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1 Disciplina: Teorias de aquisição da linguagem Autor: D.r Alex de Britto Rodrigues Revisão de Conteúdos: Esp. Alexandre Kramer Morgenterm Revisão Ortográfica: Esp. Alexandre Kramer Morgenterm Ano: 2019 Copyright © - É expressamente proibida a reprodução do conteúdo deste material integral ou de suas páginas em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita da equipe da Assessoria de Marketing da Faculdade São Braz (FSB). O não cumprimento destas solicitações poderá acarretar em cobrança de direitos autorais. 2 Alex de Britto Rodrigues Teorias de aquisição da linguagem 1ª Edição 2019 Curitiba, PR Editora São Braz 3 Editora São Braz Rua Cláudio Chantagnier, 112 Curitiba – Paraná – 82520-590 Fone: (41) 3123-9000 Coordenador Técnico Editorial Marcelo Alvino da Silva Revisão de Conteúdos Alexandre Kramer Morgenterm Revisão Ortográfica Alexandre Kramer Morgenterm Desenvolvimento Iconográfico Juliana Emy Akiyoshi Eleutério FICHA CATALOGRÁFICA RODRIGUES, Alex de Britto. Teorias de aquisição da linguagem / Alex de Britto Rodrigues. – Curitiba: Editora São Braz, 2019. 62 p. ISBN: 978-85-5475-395-5 1.Aquisição. 2. Estímulos. 3. Linguagem. Material didático da disciplina de Teorias de aquisição da linguagem – Faculdade São Braz (FSB), 2019. Natália Figueiredo Martins – CRB 9/1870 4 PALAVRA DA INSTITUIÇÃO Caro(a) aluno(a), Seja bem-vindo(a) à Faculdade São Braz! Nossa faculdade está localizada em Curitiba, na Rua Cláudio Chatagnier, nº 112, no Bairro Bacacheri, criada e credenciada pela Portaria nº 299 de 27 de dezembro 2012, oferece cursos de Graduação, Pós-Graduação e Extensão Universitária. A Faculdade assume o compromisso com seus alunos, professores e comunidade de estar sempre sintonizada no objetivo de participar do desenvolvimento do País e de formar não somente bons profissionais, mas também brasileiros conscientes de sua cidadania. Nossos cursos são desenvolvidos por uma equipe multidisciplinar comprometida com a qualidade do conteúdo oferecido, assim como com as ferramentas de aprendizagem: interatividades pedagógicas, avaliações, plantão de dúvidas via telefone, atendimento via internet, emprego de redes sociais e grupos de estudos, o que proporciona excelente integração entre professores e estudantes. Bons estudos e conte sempre conosco! Faculdade São Braz 5 Sumário Prefácio ..................................................................................................... 07 Aula 1 – O que é “aquisição da linguagem”? .............................................. 08 Apresentação da Aula 1 ............................................................................. 08 1.1 – Noções básicas sobre a aquisição da linguagem ....................... 08 1.2 – O desenvolvimento da linguagem ............................................... 11 1.2.1 – Noções básicas sobre o desenvolvimento da língua ............... 11 1.2.2 – O desenvolvimento da aquisição da linguagem ....................... 15 1.3 – Introdução às teorias da aquisição da linguagem ...................... 18 1.3.1 – Classificação das teorias da aquisição da linguagem .............. 18 Conclusão da Aula 1 .................................................................................. 21 Aula 2 – Empirismo e aquisição da linguagem ........................................... 22 Apresentação da Aula 2 ............................................................................ 22 2.1 – Behaviorismo e conexionismo ................................................... 22 2.1.1 – Behaviorismo .......................................................................... 23 2.1.2 – Situações de aquisição do Behaviorismo ................................ 26 2.2.1 – Conexionismo ......................................................................... 30 2.2.2 – Conexionismo e aprendizado .................................................. 33 Conclusão da aula 2................................................................................... 35 Aula 3 – Racionalismo e aquisição da linguagem ...................................... 36 Apresentação da Aula 3 ............................................................................. 36 3.1 – Introdução à Teoria da Gramática Universal ............................... 37 3.2 – Teoria da Gramática Universal e inatismo .................................. 38 3.3 – Princípios da teoria ..................................................................... 40 3.4 – O argumento da pobreza do estimulo ........................................ 42 3.5 – Os estágios e a perspectiva da Gramática Universal ................. 44 Conclusão da Aula 3 .................................................................................. 47 Aula 4 – Abordagem dialética e aquisição da linguagem............................ 48 Apresentação da Aula 4 ............................................................................. 48 4.1 – Descobrindo a fundo da abordagem dialética e a aquisição da linguagem .................................................................................................. 49 4.2 – A epistemologia genética ........................................................... 49 4.3 – Interacionismo e aquisição da linguagem .................................. 52 4.3.1 – Desdobramentos do interacionismo para a aquisição da linguagem .................................................................................................. 54 6 4.4 – A abordagem dialética e algumas situações de aquisição.......... 55 Conclusão da Aula 4 ................................................................................. 58 Índice Remissivo ........................................................................................ 60 Referências ............................................................................................... 62 7 Prefácio Prezado (a) estudante, na disciplina: Teorias de aquisição da linguagem você verá alguns elementos básicos para entender como ocorre o fascinante processo de aquisição da linguagem, o que será importante para você desenvolver uma percepção mais apurada sobre os mecanismos do nosso objeto de estudo e de trabalho que é tão fundamental para nos identificarmos como seres humanos: a linguagem verbal. Essa compreensão irá permitir que você articule conhecimentos da linguística com outras áreas, como a psicologia e o ensino (de língua materna ou estrangeira), o que certamente contribuirá para sua formação teórica e atuação profissional. A leitura deste material e a utilização dos recursos do ambiente virtual irão ajudá-lo(a) nesse processo, abrindo um caminho de conhecimentos que podem levar a uma compreensão valiosa sobre a linguagem verbal humana ou ao interesse por pesquisas posteriores. 8 Aula 1 – O que é “aquisição da linguagem”? Apresentação da aula 1 Olá!Seja bem-vindo à nossa primeira aula da disciplina Teorias de aquisição da linguagem. Nela você conhecerá os principais elementos com que a área da aquisição da linguagem trabalha, além de ter contato com uma introdução às principais teorias que tentam explicar esses elementos. Vamos começar? Você já deve ter reparado como pode ser trabalhoso aprender uma língua estrangeira, não é? Mas já percebeu que você aprendeu sua língua materna facilmente, tanto é que lá pelos três anos de idade já dominava grande parte dela? E nem precisou ir para um curso de línguas! Adquirir uma primeira língua quando criança, claro, é muito diferente de adquirir uma segunda língua depois de mais velho. Mas por que há essa diferença? Como ocorre esse processo de aquisição aparentemente tão fácil de uma língua, sendo que é preciso tanto esforço para aprender uma segunda língua depois de crescermos? Essas são dúvidas que surgem quando nos preocupamos com o desenvolvimento das habilidades linguísticas (habilidades de uso das línguas), e você verá algumas opções de respostas nesta aula. 1.1 Noções básicas sobre a aquisição da linguagem As perguntas sobre como se dá a aquisição da linguagem e por que ela ocorre de maneira relativamente fácil nos primeiros estágios da infância podem ser respondidas de diversas maneiras, a depender das diferentes teorias, mas apontam para uma direção comum: a linguagem verbal humana é diferenciada da dos demais seres vivos por ser rica a ponto de permitir transmitir uma infinidade de informações, ao mesmo tempo que pode ser adquirida facilmente por qualquer ser humano em condições adequadas. O ser humano, então, 9 possui uma capacidade única de se comunicar graças à sua linguagem, que envolve elementos mentais, comportamentais e sociais. Reflita Você já parou para pensar em como, de fato, você começou a falar, ou melhor, fazer os primeiros sons com o seu aparelho vocal? Antes de nos aprofundarmos no assunto, vamos começar com o que “aquisição da linguagem” pode significar. Pode parecer simples: ora, essa expressão se trata do fato de aprendermos uma língua. Porém, se você parar para pensar nessa definição, irá perceber que ela iguala o processo que nos permitiu aprender uma primeira língua na nossa infância, em nosso contexto familiar ou social próximo, com o processo pelo qual passamos na escola, tentando aprender uma língua estrangeira ou até mesmo a norma