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Aquisição e processamento de linguagem – LET1831 Professora: Jacqueline Longchamps Aluna: Maria Eduarda Delmas Campos Texto I: Inatismo (In: KENEDY, E. Curso básico de linguística gerativa. São Paulo. Contexto, 2013) O objetivo do autor é apresentar e discutir a hipótese inatista acerca da aquisição da linguagem, partindo de um raciocínio lógico que se inicia no Problema de Platão. O problema de Platão indaga-se a respeito da lacuna existente entre conhecimento e experiência e, especificamente no âmbito da linguagem, pergunta-se quanto a sua aquisição e uso, procurando explicar esse fenômeno que é exclusivo de seres humanos e aparentemente espontâneo. Em outras palavras, o problema de Platão aplicado à linguagem questiona como, a partir de um input fragmentado e incompleto, somos capazes de constituir uma gramática e usá-la para nos comunicar por meio de uma língua. A linguística gerativa propõe uma resposta ao problema que se denomina hipótese inatista. Segundo essa hipótese, há fatores biológicos e geneticamente determinados que predispõem os seres humanos à aquisição e ao uso de ao menos uma língua natural. Isto é, a capacidade exclusivamente humana de filtrar os dados de sua experiência (input) e, a partir deles, construir uma competência linguística que os permita também produzir linguagem (output) seria uma dotação biológica. Desse modo, a hipótese inatista responde ao problema de Platão da seguinte forma: recebemos estímulos linguísticos do ambiente que nos cerca, e estes são submetidos à nossa faculdade de linguagem, conhecimento inato e biologicamente dotado que nos permite falar por meio da língua a que fomos expostos. É importante ressaltar alguns pontos sobre a hipótese inatista: o Ela não afirma que nasçamos com uma competência linguística pronta, que já nos determine como falantes de uma língua específica. Ao contrário, nasceríamos com a capacidade de adquirir a língua do ambiente, construindo, a partir dos estímulos que recebemos, conhecimentos sobre sua fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática; o Ela explica as razões por que outros animais, ainda que exaustivamente treinados não conseguem adquirir linguagem: apesar de receberem os estímulos linguísticos externos da Língua-E, não possuem a dotação biológica para com eles construírem uma competência linguística; o Nota-se, portanto, que a hipótese inatista confere a competência linguística a uma articulação conjunta e dinâmica: dotação biológica do organismo para a linguagem + estímulos externos da língua ambiente. A hipótese inatista possui duas vertentes: uma forte e outra fraca, sobre as quais nos debruçaremos a seguir: o Hipótese inatista forte: visão formulada nas décadas de 1950 e 1960, postula que todas as informações necessárias para transformar os dados dos estímulos externos em conhecimento linguístico estariam pré- especificadas e detalhadas no código genético humano. Sob essa ótica, até princípios linguísticos específicos, como conhecimento sobre anáforas, seriam parte do genoma humano. Surge então um questionamento: que pressão evolutiva teria selecionado e transmitido esses traços? o Hipótese inatista fraca: diante da implausibilidade da anterior, argumenta que a faculdade da linguagem é uma disposição biológica, como um conjunto de instruções genéricas que criam neurônios especializados em captar informações linguísticas contidas em estímulos externos para constituir conhecimento; ou seja, supõe Língua-E (Estímulos linguísticos) Dotação biológica (Faculdade da linguagem) Língua-I (Conhecimento linguístico) simplesmente que os neurônios sejam capazes de identificar e interpretar e formar sinapses em função de informação linguística externa, estímulos da Língua-E. Ademais, importa enfatizar o caráter hipotético dessa resposta inatista, posto que ainda não foi empiricamente comprovada pelos estudos genéticos. No entanto, passos tímidos já foram dados nesse sentido, com a descoberta do gene FOXP2, ausente ou anômalo em indivíduos com deficiências específicas de linguagem. Há, entretanto, hipóteses alternativas ao inatismo, amplamente criticado e visto com ceticismo por alguns