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1ELA É LOUCA 2 CACIANO KUFFEL Agradeço a você que sempre acredita no meu trabalho, que entende minhas mensagens e que sente minhas cócegas no coração. Agradeço a minha mãe por desde pequeno me incentivar o hábito da leitura, me comprando gibis mesmo sem muitas condições. Agradeço meu pai pela luta em me fazer alguém melhor. Agradeço meus amigos Léo e Sol que me ajudaram não só com ideias, mas com direcionamentos práticos com o livro. Por fim, agradeço a Andressa, minha namorada, por me aguentar em meio a surtos de amor, e loucuras de trabalho. Para continuar me acompanhando e descobrir se o livro ga- nhará continuação se inscreva no meu canal do youtube: CacianoComC Grupo Whatsapp http://abre.ai/whatscacihttp://abre.ai/cacianocomc ELA É LOUCA Sumário 1. Bom, deixa eu me apresentar pra você..................................... 6 2. Minha melhor amiga.......................................................................9 3. O trabalho..........................................................................................11 4. Olha o que o amor te faz.............................................................. 14 5. Luz dos olhos................................................................................. 20 6. Reencontro.....................................................................................23 7. Histórias..........................................................................................28 8. Mudanças........................................................................................ 31 9. Difícil................................................................................................ 36 10. Gente babaca............................................................................... 42 11. A vida é bela.................................................................................. 46 12. Mais difícil......................................................................................49 13. Ela é louca.................................................................................... 54 14. Sem forças................................................................................... 57 15. A verdade....................................................................................... 61 16. Mar de decepção......................................................................... 66 17. Sem saída...................................................................................... 69 18. Eu vos declaro adulta................................................................ 75 4 CACIANO KUFFEL 19. Samantha e Amanda................................................................. 78 20. A vida como ela é....................................................................... 85 21. Exposição......................................................................................89 22. A salvação....................................................................................93 23. E agora, tudo melhora?.............................................................98 24. O amor de novo.......................................................................... 102 25. Felicidade....................................................................................105 26. O caminho.....................................................................................110 27. Bem, eu fui....................................................................................112 28. Louca, maluca, pirada, doida e decidida..............................114 29. O fim do mundo............................................................................118 30. O e-mail........................................................................................123 5ELA É LOUCA E se eu te contasse que sou louca? Eu gosto de ser assim. Todo mundo que já passou pela minha vida, em al- gum momento, já me chamou de louca, pirada, maluca. É verdade. Mas ainda assim acho uma loucura amar; e esse é o meu hospício, acreditar nas pessoas e no amor. Hoje eu sou inteira, hoje eu me amo, hoje já não choro mais por quem não merece. Isto depois de tudo que eu já passei, depois da maior história da minha vida, mas nem sempre fui assim. Há alguns anos você não me reconheceria. Eu era tí- mida, quieta, preocupada, quase invisível, e vivia me colo- cando em situações constrangedoras. Lembro de uma dia em que corria atrás do carro do meu pai, que tinha passado por mim e não parado. Eu não tinha entendido o porquê de ele simplesmente não desacelerar. Então, enquanto ainda corria, ouvi uma buzina e um grito de “filha” atrás de mim. Sim, eu havia corrido desesperada, gritando e deixando tudo cair pelo chão atrás de um carro que não era do meu pai. A partir daí virei alvo de zoação nos jantares de família por conta disto. Eu costumava passar por alguns constran- gimentos desse jeito. Só dessas vergonhas daria um livro, juro. Em uma cirurgia de cauterização de uma pinta em meu pescoço, resolvi alertar o médico sobre o cheiro que es- tava sentindo de galinha frita. Sim, todos na sala riram pois o único cheiro ali era da minha pinta sendo cauterizada. Já conseguiu imaginar uma sala inteira rindo da sua cara? 6 CACIANO KUFFEL 11Bom, pra você eixa eumeapresentar d Eu não sou uma profissão ou um lugar, eu não sou um nome nem uma data, não sou de onde vim, sou muito mais para onde vou, não sou o que disse, nem o que visto, sou muito mais complexa que tudo isso “ ”“Ela é totalmente pirada, vive em seu mundo de fantasias, Sua energia irradia alegria, mesmo nos dias em que não queria Ela é atrapalhada vive esbarrando no nada E aí quando viu está de novo toda machucada Ela tem um olhar doce mas mesmo assim é forte E só quem conhece ela de verdade sabe o que é sorte” 7ELA É LOUCA Eu nasci numa cidade não muito grande. Nunca me dei muito bem com as outras pessoas desde a pré escola. Acabava brincando sozinha inúmeras vezes, não era a mais inteligente da turma, também não era a pior. Sempre fiquei, tipo, na média. Na infância ainda não tinha descoberto mi- nha maior qualidade, essa loucura, que modéstia à parte faz as pessoas ficarem a fim de me conhecer. Sofri por muito tempo me achando a patinha feia, a excluída, sabia que era diferente, mas não sabia como. Na adolescência, sofri ainda mais por me achar es- tranha, desengonçada e nunca achava que estava realmente bonita. Eu acreditava que isso distinguia uma pessoa inte- ressante das demais. Sempre gostei de rir alto. Mesmo às vezes chorando totalmente sem motivo, sempre procurei viver coisas ale- gres, momentos felizes. Me dava ao luxo de não fazer nada várias vezes, gostava de ler de tudo, menos o que a escola pedia, aquilo sempre foi um saco. Passava tempo ouvindo música e me imaginando nas histórias que a música con- tava, decorava as letras com muito mais facilidade do que jamais tinha decorado qualquer fórmula matemática. Desde de criança sempre sonhei muito. Queria ser atriz, chef de cozinha, empresária, médica, advogada, mas meu maior sonho sempre foi o amor, sei lá porquê, sonhava demais em casar. Viver num castelo com um príncipe en- 8 CACIANO KUFFEL cantado, sonhava em ter filhos, sonhava, claro, com um final feliz como no filmes de comédia romântica. Nunca admiti porque sempre achei bobo uma mu- lher viver achando que a felicidade dependia de outra pes- soa. Mas, internamente, eu era esse ser bobo que chora com as propagandas de final do ano do Boticário. Me considero uma menina doce, mas vou de doce a puta da vida em menos de dez segundos. Me acho inteligen- te para as minhas coisas, mas não gosto de pensar demais. Apesar de falarem que sou bonita, nunca me vi assim. Sou um poço de contradições. Minha cabeça, assim como meu armário, vive uma bagunça, um caos completo. Era comple- tamente difícil eu me encaixar em algum grupo ou em al- gum lugar. Estava sempre distante tentando adivinhar qual seria o meu futuro, quandoencontraria minha verdadeira vocação, e em qual encruzilhada da vida estaria minha ver- dadeira paixão. Meus pais sempre diziam que eu era teimosa demais, atrapalhada demais, e eu sempre dizia que não era nenhuma das duas coisas, enquanto batia o dedo na quina da mesa. Eles sempre se perguntaram porque eu não tinha muitos amigos. Bom, não era fácil para eu me abrir total- mente com as pessoas; por isso mantinha só uma melhor amiga que contava tudo. Sempre fomos totalmente confi- dentes, só com ela me sentia totalmente à vontade de ser louca de verdade. Só ela e meus poemas rabiscados me co- nheciam naquela época. 9ELA É LOUCA 22Minmelhorha amiga Amizade forte mesmo é aquela que te pega pela mão e fala: Vamos fazer essa burrada juntas!“ ” Amizade vem da confiança Fica forte se nasce ainda criança Amizade é entender que vocês podem discordar Mas estar junto quando a outra precisar Amizade é encobrir o erro É dar a mão na hora do desespero Amizade é apontar quando o outro não está certo E mesmo distante ter o outro sempre perto 10 CACIANO KUFFEL Ariel era o oposto de mim, totalmente centrada, or- ganizada, sempre arrumada e com a autoestima elevada. Não era muito expansiva, mas se dava bem com as pessoas a sua volta, desde criança sabia que seria médica. Acredita nisso? Uma vida inteira de certezas, que sonho. Ela tinha escolhido a profissão pela paixão que via nos olhos da mãe, que também escolhera a área da saúde. Ariel era uma ótima aluna, exceto em português. No restante das matérias só ti- rava notas altas, não tinha problema em falar em público, os meninos desde sempre gostavam do seu jeito e ela sempre os teve na mão. Ela não era a mais bela, mas se sentia assim e isso fazia toda a diferença. Quando chegou na escola nova com seus oito anos de idade, um menino riu dela por estar com uma gola da camisa pra cima e outra pra baixo, e ela começou rir mais alto. Quando teve a atenção de todos, explicou o que o me- nino não sabia, era moda. Lady Gaga tinha um clipe assim, e convenceu ele; e algumas meninas no mesmo dia adotaram a moda da aluna nova. Acredita nisso? Pois é, essa sempre foi Ariel. Ficamos amigas quando ela precisou de ajuda com português. Ela era nova e ainda escrevia “agente” tudo jun- to, e isso me fez perguntar a ela se o texto seria sobre algum agente secreto, nós duas rimos demais e isso foi o que deu início a nossa amizade. 