culta de nossa língua materna. São coisas diferentes, sem dúvida. Então vamos diferenciá-las? Quando falamos em “aquisição da linguagem”, queremos nos referir a um tipo de processo pelo qual passamos para sabermos uma língua. Para a aquisição de uma língua materna, esse processo é natural, ou seja, em condições regulares de convívio com outras pessoas (geralmente familiares e pessoas próximas), a criança adquire espontaneamente uma língua. Não precisa passar por um ensino formal para isso. Imagine se os pais de um bebê tivessem que explicar para ele o que é um verbo e como utilizá-lo para que ele pudesse usar seus primeiros verbos! Seria muito difícil, certamente haveria pais que não saberiam explicar, e haveria, assim, muitos bebês que não aprenderiam a falar. Porém, basta que o bebê esteja em um ambiente em que tenha contato com outros falantes da língua que será a sua língua materna para que ele a adquira. Por outro lado, já na escola, e já tendo uma língua materna, a criança passa por processos artificiais de ensino, orientados por educadores com vastos conhecimentos especializados. É possível dizer que a criança também “adquire” algo nesse processo escolar, como uma segunda língua ou até mesmo alguns 10 conhecimentos sobre o padrão culto da sua própria língua materna, mas essa aquisição não é espontânea, pois ocorre por meio de aprendizado orientado. Alguns especialistas preferem chamar o primeiro tipo de aquisição da linguagem de “aquisição de uma língua” e o segundo tipo de “aprendizado de uma língua”, mas é muito comum chamarmos os dois processos de “aquisição” (aquisição de primeira língua, aquisição de segunda língua). Se quisermos diferenciá-los (e é sempre importante diferenciá-los), podemos simplesmente dizer que um ocorre espontaneamente e o outro ocorre por meio de aprendizado formal. Assim, sempre que utilizarmos o termo “aquisição”, não estaremos nos referindo a “aprendizado”, apesar de que, no processo de aprendizado (principalmente na formação teórica do professor), é importante sabermos como se dá a aquisição (se quisermos, como professores, orientar melhor nossos alunos no processo de aprendizado de línguas, é preciso entendermos como ocorre a aquisição de línguas). Em outros termos, a ideia de “aprendizado” pode acompanhar a ideia de “aquisição”, tanto é que as duas coisas podem ser entendidas da mesma maneira por algumas teorias. Mas “aquisição” da linguagem é aquisição exatamente do quê? Encontramos as seguintes ideias sobre aquisição nas mais diversas pesquisas: a) aquisição de língua materna; b) aquisição de segunda língua; c) aquisição da escrita; d) aquisição do padrão culto da língua materna. Em um sentido estrito, quando falamos em “aquisição da linguagem”, nos referimos ao primeiro tipo (de língua materna). Já em um sentido amplo, podemos nos referir a qualquer uma dessas ideias, ou a todas elas juntas. As ideias em b), c) e d) são levadas mais em conta quando tratamos do contexto de ensino. Já a ideia em a) é levada em conta em um contexto não necessariamente de ensino, ou seja, essa ideia de aquisição tem um objeto de estudo mais específico e menos compartilhado com outras áreas envolvidas com o ensino (teorias gerais sobre o ensino, linguística aplicada, metodologia do ensino de línguas etc.) Mencionamos, nessa explicação inicial, as noções de “primeira língua”, “segunda língua” e “língua materna”. Parecem noções óbvias, não parecem? Mas não são tão óbvias assim, apesar de serem fáceis de ser entendidas. Vamos tratar delas a seguir, quando teremos conhecimentos das etapas da aquisição. 11 1.2 O desenvolvimento da linguagem Quando falamos em “aquisição da linguagem”, geralmente nos focamos na aquisição de língua materna. Isso ocorre porque há muito o que dizer e investigar especificamente sobre isso, já que é algo que ocorre com qualquer ser humano em condições cognitivas e sociais adequadas (quando não há problemas neurológicos que impeçam o processamento da linguagem e nem privação do contato com outras pessoas), apesar de a aquisição de uma segunda língua, que ocorre geralmente por meio do ensino formal, também merecer atenção (o que é feito em disciplinas relacionadas ao ensino, como a linguística aplicada). Assim, se quisermos tratar especificamente do ensino, devemos mencionar isso, pois esse seria um assunto que iria muito além da aquisição da linguagem, contemplando questões relacionadas às práticas pedagógicas. Desse modo, em sentido amplo, poderíamos considerar a aquisição da linguagem abarcando tanto a que acontece espontaneamente como a que acontece em ambiente formal escolar. Já em sentido estrito, consideramos apenas o primeiro tipo de aquisição, muito mais misterioso e gerador de controvérsias, que trataremos com mais atenção a seguir. 1.2.1 Noções básicas sobre o desenvolvimento da linguagem Vamos começar por diferenciar algumas noções básicas para que possamos compreender a aquisição da linguagem desde os primeiros estágios de desenvolvimento humano. Um esclarecimento inicial, que pode parecer óbvio, é a respeito das expressões “primeira língua”, “segunda língua”, “terceiralíngua” etc. Essas expressões parecem apenas indicar a ordem de aquisição. Porém, implicam muito mais do que uma mera ordem: adquirir uma segunda ou terceira língua, depois de adquirir uma primeira, é muito difícil. A razão disso é que o cérebro/mente já “se acostumou” com as estruturas de uma língua e passa a ter dificuldade quando tem contato com outros tipos de estruturas de outras línguas. Em outras palavras, na aquisição da primeira língua, o cérebro/mente se adequa 12 a determinados parâmetros, correspondentes a uma língua, e sofre para aprender outros parâmetros posteriormente. Curiosidade Se estiver curioso(a) acerca da razão entre cérebro/mente e quiser entender um pouco mais, pode pesquisar a área da filosofia da mente e analisar mais a fundo esse contexto. É importante notar que usamos a expressão “cérebro/mente”, com uma barra, porque há uma extensa discussão sobre a possibilidade do cérebro (a parte física) e da mente (a parte do processamento cognitivo, isto é, processamento dos pensamentos, das representações mentais, das informações, das lembranças e das experiências sensoriais) serem uma coisa só. Como não é relevante entrarmos nessa discussão, usaremos a expressão com uma barra, e caso seja importante nos referirmos apenas à parte física ou apenas à parte do processamento, usaremos as palavras “cérebro” e “mente” separadamente, sem problematizar essa questão. Saiba mais A discussão sobre se a mente e o cérebro são coisas diferentes não é totalmente consensual, mas, no geral, dizemos que são coisas diferentes. Há uma extensa discussão nas áreas da filosofia e das ciências cognitivas (o que inclui a psicologia, algumas áreas da linguística e algumas áreas da computação) sobre isso. A diferença entre essas duas coisas pode ser explicada pela seguinte comparação: um computador tem alguns componentes físicos essenciais, como o processador, a memória e o disco rígido; e alguns componentes não físicos, como as informações que ele processa e salva, os sistemas operacionais e diversos programas. A parte física (o hardware) seria como o cérebro, e a parte não física (o software) seria como a mente. 13 Voltando à noção sobre “primeira língua”, também podemos falar em “língua materna”. Essa segunda expressão não sugere meramente uma posição em uma ordem de aquisições de línguas. A língua materna é aquela necessariamente adquirida nos primeiros estágios da infância, o que ocorre, como já comentamos, de maneira relativamente fácil. Mas “primeira língua” não é a mesma coisa? É quase a mesma coisa, mas há uma diferença fundamental. Enquanto “primeira língua” sugere uma posição em uma ordem de aquisição, “língua materna” sugere a aquisição em um determinado estágio inicial de desenvolvimento, apesar de alguns autores não diferenciarem as duas. Para ficar clara a diferença entre essas duas noções, imagine que nesse estágio inicial um bebê tenha contato com uma língua e comece a adquiri-la. Alguns meses depois, tenha contato com uma segunda língua, também passando a adquiri-la. Seria possível dizer que esse bebê adquiriu uma primeira e uma segunda línguas? Se houver evidência de que seu cérebro/mente já estava se acostumando com os parâmetros da primeira antes do contato com a segunda, talvez seja até possível dizer que sim (apesar de não ser possível ele terminar de adquirir a primeira antes da segunda se ainda tiver menos que, aproximadamente, dois anos de idade). Porém, como o bebê ainda se encontra no primeiro estágio de desenvolvimento da linguagem, as duas línguas, adquiridas quase de modo simultâneo, seriam “línguas maternas”. Nesse caso, a criança seria bilíngue! Assim, ser bilíngue não é o mesmo que saber uma segunda língua, mas, sim, saber duas línguas do mesmo modo que um falante nativo sabe. Importante É importante diferenciar alguém bilíngue de alguém poliglota. Uma coisa é saber mais do que uma língua com proficiência de um falante nativo, que adquiriu as línguas que sabe nos primeiros estágios de desenvolvimento. Outra coisa é saber mais do que uma língua depois dos primeiros estágios de desenvolvimento. No segundo caso, mesmo que o sujeito saiba as línguas estrangeiras, ele não é falante nativo, logo, não tem fluência de um falante nativo. 