente, pode estar menos claro que, para preparar a filha para uma vida de desigual- dade, a mãe tente conter os desejos desta de ser um ser humano forte, autônomo, auto-suficiente, enérgico e pro- dutivo. Desde muito cedo a menina é encorajada a aceitar essa ruptura em seu desenvolvimento e é orientada a lidar com essa perda através do desvio de sua energia para o cuidado dos outros. Suas próprias necessidadesde apoio afe- tivo e de crescimento serão satisfeitas se ela puder conver- tê-las em dar de si aos outros. Enquanto isso, ensina-se os meninos a receber apoio afetivo mas não a saber devolver esse tipo de cuidado e amor. Portanto, quando uma jovem finalmente obtém a re- compensa social do casamento, descobre que ele raramen- te lhe fornece os cuidados de que ainda precisa, nem tampouco uma oportunidade para a sua independência e o autodesenvolvimento. Ser mulher é viver na tensão de dar de si e não receber; e mães e filhas envolvidas neste proces- so que leva a isto estão, inevitavelmente, fadadas à ambi- valência, dificuldade e conflito. Se a questão for abordada sob o ponto de vista da mãe, o processo de conduzir a filha para a feminilidade adulta é ambivalente por diversas razões. A primeira é a questão da independência. A mãe, que foi preparada para uma vi- 29 da de doação, julga que sua função de alimentar, criar e educar os filhos está cumprida — função esta que faz parte integrante do êxito de seu papel social. Ela precisa que pre- cisem dela e realmente se realiza como uma "boa mãe" ali- mentando cuidadosamente sua filha. Deste modo, as mães querem e não querem que suas filhas as deixem. Querem, porque o papel materno também exige que preparem as fi- lhas para a independência final: fracassar nessa área é fra- cassar na sua condição de mãe. Por outro lado, o êxito nessa área assinala o fim da maternidade. Vimos que, dos limita- dos papéis acessíveis às mulheres neste século, a materni- dade é o único onde elas têm poder legítimo. Portanto, seu êxito pessoal em ser mães resulta na perda de poder. Seu êxito pessoal é um beco sem saída; não resulta na criação de um novo papel, igualmente poderoso. A ambivalência das mães é, no entanto, mais doloro- sa ainda porque querem e não querem que suas filhas se- jam como elas. A filha que é igual à mãe está, de certo modo, dando validade à vida dessa mãe. Mas a vida da mãe conti- nua a ser uma vida sem validade e, o fato da filha reprodu- zir o modo de vida da mãe não pode ser nada além da perpetuação da falta de poder. Em seu amor pela filha, a mãe deve querer, inevitavelmente, uma vida diferente para ela. Apesar disso, elas podem ter sentimentos ambivalen- tes com relação às novas oportunidades acessíveis a suas fi- lhas, e que elas próprias não tiveram. Podem ter inveja dessas oportunidades e medo do bem-estar de suas filhas num mundo que elas consideram hostil às mulheres, ao mes- mo tempo que sentem uma satisfação indireta com a ambi- ção e o sucesso de suas filhas. Enquanto a mãe deve ser mãe, a filha pode ser ambiciosa e participante no mundo. Examinemos agora tais conflitos sob o ponto de vista da filha. As filhas querem e não querem deixar as mães. A filha que vai embora é aquela que se torna independen- te, faz parte do mundo, "acontece" como mulher adulta. No entanto, essa mesma autonomia causa problemas. Co- mo vimos, a independência no mundo ainda não é uma op- 30 ção para as mulheres adultas. As filhas têm sentimentos am- bivalentes com relação a suas oportunidades no mundo; são mal preparadas para assumi-las, como aprenderam, tanto da cultura em geral, quanto de suas próprias mães. As filhas se identificam com a falta de poder das mães enquanto mulheres em uma sociedade patriarcal. Foram criadas para serem como suas mães. Mas querem, ao mes- mo tempo, ser e não ser iguais às mães. Embora se identifi- quem com suas mães enquanto mulheres, como aquelas que dão de si e que cuidam dos outros, é provável que desejem, apesar disso, ter uma outra vivência da condição de mu- lher. Ao partir, ao sair fora do papel feminino estabeleci- do, é possível que a filha sinta que está traindo a mãe, ou se destacando com relação a ela, fazendo "melhor" do que ela. Pode também ficar apreensiva por estar pisando em um terreno movediço e não explorado. Além disso, se a filha se identifica com a falta de poder da mãe, é possível que ache que seu papel é o de cuidar dela — dar-lhe o amor, o cuidado e o interesse que ela nunca recebeu. Torna-se a mãe de sua mãe? Partir será uma dupla traição. Como chegarão a se expressar na gordura, na comida e na alimentação tais ambivalências e conflitos? Como ca- da mulher adulta que sofre da compulsão de comer expres- sa o que aconteceu consigo em relação à sua mãe? É óbvio que a alimentação desempenha um papel elementar na re- lação entre a mãe e a criança, não importando seu sexo. Dentro de toda a gama de funções relativas à criação que se espera das mães, a alimentação física é a mais fundamen- tal — na verdade, instintiva. O peito