11ELA É LOUCA 33 O trabalho Se você quer ter dinheiro trabalhe, se quer ter sucesso faça o que mais ama“ ” Você já se sentiu perdida? Sem saber pra que lado vai andar a sua vida? Você entra no modo aleatório, no modo abstrato E se vê correndo em uma roda de ratos Mas acho que está tudo bem, não precisamos pirar Às vezes, é necessário se perder para poder se encontrar Precisamos aprender e entender Que esse é o jeito que lá na frente nos fará vencer 12 CACIANO KUFFEL Quando chegamos na fase de decidir a faculdade, começamos a fazer cursinho pré-vestibular, A Ariel estava focada na medicina, e eu estava ainda decidindo o que seria da minha vida. Meus pais sempre me deram apoio financeiro, mas era diferente para Ariel. Para ter dinheiro para comprar “brusinha” e maquiagem, eu entrei num emprego de meio período em uma loja que vendia coisas para celulares no shopping. Capinhas, carregadores, película, enfim você já deve ter visto uma assim. Primeiro ela começou lá, depois ela convenceu o dono a me colocar no emprego também. No primeiro dia, eu cheguei atrasada. A Ariel pediu se corri atrás do ônibus errado, piadinha que roubou do meu pai. No trabalho, ficávamos eu, a Ariel e um menino que era despretensiosamente engraçado, o Robson. Ele falava rápido demais e muitas vezes as palavras não saiam direito de sua boca, o que fazia a gente pedir pra ele repetir o tempo todo o que ele tinha falado. Ele era o estereótipo do nerd: Cabelo liso com um excesso de gel, óculos fundo de garrafa, e seu assunto preferido era os filmes de super herói. Ele era gentil, nos chamava de mulheres maravilha. Na minha pri- meira semana, eu vi ele chorando, e fui meio sem jeito pedir o que havia acontecido. Fiquei com medo de ser algo com a família, mas ele admitiu que estava lembrando do final dos Vingadores. 13ELA É LOUCA Nossos dias costumavam ser monótonos na loja, mas uma vez uma mulher entrou na loja querendo capinha para o seu telefone fixo. Exatamente. Para o seu telefone fixo. Ten- tamos explicar pra ela que não tinha o porquê, mas ela saiu chateada da loja porque Ariel não conteve o riso. Naquele dia ainda Robson engasgou com o lanche que tinha pedido, e acabou vomitando atrás do caixa. 14 CACIANO KUFFEL 44 Olh faz aoqueoamor te Te deixa sem saber como agir oh ohhh“ ” 15ELA É LOUCA Oi, eu sou amor Não vai embora, me ouve por favor Você diz que eu te fiz sofrer Mas deixa eu contar algo sobre mim pra você Eu, o amor, posso, às vezes, te causar dor ou algum mal Mas eu sou a única coisa Você só pode me sentir verdadeiramente se um dia me perdeu É como dormir depois de ficar com sono, comer depois de muita fome, assim sou eu Você realmente sente na minha ausência Eu sou o amor, sou puro, sou singelo mas também sou intenso, sou a indecência Te peço desculpa se te fiz não dormir, se causei ansiedade, não era minha intenção Era só pra eu ter te feito cócegas no coração Se você já teve a honra de me sentir Sabe que é diferente o jeito que eu te faço sorrir Eu sou o amor e não tem sentido o viver sem mim Eu sou o amor e é assim, eu sou o porquê Sou tudo que importa no fim 16 CACIANO KUFFEL Eu e a Ariel adorávamos ir num parque da cidade aos domingos, eu ainda não conseguia ser eu de verdade essa época, mas ali com ela, a gente falava de tudo. Dos meninos bonitos, das meninas mal arrumadas, dos dogs que passa- vam, foi nossa diversão por meses. Hoje eu quero contar o dia que a minha vida come- çou; essa história mudaria tudo. De longe, vi um menino rindo e conversando com um bocado de gente, ele parecia brilhar. Chamava não só minha atenção, mas todo mundo parecia olhar na mesma direção. Então a mágica aconteceu, ele me olhou, e me viu praticamente babando nele. Que vergonha. Ele riu e passou a língua pelos seus lábios, me despertando para a vida, como se eu tivesse começado a respirar naquele momento. A res- piração foi ficando mais ofegante, o coração palpitando. Ele estava caminhando e vindo em minha direção. - Disfarça! – Ariel tentou me proteger. É claro que eu não consegui disfarçar. Sorri, joguei o cabelo pro lado, me sentindo na propagando da L’Oréal. Só faltou eu falar de um jeito mal dublado “porque você vale muito”. Eu ainda finalizava meu efeito semificcional quando ele chegou: - Prazer, Flávio Ferreira, você estava me olhando? - Não, err, foi impressão sua - falei olhando pra baixo meio encabulada. - Bom, quando alguém fala o nome, é de bom grado 17ELA É LOUCA a pessoa falar o seu. - Ah, é verdade, Alice, me chamo Alice. - E, caso alguém não tenha notado, eu também estou aqui, Me chamo Ariel, e acho que tem um dog lindo ali pra eu olhar enquanto vocês conversam. Inclusive, acho que me deu vontade vomitar de tanta melação, com licença. – inter- feriu tentando fazer graça e sendo absolutamente ignorada. Nossos olhares continuavam fixos um no outro. - E então você é Alice, eu posso conhecer o País das Maravilhas? Ouvi piadas parecidas com essa minha vida inteira, nunca achei a menor graça, mas naquela hora eu até ri. - Hahaha, você quer? - Que bonitinho, seu nariz mexe quando você ri, pa- rece um coelhinho. Acredita nessa audácia? Ele me deixou envergonhada ao notar isso. - Sério? Ai meu deus. - Não se preocupe com isso, desde que traga ovos de páscoa pra mim, está tudo bem. - O que? – perguntei sem entender a piada. - Porque você é um coelhinho, entendeu? - Ah é uma piada, desculpa, eu sou meio lerda. Ariel voltava e de longe já disparou: - Ah, olha só, um show de stand-upsó pra você Alice, que legal! - Bom, Alice, eu vou ali com meus amigos que já es- tão olhando de longe. – Flávio sentenciou - Espero que vo- cês duas se juntem a nós, logo vamos começar uma partida de Imagem e Ação. Com mais pessoas fica mais divertido. - Tudo bem, a gente vai – respondi por nós. - Claro. Depois que fizermos uma reunião, colocar- 18 CACIANO KUFFEL mos tudo ata, fizermos uma votação e apurarmos os votos. – Ariel alfinetou em tom sarcástico. Depois que ele foi embora, fiquei com aquele risinho bobo, típico de quem está bobamente apaixonada. Ariel fi- cou me olhando, enquanto na minha cabeça tocava “Quan- do a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolvem se encontrar” e eu me imaginava num clipe dos anos 90. - Ai ai, atenção Houston perdemos uma tripulante! Terra chamando Alice, Terra chamando Alice – brincou Ariel. - A gente vai lá né? - Perguntei ainda boba - Claro que vai, senão tu vai acabar sonhando com o bonitinho ali pro resto da vida, e vai me culpar por não te ajudar, não quero pôr fim na nossa amizade. A gente foi lá, alguns minutos depois, segundo a Ariel era pra não parecer desesperada. Conhecemos os qua- tro amigos do Flávio: Soraia, Victoria, Anthony, e Francisco. A Soraia era uma menina mais velha, falava pouco, mas ria muito. A Victoria era uma menina linda, loira, e do tipo que podia a qualquer momento ser descoberta por uma agência e virar a próxima Scarlett Johansson. O Anthony era do tipo que se acha, tinha um carro e vivia falando dele. O Francisco era amigo do Flávio desde que eles eram crianças e os dois vivam com piadas internas e socos toda vez que um falava alguma besteira, era bonito de ver os dois juntos. Naquele dia jogamos uma versão de Imagem e Ação sem cartinhas, só com filmes famosos e mímica. Não rolou nada. Eu estava muito encabulada com toda aquela gente me olhando que nem olhei direito para o Flávio. Eu percebi como o Flávio vivia puxando a camisa pra baixo, a cada pou- co ele via se estava tudo certo, e novamente puxava a camisa pra baixo. No final do dia, antes de voltarmos pra casa, todo 19ELA É LOUCA mundo trocou contatos, nos seguimos nas redes sociais, e eu descobri que o Francisco fazia uns vídeos engraçados, alguns em que o Flávio aparecia, e ele era praticamente uma celebridade. Fiquei até encabulada de não conhecer ele, mas ele levou bem na boa. Nos despedimos com a promessa de nos encontrarmos de novo pra mais uma partida de Imagem e Ação. A Ariel notou que eu continuava em transe com o menino, e decidiu me dar um conselho tipo de mãe: - Alice, cuidado para não sofrer, o teu bonitinho pa- rece saber como chegar nas garotas, vai te fazer sofrer. - “Meu bonitinho”, tá vendo? Até tu já notou que ele é meu, amiga. - Aham, vai forte nessa ideia então. 