estudiosos. o Hipótese da teoria da mente (Tomasello): segundo essa hipótese, a aquisição de uma língua natural pelas crianças decorreria da integração de diversas habilidades mentais não especificamente linguísticas, dentre as quais uma das mais importantes seria nossa capacidade de colocarmo-nos no lugar do outro – o que se denomina “teoria da mente”. Assim, a capacidade de imaginar o que se passa na mente de outras pessoas, percebendo referências e intencionalidades (capacidade de se dirigir e concentrar em certos objetos e eventos no mundo) no uso de palavras e discursos ao redor, seria uma das origens sociocognitivas da linguagem humana. o Hipótese conexionista: postula que a aquisição e o uso de conhecimentos – dentre os quais se encontra a competência linguística-, decorreria exclusivamente da formação de padrões de comportamento ao longo da experiência de um indivíduo. Opõe-se ao inatismo por crer que os neurônios formam sinapses de acordo com regularidades advindas dos estímulos do ambiente e não em função de pré- especificações genéticas, descartando também a modularidade da mente. Os domínios da cognição, para eles não predeterminados, como resultado da experiência, de modo que a natureza biológica não desempenharia papel importante. Essa hipótese tem alcançado sucesso no campo da inteligência artificial. Há de se notar que, apesar de se oporem ao inatismo, nenhuma das hipótese anteriores aborda a aquisição da linguagem de forma radicalmente anti-inatista. Se, por exemplo, a “teoria da mente” é uma capacidade especificamente humana, provavelmente advém de uma dotação biológica da espécie para tal, o que poderia ser considerado outra forma de inatismo. Também no conexionismo as redes neurais possuem informações prévias, não partindo de uma tabula rasa. Ambas opõem-se radicalmente, contudo, à modularidade da mente. Texto II: Em defesa de uma abordagem racionalista (In: GROLLA, E.; SILVA, M. C. F. Para conhecer: aquisição da linguagem. São Paulo: Contexto, 2014) As autoras se propõem a apresentar e discutir a Teoria da Gramática Universal, defendendo uma abordagem racionalista da aquisição da linguagem. A princípio, afirmam que todas as crianças humanas adquirem ao menos uma língua – aquela a que são expostas –, e de forma natural e espontânea, livre de instruções específicas ou treinamento exaustivo, a despeito da conhecida complexidade das línguas humanas. Logo, conclui- se que o fenômeno da aquisição da linguagem é universal, natural, involuntário e rápido. Interessantemente, dentro dessas características, o processo de aquisição de qualquer língua, por qualquer criança, passa pelos mesmos estágios. Apesar de as idades em que acontece serem passíveis de variação, o desenvolvimento linguístico se dá sempre na mesma sequência, que será apresentada na tabela que se segue: Idade Características da produção da criança Primeiros meses de vida o Balbucio e choro sem significado; o Sensibilidade às propriedades e estruturas fonológicas das línguas naturais; o Capacidade de discriminação das línguas por meio de seu ritmo. Em torno dos 6 meses o Balbucio de um maior número de sons com repetição exaustiva de determinadas sílabas. (Vale notar que o padrão do balbucio é o mesmo para todas as crianças, independente da língua a que estão expostas e da sua capacidade auditiva; logo, independe do input e parece ser um comportamento guiado internamente.) Em torno dos 10 meses o Balbucio somente de sons que ouvem; o Uso de acento e contornos entoacionais da língua a que estão expostas; o Mapeamento de sons a significados, com base na forma prosódicadas palavras, das restrições fonotáticas, de informações fonéticas e de regularidades distribucionais, o que é essencial para o aprendizado do léxico. Ao redor de 1 ano o Decaimento da habilidade de lidar com línguas estrangeiras, devido ao refinamento de suas capacidades; o Produção das primeiras palavras, além do balbucio, normalmente nomeando entidades de seu convívio. Tais palavras correspondem ao significado de sentenças completas; o União de gestos a palavras para comunicação; o Compreensão de ordens. Ao redor de 1 ano e 6 meses o Combinação de duas palavras, ainda com padrão de palavra