da mãe fornece ali- mento para as crianças praticamente sem qualquer ato consciente desta, enquanto que todas as outras funções re- lativas à criação, como a doação vital de apoio afetivo, têm de ser aprendidas. Em virtude da ambivalência sentida em relação à fi- lha, a disposição da mãe em lhe dar uma criação sensível, física e emocionalmente, pode ser abalada. Os bebês do se- xo masculino e feminino vivenciam suas primeiras relações de amor com a mãe, mas muito cedo esta nega um certo 31 grau de apoio e sustentação à filha, a fim de ensinar-lhe os caminhos da condição de mulher. Isso traz conseqüências específicas. Em Little Girls7, Elena Gianini Belotti refe- re-se a um estudo sobre posturas e procedimentos mater- nos na alimentação de bebês. Em uma amostragem de bebês de ambos os sexos, havia 99% de meninos amamentados para 66% de meninas. As meninas eram desmamadas sig- nificativamente mais cedo que os meninos e passavam 50% de tempo a menos sendo alimentadas (no caso da alimen- tação através do peito e de mamadeiras, isto significava que eram menos alimentadas do que os meninos). Deste modo, as filhas são, geralmente, mais mal alimentadas e recebem menos atenção e sensibilidade do que precisam. A alimen- tação física insensível e inadequada é mais tarde associada inconscientemente a uma alimentação afetiva insatisfató- ria. Embora inconscientemente a mãe possa não estar crian- do adequadamente sua filha, é com muita relutância que abre mão de alimentá-la. Na ausência de um papel alterna- tivo, pode tornar-se pouco nítida a diferença entre ela e a criança, agora fora do útero. É possível que veja a criança como um produto, uma posse ou uma extensão sua. As- sim, a mãe tem interesse em manter o controle sobre quan- to, o quê e quando a criança come. Precisa encorajar essa dependência inicial para garantir sua própria sobrevivên- cia social. Pode existir muita ambivalência com relação à alimen- tação e à criação. Uma mãe deve certificar-se de que a fi- lha não está sendo alimentada em excesso, para que não se torne gulosa e gorda — horrível destino para uma garo- ta. Deve garantir-lhe uma aparência saudável — normal- mente associada à forma arredondada — e precisa que a criança dependa dela; pois quem mais será se não for vista como mãe? Contudo, pode também não gostar dessa de- pendência que a prende, a suga e impede de canalizar suas energias em outra direção. Por último, deve preparar a fi- lha para criar e alimentar outra pessoa — um futuro filho, amante, marido ou os pais. Deve ensiná-la a preocupar-se 32 em alimentar e criar outros, pagando por isso o preço de não se desenvolver plenamente. Enquanto isso, pelo lado da filha, na medida em que passa de criança a mulher, sua própria alimentação pode tornar-se uma resposta simbólica à privação, tanto física quanto simbólica, que ela sofreu na infância, uma mani- festação da falsa intimidade com a mãe. Na medida em que se torna mais desenvolvida, a criança começa a alimentar-se sozinha e a escolher seus próprios alimentos, criando e de- senvolvendo um sentimento de independência com relação à mãe. Mas essa ruptura causa conflitos para a filha. Por um lado, ela quer ir embora e aprender a cuidar de si mes- ma; por outro, essa capacidade de cuidar de si mesma lhe parece uma rejeição à mãe. Esta rejeição assume um signi- ficadoprofundo em virtude da limitação social do papel da mulher na sociedade patriarcal. Se a mãe não é necessária como mãe, quem será ela? A filha sente-se culpada por des- truir o único papel da mãe. Enquanto procura por apoio afetivo em outras relações sociais, é possível que continue a sofrer privações, já que seu parceiro geralmente não apren- deu a dar de si. Começa a comer à procura de amor, con- solo, calor humano e apoio — em busca daquela coisa indefinível que parece sempre faltar. A compulsão de comer torna-se um meio de manifes- tar os dois lados do conflito. Ao comer em excesso, a filha pode estar tentando rejeitar o papel da mãe e ao mesmo tem- po estar lhe censurando pela criação deficiente que recebeu; ou pode estar tentando manter um sentimento de identida- de com a mãe. A cultura popular está repleta de testemu- nhos sobre o valor simbólico que a comida e a gordura assumem entre mães e filhas. Em Lady Oracle, por exem- plo, Margaret Atwood mostra como a gordura da filha tor- na-se uma arma na luta contra a mãe. Quando a mãe dá a Joan uma mesada para que compre roupas, como um meio de incentivá-la a emagrecer, esta compra propositalmente aquelas que mais destacam sua forma e, finalmente, com a compra de um casaco verde-limão, consegue levar sua mãe às lágrimas: 33 Minha mãe nunca havia chorado na minha frente e eu es- tava assustada, mas ao mesmo tempo radiante com essa pro- va do meu poder, meu próprio poder. Tinha-a derrotado; nunca deixaria que ela me transformasse em sua imagem, ma- gra e bela. De modo semelhante, no filme, Lembranças, quando a mãe critica a forma da filha, esta lhe responde irada que a gordura é sua, que é a