14 Língua materna, segunda língua e Libras Sabe-se então que, a língua materna é a primeira língua que adquirimos podendo ser chamada de L1(primeira língua). Em sua oposição, qualquer outra língua aprendida após essa, é considerada L2 (segunda língua). Sobre esse aspecto, o que se pode esperar quanto a pessoa surda que reside no Brasil? Os surdos usuários das línguas de sinais (no caso do Brasil, a Libras) tem (em sua maioria) o português escrito como L2. Porém, estes podem ter diferentes línguas maternas – de acordo com seu contexto biológico e social. Por exemplo, uma pessoa surda que usa como principal meio de comunicação a Libras e é fluente nesta mas tendo perdido sua audição aos 5 anos de idade, tem como sua língua materna o português. Já o surdo, que nasceu surdo e tendo uma perda auditiva severa, mesmo tendo aprendido a Libras apenas com 6 anos em período escolar, tem como sua língua materna a Libras, pois mesmo seus pais e todo o seu entorno utilizam a língua oral para tentar comunicar-se com ela, acabou por não haver internalização da estrutura gramatical dessa. Uma outra situação ainda pode ocorrer quando uma criança surda brasileira que foi exposta primeiramente a uma língua oral e habilitada para que fizesse leitura labial e treinamento da fala com ajuda de especialistas, pode ter como L1 a língua portuguesa, independente da não acuidade auditiva. Fonte: elaborado pelo autor (2019), adaptado pelo DI (2019). Vocabulário Acuidade: percepção dos índices de emissão de ruídos. Assim, o termo “Acuidade Auditiva” refere-se ao grau de discernimento e perspicácia do nosso sistema auditivo. 15 1.2.2 O desenvolvimento da aquisição da linguagem Vamos tratar mais diretamente do desenvolvimento da aquisição da linguagem. Há muitas pesquisas que apontam que um bebê, já nos primeiros dias de vida, consegue diferenciar sua língua materna de uma estrangeira, apesar de não entender nem falar. No entanto, como isso é possível e como é possível saber que um bebê tem essa capacidade? Ora, duas línguas têm contrastes sonoros diferentes (no caso das línguas de sinais, elas têm contrastes de sinais diferentes). Mesmo sem entender o que as pessoas dizem, um bebê consegue identificar padrões de contraste sonoro e passa a se acostumar com eles, já que fazem parte de sua língua materna a ser adquirida. Quando um bebê ouve uma outra língua, ele “estranha”. Um método para perceber esse estranhamento é dar para o bebê uma chupeta com um aparato eletrônico capaz de medir sua sucção. Quando o bebê estranha o padrão de contrastes sonoros da língua estrangeira, ele acelera o ritmo de sucção. Essa evidência de que ele consegue diferenciar as línguas é muito reveladora! É no mínimo curioso o fato de um bebê conseguir diferenciar línguas com cadeias prosódicas (relacionadas a entonação) ou com sequências de sons diferentes. O estágio inicial da aquisição da linguagem faz parte do que geralmente é chamado, conforme as autoras Elaine Grolla e Maria Cristina Figueiredo Silva (2014), de “período crítico”, que é o período que vai até a puberdade. Na primeira parte de período, até os dois ou três anos, a criança pode começar a adquirir facilmente uma primeira língua. Já na segunda parte, entre os quatro anos de idade e a puberdade,começar a ter contato com uma língua faz com que o processo de aquisição seja muito mais lento, mas ainda é possível que a criança adquira a proficiência de um falante nativo. Por fim, depois da puberdade ou na fase adulta, a proficiência linguística é bastante limitada e dificilmente será confundida com a proficiência de um falante nativo. Por isso, é muito importante que a criança tenha contato com uma língua desde o início de seu desenvolvimento, seja uma língua oral ou de sinais. Caso contrário, sua proficiência e fluência podem ser prejudicadas. 16 No desenvolvimento da aquisição da linguagem, alguns elementos podem ser diferenciados, para que possamos entender o processo. Primeiro, há o input, ou seja, o estímulo que a criança recebe por meio da produção linguística das pessoas a sua volta. Se a língua materna for oral, o input consiste em todos os enunciados que a criança ouve, desde palavras soltas a sentenças complexas. Se a língua for sinalizada, o input consiste em todas as expressões sinalizadas na frente da criança. Seria razoável imaginar que um input rico, isto é, cheio de enunciados diversificados é imprescindível para a aquisição, mas algumas observações feitas por pesquisadores sugerem que até mesmo com um input pobre (isto é, não muito diversificado) a criança pode adquirir uma língua materna. É possível dizer que alguma característica específica do input, relacionada a algum nível analisável em uma língua, serve como “gatilho” para a aquisição. Vamos lembrar de alguns níveis de análise das línguas naturais? Temos um nível fonológico, que consiste em sons distinguíveis relevantes para a língua (no caso de uma língua sinais, os sinais relevantes); um nível morfológico, que articula as menores unidades de significado de uma língua, os morfemas; o nível sintático, que relaciona os morfemas ou as palavras de modo que seja possível produzir sentenças; o nível semântico, que estrutura o significado das línguas; e o nível pragmático, que sistematiza o significado que o sujeito tem a intenção de expressar em um dado contexto. Caso o gatilho para a aquisição seja “fonológico”, ou mais especificamente, caso tenha relação com uma parte do nível fonológico correspondente à prosódia, poderíamos dizer que há um “bootstrapping prosódico”; caso esse gatilho seja semântico, há o “bootstrapping semântico”; caso seja pragmático, há o “bootstrapping pragmático”. Bootstrapping nada mais é do que o elemento inicial que desencadeia a aquisição. Não há um consenso de qual tipo de bootstrapping é o correto, pois as considerações sobre ele variam de teoria para teoria, inclusive não sendo relevante para algumas discussões teóricas. 17 Vocabulário Bootstrapping: passou a ser usado no sentido de ser necessário um elemento específico para algo começar a se desenvolver, sendo esse elemento já presente na coisa em desenvolvimento. Curiosidade “Bootstrapping” é um termo usado em várias áreas de conhecimento, com vários sentidos diferentes; a origem do termo está relacionada à ideia de, por ser difícil tirar as botas sozinho (boot, em inglês, significa “bota”), ser necessária uma espécie de alça (strap). Com essa alça, o usuário das botas não precisa de ajuda externa. A produção de expressões linguísticas, ou o output, ocorre, naturalmente, depois de a criança receber estímulos linguísticos e conseguir entender o input. Por volta dos seis meses de idade, o bebê começa a balbuciar, o que vai se desenvolvendo até por volta dos três anos, quando a criança já produz alguns enunciados complexos e a primeira parte do período crítico se fecha. Na sequência, você vai ter um contato inicial com as teorias mais conhecidas de aquisição da linguagem. Nas aulas seguintes, iremos nos alongar um pouco mais a respeito delas. 1.3. Introdução às teorias de aquisição da linguagem Todo esse processo de aquisição da linguagem pode ser explicado de várias maneiras, a depender da perspectiva teórica adotada. Uma teoria pode ter como base as experiências das pessoas para explicar como elas adquirem 18 conhecimentos e habilidades (o que incluiria a linguagem), sendo, por isso, classificada de “empirista”. Pode ter como base o papel do cérebro/mente no processo de aquisição, sendo classificada como “racionalista”. Ou ainda pode ter como base o fator social, podendo ser classificada como “dialética”. Essas classificações não são fechadas, o que significa que uma teoria em uma classificação pode tratar de vários elementos que outras teorias de outras classificações tratam. Por outro lado, identificar as teorias conforme determinados tipos gerais irá ajudar você a compreender o quadro variado de propostas. Você irá conhecer as principais teorias dentro dessas classificações, mas saiba que há muito mais coisas escritas (e sendo escritas) sobre aquisição da linguagem do que esse conhecimento inicial. 