20 CACIANO KUFFEL 55 Ela brilha com mais intensidade quando nos apaixonamos, e iluminam um caminho que jamais vimos“ ” Luz olhosdos A luz dos seus olhos combina com a minha A luz dos teus olhos ilumina minha escuridão e eu não me sinto sozinha O brilho do teu olhar faz eu me apaixonar Como o céu é apaixonado pelo luar O sol esquenta nossa vida e a imensidão O brilho dos seus olhos esquenta a minha alma e o meu coração 21ELA É LOUCA De volta à vida chata da loja, eu não parava de pensar no Flávio. Também não tinha como, a gente só falava dele, e quando esquecia, ele me mandava algum meme relacionado a coelhos, já estava até me chamando de “meu coelhinho”. A Ariel e o Robson me viram desatenta, rindo feito boba, e decidiram conversar comigo. O Robson começou: - Hey Alicinha, larga a mão, tá na cara que esse cara vai te fazer sofrer. - Não posso discordar, é a função básica de um ho- mem, te fazer sofrer, eles vêm com essa função pré-progra- mada. Te fazer sofrer, gostar de cerveja e chorar com fute- bol. - Ariel completou. - Mas e se ele for diferente? E se ele for tipo o príncipe encantado? - Mais fácil ele ser o cavalo da história. “Alice, País das Maravilhas” só existe no teu mundo. - Baixa a bola, pequena sereia, como se tu nunca ti- vesse sido iludida por um homem - retruquei - Não estamos aqui para falar de mim, nem do Rob- son. - Até porque minhas histórias são só sobre amores platônicos, como da vez que eu me apaixonei pela Jade. - Que Jade, Robson? - Você conhece, Ariel, a Jade do desenho do Jackie Chan. 22 CACIANO KUFFEL Nós reviramos os olhos. - O fato é que se você demonstrar que está caidinha assim, ele vai te ter na mão, vai com calma. - falou Ariel ten- tando ignorar o Robson. - Uma vez, eu vi um vídeo no Facebook que dizia que quem demonstra menos tem o poder, mas também é menos feliz. - Você vai acreditar em vídeo de mensagem do Face- book? - Ela fica olhando vídeos desse tal de Caciano e pen- sando que o amor é do jeito que ele fala. - falou Robson me recriminando. - Bom, então faz isso, vai lá, se joga nessa paixão, só depois não vem correndo chorar pra mim porque o cara é um escroto que dá cantadinha ruim em todo mundo. Naquele dia, eu fiquei dividida. Entre chamar o Flá- vio para sair, dizer que eu tinha adorado ele, dizer que eu estava apaixonada; ou me conter para não sofrer, não ser chamada de boba, não ser feita de trouxa. Naquela época, eu achava legal essa proteção que a Ariel exercia por mim. Mas, ao mesmo tempo, achava que ela não tinha moral nenhuma para falar, já que eu via vários caras interessados nela, mas ela não dava muita bola pra ne- nhum deles, tinha visto ela ficar com, no máximo, dois caras mais sério, mas não se deixava envolver, e não tinha visto ela realmente apaixonada por ninguém. 23ELA É LOUCA 66Reencontro Ansiamos por um reencontro, não de corpos, mas de sentimentos“ ” Te ver de novo pra não te deixar ir Te ver de novo e te segurar para não fugir Te ver de novo é tudo que eu preciso Te ver de novo me faz acreditar no paraíso Te ver de novo me faz ter mais uma dose do que é viver Te ver de novo me faz acreditar que o amor não precisa morrer 24 CACIANO KUFFEL A semana foi arrastada. Como dizia Einstein, o tempo é relativo. E quando você quer que o fim de semana chegue logo, ele não passa, ele caminha como um senhor caminha na rua. Mas finalmente chegou, era sábado e íamos para o parque. O parque não tinha nada de especial, apenas balan- ços, famílias, jovens conversando, gente mais velha corren- do, cachorros babando. Pra nós, era diferente, era cheio de vida, corres, gigante, o nosso lugar. Flávio estava lá, seus amigos também estavam, me- nos a Soraia. Naquele dia, todo mundo decidiu conversar ao invés de jogar, e uma hora, como que mágica, estávamos só eu e o Flávio andando e conversando. - Eu gostei de ti, Alice. Mas parece que você se escon- de dentro de si, não quer aparecer. - Caraca, não sabia que estava saindo com meu tera- peuta. - É sério, Alice, eu vejo que você só tenta não se mos- trar. Desaparecer no meio dos outros, não chamar atenção, não ter opinião. Quem sabe você tenha razão. - Tu tem um brilho aí dentro pronto pra incendiar, deixa ele sair? Eu vejo fagulhas nos teus olhos, como se tu se mostrasse de verdade só aos pouquinhos. - Na verdade, você tem toda razão, eu preciso me en- contrar, às vezes, eu não sei se estou vivendo ou só arruman- 25ELA É LOUCA do a cama. Mas eu também notei algo sobre você, parece que você também quer esconder algo, quem sabe a gente tenha muito em comum. - Eu? Imagina, eu sou um livro aberto. - É mesmo? O que você tem embaixo da camisa que tanto cuida pra não mostrar? - É uma mania de infância, não é nada. Ao mesmo tempo em que ele me dizia que não era nada, ele puxava a camisa e aparentava estar realmente in- comodado por eu ter percebido isso. Não quis prolongar o papo sobre isso e tentei mudar de assunto. - Você não me disse o que faz da vida. - Eu vivo ela, vivo o máximo que eu posso, tento rea- lizar meus sonhos e deixar as outras pessoas bem. - Não sabia que estava saindo o Cortella, eu estou pe- dindo sobrea sua profissão, sua faculdade, sua rotina. - Ah, achei que tu fosse mais profunda que isso, coe- lhinho. Essas coisas não são quem sou, ou o que eu faço da vida. Isso é só o que a sociedade quer que eu seja, e quer que eu faça, eu sou bem mais que isso. - Meu Deus, menino, você é filósofo. - Eu não faço nada, não sei o que fazer, estou perdido. Meus pais que não aguentam mais esta minha fase, Quando eu era criança, eu tinha certeza que ia ser médico, agora eu tenho horror a isso, eu estou sem saber o que fazer. - Acho que é normal, eu também estou nessa fase. O silêncio contaminou o ambiente, então o Flávio voltou a falar. - Eu não fui totalmente honesto com você, eu não falo muito sobre meus machucados e minhas cicatrizes. - Você está falando sobre… 26 CACIANO KUFFEL - Sobre o porquê sou tão preocupado com a minha camisa. Ao falar isso ele levantou a camisa e deixou eu ver então as marcas enormes que ele tinha na região da barriga. Enquanto eu olhava, ele ficou encabulado novamente e ra- pidamente as escondeu. - Nossa você brigou com uma baleia? – brinquei, ten- tando deixar o clima menos tenso. - Quando eu era criança, fui abusado por um tio. - Seu tio? - Sim, por uma semana inteira, enquanto meus pais trabalhavam, ele ficou lá em casa. Meus pais desconfiaram e voltaram antes. Quando eles chegaram, ele estava em cima de mim. Ele usava uma faca para me ameaçar, com o susto, me cortou daqui até aqui. - disse enquanto apontava para sua enorme cicatriz. - Nossa, eu não sei o que falar, Flávio, eu... - É por isso que eu prefiro não falar. Esse olhar de pena no seu rosto... - Não, não é isso, eu só, estou... um pouco chocada, mas quero dizer que você é muito forte por ter passado por tudo isso ainda pequeno, e você não deve ter vergonha de quem você é ou das marcas e cicatrizes que a vida te deixou. Você é maior e mais brilhante por isso. - Obrigado, eu não sei porque eu te contei isso. Eu nunca contei pra ninguém, sabia? - Eu fico contente por ter te passado esta segurança, obrigado por confiar em mim. Caraca, eu fiquei realmente paralisada. Que nojo do tio! Nem tive coragem de perguntar o que aconteceu com ele, como foi o desenrolar da história, não quis pedir algo 27ELA É LOUCA que ele não quisesse contar. A gente mudou de assunto, fa- lou da escola, falamos de filmes, de séries. Eu descobri que ele é a única pessoa no mundo que nunca viu uma, acredita? Nesse dia, a gente não se beijou. Mas os olhares, as provocações, as mãos eram intensas, e, ao mesmo tempo que nossos lábios insistiam em se procurar, nossos olhos não se deixavam. Não nos beijamos, fiquei encabulada por- que havia muita gente julgando, esperando, nosso beijo. Eu não me preocupei com a Ariel, mas quando olhava pra ela, ela conversava animada com todo mundo, dava risada, vi- rou o centro da conversa quando lembrou da minha história da galinha frita. Depois disso fiquei sabendo como os cinco eram uni- dos, eles nunca estavam separados, tinham histórias ótimas um do outro também. Só foi estranho quando perguntei porque a Soraia não estava, ficou um climão, ninguém falou nada, Anthony baixou a cabeça, Victoria riu debochada, e Francisco mudou de assunto pedindo se eu já tinha visto o último vídeo dele. Achei realmente estranho o clima por conta da So- raia, mas tinha tanta coisa para processar daquele dia, que eu nem pensava tanto nisso, pensava no sorriso encabulado, mas ao mesmo tempo seguro do Flávio. Pensava nele me abraçando, pensava em como ele me fazia rir, e como era fácil o papo com ele. 28 CACIANO KUFFEL 77 óri Hist asVer histórias dos outros nos mostra que não estamos sofrendo sozinhos nesse mundo“ ” Sou feita de histórias tristes e boas Sou feita de histórias de momentos e pessoas Sou feita de histórias que me trouxeram até aqui Sou feita de histórias e histórias são feitas do que vivi Sou feita de histórias de capítulos e linhas Sou feita de histórias e sinta-se honrado se eu te deixo participar da minha 29ELA É LOUCA No domingo, eu tinha marcado de comer porcaria e ver filme, como nós sempre fazíamos no último domingo do mês, era o dia das meninas, uma tradição mantida por anos, e falhada apenas três vezes em nove anos de amizade. Decidimos assistir mais uma vez Como eu era antes de você, a gente já tinha decorado as falas, já sabia cada parte do fil- me, eu até dei de presente para Ariel uma meia igualzinha a que a Lou usava. - Amiga, eu acho ele tão maduro pra idade dele, nem parece um menino. - Ah Alice, não se impressione, nos primeiros en- contros as pessoas mostram só o lado bom, só a parte agra- dável, Tipo, elas mostram só o banheiro e não o que fazem no vaso, entende? - Mas ele mostrou quem é de verdade, se expôs de um jeito que ninguém ousou se expor comigo, mostrou verdade. - Sei lá Alice, acho que eu preciso de vinho para te dizer realmente o que tu precisa fazer, por que tu não pega pra gente? - Tudo bem, só pausa o filme então. - Como se tu fosse perder um pedaço e não fosse entender a história. - É o mínimo, quando alguém sai da sala, você é obrigada a pausar o filme, não vamos entrar nessa discus- 30 CACIANO KUFFEL são de novo. Eu saí pra buscar o vinho, e quando estava voltan- do, pisei em alguma coisa molhada que me fez escorregar. Como estava com as duas mãos ocupadas não teve outra, cai com tudo no chão da cozinha da Ariel. Apaguei por uns três segundos, e adivinha quem veio me acordar? Sim o Flávio, Me deu um beijo na boche- cha, me chamou de coelhinho desastrado, deitou ao meu lado, sem nem se importar com o chão todo molhado de vinho, então começou me lambuzar com o vinho, enquan- to ria da minha cara, me chamando de desastrada e rin- do muito. Era uma risada gostosa, existia carinho, e uma conexão absurda, os dois ali