única responsável por ela e que isso é uma coisa que a mãe também não lhe pode tirar. As mulheres empenhadas no exame da relação entre a compulsão de comer e suas mães conseguiram perceber o seguinte: Minha gordura diz à minha mãe: "Sou forte. Posso me prote- ger. Posso sair para o mundo." Minha gordura diz à minha mãe: "Olhe para mim. Sou uma atrapalhada; não sei cuidar de mim. Você ainda pode ser mi- nha mãe." Minha gordura diz à minha mãe: "Vou sair para o mundo. Não posso levar você comigo, mas posso levar uma parte sua, que está ligada a mim. Meu corpo vem do seu. Minha gordura está ligada a você. Deste modo posso ainda ter você comigo." Minha gordura diz à minha mãe: "Estou lhe deixando mas ain- da preciso de você. Minha gordura lhe mostra que não sou real- mente capaz de tomar conta de mim." Para a comedora compulsiva a gordura tem um signi- ficado muito simbólico, que faz sentido dentro de um con- texto feminista. A gordura é uma resposta às inúmeras demonstrações de opressão de uma cultura sexista. A gor- dura é um meio de dizer "não" à falta de poder e à auto- negação, a uma expressão sexual limitadora que exige que as mulheres tenham uma determinada aparência e ajam de um modo determinado, e a uma imagem de feminilidade que define um papel social específico. A gordura ofende os ideais ocidentais de beleza feminina e toda mulher "com excesso de peso", enquanto tal, abala o poder da cultura popular em nos tornar meros produtos. A gordura também 34 revela a tensão da relação mãe/filha, relação que ficou in- cumbida da feminização da mulher. É inevitável que esta relação seja difícil dentro de uma sociedade patriarcal, por- que exige que as mães, já oprimidas, tornem-se as mestras, aquelas que preparam e reforçam a opressão que a socie- dade infligirá sobre suas filhas. Embora a gordura desempenhe a função simbólica de rejeitar o modo como a sociedade desfigura a mulher e suas relações com os outros, especialmente na relação crucial en- tre mães e filhas, engordar continua sendo uma tentativa insatisfatória e infeliz de solucionar esses conflitos. É um preço muito penoso a se pagar, esteja a mulher tentando amoldar-se às expectativas da sociedade, ou tentando for- mar uma nova identidade. Quando algo está "errado" deste modo, pode-se es- perar por um desequilíbrio psicológico e uma reação. Pou- cas coisas poderiam estar mais "erradas" do que a tentativa que uma cultura patriarcal faz de inibir os desejos de uma jovem de ser criativa e de se expressar, de pressioná-la qua- se exclusivamente em direção a atividades, pensamentos e sentimentos limitados, relacionados ao gênero feminino. O desenvolvimento psicológico da mulher é estruturado de mo- do a prepará-la para uma vida de desigualdade, mas essa camisa-de-força não é aceita com facilidade e, invariavel- mente, provoca uma "reação". Os distúrbios psicológicos, em geral, alteram as funções fisiológicas de uma pessoa: a capacidade de comer, de dormir, de falar e de ter vida se- xual. Sou de opinião que uma das razões pelas quais en- contramos tantas mulheres sofrendo de distúrbios ligados ao modo de comer dá-se porque a relação social entre o ali- mentador e o alimentado, entre mãe e filha, impregnada como está de ambivalência e hostilidade, torna-se um me- canismo apropriado para causar distorção e revolta. O exame dos significados simbólicos da gordura nos dá um insight das vivências das mulheres em uma cultura patriarcal. A gordura é uma adaptação à opressão das mu- lheres e como tal pode ser uma solução pessoal insatisfatória e um ataque político ineficaz. Nossa terapia da compulsão 35 de comer diz respeito a esse problema, e é dentro de um contexto feminista que será desenvolvido nos capítulos que se seguem. O que significa a gordura para a comedora compulsiva? Muitos comedores compulsivos subestimam a relação que existe entre modo de comer e forma física. A comedora com- pulsiva geralmente sente seu modo de comer como caóti- co, descontrolado, autodestrutivo e como um exemplo de falta de força de vontade. No entanto, afirma ao mesmo tempo que, na verdade, simplesmente gosta de comer mui- to e, se é gulosa demais é para seu próprio bem, e que se não fosse pelos quilos e centímetros que esse comer lhe acres- centa, estaria muito satisfeita. Algumas mulheres dizem que, se ao menos existisse uma pílula mágica que as deixasse co- mer e comer sem parar e, ao mesmo tempo, continuar com a forma ideal, seriam bastante felizes. Na verdade, algu- mas têm feito o bypass* para conseguir isso. Está claro, por- tanto, que as pessoas realmente percebem que existe uma relação entre comer em excesso e a obesidade e tentam, por meio de vários esquemas de privação, controlar-se ao má- ximo para não engordar demais. - No entanto, o fundamental nessa relação, do ponto de vista do rompimento do círculo de se comer compulsiva- mente e fazer dieta, é algo muitas vezes negligenciado ou mal compreendido, tanto pelas próprias comedoras com- pulsivas, como por aqueles que tentam