1.3.1 Classificação das teorias de aquisição da linguagem Uma teoria empirista tem esse nome derivado de um tipo de corrente filosófica, chamada “empirismo”, que diz que o conhecimento vem apenas das experiências. As teorias empiristas de aquisição da linguagem, que surgem no campo da psicologia ou da psicolinguística, então, consideram que o conhecimento humano, o que inclui o conhecimento das línguas, é derivado da experiência. O cérebro/mente não é, para elas, um componente central no processo de aquisição (apesar de reconhecerem que esse componente deve ter alguma participação nesse processo). Como principais exemplos de teorias empiristas, temos o behaviorismo e o conexionismo. Vamos tratar delas na próxima aula. O racionalismo, diferentemente do empirismo, considera o papel do cérebro/mente como fundamental para a aquisição da linguagem. Há, segundo esse tipo de proposta teórica, muita coisa no cérebro/mente que não surgiu simplesmente pela experiência. Os mecanismos mentais são determinantes para a aquisição do conhecimento em geral e da linguagem em específico. Uma das principais perspectivas teóricas consideradas racionalistas é a da linha inatista, representada principalmente pela perspectiva “gerativista”, que tem 19 grande influência nos estudos da linguística, sobretudo na área da sintaxe. Essa proposta teórica considera, como hipótese central, que o ser humano tem uma habilidade mental inata e específica que lhe permite adquirir a linguagem. Seria possível também chamar de “racionalistas” outras teorias que consideram fundamental o papel do cérebro/mente no processo de aquisição, mas que não têm como hipótese uma capacidade específica mental que permite a aquisição. Entre essas outras teorias, poderíamos citar a epistemologia genética e o interacionismo social, mas iremos considerar essas duas teorias sob o rótulo “dialéticas” por se enquadrarem melhor nessa classificação. As teorias que estão sendo chamadas por nós de “dialéticas” atribuem ao componente social uma importância central na aquisição da linguagem. É o caso das teorias mencionadas, a epistemologia genética e o interacionismo. Essas duas teorias, que têm grande influência na área de ensino em geral e de ensino de línguas (tanto maternas quanto estrangeiras), tratam do componente social, mas de modos diferentes, sendo esse componente mais relevante para o interacionismo, que também confere uma grande importância ao papel do outro no processo da aquisição. É preciso ponderar que essas classificações, como já dissemos, não são totalmente fechadas. Por exemplo, é possível dizer que todas as teorias são, de certo modo, inatistas, jáque todas reconhecem que é preciso existir alguma capacidade inata que permite ao ser humano adquirir linguagem, e essa capacidade estaria presente no cérebro. No entanto, por “inatista” costumamos chamar apenas a teoria que tem como hipótese o componente mental inato específico para a aquisição e processamento da linguagem, não sendo esse componente o mesmo utilizado para aprender outras coisas. Também é possível dizer que todas as teorias são, de certa maneira, sociais, já que todas consideram ser relevante haver um contexto social adequado para que a linguagem seja adquirida. Porém, tradicionalmente chamamos de “dialéticas” apenas as que centralizam esse caráter social em suas considerações. O que toda essa ponderação significa? Significa que essas classificações que agrupam as teorias são apenas uma maneira de iniciarmos e organizarmos o assunto, mas não devem ser consideradas como barreiras precisas que delimitam as áreas de pesquisa. Uma teoria pode, inclusive, ser incompatível 20 com outra, ao mesmo tempo em que ambas compartilham alguns pressupostos. Ou ainda, duas teorias podem ser compatíveis a ponto de servirem como fundamentação para um mesmo trabalho de pesquisa, apesar de ambas terem alguns pressupostos claramente diferentes. Dito isso, veja a seguir o seguinte quadro que recupera a classificação apresentada por nós: Classificação das teorias Abordagem Características Principais representantes Empirismo Centraliza-se na experiência. Behaviorismo e conexionismo. Racionalismo Centraliza-se no processamento no aparato mental. Gerativismo. Dialética Centraliza-se no social. Epistemologia genética e interacionismo. Fonte: elaborado pelo Autor (2017), adaptado pelo DI (2019). É comum uma teoria surgir como uma alternativa a outra. Por exemplo, o gerativismo, em seu desenvolvimento, era demonstrado como uma proposta teórica alternativa ao behaviorismo com base em críticas à hipótese behaviorista de que a aquisição da linguagem (assim como de conhecimentos e habilidade em geral) ocorreria apenas com base nas experiências, sem algo que existisse antes. Já as propostas dialéticas, algumas vezes, surgem se opondo ao empirismo e ao racionalismo, uma vez que essas duas não consideram propriamente o fator social como central no processo de aquisição. No entanto, é importante que você conheça um pouco de todas, para que seu universo de conhecimentos sobre a aquisição da linguagem nunca se feche para a diversidade de visões teóricas, como ocorre muitas vezes com pesquisadores que só conhecem a própria perspectiva teórica. Conhecer outras perspectivas permite, além de compreender melhor como se dá a aquisição, perceber os limites de cada teoria, apontados por suas concorrentes. Uma perspectiva pode tratar melhor a qualidade do input do que outra, por exemplo, mas essa outra pode tratar melhor o fator social, fundamental para que haja a aquisição. 21 É claro que é muito difícil alguém se aprofundar em todas essas perspectivas, com trabalhos e pesquisas extensas em cada uma. Porém, é importante que, pelo menos, estejamos atentos para o que as diversas perspectivas dizem, mesmo que não seja provável conseguirmos nos aprofundar extensamente em todas elas. Além disso, essas propostas teóricas sempre resultam em pesquisas novas, o que nos instiga a sempre estarmos atentos à observações e caminhos novos. Mídias Assista ao filme O enigma de Kaspar Hauser. Observe os problemas que o personagem principal tem com o uso da linguagem e como ele tenta superar tais problemas. Acesse em: https://www.youtube.com/watch?v=yOXokua_1g4 Conclusão da aula 1 Você aprendeu, então, alguns conceitos básicos sobre aquisição de linguagem, como input, output e bootstrapping. Aprendeu também o que é “aquisição da linguagem” em sentido estrito e sentido amplo. Todo esse conhecimento, tratado de diversas formas pelas teorias, será retomado, de certa forma nas aulas seguintes. Atividade de Aprendizagem 1. Assista ao filme O enigma de Kaspar Hauser, e responda: Quais os problemas que o personagem principal tem com o uso da linguagem e por que ele os tem? A tentativa de superação desses problemas é bem-sucedida? 2. Pesquise outro caso real semelhante ao do personagem Kaspar Hauser. Responda: O que foi feito para tentar minimizar o problema do indivíduo com sua dificuldade de uso de linguagem? Essa dificuldade foi minimizada paralelamente com a dificuldade de socialização ou uma dificuldade foi minimizada mais satisfatoriamente do que a outra? 22 Aula 2 – Empirismo e aquisição da linguagem Apresentação da aula 2 Seja bem-vindo à segunda aula da disciplina Teorias de aquisição da linguagem. Você já viu o que é aquisição da linguagem, os estágios do desenvolvimento humano para a aquisição, alguns conceitos básicos sobre o assunto e um quadro geral sobre as principais teorias que têm algo para dizer sobre ele. Agora você vai ter uma noção um pouco mais aprofundada de um tipo de teoria, a que segue a linha empirista. São duas as teorias principais dessa linha: o behaviorismo e o conexionismo. Vamos começar? 2.1 Behaviorismo e o conexionismo As duas propostas teóricas, apesar de serem empiristas, têm histórias e alguns pressupostos bem diferentes. Sobre os pressupostos, comentaremos mais adiante quando tratarmos de cada teoria. Já quanto a suas histórias, saiba que o behaviorismo teve seu apogeu de influência na década de 1950 (mas seus princípios haviam sido discutidos muito antes), enquanto o conexionismo é muito mais recente, pois começou a ser desenvolvido em meados da década de 1980 e ainda só tem resultados iniciais. Isso significa que o impacto do behaviorismo na história das teorias sobre aquisição do conhecimento em geral, e da linguagem em específico, é muito maior. Importante Atenção: sempre que você se deparar com o termo “pressuposto” associado a uma teoria, você vai entender que ele se refere às ideias e hipóteses básicas dessa teoria. 23 Em razão disso, você vai conhecer primeiro o behaviorismo e o que ele tem a dizer sobre a aquisição da linguagem antes de conhecer os princípios do conexionismo. Pelo mesmo motivo, você verá que daremos mais importância ao behaviorismo, ainda mais porque essa proposta teórica participa de embates com outras, como a inatista e as dialéticas, a serem vistas nas próximas aulas. 