vivendo aquele momento, sem se preocupar com o amanhã, era essa a sensação, dá pra acreditar? Quase conseguia ouvir uma música ao fundo. Então, eu acordei, e me dei conta que estava sonhan- do, e a única coisa que tinha perto de mim era o cachorro da Ariel, o príncipe, que tinha acabado de chafurdar todo o chão, e se não bastasse tinha pisado não só em mim com as patinhas sujas de vinho, mas também no tapete lindo da sala. Que desastre, Ariel não sabia se ficava braba, ou se ria de mim enquanto eu contava meu sonho esquisito. Ficamos o resto do dia tentando procurar na inter- net como limpar manchas de vinho do tapete, meio em vão, não saíram por nada. Quando ouvi ao longe a vinheta do Fantástico e soube que o final de semana tinha chegado ao fim, voltei pra minha casa, tratei de dormir logo, pois no outro dia começava cedo a rotina de novo. 31ELA É LOUCA 88 Mude de casa, mude de trabalho, mude de modos, a vida é uma estrada e, se você parar, é atropelado Mudança “ ” Não somos árvores para ficarmos plantados Podemos nos mudar, nada de ficarmos parados Se algo tem incomoda ou não te agrada Você pode se transformar não fique chateada A vida pode nem sempre ser como a gente quer Mas só nós podemos transformar, eu sou forte, eu sou mulher 32 CACIANO KUFFEL Na segunda, aconteceu algo que eu me orgulhei mui- to. Entrou uma cliente com seu namorado na loja, ela me perguntava algo sobre uma capinha da Frozen enquanto seu namorado me olhava com olhos de quem come um pudim. Não parava de me olhar, e isso me deixava desconfortável, mas eu fingia que não via, foi então que a moça emperiqui- tada percebeu e deu uma de barraqueira. - Olha só mocinha você está aqui para me atender, não pra ficar jogando charme pro meu namorado, ponha-se no seu lugar, sua coisinha. - Mas senhora eu... - tentei ser educada - Eu nada, não se faz de sonsa, você acha que meu namorado vai querer alguma coisa com uma atendente po- brezinha de loja, faça-me o favor sua coitada, vamos Afonso, vamos embora. - Quando ela estava indo embora, a Ariel veio me encontrar, mas antes que ela pudesse falar algo,eu não sei o que deu em mim, eu eu comecei falar. - Olha só sua patizinha esnobe, saiba primeiramente que eu sou solteira, que eu não preciso de namorado de nin- guém, mas saiba mais, saiba que seu namorado é um escro- to, que fica olhando outras mulheres, ao invés de olhar pra você, mas você é tão egoísta, tão autocentrada, que ao invés de olhar que você é uma mimada, ao invés de olhar pro seu namorado, olha pra todos de baixo pra cima e não consegue enxergar a si mesma, eu tenho pena de você, você só vai se 33ELA É LOUCA ver de verdade, quando parar de interpretar esse persona- gem desprezível de você mesma. Eu nunca tinha sido assim, nunca tinha brigado, ou levantado a voz pra ninguém, nunca tinha nem dito que não para nada. A mulher ficou em choque por alguns segundos e então falou - Olha aqui sua filósofa de merda, vamos ver o que o dono da loja vai achar dessa sua atitude, vou fazer questão de entrar em contato com ele. O namorado dela pedia calma enquanto ela saia en- furecida do lugar. Naquele dia, eu ria, eu chorava, eu ficava pensando no que deu em mim, nem o Robson nem a Ariel, entendiam como eu podia ter falado tudo aquilo, logo eu, que sempre aceitei tudo. Então, a Ariel: - Meu, eu não sei o que deu em ti, nunca vi você as- sim com nada, tá mudando, hein? Por que será? – alfinetou, sugerindo Flávio como a razão da mudança. - Eu não sei, sabe? Tô cansanda de tentar agradar todo mundo, de ser legal o tempo todo, quando os outros pisam e sambam em cima de mim, acho que é isso. Mas também me assustei, parece que enquanto eu falava eu saía do meu corpo, me olhava de fora e falava pra mim mesmo “para sua louca”. - Eu senti orgulho de você, Alice. – declarou, Robson. Mas as coisas começaram a piorar pra mim, toda mudança traz sofrimento. Toda vez que você sai da zona de conforto doí, e sempre que você almeja ser melhor, o mun- do mostra que você precisa ser forte. Na quarta feira, nosso então chefe, que nunca está na loja, apareceu. 34 CACIANO KUFFEL - Olha só Alice, você não pode tratar ninguém assim, principalmente clientes. Ela é uma importante influencia- dora aqui da cidade e fez vários stories no Instagram falando do péssimo atendimento da nossa loja. Falou do seu nome, eu não posso fazer nada a não ser pedir para você se afastar, logo você que é sempre tão na sua, o que foi que te deu? -Ela foi babaca comigo, me humilhou, eu só respon- di. - Não é assim, aqui nas nossas lojas o cliente sempre tem razão. Ariel, que observava de longe, não se conteve e se aproximou: - Olha só, ela trata todo mundo super bem, não é por conta de um “blogueirinha” que o senhor precisa demitir ela, isso não é justo. - Calma, Ariel, eu posso me defender – tentei dei- xá-la de fora - Eu acho que o senhor está cometendo uma injustiça, nem sempre o cliente tem razão. Quando ele hu- milha alguém, fala mentiras, cria coisas, ele não pode ter razão, nem sair levando vantagem. - Eu não posso manter você aqui, se você continuar, ela vai continuar falando mal da gente, vai ser péssimo para os negócios, ela pode destruir tudo que eu levei anos pra construir. - Se ela sair eu saio também – ameaçou, Ariel, tentan- do dar a cartada final. - Ótimo, por mim podem sair vocês duas. – respon- deu sem remorso e visivelmente irritado. E foi assim que eu destruí não só o meu emprego, como o da minha melhor amiga, que por um acaso tinha conseguido o trabalho pra mim. Robson apareceu após a 35ELA É LOUCA saída do dono. Nos abraçou e chorou, pedindo para não dei- xar ele sozinho lá, todo mundo chorou junto. O choro da Ariel era mais forte, ela precisava mais do que eu do empre- go. Ela não trabalhava lá só pelo dinheiro extra, ela usava a grana pra fazer o cursinho e para ajudar em casa, já que morava só ela e a mãe. Pra mim, era mais simples, eu usava o dinheiro pra futilidades, lanches, cinema, maquiagem. Eu não acreditava que tinha feito isso com ela, minhas atitudes prejudicando uma das pessoas que mais amava, era algo que eu não podia lidar. Eu estava desesperada, quando era ela que devia estar. - Me desculpa, por favor, eu não queria te causar isso. - Tudo bem, eu não aguentava mais trabalhar lá, ago- ra vai sobrar mais tempo para estudar. - Mas Ariel, como tu vai estudar, como tu vai pagar o cursinho? - Eu não preciso do cursinho para estudar, inclusive essa rotina está me fazendo mal, eu emagreci cinco quilos do nada, dores na barriga sem fazer nada, sei lá, eu tô estra- nha demais, quem sabe fora da rotina isso melhore. - Eu não me conformo em fazer mal pra você Ariel, eu te amo demais, eu vou achar outro lugar pra gente, eu prometo. - Relaxa, vamos curtir o tempo livre um pouco, de- pois a gente vê. Inclusive, a Victoria, o Flávio, e o Francisco vão jogar Imagem e Ação amanhã e convidaram a gente pra ir lá. - Pois é, o Flávio tinha me comentado, mas achei que não ia estar com cabeça. - Bobagem, a gente merece isso. 36 CACIANO KUFFEL99 Tá difícil pra caramba Parece que a vida não anda Tá foda demais Nada me traz paz Tá complicado A sorte não está do meu lado Eu só quero fugir parece que não pertenço a isso aqui Só quero enxergar uma luz algo que me faça acreditar Que a vida tem muito mais para me dar A vida não te paga mas te cobra, Ou você se curva a ela ou ela te dobra Difícil “ ” 37ELA É LOUCA Os dias seguintes eu passei enviando currículos para todo lugar que eu achava na internet, eu não podia deixar minha amiga naquela situação. É verdade que a gente preci- sava esquecer, mas, ao mesmo tempo, não tínhamos como fugir da realidade. A quinta chegou e, com ela, esperanças de um dia bom, sem estresse. Ao chegarmos lá, vimos todos alegres demais, o Francisco estava em cima da mesa sem camisa, enquanto a galera tirava foto dele, como se ele fosse um por- quinho. Até o Anthony normalmente quieto estava rindo e falando alto. Quem nos recebeu foi a Victória. - Oi meninas, fiquem à vontade, Ariel tu pode me aju- dar com o molho do cachorro quente na cozinha? Eu nem prestei atenção porque o Flávio veio em mi- nha direção com um sorriso estonteante e antes que eu pu- desse dizer oi, ele simplesmente me beijou. Que beijo sur- preendente, parece que nossas línguas se conheciam a vida inteira, que balé perfeito, eu pude sentir um fogo que nunca tinha sentido antes, como se ele me conhecesse inteira, a sua mão começou passar pelo meu corpo, me deixando extre- mamente desconcertada. Sem reação, vi a mão dele passar pelos meus peitos, me fazendo sentir as pernas tremerem, ignorando o fato de estarmos em público, me deixei ser to- cada, e sentir como se fossemos somente eu e ele. Nem vi quando Francisco apareceu e colocou o dedo nas nossas bo- 38 CACIANO KUFFEL cas, enquanto gravava essa “pegadinha” e dizia. - Bécs que nojo, isso dá sapinho. Vamos respeitar a casa de família aqui, ok? Rimos e, enquanto eu ainda estava tonta do beijo, ri- sonha e completamente anestesiada dos problemas, eles me ofereceram um copo com bebida. Eu já tinha bebido antes, mas sinceramente nunca gostei do gosto. Aceitei. Era gim e tônica, não sei o que aconteceu com o mundo, de repente está todo mundo gostando disso. A gente decidiu que era melhor jogar verdade ou consequência do que Imagem e Ação; a consequência seria sempre beber. De início, caiu do Anthony pedir para o Francisco. - Fala Francisco, você é virgem ainda? - Estou me guardando pra pessoa certa. - enquanto riu meio desconcertado. - Na verdade, não tive oportunida- de, mal beijei na boca ainda, e é algo que me preocupa, e se eu morrer sem ter transado? Não quero que isso aconteça. - Calma mano, essas coisas são superestimadas, tu é um cara legal, depois que começar acontecer não para mais. – ponderou, Flávio, tentando dar apoio ao amigo. Aí eu não