ajudá-las. Trata-se da idéia de que a compulsão de comer está ligada ao desejo de ser gorda. Ora, essa questão não é muito óbvia e pode ser difícil de ser entendida. Entretanto, é imprescindível que *Um desvio para diminuir a superfície de contato entre o alimento e a mucosa jejunal, diminuindo a absorção. (N. do T.) 36 nos reportemos a ela para tentarmos entender a imutabili- dade da relação aparentemente bizarra que as comedoras compulsivas mantêm com a comida. Comer por compulsão é uma atividade extremamente penosa. Por trás das piadas autodepreciativas encontra-se uma pessoa que sofre imensamente. Grande parte de sua vida está centrada na comida, o que pode e não pode co- mer, o que vai ou não vai comer, o que comeu ou não co- meu, e o que comerá ou não comerá mais tarde. É típico que não deixe nada no prato e se flagre comendo, tanto na hora das refeições, como durante o dia inteiro, tarde ou noi- te. Quase sempre come às escondidas, ou com amigas que também comem, ao passo que em público é uma profissio- nal da dieta e muito admirada por sua abstinência. Se sen- te vontade de comer uma torta, vai à padaria e finge que a torta de queijo que está comprando é para sua filha ou para uma amiga, manda embrulhar e só ousa comê-laaber- tamente quando sente que não pode ser vista por ninguém. Ou então, compra um doce, esconde-o no bolso, e o colo- ca furtivamente na boca, enquanto dirige ou anda pela rua. A obsessão pela comida traz consigo uma carga enorme de auto-aversão, ódio e vergonha. Tais sentimentos surgem da sensação de não se ter controle com relação à comida, e as comedoras compulsivas ensaiam inúmeras maneiras de se disciplinar. Muitas pensam que se não tiverem acesso à co- mida estarão bem. Por esse motivo, quando uma comedo- ra compulsiva mora sozinha, os armários da cozinha e a geladeira provavelmente contêm somente o gênero mais fru- gal de comida. A cozinha parece quase medicinal com leite desnatado, ricota, refrigerantes dietéticos e gelatinas para "enganar" o estômago. Alison, uma zoóloga de vinte e nove anos, explicou quais as ciladas contidas em seu sistema de proibir a pre- sença de comidas gostosas em seu apartamento. Acordou no meio da noite e sentiu uma forte vontade de comer. Ha- via se empanturrado a noite inteira, portanto não havia so- brado praticamente nada em seu apartamento, exceto um pouco de cereal. Nas duas últimas semanas não tirara do 37 pensamento uns biscoitos com pedacinhos de chocolate que havia feito para Greg, seu vizinho do andar de cima. Ele saíra de férias e Alison sabia que haviam sobrado alguns biscoitos, porque ao regar suas plantas reparou na lata pou- sada na bancada da cozinha. Levantou-se, pegou as chaves do apartamento dele, encontrou os biscoitos e ficou lá até comê-los todos. Achava que não podia comer só um ou dois porque não seria o bastante e se comesse um número con- siderável Greg iria perceber que estavam faltando alguns, quando retornasse. A solução de Alison foi ficar no apar- tamento gelado de Greg, e comer todos os biscoitos na es- perança de que, ao retornar, Greg não se lembrasse deles. Se a comedora compulsiva mora com outras pessoas é bem provável que a cozinha esteja repleta de comidas ape- titosas que nega a si mesma ou sente que deveria negar. He- len, 50 anos e mãe de dois filhos, vem vigiando seu peso nos últimos 30 anos e fica tão apavorada com a comida de sua casa que combinou com o marido que ele trancasse a porta da cozinha à noite. Possui uma máquina de fazer ca- fé perto da cama, aipo com cenouras no gelo e é expulsa da cozinha em todas as ocasiões, salvo quando prepara as refeições da família, ou quando come sua versão dietética destas. Sua situação é somente um exemplo extremo do que passam muitos comedores compulsivos em suas tentativas de ficar longe da comida. Helen levou o problema para o marido, mas para Ali- son era extremamente importante que ninguém soubesse que ela comia daquela maneira. Muitas mulheres que sofrem do problema da compulsão de comer acham humilhante que outros pensem que são gordas em virtude da quantidade da- quilo que comem. Não suportam que os outros estabele- çam uma relação entre ingestão de comida e forma física. Isto explica, em parte, o lado público do comedor compul- sivo, parcimonioso ao comer. Outras mulheres sentem isso de outro modo. Um método novo e muito divulgado para controlar o peso é o de costurar os maxilares. As mulheres que empreenderam esse tratamento são extremamente gor- das — bem acima de 110 quilos. Enquanto seus dentes es- 38 tão apertados com anéis e atados com arame, elas se man- têm com uma dieta líquida. Uma vez por semana os anéis são afrouxados para que possam escovar os dentes. Tais maneiras de enfrentar a situação, apesar de parti- cularmente exageradas, captam bem o desespero que sen- tem muitos comedores compulsivos e ilustram como a compulsão de comer é um hábito penoso e imensamente di- fícil de ser abandonado. Quando as pessoas repetem atos que lhes causam muito