2.1.1. Behaviorismo O behaviorismo (ou “comportamentalismo”, pois em inglês “behavior” significa “comportamento”) tem seu marco inicial com a obra “Comportamento verbal” (Verbal behaviou”, originalmente em inglês) do pesquisador e psicólogo B. F Skinner. De acordo com essa proposta, a criança adquire uma língua materna porque recebe os estímulos adequados. Um conceito-chave para o behaviorismo é o de estímulo: quando a criança recebesse um estímulo positivo, sua resposta seria correta; quando recebesse um estímulo negativo, sua resposta seria incorreta. Os estímulos podem ser ações variadas das pessoas à sua volta, desde premiações e incentivos a correções e punições. Esse modelo de aprendizado ficou conhecido como “estímulo-resposta”. Você pode perceber que o modelo estímulo-resposta pressupõe um papel ativo do meio nas experiências das crianças quando elas estão aprendendo uma língua materna. É como se todos estivessem monitorando o que ela aprende (podemos falar em “aprendizado” de um modo parecido com o que ocorre em ambiente escolar, já que a aquisição ocorreria por um meioartificial monitorado). Haveria uma espécie de controle do meio, em que os conhecimentos seguiriam um caminho unidirecional, das pessoas em convívio com a criança para a criança. Qual é a consequência disso para como a criança é vista? Ora, se ela só adquire um conhecimento em uma via unidirecional, de modo passivo, 24 então ela é vista como uma “tábula rasa”, expressão muito utilizada por pesquisadores de aquisição da linguagem para se referir ao behaviorismo. Assim, ela adquire conhecimentos e habilidades sem ter alguma participação ativa que contribua para isso que não sejam as respostas aos estímulos. Em outras palavras, não haveria nada no processamento mental ou no comportamento da criança que fizesse parte da construção de sua aquisição. Seu comportamento é apenas o produto final do processo de aquisição mediado pelo aprendizado via estímulo-resposta. Fonte: elaborado pelo autor (2019) O estímulo, na teoria behaviorista, é acompanhado por imitações e reforços. Desse modo, um estímulo inicial poderia fazer a criança começar a aprender uma língua, mas ela muitas vezes precisa também de reforços desse estímulo e de alguém para imitar. Para a aquisição de uma língua materna, então, bastaria uma quantidade certa de estímulos e reforços positivos para que a criança produzisse sentenças corretas nessa língua, e caso produza sentenças erradas, bastaria receber alguns estímulos negativos (como uma advertência dos pais) para ela não cometer mais erros do mesmo tipo. Pode ser difícil verificar esse processo mecanizado de aprendizado em casa, considerando um monitoramento da criança feito pelas pessoas a sua volta que lhe dão uma quantidade de estímulos esperando respostas adequadas. Os ambientes familiares são variados, o que nos faz pensar no quão difícil seria os 25 estímulos e reforços que as crianças recebem em seus primeiros estágios de desenvolvimento serem mais ou menos parecidos, ou até padronizados, já que todas elas (em condições neurológicas normais) adquirem sua língua materna aproximadamente na mesma idade. Em outras palavras, se todas as crianças adquirem uma língua materna mais ou menos no mesmo período, então os estímulos que todas recebem deveriam ser mais ou menos do mesmo tipo, o que é difícil de acreditar, em razão da diversidade de contextos em que as diferentes crianças estão. Na aquisição da linguagem por meios formais orientados, ou seja, em ambiente escolar (pensando no ensino de uma língua estrangeira ou da norma culta da língua materna), é mais fácil verificar elementos propostos pela teoria behaviorista. Mas esses elementos são mais evidentes nesses contextos de ensino justamente em razão da influência dessa teoria, não porque tais elementos ocorrem naturalmente. Por exemplo, alguns exercícios na vivência escolar da criança (talvez na de você também) consistem em cópias de estruturas gramaticais (imitação) sem muito sentido, de modo mecanizado, seguidas de várias repetições (reforços) e acompanhadas de estímulos positivos (ganhar nota, ser elogiado ou elogiada, passar de ano etc.). Com base no que você leu até aqui, é possível entender que, para o behaviorismo, aprender é ter uma resposta certa a um estímulo. É fácil de perceber, como dito no parágrafo anterior, como esse pensamento influenciou e ainda influencia o ensino escolar. Mas esse impacto do behaviorismo no ensino não se dá somente em razão de a teoria ter sido promovida por uma linha dentro da psicologia. Na linguística, o behaviorismo também teve influência, mais precisamente na linguística estruturalista norte-americana. Desse modo, o behaviorismo encontrou um aliado nos estudos especificamente linguísticos, o que lhe permitiu influenciar diretamente o ensino associado à linguagem. Mas não nos aprofundaremos sobre a relação entre teorias sobre a linguagem e ensino, porque isso é tema mais específico de outra área: a linguística aplicada (mas também da metodologia de ensino de línguas). Vamos retomar os principais elementos do behaviorismo? Então, para essa teoria, uma criança é uma tábula rasa, alguém sem conhecimento, que 26 deve aprender tudo com os outros. Esse aprendizado ocorre por meio do modelo estímulo-resposta, no qual há estímulos e reforços positivos e negativos além de comportamentos imitados. O sucesso do aprendizado seria verificado pelas respostas das crianças. Os pressupostos behavioristas foram colocados em xeque pelas teorias desenvolvidas posteriormente. Você vai ver em nossa terceira aula como o racionalismo inatista questiona a ideia de que a criança é uma tábula rasa, e em nossa quarta aula como as teorias dialéticas questionam a ideia de que a criança é um sujeito passivo em seu processo de aprendizagem. A seguir, você verá como algumas situações comuns no processo de aquisição podem ser explicadas pelos pressupostos behavioristas. 2.1.2 Situações de aquisição e behaviorismo O seguinte diálogo entre mãe e filho reproduz uma cena que talvez seja familiar para você: vamos analisá-lo e fazer as devidas reflexões acerca do assunto. Diálogo I Mãe: Filho, o que você fez na escola hoje? Criança: Eu comi a merenda e fazi um desenho. Mãe: Não, filho, é fiz, não fazi. Criança: Mas eu fazi o desenho. Mãe: Eu fiz, repita EU FIZ. Criança: EU FIZ. Mãe: Então, o que você fez? Criança: Eu fazi... (a mãe balança a cabeça negativamente) eu fiz um desenho. Mãe: Muito bem! Fonte: elaborado pelo autor (2019), adaptado pelo DI (2019). 27 Reflita O que você acha que levou a criança a falar “fazi” (variedade coloquial), ao invés do uso da palavra (fiz), conforme a norma padrão? É familiar para você esse tipo de diálogo? E uma criança falar “fazi” em vez de “fiz”? É bastante comum esse tipo de construção nas falas das crianças em estágio de aquisição. No entanto, provavelmente, ela não ouviu nenhum adulto falar ou ensinar a falar “fazi”, ou seja, não recebeu nenhum estímulo para falar isso. Então, como ela produziu a forma “fazi” se não teve nenhum estímulo para isso? Uma saída que os pesquisadores behavioristas utilizam para explicar isso é prever uma capacidade de generalização que os seres humanos têm. Assim, como falamos “comi”, “movi”, “vi”, então pareceria adequado falar “fazi”. Parece muito plausível dizer que a criança tem capacidade de fazer generalizações, e a maioria das teorias concordam com isso. No entanto, essa capacidade de generalização deveria existir, logicamente, antes da aquisição da linguagem, já que é utilizada durante o processo de aquisição. Então, a capacidade de generalização seria uma das primeiras habilidades adquiridas (com base no estímulo-resposta), ou uma habilidade inata dentro do conjunto de habilidades inatas básicas que toda teoria de aquisição da linguagem admite: habilidades gerais que permitem o aprendizado. Explicar a origem da habilidade de fazer generalizações, no entanto, não é uma preocupação central dos behavioristas e, por isso, fica em aberto. Voltando ao diálogo, percebemos que a criança produz uma forma agramatical no português, ou seja, uma forma que não pertence à língua. A mãe a corrige, o que pode ser considerado um estímulo negativo (para que a produção errada da criança não seja mais repetida). Depois de a criança repetir aquela forma, a mãe pronuncia a forma que a criança deve falar, esperando que ela repita (imitação, conforme prevista pelo behaviorismo, que é composta, na verdade, por um estímulo seguido de uma resposta igual). Como ainda não foi28 observada a resposta adequada, a mãe reforçou o estímulo negativo, agora com um balançar da cabeça em sinal de desaprovação. Depois de tudo isso, a criança finalmente deu a resposta esperada, o que fez a mãe lhe dar um estímulo positivo em forma de elogio, para que a criança mantenha comportamento linguístico. A seguir, vamos considerar outras duas situações, em que os seguintes diálogos, mencionados por Grolla e Silva (2014, p. 45), ocorrem envolvendo uma criança de três anos e um mês: Diálogo II Criança: Eu fez xixi cocô! Mãe: Muito bem, meu amor! Muito bem! e Criança: Cobra! É uma cobra! Mãe: Não, filho, não é. Fonte: elaborado pelo autor (2019), adaptado pelo DI (2019). No primeiro diálogo, a mãe emite elogios, ou seja, estímulos positivos, já que a criança se comporta como esperado. Porém, veja que a sentença da criança tem problemas: falta a conjunção coordenativa “e” e o verbo “fez” deveria concordar com a primeira pessoa (“eu fiz”). A criança, então, depois de ter um comportamento linguístico inadequado (o behaviorismo considera as respostas das crianças como “comportamentos”, por isso o nome “comportamentalismo”), ou seja, depois de produzir uma sentença com problemas, recebe um estímulo positivo, o que parece contraditório. Será que ela vai continuar repetindo esses tipos de problemas (falta de conjunções coordenativas e de concordância na primeira pessoa)? Na verdade, é muito comum as crianças nessa idade produzirem sentenças desse tipo, e nenhuma continua produzindo depois de algum tempo. Fica em aberto uma questão: como um estímulo positivo depois de um erro não impede que a criança se corrija naturalmente com o passar dos estágios em seu desenvolvimento? 