me aguentei e disparei: - Olha, falou o super experiente. - Se você quer perguntar algo, tem que girar a garrafa, mas a vez de girar é do Francisco, então, siga as regras, coe-lhinho. Francisco girou a garrafa, que deu direito a uma per- gunta pra Victoria. - Victoria, tu me daria um beijo? - Acho que eu prefiro beber, Chico. Enquanto ria, ela bebeu e girou a garrafa. Que caiu 39ELA É LOUCA apontada para Ariel, A Victoria, então, com olhar maldoso, pergunta: - Tu tem coragem de me beijar? A Ariel, muito por conta da bebida, acreditei eu, nem pensou direito e deu um beijão na Victoria. Eu não acreditei, fiquei perplexa, hipnotizada olhan- do para as duas. Não me segurei: - Caraca, Ariel, a gente é amiga desde criança tu nun- ca me falou que beijava meninas. - Tu tem preconceito? - perguntou ela rindo. - Não é preconceito, mas é como se tu me falasse que é chinesa, eu sempre achei que tu fosse brasileira, aí do nada, tu é chinesa. - É que eu preferia não falar, vai que tu achasse que eu queria te pegar e se afastasse, só não me sentia à vontade. - Imagina, você sempre pode contar comigo. Abracei ela. Não acredito que por mais de dez anos nunca percebi que ela preferia meninas, eu já a tinha visto com alguns meninos, nunca suspeitei. Mesmo desapontada por ela nunca ter me contado, fiquei feliz de finalmente ela falar, tão abertamente. Nossa amizade ficou mais forte de- pois disso. E então, chegou a vez de ela girar a garrafa, ela girou e parou no Flávio. - Flávio, você já namorou antes? - Mais ou menos, eu saia há muito tempo com a So- raia. - E por que ela parou de sair com vocês? Perguntei sem conter o ciúmes enrustido - Ela não parou, ela ainda sai, às vezes. - Mas eu nunca mais vi ela. - Ela tem ciúmes de você, mas era só uma pergunta, 40 CACIANO KUFFEL você não pode roubar no jogo. O jogo continuou algumas rodadas, mas já era mui- ta coisa pra minha cabeça, ciúmes, minha amiga saindo do armário, eu não conseguia raciocinar, minha vida estava mudando tanto em tão pouco. Paramos de jogar, mas con- tinuamos as conversas, as bebidas, os olhares. Quando me dei conta estava em um quarto, provavelmente um quarto de bagunça, porque não tinha camas, sozinha com o Flávio. Começamos nos beijar, e o beijo continuava incrível, mas ainda mais quente, a boca dele era macia, e a língua suave, mas, às vezes, aconteciam pequenas mordiscadas. Não de- morou muito pra ele me puxar pelo cabelo e beijar a minha nuca, fui ao delírio quando ele me encostou contra a parede. Suas mãos passeavam pelo meu corpo sem freio algum, en- tão, quando percebi, estava de costas para ele, com ele bei- jando minha nuca, falando como eu era linda e, quando ele puxou minha saia pra cima, mesmo extasiada, me assustei, pedi que ele parasse, ele sem me ouvir direito, tentou mais uma vez, e eu o empurrei dizendo: - Espera, calma, primeiro me conta da Soraia. - Meu Deus, por que falar dela justo agora? - É que eu não paro de pensar nisso. - Tá certo, e o que você quer saber? - O que você tem com ela? - Ela era uma grande amiga, aí a gente cometeu o erro de ficar, aí continuamos ficando, nos apaixonamos e depois decidimos acabar - E por que vocês acabaram? - Ah ela é louca, sabe? Não sei o que aconteceu, mas ela tem problemas. - Claro. Será que a gente pode ver como a Ariel está? 41ELA É LOUCA Eu achei estranho. Tentei ignorar o que ele havia me contado, eu queria ouvir da Soraia o que tinha acontecido de fato. Mas ela nunca mais tinha aparecido nas nossas festas, então eu fui até a cozinha meio tonta por conta das bebidas e vi algo que me deixou mais estranha do que eu já estava. A Ariel estava ali sentada no chão olhando para um balde e assustada. - O que aconteceu? Deu PT? - Foi, passei mal e vomitei tudo que bebi e comi. Que nojo, mas o que me deixa assustada é esse sangue que saiu junto. - Poxa amiga, vomitou até o intestino? Vamos pra casa, vou te fazer um chá. - Acho que sim, que vexame. E fomos embora, mal me despedi do Flávio, a Ariel saiu meio de cabeça baixa e não falou direito com ninguém também. Eu já não aguentava mais tanta coisa na minha ca- beça, e mal eu sabia que tudo que ainda estava por vir. 42 CACIANO KUFFEL 1010 A vida é curta demais para perder tempo com gente babaca Ge catebaba n “ ” O mundo está cheio de esgoto e podridão O mundo está cheio de vazio no coração Todo lado eu vejo desumanos pregando moralidade Por todo canto eu vejo mais sujeira nas pessoas que na cidade Enxergo o mundo errado e ninguém parece dar bola Se fosse diferente em algum lugar eu juro que ia embora 43ELA É LOUCA Eu deixei a Ariel sozinha sendo cuidada pela mãe dela e, no outro dia de manhã, eu saí cedo para largar cur- rículos em lojas do centro. EU precisava consertar a merda que eu fiz na vida da Ariel, eu andava pelas ruas e pensava em tudo que tinha acontecido, minha cabeça girava pensan- do na Ariel não conseguindo falar quem ela era de verdade, no final ela também tinha uma parte presa dentro dela que- rendo sair, e finalmente saiu. Eu pensava em qual era a treta que tinha entre o Flávio e a Soraia que levou eles termina- rem, e pensando nisso tudo, escutando música, eu me sentia num clipe do Eminem. Até que, largando os currículos, fui convidada a entrar por um rapaz simpático. - Então, a nossa loja é de roupas masculinas, como você pode ter percebido, e estamos realmente buscando uma vendedora jovem e bonita como você. - Ah muito obrigado pelo bonita, não sou tudo isso não. Eu estava levemente corada. - Você é linda, se você chamar a atenção dos clientes como chamou a minha, venderá muito. Você está preparada para fazer tudo que esse emprego vai te exigir? - Claro estou sim, quais são as condições? Ele me explicou muita coisa, como trabalhar um sá- bado sim outro não, e o salário era bem mais atraente do que o do antigo emprego. Eu também não ia trabalhar só 44 CACIANO KUFFEL meio turno, ia trabalhar um turno inteiro, mas ainda assim parecia vantajoso demais pra mim. E então começou a ficar estranho. - Você terá que fazer alguns trabalhos extras pra mim também. - Que tipo de trabalho? – perguntei imaginando idas a bancos ou deixar coisas nos correios. - Sabe? Me agradar quando eu estiver precisando de algo. - Como assim? - pedi levemente assustada. Então, ele deu a volta na mesa, puxou uma cadeira ao lado da minha e, levemente, foi chegando perto de mim, passou a mão no meu pescoço e com a cabeça foi chegando perto do meu rosto, e quando seus lábios encontraram os meus, eu o empurrei num susto. - O senhor está tentando me beijar? - Se você for trabalhar pra mim, vai ter que fazer bem mais do que me beijar. - disse ele com a calma de quem fazia isso sempre. Eu não sabia o que fazer para sair dali, sim- plesmente estava em choque. Então, simplesmente, depois de dez segundos em silêncio, saí correndo dali. Enquanto caminhava pelas ruas, eu chorava assustada, sem entender, com vergonha de mim, me achando boba, estúpida. Ah, se isso tivesse acontecido hoje, eu saberia exata- mente o que fazer com aquele ser desprezível. 45ELA É LOUCA 1111 A beleza da vida está oculta nos pequenos detalhes Eavi belada é “ ” E quando a gente menos espera Entendemos que a vida no fim é bela Um toque um cheiro um lugar visto da janela Ela é simples e na simplicidade se encontra a beleza Você precisa estar atenta e leve com a cabeça A beleza pode estar em um simples papo em um gole de cerveja Abra os olhos e saiba que a tristeza vai passar Basta entender, basta perceber, basta acreditar A beleza não está em conseguir algo ou alcançar A beleza da vida não é sobre conseguir algo desejado Nem sobre conquistar algo muito esperado A beleza está aqui, basta olhar para o seu lado 46 CACIANO KUFFELEu estava falando com o Flávio e decidimos marcar algo só nós. Ele estava sendo particularmente querido e, como eu não fazia nada mais durante as manhãs a não ser procurar um emprego, decidi ir me encontrar com ele. Ele não morava sozinho, mas afastado da cidade a família dele tinha uma chácara, um pequeno pedaço de terra no meio do nada para descansar. Ele prometeu que faríamos um pique- nique romântico. Ele me buscou de Uber em casa e chega- mos lá. O lugar era lindo, havia um pequeno lago no meio da propriedade, as flores nas árvores eram de diversas co- res, você podia andar pelo meio delas, pois elas faziam um caminho que te levava até um parreiral de uvas. A casa era grande, mas simples, tinham muitas redes ao redor dela. O Flávio sentou perto da varanda, estendeu uma toalha no chão, colocou uma cestinha, tirou de lá alguns cachos de uvas, um suco de uva, um vinho, pão, geleia de uva, e queijo. - Espero que você goste de uva. - disse ele em tom de brincadeira. - Eu não gosto de uva. - Adoro, mas estou meio sem fome. – menti. - Mas você gostou do lugar? - Amei, tão lindo quanto o dono. - O que faz o lugar ficar bonito é a companhia, como diz aquela música “Se eu não te amasse tanto assim, talvez não visse flores por onde eu vim”. Conhece? 