sofrimento, procuramos descobrir os motivos. Rotular, por exemplo, tal comportamento sim- plesmente de autodesírutivo não aumenta a compreensão das forças que estão por trás da compulsão de comer. Pelo contrário, o hábito será julgado negativamente e isso for- necerá ainda mais uma razão para que o comedor compul- sivo assuma uma postura autodepreciativa que é aliviada somente com outro abuso ou com mais um esquema para perder peso. Sabemos por experiência própria que, antes que um hábito, no caso, comer por compulsão, possa ser abandonado, seus motivos têm de ser investigados. Como afirmei anteriormente, engordar é um ato preciso e inten- cional relacionado com a posição social da mulher. Antes que a compulsão de comer possa ser abandonada, deve-se investigar os significados da gordura para a própria mulher. A compulsão de comer, ao ser abandonada, certamente fará com que ela se estabilize num peso menor. Para poder sentir- se à vontade com este novo peso estável e, o que é mais im- portante, com sua forma física reduzida, a comedora com- pulsiva precisa entender qual era o interesse prévio em ter excesso de peso e em ficar obcecada com o que comia. Se puder compreender como a gordura lhe era conveniente po- derá começar a abandoná-la. Neste capítulo descreverei seis importantes etapas pelas quais os grupos passam: 1 — Demonstrar que a comedora compulsiva tem interes- se em ser gorda. 2 — Mostrar que esse interesse é, em grande parte, incons- ciente. 39 3 — Exercícios específicos são feitos para trazer o assun- to à consciência da mulher. 4 — Uma vez reconhecido o interesse em ser gorda, po- dem ser investigados os significados para cada mu- lher, individualmente. 5 — Em seguida, perguntamos se a gordura faz o que se espera que faça. 6 — Ajudamos cada mulher a reincorporar aspectos de si mesma, e que ela atribuía anteriormente somente à gordura. A gordura possui conotações tão negativas em nossa cultu- ra que é difícil imaginar que alguém possa ter interesse em engordar. Ser gorda significa entrar no metrô e ficar preocupada se você caberá no espaço que lhe é destinado. Ser gorda é comparar-se a todas as outras mulheres e procurar por aquelas cuja própria gordura faça com que você se sinta à vontade. Ser gorda é ser expansiva e jovial para compensar aquilo que você acha que são suas deficiências. Ser gorda é recusar convites para ir à praia ou dançar. Ser gorda significa ser excluída da cultura de massa con- temporânea, da moda, esportes e da vida ao ar livre. Ser gorda significa ser um constante constrangimento para você mesma e para seus amigos. Ser gorda significa preocupar-se cada vez que há uma câmera fotográfica à vista. Ser gorda significa ter vergonha de existir. Ser gorda significa ter de esperar ser magra para po- der viver. Ser gorda significa não ter necessidades. 40 Ser gorda significa estar constantemente tentando per- der peso. Ser gorda significa cuidar das necessidades dos outros. Ser gorda significa nunca dizer "não". Ser gorda significa ter uma desculpa para o fracasso. Ser gorda significa ser um pouco diferente. Ser gorda significa esperar pelo homem que a amará apesar da gordura — o homem que abrirá caminho através das camadas de gordura. Ser gorda, hoje em dia, significa ouvir as amigas dize- rem que "os homens estão por fora" antes mesmo de você ter tido a chance de averiguar. Acima de tudo, a mulher gorda quer se esconder. Pa- radoxalmente, seu destino na vida é ser eternamente nota- da. Tais concepções populares sobre a gordura, apesar de cor- retas, mostram um quadro incompleto do que sente a co- medora compulsiva. Existe também um saldo positivo que devemos investigar no fato de ser gorda. Não estou que- rendo dizer que o desejo de ser gorda é consciente. Na ver- dade, poderia afirmar que as pessoas não têm quase consciência dele, e não é nada fácil discutir o assunto em teoria. Nos grupos fazemos o seguinte exercício para ob- termos insights de algumas das maneiras como a gordura nos pode ser conveniente. Proponho que você feche os olhos por dez minutos e peça para que alguém leia o seguinte exer- cício de imaginação: Imagine-se numa situaçãosocial... pode ser no trabalho, em casa, numa festa, ou qualquer outro lugar... repare no que você está vestindo... se está sentada ou de pé... com quem você está falando ou tem alguma afinidade... Ago- ra, imagine-se engordando nessa mesma situação social... 