29 Curiosidade Quais as consequências que os estímulos, positivos ou negativos, podem ter na aquisição da linguagem? Já o outro diálogo apresenta um caso oposto: a criança produz uma sentença perfeita em português, mas recebe um estímulo negativo. Novamente fica uma pergunta em aberto: depois do estímulo negativo, por que a criança não deixa de produzir sentenças adequadas desse tipo? Você pode pensar: ora, os casos mencionados são de estímulos referentes ao comportamento ou ao conhecimento não linguístico das crianças, então não haveria motivo do comportamento linguístico delas ser alterado. Isso está parcialmente certo, mas veja que, apesar dos estímulos não serem direcionados para as produções linguísticas, essas produções linguísticas ocorrem de modo adequado ou não. Se elas ocorrem, e a mãe ignora as suas formas, como a criança acaba adquirindo sua língua materna do mesmo modo, no mesmo tempo das demais? Perceba que os pais, geralmente, estão muito mais preocupados em educar seus filhos (como nos dois últimos diálogos) do que ensinar uma língua. Há, então, uma falta de sistematicidade de estímulos direcionados ao comportamento linguístico, que faz a aquisição bem-sucedida ser um “mistério”. 2.2.1 Conexionismo Como já foi dito, o conexionismo é uma abordagem muito mais recente. Por não ter tanta importância histórica nem tantos resultados como o behaviorismo, não iremos nos estender muito nela, apesar de ser importante ter uma noção sobre essa que é uma das principais teorias em desenvolvimento. O conexionismo não considera muito relevante a participação ativa da mente no processo de aquisição, mas propõe que o cérebro, com suas redes 30 neurais, tem um papel relevante no processo de aprendizado (um papel mais de “localidade” do aprendizado do que como algo ativo). As experiências acionam essas redes neurais, mas a aquisição de uma habilidade não ocorre por meio de estímulo-resposta. Ocorre, na verdade, nas interconexões neurais. Isso significa que toda a aquisição é processada de modo físico e internamente ao cérebro. Seria tudo uma questão de relações entre neurônios ativadas durante as experiências da criança. Redes neurais Fonte: freepik https://br.freepik.com/fotos-premium/renderizacao-3d-do-cerebro-humano-em-fundo-de-tecnolo gia_3356859.htm O conexionismo propõe uma abordagem bem ampla, que não tenta apenas explicar a aquisição da linguagem, mas também toda a aquisição de conhecimentos e todas as habilidades intelectuais (algo parecido com o que a proposta behaviorista propõe), o que ocorreria por um mesmo tipo de mecanismo, uma espécie de inteligência geral, baseada nas redes neurais. As redes neurais com que a abordagem conexionista trabalha, na verdade, têm base em redes artificiais. Tais redes visam explicar como as habilidades 31 intelectuais humanas são processadas e adquiridas, mas, por serem artificiais, não há garantia nenhuma de que as observações dos conexionistas correspondem, de fato, ao que acontece no cérebro humano. O que há são postulações e especulações de correspondências com a inteligência humana, ou seja, os conexionistas costumam simular o que ocorreria no cérebro humano, mas sem precisar analisar diretamente o cérebro. Em uma rede neural (artificial ou não), há dados de entrada (inputs) e de saída (output). Entre os inputs e os outputs ocorre o processamento responsável pela aquisição de uma determinada habilidade intelectual (como a linguagem). Já mencionamos os inputs e os outputs em nossa primeira aula, mas agora podemos fazer uma relação entre esses conceitos com o que o behaviorismo propõe: os inputs corresponderiam aproximadamente aos estímulos, ao passo que os outputs corresponderiam aproximadamente às respostas. A grande diferença é que o conexionismo se preocupa mais com o processamento que transforma um input em um output; já o behaviorismo não atribui ao cérebro/mente muita importância. Vale notar, ainda, que, para o conexionismo, o cérebro como organismo físico tem sua importância direta, pois as redes neurais corresponderiam às interconexões fisicamente realizáveis. Essas redes neurais corresponderiam às conexões sinápticas entre os neurônios do cérebro. Contudo, em vez de os conexionistas trabalharem com os conceitos de “neurônio” e “sinapse”, trabalham com os conceitos mais gerais, de “nós” e “redes”. Um neurônio seria uma espécie de nó, um elemento com uma determinada localização em uma rede de interconexões promovidas pelas sinapses. A informação que está na rede, isto é, nas sinapses, é oculta, ao passo que as informações dos inputs e dos outputs são as únicas não ocultas. Vocabulário Conexões sinápticas: são como as informações são passadas de um neurônio para outro, por meio das “sinapses”, regiões localizadas entre os neurônios por onde passa o fluxo de informação. 32 O conexionismo rejeita, de modo mais direto do que o behaviorismo, a ideia de que o cérebro/mente é modular, com cada parte desempenhando uma função específica. Nesse sentido, não haveria um módulo para linguagem, outro para a memória, outro para habilidades espaciais etc. Como uma espécie de inteligência geral é um pressuposto, e o processamento entre o input e o output é responsável pela construção de uma determinada habilidade intelectual, é possível dizer que essa proposta teórica busca descrever o sistema cognitivo (sistema do cérebro/mente) como se fosse um computador. Geralmente usamos a comparação entre o cérebro/mente com um computador para entendermos que a parte do cérebro corresponde ao hardware e a parte da mente, ao software. Porém, o conexionismo leva essa comparação além, a ponto de afirmar que aprendemos tudo da mesma maneira, como um computador, sem distinção se o que aprendemos é uma língua,uma habilidade musical, uma habilidade matemática, uma informação a ser armazenada na memória etc. Vamos, agora, ver mais diretamente como a questão do aprendizado (sem fazer distinção com o conceito de “aquisição”, já que, internamente ao cérebro, aconteceria uma mesma coisa) é considerada pelo conexionismo. 2.2.2 Conexionismo e aprendizado Aprender, para o conexionismo, é modicar as conexões sinápticas. Perceba, então, que aprender tem relação direta com o que acontece no “computador” humano, o cérebro/mente. Nesse sentido, seria bem diferente do que o behaviorismo considera por “aprender”, que seria a verificação de uma resposta adequada a um estímulo. Enquanto uma abordagem teórica tem como foco o comportamento, a outra tem o processamento neural. As conexões sinápticas (ou redes neurais), ao passo que aprendem, reforçam as conexões. Isso ocorre de acordo com as repetições das 33 experiências. Em outros termos, quanto mais as experiências são repetidas, mais algo é aprendido, isto é, mais as conexões das redes neurais (onde o conhecimento ou habilidade realmente estariam) são reforçadas. Já o conhecimento linguístico, para o conexionismo, é fruto de vários processamentos mentais, como o de informações auditivas, de habilidades motoras e articulatórias, da habilidade de generalização etc. Isso significa que o conhecimento linguístico não seria processado na rede neural de um modo específico, mas, sim, emergiria de vários tipos de processamento. Os conhecimentos linguísticos surgiriam, então, depois de um cruzamento de processamentos, o que inclui generalizações e análises estatísticas. Sim, a rede neural humana, hipoteticamente, aprenderia parte de nosso conhecimento linguístico fazendo análises estatísticas, de modo semelhante a um computador. Isso parece requerer uma grande quantidade de dados sistemáticos de input. No começo do aprendizado de uma língua materna, as conexões neurais, na visão conexionista, são ativadas com mais intensidade. Com as repetições que fazem parte do input, essas ativações vão se estabilizando até que uma determinada conexão fique estruturada e seja expressa rápida e facilmente no output. Já no aprendizado de uma segunda língua, há a influência do que a criança já sabe, ou seja, a língua materna. Assim, é preciso certo esforço de repetições para provocar novas conexões neurais, sendo que essas novas conexões utilizam, por algum tempo, as já existentes (em outros termos, utilizam o conhecimento da língua materna). Por algum tempo, essa utilização das conexões existentes para a língua materna continua a existir até que, depois de várias repetições e de vários inputs, as novas conexões se estruturam finalmente, e o indivíduo passa a utilizar uma segunda língua sem recorrer à sua língua materna. Isso explica, pelo menos parcialmente, porque é mais difícil aprender uma segunda língua. Ora, se para criar as conexões neurais de uma segunda língua o cérebro/mente utiliza as conexões que já existem, até que, com muito esforço, pare de utilizar essas conexões pré-existente, criar as conexões neurais para uma primeira língua seria muito mais fácil, já que não haveria nada antes nas conexões neurais relacionado a conhecimentos linguísticos e, assim, um 34 conhecimento novo não precisaria ser atrelado a nada. Esse conhecimento de uma língua materna seria diretamente associado às novas conexões neurais, sem intermédios. Mas nem tudo está totalmente explicado. Ainda fica a pergunta: por que, depois do estágio crítico de aquisição, o sujeito que aprende uma segunda língua nunca adquire proficiência como a de um falante nativo, já que bastaria esforço correspondente a repetições e ao processamento constante de inputs? Há outras questões pendentes que o conexionismo ainda não consegue responder. Por exemplo: Reflita Como explicar que um ser humano consegue produzir sentenças diferentes daquelas presentes nos inputs? Como diferentes