47ELA É LOUCA - Acho que é da Ivete Sangalo, né? - É o que todo mundo acha, na verdade, é do Herbert Vianna dos Paralamas, sabe? Ele escreveu pra mulher dele, logo que ele se acidentou de ultraleve, ficou em coma, e aca- bou perdendo ela. - Caramba, eu não sabia, mudou toda a música pra mim. - Às vezes, uma coisa que você enxerga só um pou- quinho, se você ver um pouco mais muda completamente o sentido ou deixa de fazer sentido. - Será que é isso, então? Eu não enxerguei direito o que você tinha com a Soraia? - Ah não coelinho, de novo sobre ela? Esquece isso, deixa eu te mostrar algo. Ele mudou de assunto, disse que o pai dele era pin- tor, mas tinha parado de pintar, o que tinha sobrado dessa paixão eram os quadros que ficavam pela casa, me contou a história de cada um deles, e ao chegar no quarto principal me mostrou um quadro enorme que tinha um rosto de uma mulher com uns brincos de pérolas. - Este meu pai pintou antes de conhecer minha mãe, uma vez ele me disse que demorou um ano inteiro para concluir, eu sempre achei que esse foi o verdadeiro amor do meu pai, até porque minha mãe nunca gostou deste quadro, e mesmo meu pai sabendo disso, fez questão de deixar aqui. - A moça é linda, parece apaixonante mesmo. - Se eu ver o meu amor eu não quero deixar escapar, quero pegar ela pelas mãos e segurar para sempre. Ele me disse isso enquanto segurava nas minhas mãos e me olhava firme nos olhos, eu naturalmente, fechei meus olhos esperando pelo beijo, e foi mágico, senti de novo 48 CACIANO KUFFEL seus lábios encontrando os meus, com suavidade e maciez como da primeira vez e, dessa vez, bem lentamente, ele foi acariciando meu rosto, minha pele, meu pescoço. Sem que- rer, soltei um gemido de prazer, o que fez ele mudar o ritmo lento, para algo um pouco mais forte, sua mão rapidamente pegou meu cabelo com força, enquanto ele mordiscava meu pescoço, sua mão macia percorria meus seios, enquanto eu devolvia o carinho e passava a mão pelo seu peito, a gen- te fazia parecer um balé, tudo era orquestrado, ele tirou a sua blusa, sem perder o ritmo tirou a minha também. Eu me sentia flutuar, estava completamente molhada, ficamos completamente nus, então ele finalmente me jogou na cama, apagou as luzes, e me disse que não ia parar de me chupar até que eu não gozasse em sua boca. Eu simplesmente me entreguei, ele sabia o que fazia, com suavidade e ritmo em poucos minutos minhas pernas tremeram. Me deixei sentir cada sensação, cada respiração ofegante, e então ele me pe- netrou, e foi ainda mais estupendo. Terminei sem ar, fiz de tudo para agradar ele também, dei o meu melhor. Eu estava completamente apaixonada. Ele era maravilhoso em todos os sentidos possíveis. Naquela tarde, ainda repetimos por três vezes e cada vez era ainda melhor, mais forte, mais intenso, mais entre- gue. No final do dia, eu estava no céu, ria e sorria sem mo- tivo, cantava, dançava, nada podia me tirar daquele estado. 12 49ELA É LOUCA Quando você acha que a vida está boa, vem ela e te mostra que viver é sobre superar dificuldades e não sobre respirar as felicidades Mais difícil “ ” Vai piorar muito antes de melhorar A vida ainda tem muito para te ensinar E você sabe que assim que isso passar Você vai merecer o que está prestes a ganhar Vai piorar muito ainda para você aprender A dar valor a tudo que merece ter1212 50 CACIANO KUFFEL Algo me preocupou, era uma mensagem da Ariel pe- dindo se eu podia encontrá-la no centro no outro dia, era urgente. Eu estava com tanta sorte que eu pensei que fos- se um emprego pra nós duas. Quem dera. Chegando lá, eu estava tão animada que nem percebi o quanto Ariel estava abatida. - Amiga, eu preciso te contar algo, na verdade, tem tanta coisa que eu preciso te contar... – eu estava tão excitada que quase não percebo que Ariel me interrompia. - Eu também, Alice. - disse Ariel, com um envelope na mão. - Tá tudo bem, conta você. - tentando conter minha ansiedade - Alice, aquele dia depois da festa, eu fiquei mais mal, minha mãe me levou no hospital, e o médico disse que não era nada, mas que precisava fazer uma biópsia, eu não con- tei nada para minha mãe, mas o resultado está aqui. - Resultado do quê? - Se eu estou com cancêr ou não. - Não brinca com isso. Como câncer? Você é jovem. - Lembra como eu vinha me sentindo? Eu falei pro médico ele achou que poderia ser algo. Alice, eu estou com medo de abrir isso aqui - A gente vai abrir juntos e não vai ser nada, você vai ver. – disse, morrendo de medo. 51ELA É LOUCA Nós abrimos, o resultado era positivo, eu não sabia o que falar, apenas segurei o choro, abracei ela forte, Falei que a gente ia dar um jeito como a gente sempre deu. Mas, em determinado momento, foi impossível conter o choro. Estávamos ela e eu, ali, no meio de muita gente, no meio de tanta gente reclamando do seu dia, no meio de tanta gen- te que nem apreciava mais a vida, chorando, torcendo para que tudo não passasse de um pesadelo. A gente conversou de tudo naquele dia, sobre as es- trelas, sobre o infinito, sobre vida após a morte, sobre re- ligião, sobre amor, eu não tive coragem de contar pra ela sobre a minha felicidade do outro dia, não contei também sobre o cara escroto da loja de roupas masculinas, só ouvi, aproveitei minha amiga, como fazia tempo que não aprovei- tava. Ela me contou todos os seus sonhos, lugares onde ainda queria ir, pessoas que queria conhecer, os shows que ela sonhava em ir, disse que estava apaixonada pela Victo- ria, e não sabia como contar para mãe, porque tudo que ela queria era deixar sua mãe orgulhosa, feliz, queria se formar em medicina para poder salvar as pessoas, e assim deixar sua mãe alegre. Tinha medo de magoar ela, tinha medo de deixar sua mãe desgostosa com a vida. A mãe da Ariel tinha sido muito forte desde que o pai dela as abandonou, eram só as duas contra o mundo. A última coisa que a Ariel queria era ver sua mãe infeliz por conta dela. E agora o câncer, como isso podia ser pior? Por pior que fosse, uma hora a gente precisava contar pra mãe de Ariel, pelo menos sobre o câncer. Decidimos contar e, então, no outro dia, eu fui junto com ela no horário do almoço do trabalho da dona Lydia 52 CACIANO KUFFEL no hospital. A Lydia era uma mulher linda, com ar mega jovem, ela teve a Ariel super nova, com 17 anos. Por conta da filha, ela teve que parar de estudar pro cursinho, mas não desistiu da área da saúde, conseguiu cursar tecnólogo em enfermagem, profissão que exercia com orgulho e amor até então. O hospital que ela trabalhava era um desses de planos de saúde que, no fim das contas, não estão nem um pouco ligados nos seres humanos.As ordens que vêm de cima são puramente financeiras, a instituição vivia dizendo que esta- va quase fechando as portas, a fim de assustar seus funcio- nários, que viviam em uma guerra entre médicos, enfermei- ras, e, por fim, pacientes. O clima era péssimo, mas, mesmo assim, Lydia tentava fazer sua parte, ouvir os pacientes, e entender suas dores, não só físicas, mas também mentais. Fora do hospital ela sempre foi uma segunda mãe pra mim, fazendo eu me sentir bem, dando dicas de saúde pra minha mãe cuidar de mim, eu confiava muito nela. Então, quando a gente contou, pensamos que ela teria a solução em suas mãos, alguma saída, mas a Lydia, sempre forte, caiu aos prantos, e meio aos soluços ela dizia: - É culpa minha, eu tenho certeza, por ter fumado demais, eu tenho certeza que você herdou de mim, eu não acredito, filha. - Mãe, a gente vai dar um jeito. - A gente vai sim, tia, você sempre deu um jeito. - Eu vou tentar falar com meu chefe, quem sabe o tratamento eu consiga de graça. Os dias se passaram e Lydia sequer conseguia falar com o chefe dela. A gente pensava em possibilidades, mas no final não tínhamos ideia de como conseguir pagar o tra- 53ELA É LOUCA tamento, o médico. Nós podíamos esperar um tratamento de graça, quem sabe pudesse rolar, mas não estávamos com vontade de ficar de braços cruzados esperando o destino agir, de jeito nenhum. Em paralelo a toda essa dor, eu en- contrava conforto trocando mensagens com o Flávio, que estava cada dia mais distante, e cada vez mais evasivo, nem mesmo ele sabendo o quanto eu amava minha amiga, não fazia ele ser carinhoso novamente comigo. Na verdade, eu sentia que ele não entendia que eu não podia ver ele agora, minha cabeça estava em outro lugar. Se você acha que a minha vida está tumultuada, senta que lá vem mais mudança. Afinal, eu ainda era uma menina boba, ingênua, precisava de muita coisa na vida pra enten- der minha força, quem eu realmente era, e ser essa louca destemida, que conta sua história, e vive a vida como eu es- tou vivendo hoje. Mas antes de melhorar, piora muito ainda. 54 CACIANO KUFFEL 1313 Ela é loucaSer louca não é xingamento é elogio, pois os loucos são aqueles que veem a vida de um ângulo que jamais seria compreendido pelos ditos normais “ ”Você diz que ela ficou louca quando perde a razão Fala que ela tá imaginando e criando coisas, pensando com a emoção Você diz que ela ficou louca, maluca, pirada E que você não fez absolutamente nada Faz ela acreditar que você nunca errou, que nunca mentiu, que você é diferente E que tudo é culpa dela, ela é doida e você inocente E você quer saber? Talvez ela seja louca mesmo louca de ficar com você Louca de estar presa, talvez ela seja louca pela vida, louca por te amar E no fim você deve estar ficando louco se acha que ela vai de novo te perdoar 55ELA É LOUCA Eu saí para caminhar na praça que eu costumava ir apenas nos domingos, para ver vida, para ver as flores, pra pensar nos dias felizes que eu vivi ali com Ariel, quem sabe ali eu encontraria a resposta para como ajudar de fato. Eu não sou muito de me ater aos detalhes, mas eu me lembro muito bem de como estava abafada aquela terça, sabe esses dias que estão tão quentes que, do nada, chove? Estava assim. Passeando, eu, momentaneamente, fiquei feliz ao ver o Francisco ao longe, e notei um olhar estranho em seu rosto, ao me aproximar, mas ainda sem ser notada, vejo o restante do grupo. Vejo a Victoria, o Anthony, uma garota desconhecida e, claro, o Flávio. O Flávio estava junto da me- nina desconhecida, deu um beijo nela. Decidi me aproximar e cumprimenta-los. - Fala Galera, fala Francisco, Anthony, Victoria, Oi Flávio, prazer… - Samantha - disse a menina me estendendo a mão simpaticamente. - Que legal todo mundo reunido. Victoria, você tem falado com a Ariel? - Ela deu uma sumida né, estou preocupada com ela. - Pois é, acho que no momento certo ela fala o por- quê. Eu vi você beijando a... Samantha? - falei olhando para o Flávio. - Foi um selinho só, é nosso primeiro beijo né passa- 56 CACIANO KUFFEL rinho? Ela riu envergonhada