41 você agora está bem gorda... Qual a sensação?... Repare no que você está vestindo... se está sentada ou de pé... Re- pare em todos os detalhes desta situação... como se dá com as pessoas ao seu redor?... Está participando ativamente ou sente-se excluída?... Tem de fazer mais ou menos esforço?... Veja agora se você consegue detectar alguma mensagem que essa pessoa muito gorda que é você tem a dizer para o mun- do. .. Você consegue ver alguma maneira de como isso lhe pode ser conveniente?... Você consegue ver alguma vanta- gem em ser gorda assim nesta situação?... Quando damos este exercício para os grupos, obtemos uma variedade de respostas, muitas das quais já se podem esperar. Como por exemplo, a sensação de ser um mons- tro, uma intrusa ou uma figura disforme, ou achar que to- do aquele que se aproxima o faz por pena ou porque é também um monstro. Porém, o mais significativo é que as pessoas conseguem descobrir um novo significado para a gordura. Para algumas a fantasia desperta sentimentos de confiança e firmeza, como se a gordura representasse uma força concreta. Outras se sentem muito seguras em ser gor- das, como se isso fosse uma desculpa para o fracasso, e que ao se preocupar com a forma física não têm de pensar em outros possíveis problemas em suas vidas. Algumas mulheres sentem que ser gorda as protege, na medida em que lhes permite conter seus sentimentos; outras afirmam sentir-se à vontade com sua forma avantajada e calor humano, e que têm muito amor para dar aos outros. Entretanto, as maio- res vantagens que as mulheres vêem em ser gordas estão li- gadas à proteção sexual. Ao se vir gorda, geralmente uma mulher é capaz de se assexualizar; a gordura a impede de se considerar uma pessoa que tem sexualidade. Depois do exercício, muitas afirmam sentir-se à vontade numa festa, sem achar que estão em exibição, ou que têm de competir, mas que podem conversar tranqüilamente com as amigas. Outras sentem que a gordura as distingue do tipo de mu- lher pela qual possuem sentimentos ambivalentes — aque- la que vêem como egocêntrica, superficial e fútil. Outras 42 sentem que podem manter-se firmes e manter acuados os intrusos indesejados. Muitas mulheres sentem alívio em não ter que se conceber como pessoas que têm sexualidade. A gordura as retira da categoria de mulher e as coloca no es- tado andrógino de "amigonas". Na medida em que as pessoas nos grupos vão, pouco a pouco, sendo capazes de incorporar tais vantagens e as- pectos positivos em sua concepção de gordura, começam a desenvolver uma auto-imagem diferente. A imagem da gor- dura, então, não fica mais sendo unilateralmente negativa, implacavelmente ligada a uma concepção feia. Em vez de se considerarem incorrigíveis, incapazes ou intencionalmente destrutivas, conseguem ver que a compulsão de comer tem um propósito, uma função. Na medida em que essa fun- ção se torna mais clara, é possível serem mais generosas con- sigo mesmas, considerar a compulsão de comer e o esforço de engordar como um modo de lidar com situações parti- cularmente difíceis. A compulsão de comer pode então ser considerada como uma tentativa de se adaptar a um con- junto de circunstâncias, em vez de ser um comportamento irracional e "louco". Gostaria de examinar agora o motivo pelo qual essas imagens de formas avantajadas são tranqüilizadoras. Por que as mulheres afirmam sentir-se mais capazes quando são gordas? Muitas mulheres sentem que as expectativas sociais que se têm delas são inatingíveis, irreais, indesejáveis, difíceis de suportar e opressivas. Uma das principais expectativas está ligada à crença de que a mulher deve ser, por um lado, harmoniosa, atraente e uma espécie de ornamentação am- biental e, por outro, deve fazer todo o árduo trabalho con- creto de criar os filhos, administrar o lar e, ao mesmo tempo, manter um emprego fora de casa. Para muitas mulheres, o tipo físico da musa tímida e recatada, que sorri pudica- mente por trás de pálpebras abaixadas, é muito frágil e de- licado para realizar as tarefas diárias do dia-a-dia, que são de sua responsabilidade. Assim, para essas mulheres, a gor- dura representa estabilidade e força. Harriet, 35 anos, que 43 trabalha para a comunidade e mora com o marido e dois filhos, contou o seguinte: "Tinha a sensação de que a gor- dura me dava força e presença física no mundo. Permitia-me fazer tudo o que tinha de fazer. No exercício de imagina- ção, me vi em meu escritório, sentada à minha mesa, ocu- pando um espaço enorme. Sentia-me capaz de fazer tudo que precisava — desafiar meu patrão e lutar com mais efi- cácia pela comunidade para a qual trabalho. Senti minha força ao exagerar meu tamanho. Então, na minha fanta- sia, fui para casa e, tendo plena consciência do meu cor- panzil, ocorreu-me que estava entrando numa situação hostil e que usava minha gordura como couraça. Ao entrar em casa lembrei-me das coisas que tinham de ser feitas lá, e que executo pessoalmente ou designo a outras pessoas. Isso tu- do me dá muita raiva, por me sentir muito mandona, e cer- tamente também porque o terreno do lar me pertence — e não por escolha. Então, vejo a gordura nessa situação fa- zendo com que me sinta como um sargento — grande e au- toritário. Quando faço esse exercício de imaginação e me vejo magra, o que me ocorre imediatamente é como me sinto frágil e pequena, quase como se fosse desaparecer ou ser levada pelo vento." Barbara, 27 anos, desenhista de capas de livros, falou sobre as maçantes expectativas de muitos de seus colegas de trabalho do sexo masculino. Sentia que seu volume e so- lidez representavam uma necessidade de ser vista