crianças aprendem uma mesma língua materna, em períodos de tempos aproximados, mesmo com tantos inputs diferentes e não sistemáticos? Mas, há muito ainda o que pesquisar na perspectiva conexionista para que, talvez, essas perguntas sejam respondidas. Porém, algumas respostas para essas perguntas já foram sugeridas por outras teorias. Dentre as duas teorias que estamos analisando, elas também se assemelham no que diz respeito à importância das informações recebidas e das informações expressas por um sujeito. Porém, enquanto o behaviorismo trabalha com essas informações de acordo com estímulos e respostas, o conexionismo trabalha com elas de acordo com inputs e outputs. Mas a diferença fundamental entre as duas teorias é que, para o behaviorismo, o que importa são as repostas aos estímulos, e para o conexionismo, o que mais importa não são as informações visíveis (do input e do output), mas o que está entre elas nas redes neurais. Assim, uma teoria 35 descarta o papel de mecanismos internos ao cérebro/mente; já a outra centraliza sua preocupação nesses mecanismos. Entender os principais pressupostos de ambas as teorias pode auxiliar você a perceber a importância da qualidade dos estímulos (ou dos inputs) que a criança recebe ou deve receber. Também pode fazer você pensar na importância das repetições para que um conhecimento seja assimilado. Por outro lado, esses são apenas alguns elementos relevantes no processo de aquisição da linguagem. Conhecer outros, discutidos no contexto de outras teorias, vai ser fundamental para que você tenha uma percepção ampla das discussões sobre esse processo. Conclusão da aula 2 Podemos, então, retomar algumas coisas que você aprendeu nesta aula, possivelmente nunca imaginadas por você. Duas teorias; o behaviorismo e o conexionismo, com importâncias históricas bem diferentes, compartilham alguns pressupostos empiristas, como a importância das experiências para a aquisição. De certa forma, ninguém nega que as experiências são importantes, mas apenas uma teoria empirista considera essa importância central. Atividade de Aprendizagem 1. Analise algumas produções linguísticas de uma ou mais crianças (ou seja, o que elas falam ou, no caso de línguas de sinais, sinalizam) de até os três anos de idade tentando anotar erros que elas cometem. Tente explicar por que cada erro anotado é cometido. Observe, em sua tentativa de explicação, se os erros são cometidos por dificuldade na articulação de palavras, por generalizações inadequadas ou por falta de estímulos ou inputs adequados. Lembre-se de que por “erro” estamos chamando produções linguísticas que não fazem parte da língua materna, não produções linguísticas que não estão em acordo com a norma culta, mas são produzidas por adultos (dica: se nenhum adulto utiliza a sério ou reconhece como correta a expressão, então ela provavelmente está errada). 36 2. Pensando nos mesmos casos anotados na primeira atividade, descreva possíveis maneiras para que os erros das crianças sejam corrigidos. Aula 3 – Racionalismo e aquisição de linguagem Apresentação da aula 3 Olá! Seja bem-vindo a nossa terceira aula da disciplina Teorias de aquisição de linguagem. Nesta aula você conhecerá os pressupostos de uma das correntes teóricas mais importantes para a linguística e para o estudante de Letras: o racionalismo. A abordagem teórica que mais representa essa corrente é a que chamamos de “Teoria da Gramática Universal”. Questões sobre a aquisição da linguagem interessam diretamente a essa teoria. Por isso, conhecê- la permitirá que vocêreflita sobre questões específicas da aquisição da linguagem fora de uma abordagem genérica que considera a aquisição de todas as habilidades intelectuais humanas da mesma maneira. Vamos começar? 3.1 Introdução à Teoria da Gramática Universal A Teoria da Gramática Universal despontou como um programa teórico capaz de elucidar algumas questões sobre a aquisição da linguagem, por volta da década de 1950. Naquele período, o modelo teórico dominante era o behaviorista. Imagine um contexto em que um modelo teórico domina os estudos sobre algo (aquisição/aprendizado) e aparece outro modelo teórico que lhe faz uma crítica direta. É isso que aconteceu naquele período. Esse embate entre teorias foi colocado pelo principal proponente da Teoria da Gramática Universal, Noam Chomsky. 37 Chomsky, em um artigo de 1959, faz uma crítica ao livro “Comportamento verbal”, de Skinner. Nessa crítica, o autor aponta alguns problemas do behaviorismo que fizeram essa linha teórica diminuir drasticamente sua influência para os estudos linguísticos. A partir de então, a Teoria da Gramática Universal passa a assumir grande parte da influência em relação às pesquisas na área da linguística e da aquisição da linguagem. Apesar disso, alguns estudantes têm dificuldade em compreender a proposta teórica de Chomsky, o que pode ser explicado por três motivos: a quantidade de pesquisas na área dessa linha teórica é relativamente alta, o que é difícil de acompanhar; alguns conceitos com que a área trabalha podem parecer muito difíceis (mas, acredite, não são mais difíceis do que os conceitos de outras teorias), ainda mais porque se atualizaram algumas vezes e ainda se atualizam; por fim, alguns pressupostos não parecem evidentes em uma impressão inicial, o que pode fazer alguns não investigarem seus argumentos a fundo. Por outro lado, como você vai notar, o tipo de abordagem teórica que será aqui apresentado pode ser fascinante. Não é à toa que a qualidade da argumentação e o número de pesquisas na área fizeram dela uma espécie de paradigma, ou seja, um modelo teórico e de análise seguido em diversos centros de pesquisa pelo mundo. 3.2 Teoria da Gramática Universal e inatismo Umas das principais críticas por parte dos pesquisadores em Teoria da Gramática Universal ao behaviorismo (e a outras propostas com o mesmo pressuposto) é que não seria possível a criança nascer como uma tábula rasa. Ela teria que nascer com um aparato mental específico para que adquira uma língua. É por pressupor isso que a proposta é inatista. Como você já aprendeu, todas as teorias aqui trabalhadas são, de certo ponto de vista, inatistas, mas nem todas são chamadas assim. Isso ocorre porque apenas uma teoria (das trabalhadas por nós) considera o que é inato central e pressupõe que haja algo inato especializado no processamento da linguagem, o que a faz ser essencialmente inatista. 38 A ideia básica é que o ser humano nasce com uma capacidade linguística, e as línguas naturais (português, inglês, libras etc.), que surgem nas comunidades de falantes, seguem as restrições e as regras dessa capacidade inata. Para o programa teórico em questão, o nível linguístico da sintaxe seria estruturante para a linguagem e disponibilizaria muitas evidências para o argumento inatista. Pensando um pouco sobre a sintaxe, podemos recuperar um pressuposto básico da teoria, que é de que a linguagem humana permite gerar infinitas sentenças seguindo finitas regras. Em outras palavras, você pode produzir várias sentenças inéditas, porque a linguagem humana permite isso, mas as regras para a geração dessas sentenças não são infinitas. Em razão desse pressuposto, de que há um conjunto limitado de regras que permitem a geração de infinitas sentenças, a teoria passou a ser chamada também de “gerativismo” (em razão da ideia de “gerar”). Isso é fácil de perceber. Imagine que você tenha que contar a história de um filme várias vezes, sem ler nem decorar nada. Obviamente, você usaria sentenças diferentes toda a vez que contasse a história, com palavras diferentes e/ou com as mesmas palavras em ordens diferentes. Provavelmente, algumas das sentenças que você usaria seriam totalmente novas. Isso ocorreria porque há a possibilidade de produzir infinitas sentenças, o que tornaria a produção das mesmas sentenças algo muito improvável em termos probabilísticos. Outra maneira de perceber isso é quando alguém copia um texto de outra pessoa fingindo ser o autor (o que é crime, conhecido como “plágio”). Se nossa linguagem nos permite produzir infinitas sentenças, seria muito difícil duas pessoas terem produzido uma mesma sentença complexa sobre um mesmo assunto (mas, por uma grande coincidência, isso até pode ocorrer). Agora imagine o quão difícil é essas duas pessoas terem escrito duas sentenças complexas iguais, e na mesma ordem (uma sentença seguida de outra). Imagine, ainda, o quão mais difícil seria uma sequência de três ou quatro sentenças iguais, formando um parágrafo. Ora, se houver uma sequência igual assim e o plagiador negar o plágio, alegando “coincidência”, você terá um embasamento para dizer que essa “coincidência” é extremamente improvável (não seria se o conjunto possível de sentenças não fosse infinita). Muitos alunos, em sua ingenuidade, copiam trechos de textos escritos achando que irão convencer pelo 39 argumento da “coincidência”, mas um professor ou professora com embasamento jamais seria enganado. Essa habilidade de gerar infinitas sentenças é mencionada como o “argumento da criatividade”. Tal argumento se refere simplesmente a essa habilidade de gerar infinitas sentenças. E seria essa habilidade que diferenciaria nossa linguagem da linguagem dos outros animais. Você pode perceber que os outros animais, de várias maneiras, até conseguem se comunicar, mas nunca de modo criativo, ou seja, sempre utilizam os mesmos padrões de expressão para comunicar as mesmas mensagens. Por exemplo, só há um jeito de um cachorro expressar que está contente, que é abanando a calda; não há como ele ser criativo para expressar isso. Então, se o ser humano possui uma linguagem única, que lhe permite expressar infinitas mensagens de infinitas formas, seria essa linguagem determinada por algum mecanismo biológico especificamente humano. Não importa a cultura, se está isolada ou não das outras ou se é uma cultura humana, então ela utilizará uma linguagem com essa propriedade. E se basta que a cultura seja humana para isso, então deve haver algo da natureza humana que permita esse tipo de linguagem, algo que deve ser, portanto, inato. Você já deve estar começando a entender a justificativa para o inatismo da teoria gerativista. Há, evidentemente, muitos outros argumentos. Entretanto, para entendê-los é preciso antes ter uma noção melhor de como a teoria se estrutura. É isso que veremos a seguir. 