e eu fiquei tonta e enjoada ao mesmo tempo. Ele estava fazendo de conta que eu não era nada, como se eu nem estivesse ali, e já tinha dado até um apelido carinhoso para a menina nova. Engoli a seco e tentei entrar na onda dele: - Ah, “passarinho” que bonitinho, como você ganhou o apelido, Samantha? - Ah, ele me acha livre, feito um passarinho, eu adorei o apelido, mas fico encabulada quando ele fala. - Ah que querida, se diverte com o brinquedinho novo, Flávio. – lancei feito vômito e fui embora enfurecida. De longe, eu ouvi um “Não dá bola, ela é louca”. Foi a primeira vez de muitas que eu ouvi isso, nunca vou esque- cer. Às vezes, quando um homem perde a razão, não tem mais argumentos ele usa um “ela é louca” pra tentar te des- merecer, te menosprezar, te jogar para baixo. Nesse tempo, eu ainda não entendia como essa palavra é, na verdade, forte e libertadora. Vocês imaginam como estava minha cabeça nessa hora? Eu não enxergava mais nada na minha frente. Vontade de vomitar, vontade de correr para qualquer lugar, vontade de me esconder dentro de mim. Eu gritei. Gritei alto, gritei no meio no parque, gritei no meio das pessoas passeando. E continuei andando como se nada tivesse acontecido. Eu não acredito que ele estava fazendo a mesma coi- sa que tinha feito comigo com uma outra menina, me senti usada, me senti nada, me senti vazia. Eu não tinha nem contando a parte boa para Ariel, nem a parte ruim do que eu tinha vivido com o Flávio, meus problemas pareciam tão pequenos perto dos dela. 57ELA É LOUCA 1414 Somos como a mola, quando nos encolhem voltamos com ainda mais força“ ” Sem força Sem forças para continuar Com vontade de parar Sem saber o que fazer Só com vontade de não ser Não ser quem me tornei Não amar quem eu eu amei Sem forças para tentar Com vontade de parar 58 CACIANO KUFFEL Eu fui até a casa da Ariel, ela estava sem aquele brilho de sempre no rosto, sem aquela força natural, ela estava só abatida, mais que o normal. Sua mãe não estava em casa, tentei ouvir ela: - Fala, Ariel, a gente vai dar um jeito. - Eu não sei como, a minha mãe falou com o hospital, o tratamento fica quatrocentos mil reais, nossa casa finan- ciada dá cem mil, e faltam um milhão de parcelas ainda. - Mas ela trabalha no hospital, eles não podem dar isso pra uma funcionária? - O plano de funcionário não cobre isso, não faz sen- tido, eles deixarem alguém morrer porque não pode pagar, é muito injusto. Minha mãe está desesperada. - Calma, é só dinheiro, tenho certeza que meu pai pode ajudar. Meus pais não eram ricos, longe disso, mas ele tra- balhava de contador, sempre lidamos bem com o dinheiro, meu pai sempre tinha soluções incríveis. - Eu não sei mais o que fazer, Alice, eu não tenho em- prego e mesmo se tivesse, não quero fazer minha mãe criar dívidas e quem sabe eu nem me… - interrompi antes que ela pudesse falar alguma bobagem. - Não pensa nisso, a gente vai dar um jeito, vamos com calma, o que dá pra gente fazer agora? - Eu tenho umas economias, dá para pagar as primei- 59ELA É LOUCA ras sessões. - Isso, vamos indo com calma, eu tenho algum di- nheiro guardado também e vou usar tudo que eu puder para pagarmos e, enquanto isso, pensamos em um jeito. Os dias se passaram, se arrastaram, como se fossem borrões, nada de novo, nada de excitante, nada de bom acon- teciam nesses dias nublados. Eu não tinha ideia de como eu iria ajudar Ariel, não tinha com quem compartilhar nem minha frustração amorosa, nem minha aflição para resol- ver a doença da Ariel. Resolvi falar com meus pais, a gente não conversa muito, meu pai contador não era muito bom com as palavras, minha mãe era carinhosa, mas eu não me sentia confortável falando com ela sobre as minhas coisas, não por ela, por mim mesmo. Como eu disse lá no início, eu não era de me abrir com ninguém,minha mãe entrava nesse barco. No jantar, eu resolvi falar do câncer da Ariel e, quem sabe, meu pai pudesse ajudar. Eles sempre gostaram muito da Ariel, tinham muito carinho por ela. - Não é possível, filha, ela é muito nova para enfren- tar isso na vida. - emocionou-se minha mãe. - Isso é irreversível, lembra que seu avô teve? Não tem escapatória, quando vem, não tem o que fazer. - Não fala bobagem, Valdir, ela é jovem, seu pai não estava mais tão jovem assim. - minha mãe sempre repreen- dia meu pai a cada palavra, mas dessa vez ela tinha razão, ela era jovem e podia lutar muito contra tudo isso. Meus pais falaram que poderiam vender o carro e ajudar com as sessões, não se importariam de dar o carro se fosse necessário. Mas mesmo assim o carro pagava apenas o início de tudo, não tinha muito o que fazer, nem meu pai, meu herói que sempre arranjava solução para tudo soube 60 CACIANO KUFFEL me ajudar. Eu estava perdida. Naquela noite, eu recebi uma mensagem direta na minha conta do Instagram, era de Soraia, ela queria me en- contrar para tomar um café, disse que eu ia gostar de ouvir ela. Eu duvidei, não fui muito com a cara dela quando a co- nheci, ainda tinha aquele lance o Flávio, mas quem sabe ela poderia me ouvir, estava precisando desabafar. Soraia era uma menina dessas que são bonitas, mas se vestem com tons escuros demais, com esses couros, e es- sas camisas de bandas de rock. Eu não sei vocês, mas pra mim, essas pessoas me dão medo de chegar perto, não por nada, só parece que elas não estão muito a fim de conversar, sabe? 61ELA É LOUCA 1515 Eu sou dessas que prefere um tapa de verdade do que um abraço de falsidade “ ” A ver dade É melhor um tapa de verdade que um abraço de mentira Quando você mais precisa de alguém, de costas ela te vira É melhor uma verdade que machuca do que uma mentira que te deixa bem Se for uma multidão de mentira eu prefiro estar sozinha sem ninguém 62 CACIANO KUFFEL Eu fui me encontrar com ela logo no outro dia pela manhã, ela sugeriu o parque, mas o tempo estava nublado, então eu sugeri uma padaria. Fomos realmente tomar um café. Na padaria, tinha uma torta red carpet que eu comi com os olhos, foi o que eu pedi, não estava com fome para um salgado. Sentamos afastadas de todo mundo, o lugar era acon- chegante, mas as poltronas tinham encostos péssimos, o que me fez ficar curvada pra frente. - Me contaram que você finalmente conheceu o Flá- vio, né? - começou ela com tom de seriedade e sobrancelha levemente arqueada. - Como assim, finalmente? - No início, ele parece uma pessoa ótima, isso até ele conseguir o que quer… - E o que quer, é… - Sexo... - concluiu ela - Ele é legal até conseguir tran- sar com você, aí depois ele te vê, ou sai com você de novo só se você correr muito atrás, senão, não faz questão de porra nenhuma. Me assustei com a agressividade do palavrão. - Foi o que aconteceu comigo, e eu encontrei ele no parque com outra menina, acredita? - Anthony me contou, a gente conversa, ele é uma boa pessoa. 63ELA É LOUCA - Ele é meio calado. - Ele não concorda com o que o Flávio faz, diz que é artificial, mas também não faz nada contra, eles são amigos e se protegem. - Eu percebi. E, você sabe, ele me deu um apelido... - Deixa eu adivinhar - interrompeu ela - O diminu- tivo de um animal, o meu era “castorzinho”, o que eu achei bonitinho no início, mas depois vi que era ofensivo, meus dentes não são tão grandes assim. - Então, ele me chamava de “coelhinho”, e eu vi ele chamando a outra menina de “passarinho” - Ele é um robô, faz tudo igual com todos, é um ba- baca. Aposto que ele te levou pra casa de campo dos pais, te mostrou quadros, falou que o pai dele pintou e vocês tran- saram depois de uma promessa de amor pra sempre dele, tô certa? - Caralho - nem eu acreditei no palavrão que saiu da minha boca - Exatamente o que aconteceu, como eu sou idiota! Mas e o quadro na parede? A história tinha tanto detalhe. - Ele é tão idiota que não sabe que aquele quadro é super famoso, chama Moça de brinco com pérolas, se você jogar na internet agora, você encontra. Eu joguei, era exatamente o mesmo quadro que ele tinha dito ser do pai dele, era um quadro de 1665, eu es- tava me sentido tão idiota, ao mesmo tempo me perguntei porque dela estar me contando isso. Foi então que ela me contou o porquê de ter me chamado. - A gente precisa expor esse idiota. Acredita que eu pesquisei e ele faz relatos das suas conquistas, com fotos, notas e detalhes nada agradáveis de suas presas num fórum 64 CACIANO KUFFEL na internet? Como se fossemos um jogo. - Eu não sei como posso ajudar você, por que você já não fez? - Se uma menina sozinha grita, ninguém escuta, você é a quarta menina que eu consigo falar, logo a Samantha vai ser a quinta, então com o relato de seis meninas. Quem sabe ele e todo mundo que faz parte desse forúm idiota sofra algo também. - Mas eu tô curiosa, por que você continuava saindo com eles, mesmo tendo percebido isso. - No início, eu saí porque fui fraca, mesmo saben- do disso tudo, eu gostava dele, ele parecia inteligente, mes- mo que perverso, ele sabia exatamente o que fazer com as mulheres, e isso de alguma forma me deixava atraída. Mas quando você entrou na vida dele, eu cansei de ser a outra opção, a amiga colorida que ele contava tudo, começou me embrulhar. Aí juntei todos os arquivos de conversas que ele teve comigo, inclusive de conversas me contando as técnicas e como fazia, e criei um dossiê. Estou pronta pra usar, posso contar com você? - Eu não sei, eu tenho medo de expor alguém, de me expor. - falei de cabeça baixa. - Pense nisso, se precisar falar com alguém, eu estou aqui, mesmo que decida não ajudar com isso, tá? Eu tinha mudado todo o ranço que sentia dela, agora ela me parecia uma mulher inteligente, e que sabia o que era errado. Mas eu estava cada vez mais tonta, era muito para minha cabeça. Naquele dia, Soraia me mandou alguns prints de conversas e links do fórum. Era baixo, era escroto. Ele não estava sozinho, existia um mundo de homens, termino- logias, mestres e gurus que usavam mulheres e agiam como 65ELA É LOUCA se não fossem nada a não ser um jogo. Eles nos expunham, riam da gente, recebiam dicas de como conseguir transar o mais rápido possível. Algumas das técnicas era só puxar com força e mandar ela obedecer. O que, pra mim, era a técnica de um estupro e não de uma conquista. Essas pesso- as mereciam, no mínimo, a cadeia. Expôr era pouco e eu ia embarcar nessa. A Soraia me adicionou no grupo com as outras mu- lheres. Todas eram lindas e tinham aquele sangue nos olhos, estavam muito bravas por terem sido expostas daquela ma- neira na internet. O argumento era que, se ele gostava de expor os outros, nada mais justo que ele ser exposto. 