isolada; o Rápido crescimento do vocabulário; o Capacidade de detectar e usar a ordem das palavras para compreender enunciados; o Início da formação de “sentenças”, com a combinação de duas palavras sob o mesmo contorno entoacional e na ordem canônica da linguagem adulta. Entre 2 e 3 anos o Produção de sentenças simples com mais de 2 palavras; o Início da utilização de palavras gramaticais; o Produção de erros devidos a sobregeneralizações e previsões acerca da regularidade da língua. Mais de 3 anos o Entre 3 anos e 3 anos e meio: aquisição contínua de palavras gramaticais; o Entre 3 anos e meio e 4 anos: produção de sentenças com mais de uma oração, como relativas e coordenadas; o Entre 4 e 5 anos: vocabulário de cerca de 1900 palavras e produção de orações subordinadas com termos temporais; o A partir de 5 anos: grande maioria das construções encontradas em sua língua já foi adquirida Ao analisarmos os dados acerca dos estágios de aquisição da linguagem, colocam-se questionamentos acerca do input a que são expostas as crianças, o qual invariavelmente não contêm tudo que podem conter. Isso é o que se chama de “argumento da pobreza do estímulos”, cujos problemas serão apresentados a seguir: o O input é incompleto: dadas as inúmeras possibilidades de construções dentro de uma mesma língua, é impossível garantir que a criança seja exposta a toda a tipologia de combinações possíveis. o O input é degradado e fragmentado: ao falarmos, gaguejamos; começamos uma estrutura, logo desistimos dela e a modificamos; tossimos, sofremos interferências externas, como barulho; dependemos do contexto etc. o O input não é organizado: diferente dos cursos de língua estrangeira, na fala espontânea não nos preocupamos com a dificuldade de estrutura e conteúdo do que produzimos, não os organizando de forma a facilitar a compreensão. OBS: a fala que muitos pais produzem, chamada, entre outros nomes, de “maternês” – simplificada, aguda, em terceira pessoa e com vocabulário reduzido ao universo da criança, ou seja, aparentemente mais organizada para o entendimento infantil – não está presente em todas as comunidades de fala e parece corresponder muito mais a um desejo de empatia dos pais do que à necessidade da criança de um input mais claro. o O input não fornece dados negativos: as impossibilidades de formação de sentença, conhecidas como restrições, não são oferecidas às crianças por meio de evidência negativa nem instrução específica. Dispondo somente de dados positivos, sujeito a erros contextuais de construção, incompleto e não forçadamente adequado, como pode o input satisfazer à criança na construção de conhecimento tão perfeito acerca da estrutura de sua língua? A hipótese racionalista responde a esse questionamento argumentando que muito do que é possível ou não em uma língua já está dado no código genético da criança. Assim, a infinitude criativa do falante seria restrita e regida por regras presentes em sua própria natureza biológica. Vale destacar que o input é pobre no que diz respeito à aquisição de regras sintáticas e morfológicas, mas não em relação ao léxico, uma vez que, à exceção das palavras derivadas, apenas podemos compreender e usar vocábulos a que tenhamos sido expostos em determinado contexto, não sendo o léxico algo inato. Mas qual o papel que de fato desempenha o input na aquisição da linguagem? Para responder a isso, as autoras recorrem à diferença entre os conceitos de Língua-I e Língua-E apontada por Chomsky: Língua-I refere-se a algo que é intensional, ou seja, tem relação com um conjunto de regras ou princípios que permitem gerar um conjunto de construções gramaticais. Já a Língua-E guarda relação com o termo extensional, que diz respeito àquilo que é gerado pela língua-I, do qual o input faz parte. Pode parecer, portanto, que o input não é de importância para o estudo da teoria gramatical, que, segundo Chomsky, deve voltar-se para a língua-I e não às suas manifestações socioculturais, pertencentes à Língua-E. Isso, contudo, não se confirma, uma vez que dependemos do input para alavancar o processo de aquisição de uma língua; apenas o fator genético inato não é suficiente. Mas, se temos em nosso código genético informações