como um ser humano produtivo, e não como um complemento de- corativo para o ambiente. Sempre que sua aparência esta- va ligeiramente sexy — isto é, quando estava magra — sentia que seus colegas reagiam somente a seu aspecto sexual. Sen- tia isso, tanto como um apelo assustador, como também um desvio de seu trabalho. Assim como acontece com muitas mulheres, levar o trabalho a sério era uma luta muito difí- cil para Barbara. Tinha crescido com a idéia de que traba- lharia por alguns anos após os estudos e depois se casaria e teria filhos. Mas as idéias mudaram e por volta da época em que saiu da faculdade, quis trabalhar para fazer carrei- ra e não como tapa-buraco. Não era uma decisão simples; 44 sentia-se muito apoiada em sua mudança de opinião, por- que todas as suas amigas também estavam investindo no trabalho como parte fundamental de suas vidas. Mas Bar- bara estava em conflito com relação a sua capacidade de ser uma boa profissional, não porque seu trabalho artísti- co fosse irregular, de segunda linha ou insatisfatório, mas porque estava lutando contra a idéia inconsciente de que se levar a sério na vida profissional não era uma coisa cer- ta. No grupo, conseguimos mostrar esse conflito e Barbara viu como era difícil ser magra e com sexualidade no traba- lho, porque ela própria e seus colegas contribuíam para tor- ná-la fútil. Sentia que a única maneira de se apegar àquele aspecto seu relacionado a uma carreira, era através da pos- se de uma camada extra que cobrisse sua feminilidade. Co- mo disse: "A gordura fazia com que me sentisse como um dos rapazes." No grupo, trabalhamos também para mostrar o con- flito que Barbara sentia em relação aos diferentes modelos de comportamento feminino adulto; aquele com o qual ela cresceu, calcado não só na vida de sua mãe, como também numa concepção popular de feminilidade corrente nos anos 50 e início dos 60; e num modelo que ela e suas contempo- râneas lutavam para sistematizar, uma visão da condição da mulher menos limitante e que atacava as próprias raízes da opressão damulher dentro da família. Este conflito é, por experiência própria, difícil e penoso para muitas mu- lheres e não é do tipo que será solucionado pela súbita luz de um insight. Nos grupos é importante compreender que o objetivo não é, necessariamente, solucionar este ou qual- quer outro conflito que possa estar nas raízes da compul- são de comer. Entretanto, é importante que venha à luz, que a mulher entenda que ele existe e que comer compulsi- vamente não fará com que desapareça — poderá talvez en- cobri-lo. A gordura é um substituto menos ameaçador com o qual se preocupar. Mas a questão decisiva é fazer com que a mulher reconheça o conflito, para que ele não preci- se ser manifestado indiretamente e se esconda daquela que o vive. Este reconhecimento torna-se então uma poderosa 45 arma na luta contra a compulsão de comer. É muito tran- qüilizador descobrir que existem fortes razões para explicar por que se come de um modo aparentemente inexplicável. Isso nos fornece ferramentas; deste modo, quando Barba- ra, por exemplo, reparava que estava cometendo um abu- so, podia perguntar-se o que a estava realmente perturbando. Se não conseguisse obter nenhuma resposta imediata, faria uma recapitulação de seu dia, ou dos acontecimentos que a levaram a cometer o abuso, para ver se havia ocorrido qualquer incidente que resumisse seu conflito a respeito de sua identidade como mulher no mundo. Deste modo, po- dia decodificar seu próprio comportamento. Isto lhe deu a oportunidade de agir em benefício próprio, e pôde pas- sar para uma etapa seguinte e se perguntar se o fato de ser gorda naquela circunstância particular iria realmente aju- dá-la. Assim, um dos significados da gordura é o da necessi- dade que a mulher tem de ser reconhecida no contexto do trabalho. Mas existe uma outra questão que surge com fre- qüência e que é quase diametralmente oposta a essa. Acon- tece que as fantasias das pessoas com relação à gordura são muito diferentes e que até para uma mesma pessoa a gor- dura pode assumir uma variedade de significados. Barba- ra, por exemplo, podia ver como fazia uso da gordura no seu empenho de ser levada a sério no trabalho, mas desco- brimos, ao mesmo tempo, que sua gordura simbolizava o medo de ser bem-sucedida, tanto no trabalho, como nos na- moros. Seu medo do sucesso, é claro, provinha em grande parte da posição social da mulher jovem atual, que cresceu recebendo mensagens contraditórias a respeito daquilo que pode realizar. Sair fora do que foi planejado é assustador. Um mecanismo útil e de proteção é antever o fracasso; na opinião de Barbara, o peso em excesso servia de justificati- va caso não fosse bem-sucedida no amor e no trabalho. Des- cobriu que não suportava a idéia de que sua vida profissional e afetiva pudesse não ser satisfatória, já que se havia em- penhado a possuir ambas. Tinha certeza de que, se ocor- resse um fracasso em algum desses terrenos, ele seria 46 atribuído a uma fraqueza do