66 CACIANO KUFFEL No mar de decepção quem parece salva-vidas, só ajuda a afogar o que resta do seu coração“ ” r 1616Ma depce çãode Minha mãe é coisa mais preciosa pra mim Eu sei que ela também pensa assim Se o mundo estiver contra ela então estou contra o mundo Não abandonaria ela nem por um segundo Ela já fez tanto só para ver minha alegria Ela sempre foi e sempre será a minha melhor companhia 67ELA É LOUCA Na minha casa, meus pais continuavam abalados, eu continuava triste, era ruim ficar em casa. Minha mãe não parava de chorar, ela olhava nossas fotos antigas e chorava. Em determinado momento, eu achei estranho, não parecia mais que ela estava chorando apenas por causa da Ariel. Decidi perguntar: - Mãe, você tem algum outro problema? - Minha filha, sabia que você costumava perguntar sobre tudo quando era criança? Eu não sabia responder quase nada e seu pai sempre inventava uma resposta pra te deixar feliz. - e falando do meu pai, ela engasgou, e chorou ainda mais. - Mãe, o que aconteceu? - Eu não quero falar, me doí demais, são 20 anos jun- tos. - Mãe, você está me assustando. Neste momento, eu vejo descendo pelas escadasmeu pai com duas malas de viagem. - Pai, você está indo para onde? - Minha filha, eu troquei de carro, comprei um bem chamativo laranja pra você nunca mais se confundir com o nosso carro - brincou meu pai, lembrando da jamais esque- cida vez que eu entrei no carro errado. - Pai, por favor me explica o que está acontecendo. Meu pai ficou com a cara baixa, claramente envergo- 68 CACIANO KUFFEL nhado e minha mãe num acesso de fúria que eu nunca havia presenciado jogou o quadro que segurava contra a parede. - Fale pra sua filha, Valdir, quero ver com que cara você vai olhar para sua filha e falar essa palhaçada. - O que aconteceu, pai? Eu mereço uma resposta, o que está acontecendo? - O seu pai, filha, tem outra família, esses anos todos ele tinha outra família e eu crendo que tinha encontrado um homem bom. - É verdade, pai? - indaguei com a boca seca e o choro preso - É mais complicado que isso filha, eu sempre amei vocês duas, não é como se eu fosse uma pessoa ruim. - Olha a cara de pau desse homem, sai daqui Valdir. Sai daqui - deliberou minha mãe resgatando uma força que eu nunca vi. - Tchau, filha. Pode sempre contar comigo pra te bus- car na escola, ou para te contar uma história à noite, pra arrumar sua camisa ou te defender dos meninos da vida. - Olha o monstro dizendo que defende alguma coisa. - sarcasticamente interrompeu minha mãe. Agora, era eu e minha mãe sozinhas, como a mãe da Ariel e ela. As duas contra o mundo. Eu não podia acreditar que meu pai fosse essa pessoa, nunca pude desconfiar da ín- dole do meu pai, toda a imagem que eu tinha de um homem honesto, protetor, bondoso, tinha desaparecido em alguns minutos. Sério, desgraça pouca é bobagem... 69ELA É LOUCA1717 Na rua sombria da vida, encontrar uma rua sem saída é inevitável“ ” Semaísda. No fundo do poço, sem saída O que eu faço agora da minha vida? No fundo do poço, me afogando E eu não estou ao menos nadando No fundo do poço e não vejo como escalar às vezes parece que é mais fácil desistir de tentar 70 CACIANO KUFFEL Nós juntamos dinheiro entre minha mãe, eu, a Ariel e a mãe dela. Com a separação, minha mãe ficou com medo de faltar dinheiro pra gente, meu pai prometeu o carro, mas não para agora. Tinhamos onze mil reais. O hospital dis- se que podia começar o tratamento, mas só os honorários dos médicos dava muito mais que isso. Saúde é um negócio mesmo, né? Uma merda. Eu ia todos os dias ver a Ariel pra nos distrairmos, pensar em outra cois. Ela me pediu como estava o romance com o Flávio. Eu contei meu drama morrendo de vergonha porque não se comparava ao que ela estava vivendo. - Meu radar para homem escroto não falha. Eu sabia que era muito Don Juan pra pouco filme. - Mas, Ariel, eu não quero que tu pense nos meus problemas, tu já tem os teus para se preocupar. - Dizem que quando resolvemos os problemas dos outros os nossos parecem mais fáceis, e tu vai entrar nessa de expor ele com a Soraia? - Ele merece. Mas eu não sei se tenho coragem. Ela quer que eu grave um vídeo de frente para câmera contan- do. Eu não levo jeito com isso - Sei lá, eu acho que tu não tem nada a perder. Sabe quem veio me visitar? - ela parou tentando fazer suspense - O Robson. Veio me contar que saiu da loja, vai tentar traba- lhar com edição de vídeo agora, não aguentou sem nós - riu 71ELA É LOUCA triunfante. - Quem sabe ele possa dar uma mão para gente no projeto. Estava frio, o que era incomum para o mês em que estávamos, eu não tinha levado casaco, apesar do alerta da minha mãe. Era final da tarde, dava ainda pra ver no céu o laranja indo embora. Nos reunimos na casa da Soraia na- quela noite, tinha bolo, pastel e café. A casa dela era enorme, mas ficamos num escritório, ela disse que ajudava a pen- sar. Nós já tínhamos decidido que o nome do grupo ia ser Mulheres em Exposição. Criamos uma conta nas redes e fize- mos a logo. Decidimos que o primeiro vídeo seria contando a história da comunidade secreta dos meninos, com uma voz narrando e, no vídeo, somente legendas. Logo depois, iríamos pôr os nossos cinco vídeos, cada uma contando a sua história de frente para a câmera. Estávamos torcendo para que a Samantha também participasse do nosso vídeo. - Vocês não acham que é melhor contar pra ela, antes de ela ser exposta também? - perguntei olhando diretamen- te para Soraia. - Acho que ela não acreditaria, nós sabemos como ele pode manipular tudo, nos chamar de louca e dizer que é por ciúmes que inventamos tudo isso, né? - Pode ser. - concordei meio contrariada, não sei se achava certo usar a Samantha para a campanha ao invés de salvar ela, eu preferiria que alguém tivesse me contado toda a verdade sobre o Flávio antes. Ficamos até altas horas da noite escrevendo os rotei- ros. Pedimos uma pizza grande, que foi saboreada sem mui- ta atenção, estávamos focadas neste projeto. A ideia era lan- 72 CACIANO KUFFEL çar na semana seguinte. Eu liguei para o Robson que aceitou gravar e editar tudo pra nós, a gente ia ajudar ele, já que ele tinha saído do emprego anterior. Nos dias que se seguiram, eu fiquei horas em casa com minha mãe, e outras na Ariel jogando um jogo de ta- buleiro que ela adorava chamado Quest, que é um jogo de perguntas, se você acertar pode andar no tabuleiro. Ariel sempre disse que gostava porque não se tratava de sorte e sim de conhecimentos. O que eu sempre discordei porque ela sempre tinha a sorte de pegar as perguntas mais fáceis. Eu queria fugir do meu mundo, queria parar de pen- sar nos problemas, era muita coisa pra mim, eu estava real- mente pirando, me sentia sufocada com frequência, faltava ar quando eu estava quase pegando no sono, me sentia aper- tada em ambientes com muita gente. Nem ler, que é algo que eu sempre adorei eu conse- guia mais, me sentia sem foco, me perdia nas palavras, e tinha de voltar o capítulo todo para entender o que eu tinha acabado de ler. Tentei me perder em outra coisa por alguns minutos caminhando pela rua mais movimentada da minha cidade, com vários comércios, muita gente passando, pessoas te en- fiando panfleto e gente gritando promoção de chip a cinco reais. Passei em frente a um desses lugares que fazem tatu- agens e colocam piercings e de alguma forma a energia do lugar me convidou para entrar. Fiquei olhando as tatuagens na parede, as fotos de gente extremamente modificadas, nunca gostei desse exage- ro, mas sempre achei interessante pessoas tatuadas. Enquan- to olhava fui surpreendida por uma voz rouca e ao mesmo tempo suave. 73ELA É LOUCA - Já decidiu o desenho? - Como é? - perguntei sem entender, enquanto me virava para descobrir de onde vinha voz. - O desenho que quer tatuar. Era um rapaz cheio de tatuagens, algumas que inva- diam o pescoço, ele tinha cara de bonzinho, mas as tatua- gens davam uma quebra nisso, ele parecia jovem, e tinha um cabelo milimetricamente ajustado. - Ah não, só vim olhar de curiosidade, não quero ta- tuar nada não. – desconversei enquanto tentava sair. - É assim que começa, você ficaria linda com algum desenho no corpo. - ele fez uma pausa enquanto analisava meu corpo - Vamos brincar de faz de conta, se você tivesse que tatuar algo, o que tatuaria? - Acho que eu tatuaria uma frase, um poema, uma palavra. – considerei enquanto olhava para uma foto com uma tatuagem escrito “resiliência” na altura do ombro. - Acho que é uma boa para primeira, mas tem que ter significado para ti, ainda mais a primeira. - Claro, não quero tatuar algo vazio, eu não vejo gra- ça, tipo essas meninas que tatuam qualquer coisa só porque está todo mundo fazendo igual. – falei me referindo à tal “resiliência”. - Tu tem razão, mas essa tatuagem aí – apontou - É muito significativa para ela, ela passou por coisas difíceis na vida, que você jamais imaginaria, sobreviveu e ficou ainda mais forte, tem um significado profundo para ela. Eu fiquei alguns segundos pensativa, longe, será que ela tinha passado por coisas piores que eu? Eu
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