3.3 Princípios da teoria Quando a Teoria da Gramática Universal ganhou corpo durante as décadas de 1960 e 1970, os pesquisadores buscavam descrever o que as línguas no mundo tinham em comum. O objetivo era chegar a uma descrição formal de regras gerais e universais. Desse modo, houve várias mudanças no modelo teórico para que as descrições propostas pudessem se adequar a novos dados que os pesquisadores coletavam. Assim, diversas regras universais foram 40 descritas nessa primeira fase do desenvolvimento da teoria. Não veremos essas regras aqui porque muitas delas são estudas na disciplina de sintaxe. Saiba mais Caso você queira estudar mais sobre as regras sintáticas que têmcomo base essa teoria, uma boa sugestão é a obra Novo manual de sintaxe, dos autores Carlos Mioto, Cristina Figueiredo Silva e Ruth Lopes. Depois dessa primeira fase, a partir da década de 1980, as regras da Gramática Universal (que eram regras gerativas) passaram a ser vistas para uma concepção chamada de “princípios e parâmetros”. Essa concepção consiste em propor que a Gramática Universal seria composta por princípios universais. Esses princípios definiriam alguns parâmetros de variação, sendo que tais parâmetros não seriam universais. Por exemplo, há um princípio universal que prediz que as línguas têm sentenças com sujeito gramatical, porém, em algumas línguas esse sujeito sempre precisa ser expresso, como em inglês, e em outras, não, como em português. O que varia de uma língua para outra, em termos de suas estruturações, portanto, são os parâmetros. O que não varia são os princípios. No momento da aquisição de sua língua materna, o papel do cérebro/mente da criança seria, nessa concepção, fixar um dado parâmetro. Ela já nasceria com os princípios gerais (de que há sujeitos gramaticais, por exemplo), mas, à medida que adquire uma língua, um dos parâmetros previstos no princípio (de que esse sujeito pode ser ocultado, por exemplo) é fixado. O modelo de princípios e parâmetros foi muito produtivo para descrever as línguas humanas, e diversas pesquisas passaram a sugerir diversas descrições cada vez mais complexas. 41 Curiosidade Atenção: o inatismo da teoria não significa que ela acredita que as línguas, como o português e o inglês, sejam inatas. Somente os princípios, presentes na Gramática Universal o são. Toda a complexidade resultante das análises feitas pelos pesquisadores gerativistas fez com que eles repensassem alguns rumos da teoria, o que os levou a uma espécie de simplificação. Isso ocorreu em grande medida porque, quanto mais simples o modelo teórico fosse (sem prejuízo para seu poder descritivo, claro), mais facilmente ele corresponderia ao funcionamento da linguagem, pois nosso cérebro/mente processa e adquire a linguagem com facilidade e rapidez. Na década de 1990, então, uma nova proposta dentro da Teoria da Gramática Universal foi colocada em prática. Tal proposta tinha como objetivo simplificar os elementos teóricos, sugerindo que as operações mentais responsáveis pelo processamento e pela aquisição da linguagem consistissem em alguns mecanismos computacionais. Por “mecanismos computacionais”, você pode entender o modo como elementos formais com significado ou informações gramaticais são “manipulados” no cérebro/mente. Tais mecanismo seriam rearranjos de elementos linguísticos que ocorreriam na medida em que nós criamos sentenças. Até aqui já é possível você ter uma dimensão do quão vasto é o conhecimento gerado por essa teoria. Contudo, iremos além em seu esclarecimento, abordando, na sequência, um dos principais argumentos de sua proposta: o argumento da pobreza do estímulo. 42 3.4 O argumento da pobreza do estímulo Uma questão que sempre intrigou os pesquisadores em aquisição da linguagem, expressa de maneira clara pelos pesquisadores gerativistas, é: como uma criança adquire um sistema de linguagem tão complexo sem passar por um ensino formal? Há várias regras complexas que regem as línguas, e as que os linguistas já descobriram estão em trabalhos que ocupariam o espaço de algumas bibliotecas. Por exemplo, imagine os dois diálogos a seguir entre uma mãe e uma criança de três anos. Diálogo III Primeiro diálogo: Mãe: Filho, o que você fez no seu quarto? Criança: Eu guardei o brinquedo. Segundo diálogo: Mãe: Filho, o que você fez com o brinquedo? Criança: O brinquedo, eu guardei. Fonte: elaborado pelo autor (2019), adaptado pelo DI (2019). Perceba que, no primeiro diálogo, a criança utiliza a ordem mais comum dos elementos da sentença em português: sujeito + verbo + objeto. No segundo diálogo, a criança produz uma outra sentença com os mesmos elementos e as mesmas palavras. Nesse segundo diálogo, ela desloca o objeto gramatical para antes do sujeito. Se você parar para pensar, vai perceber que essa é uma habilidade complexa. Para fazer isso, a criança tem que saber que as palavras “o brinquedo” formam uma sequência que pode ser deslocada em uma sentença. Para identificar que essa sequência pode ser deslocada, ela precisa saber que as palavras presentes nela formam “uma coisa só” na sentença (um constituinte sintático) correspondente ao complemento do verbo. Sabendo que essas palavras formam um constituinte, a criança tem que saber que não pode deslocar 43 apenas uma parte dele (ou seja, não pode produzir uma sentença do tipo *“o, eu guardei brinquedo” – o asterisco indica que a sentença é agramatical, ou seja, infringe as regras da língua). Tudo isso a criança sabe apenas para produzir uma sentença! Agora, imagine todo o conhecimento que uma criança precisa para produzir todas as outras sentenças que produz. Será que o input que ela recebe tem todos os padrões de sentenças correspondentes a todos os conhecimentos que ela tem sobre a língua? Não necessariamente. Mesmo que os pais falem muito com a criança em fase de aquisição, nada garante que todos os tipos de deslocamento dentro de uma sentença, ou todos os tipos de encaixamento de partes de uma sentença em outra, são produzidos perto dela. E ainda há o fato de que alguns pais ou conhecidos adultos falam pouco perto da criança. Há casos, inclusive, de crianças que têm um contato muito pequeno com input durante o dia. Porém, todas essas crianças adquirem sua língua materna aproximadamente no mesmo período de idade. Obviamente, a criança precisa de input, mas dificilmente ela receberá um input com todos os tipos de estrutura que ela sabe produzir. Temos, então, o argumento da pobreza do input, ou o “argumento da pobreza do estímulo”. O input, muitas vezes, é incompleto, cheio de imperfeições e ruídos. Porém, a criança, em situação normal, não passa necessariamente a produzir sentenças com as mesmas imperfeições. A explicação que a Teoria da Gramática Universal sugere é a seguinte: a criança precisa de input suficiente apenas para fixar parâmetros. A possibilidade dos parâmetros já está disponível no aparato inato correspondente aos princípios. Então, basta um pouco de input para que esses parâmetros sejam fixados. A falta de qualidade do input, em termos formais, pode ainda ser percebida naquele tipo de linguagem que os pais costumam utilizar com os bebês. Esse tipo de linguagem “infantil”, chamada por muitos pesquisadores, em inglês, de “motherese” (algo como “mamanhês”, em português), pode ser mais um exemplo de como o input pode ser incompleto, mas, mesmo assim, suficiente para a aquisição de uma língua materna. A falta de organização e sistematicidade do input durante a aquisição de uma língua materna é nítida. O contrário ocorre durante a aquisição de uma língua estrangeira no ensino formal: na escola, geralmente, aprendemos uma 44 língua estrangeira começando pelo conhecimento de alguns substantivos, depois tendo contato com alguns verbos, depois com a junção de alguns verbos com substantivos, e assim por diante, de modo organizado. Com os parâmetros fixados de uma língua materna, é útil um input sistematizado para que seja mais fácil aprender uma língua estrangeira. Voltando para a aquisição de língua materna, uma metáfora criada por Chomsky, muito usada pelos pesquisadores gerativistas,
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