seu caráter. Esta idéia, por sua vez, gerava tanto sofrimento que ela então se concen- trava em seu peso como desculpa para um aventual fracas- so. Enquanto estivesse com excesso de peso e o amor e a carreira não estivessem indo como esperava, podia ficar ima- ginando que se fosse magra tudo estaria dando certo. As- sim, esta fantasia lhe permitia exercer algum controle sobre sua situação por imaginar que com uma estimulante perda de peso ela pudesse ser capaz de se afinar socialmente com as mulheres no trabalho e com os homens nas relações afe- tivas. No caso de Barbara, a gordura estava a serviço de dois objetivos distintos, se bem que um tanto contraditórios. Em primeiro lugar, a gordura lhe fornecia um modo de mos- trar competência no trabalho; em segundo lugar, se não fosse bem-sucedida em sua vida profissional ou amorosa podia culpar o excesso de peso. Quando essas duas questões vie- ram à tona durante a terapia, Barbara pôde ver que engor- dar fora uma adaptação pessoal que fizera ao tentar enfrentar uma situação muito difícil. Além de poder reve- lar o conflito, conseguiu ver o dilema de uma atual jovem mulher de carreira e percebeu que tinha de negar ou resol- ver as dificuldades encarando-se sem intermediários. Ou- tras mulheres no grupo se identificaram com o que Barbara estava vivendo e, na medida em que começaram a compar- tilhar suas dificuldades, romperam com seu isolamento in- dividual e com sentimentos de impotência que, em parte, as tinham levado a engordar. O fracasso e o sucesso são conceitos poderosos em nos- so mundo. Muito cedo assimilamos a idéia de que foram estabelecidos limites para as coisas acessíveis e aprendemos a competir pelo que está por perto. Se formos bem-sucedidas seremos recompensadas; caso contrário, nosso destino se- rá sofrer. Quando somos muito jovens fica difícil ver co- mo o jogo é marcado ou a favor de quem ele está, e a competição parece justa — sendo o fracasso ou o sucesso atribuídos à culpa ou ao mérito do indivíduo. Na medida em que nos tornamos mais velhos, podemos questionar os 47 pressupostos fundamentais dessa luta desordenada, ou mes- mo como o bolo está dividido, seja através do número de notas 10 numa classe, ou através da própria divisão do tra- balho. Mas as idéias assimiladas e estruturadas na perso- nalidade custam a morrer e parecem estar encerradas em lugares inacessíveis. Embora possamos rejeitar a noção de competição em virtude dos efeitos devastadores que ela pro- duz nas relações entre as pessoas, assim como na política mundial, podemos, não obstante, descobrir que estamos sen- do competitivos involuntariamente. Os sentimentos de com- petição são desencadeados em situações de escassez onde não há o bastante para todos, ou onde somente um deter- minado número de pessoas pode ser recompensado. O re- ceio de uma possível exclusão ou recusa pode fomentar, quer um desejo de competir individualmente por um pouco da escassa matéria, quer a descoberta em conjunto de um meio de se lidar com a escassez. Outra alternativa é a opção de abandonar a competição. De modo geral, enquanto cres- cemos, somos encorajados a competir com os outros. No colégio isto se manifesta através das notas, ou pelo time que torcemos, ou por nossa classificação na turma. Mas as me- ninas e os meninos, as mulheres e os homens são treinados para enfrentar a escassez e a competição de maneiras dife- rentes. O clichê "deixe o rapaz ganhar o jogo" representa um aspecto da competição entre mulheres e homens. Apren- demos que, se existe um jogo entre os sexos no qual uma das partes tem de perder, podemos ter certeza de que sere- mos essa parte. Em geral, os homens são ensinados a com- petir com outros homens por empregos e por status. Obtêm prestígio no mundo do trabalho sendo melhores do que ou- tros homens, e avaliam seu sucesso comparando-o com o dos outros. Apesar de também existirem mulheres no mundo do trabalho, os homens raramente são encorajados a com- petir com elas, porque têm a tendência de não levar muito a sério a presença da mulher em territórios masculinos tra- dicionais. Do mesmo modo, as mulheres são fortemente de- sencorajadas a competir com os homens, ou umas com as outras, no trabalho. Elas são forçadas a competir entre si 48 pelo homem que ajudará a vencedora a garantir sua posi- ção social. O sucesso de uma mulher no mundo continua a ser visto amplamente como um reflexo do status do ma- rido. Nessa luta pela sobrevivência social, as mulheres com- petem essencialmente baseadas na atração sexual, enquanto que outros aspectos de sua personalidade são vistos como atributos a serem exibidos no empenho de conseguir um ho- mem. O movimento de libertação da mulher desafia esse sis- tema de valores, tanto para as mulheres, quanto para os homens. No entanto, nós que estamos na casa dos vinte anos. ou mais, crescemos com esses valores e idéias e, apesar de estarem eles sendo abalados, continuam, não obstante, a desempenhar um papel significativo em nossas personali-
Compartilhar