linguísticas, é possível questionarmos o porquê de existirem variações entre as línguas, em oposição a uma única língua humana. Primeiramente, as autoras destacam de novo a diferença do léxico em relação aos outros módulos dentro da linguagem, visto que, sim, do ponto de vista lexical, as línguas são muito distintas. No entanto, o formato como o léxico se constitui e as estruturas que construímos são muito semelhantes de língua para língua, compartilhados como fenômenos universais. Esses fenômenos universais são chamados de Princípios, leis universais respeitadas por todas as línguas humanas. Já os Parâmetros respondem pela variação entre as línguas, propondo opções binárias e articuladas que serão formatadas de acordo com as especificidades de cada Língua-E. É importante ressaltar que os parâmetros não se constituem de forma meramente individual; pelo contrário, certos conjuntos de propriedades configuram feixes de características, ou seja, a definição de um parâmetro dá conta de inúmeras outras propriedades superficiais que as línguas podem exibir, o que reduziria o número de parâmetros sobre o qual uma criança deveria decidir. Para melhor explicar essa situação, as autoras colocam o exemplo do Parâmetro de Sujeito Nulo, cuja marcação positiva (ou seja, espaço de sujeito não preenchido lexicalmente) vem sempre acompanhada de morfologia rica e da possibilidade de inversão do sujeito, dentro de um Princípio de Projeção Estendida, segundo o qual toda sentença tem sujeito. Vale notar que não se sabe como estão os parâmetros no início da aquisição, mas é certo que devem ser marcados, ou a língua não se desenvolve, e tal atribuição e fixação de valores aos parâmetros é feita em função do input a que a criança é exposta. Isso tudo leva à definição de Gramática Universal. Esta seria o estágio inicial da aquisição da linguagem pela criança, uma disposição biológica que será exposta a estímulos externos para construir a Língua-I, um estágio estável. A GU ou faculdade da linguagem é capaz de dar conta da conhecida heterogeneidade das línguas do mundo e da homogeneidade prevista pela hipótese inatista, e o faz por meio dos dois conjuntos de elementos que a compõem: os Princípios e os Parâmetros, que constituem a chamada Teoria dos Princípios e Parâmetros. A GU, então, guiaria as crianças no processo de aquisição, no sentido de que, ao receberem input linguístico, elas automaticamente excluiriam algumas hipóteses possíveis em termos lógicos, descartando-as a priori por não se adequarem à arquitetura GU. Portanto, a fim de adquirir uma língua natural, a tarefa das crianças seria a de adquirir os itens lexicais da língua e fixar os valores dos parâmetros. Tal perspectiva aparentemente simplista, no entanto, gera o questionamento: por que esse processo é tão dispendioso? Por que demora cerca de 5 anos para se completar? Duas visões respondem a essa pergunta: o Visão maturacionista: defende que nem todos os princípiose parâmetros estão disponíveis para a criança quando de seu nascimento, surgindo apenas mais tarde com a modificação e maturação do cérebro em tempo programada, em processo análogo ao do crescimento-perda- crescimento dos dentes. o Visão continuísta: argumenta que todo conhecimento linguístico (incluindo todos os princípios e parâmetros, fixados ou não) já estaria disponível para a criança ao nascer, mas que o processo de fixação levaria tempo por depender da aquisição de itens lexicais, o que compreende também as palavras funcionais, e isso não seria um processo automático. Além disso, a aquisição dependeria também do desenvolvimento cognitivo e necessitaria de memória e habilidades de processamento, que melhoram com a idade. Ademais, seria necessária compreensão do conteúdo semântico das sentenças, o que exige conhecimento de mundo – alcançado somente conforme crescemos. Apesar de a hipótese racionalista não responder a todas as perguntas, nem dar conta de todo o processo de aquisição, as autoras apontam seu sucesso em conseguir formular questionamentos cada vez mais profundos acerca da natureza da aquisição de linguagem, o que representa um grande avanço em termos científicos.
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