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Educação Especial: Identidades e Culturas Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Rutineia Cristina Martins Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievais e Modernas • Deficiência e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievais e Modernas • Conhecer concepções e representações de defi ciência nas sociedades antigas, medievais e modernas, tendo como foco as sociedades ocidentais. OBJETIVO DE APRENDIZADO Defi ciências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievais e Modernas Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas Contextualização A Catedral de Notre-Dame, retratada acima e incendiada em 15 de abril de 2019 é um dos cartões postais da cidade de Paris, na França e representa a arte e arquite- tura do período medieval. Também é cenário para o filme O Corcunda de Notre- -Dame, baseado na obra de Victor Hugo e que já teve várias versões para cinema e teatro. A história do personagem central do filme, Quasímodo, pode ilustrar o tratamento dado às pessoas com deficiência na Idade Média. Assim, convidamos a descobrir um pouco do que foram as concepções de deficiência nas Idades Antiga, Média e Moderna. Figura 1 – Catedral de Notre-Dame Fonte: Wikimedia Commons 8 9 Deficiência e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievais e Modernas A cultura de um povo é a soma ou produto de todos os outros povos que o in- fluenciaram. No caso do Brasil, de modo algum houve experiências únicas. Foram vários povos que formaram a nação e que aqui chegaram na condição de coloniza- dores, escravizados e imigrantes, além dos nativos. No país, há uma multiplicidade de experiências culturais vindas de diversos pontos do planeta. Assim, nesta unidade, vamos conhecer como alguns desses povos conceberam a deficiência através dos tempos e como isso influenciou as nossas concepções. Para isso, buscamos na Antiguidade os povos do Egito, Grécia e Roma, devido à importância que tiveram em seu tempo e que se estendeu para os dias atuais, com conceitos e descobertas válidos para diversas culturas. Somamos a esse conhe- cimento as ideias das sociedades medievais e modernas a respeito da deficiência, tendo como referência as sociedades ocidentais. O Egito Antigo e o Papel do Deficiente “O Egito, para onde se dirigem os navios gregos, é uma dádiva do Nilo.” (Heródoto) Figura 2 –Vale fértil do Rio Nilo Fonte: Getty Images A frase de Heródoto, historiador grego que viveu de 485 a 425 antes de Cristo, revela um pouco do que foi a civilização egípcia na Antiguidade. O Egito, cujas ori- gens remontam a aproximadamente 6000 anos a.C., localiza-se na região nordeste do continente africano, em área desértica. Faz divisa com o Sudão e o deserto da Líbia, sendo banhado pelos mares Vermelho e Mediterrâneo. 9 UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas A planície fértil do rio Nilo favoreceu o desenvolvimento dessa civilização, pois após as suas cheias, ocorridas entre julho e setembro, nas margens do rio se desen- volvia um limo que dava grande fertilidade àquelas terras, fomentando a agricultura e toda a economia do local. Por isso o Egito era considerado uma dádiva do Nilo, ou seja, fruto das riquezas produzidas do rio. Além dessas características geográficas, o Egito foi uma das civilizações mais desenvolvidas da Antiguidade. Por essa razão, questionamos: qual a concepção egípcia de deficiência? Que tratamento era dado aos deficientes? Diferente de outras civilizações antigas, o Egito Antigo dispensava tratamento de proteção, assistencialismo e tolerância à pessoa com deficiência. Isso se deve às tradições mantidas por esse povo. Anatalino (on-line) relata que uma delas é o ca- samento consanguíneo entre membros de famílias abastadas ou mesmo da realeza, com o objetivo de conservar a riqueza no núcleo familiar. Um exemplo está na mitologia egípcia, que trazia os deuses Ísis e Osíris, venerados pelo povo. Ele, deus do julgamento, do além e da vegetação e ela, a deusa do amor e da magia, considerada a mãe de todo o Egito. Os dois eram irmãos, mas considerados almas gêmeas, casaram-se e tiveram o filho Hórus, deus do céu. As relações incestuosas, ainda que gerassem filhos com deficiência, faziam parte daquela cultura. Registros e análises em suas múmias apontam que os faraós Tutancâmon e Akhenaton, também possuíam deficiências. De acordo com Anatalino (on-line), o primeiro apresentava deficiências físi- cas e intelectuais, enquanto Akhenaton também possuía deficiências congênitas, inclusi- ve epilepsia, considerada como doença espiritual naquela época. Figura 3 – Deus egípcio Osíris no tribunal subterrâneo Fonte: Wikimedia Commons Outra particularidade do Egito é ser considerado a “Terra dos cegos”, devido à grande quantidade de pessoas acometidas de doenças oftalmológicas, que na atua- lidade podem ser identificadas como glaucoma, catarata e conjuntivite. Os anões, discriminados em diversos povos e culturas, também tiveram lugar de destaque no Antigo Egito: além de respeitados, ocupavam posições de destaque na sociedade da época, como se afirma em pesquisa apresentada à Agência FAPESP (2006, on-line): 10 11 O estudo destaca que muitos anões foram membros das casas de altos oficiais e eram estimados a ponto de terem sido sepultados no cemitério real, próximo às pirâmides. Também foram identificados diversos deuses anões, entre os quais os mais conhecidos eram aqueles com poderes mágicos que protegiam vivos e mortos. Numerosos registros em tumbas, vasos, estátuas e outras formas de arte mostram ainda anões que trabalhavam como artistas, dançarinos, joalheiros ou pastores. “A imagem dos anões no antigo Egito é muito positiva. Eles estavam plenamente integrados e tinham um papel muito visível na sociedade”. Figura 4 – O anão Seneb e sua família Fonte: COSTA, 2016 Verificamos que, no Antigo Egito, a deficiência não era fator de exclusão e os deficientes eram integrados à sociedade, sendo integrados às atividades e retratadosem obras de arte, como O anão Seneb e sua família. O povo egípcio tinha cren- ças religiosas que pregavam a busca intensa pela espiritualidade. Dos preceitos da deusa da justiça Maat vinha a ideia de que não só o exercício de um rígido compor- tamento ético por parte de autoridades e pessoas mais aquinhoadas, mas também que pessoas de condição inferior, especialmente com deficiências físicas fossem tratadas com respeito (ANATALINO, on-line), como aparece em papiro egípcio: “Não deves zombar de um homem cego nem caçoar de um anão, nem prevalecer obre a condição de um aleijado. Não insulte um homem que está na mão de Deus, nem desaprove se ele erra, em razão da sua deficiência.”. 11 UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas Deficiência na Grécia: A Palavra dos Filósofos e Guerreiros A Grécia pode ser considerada o berço do pensamento ocidental, pois seus fi- lósofos oferecem fundamentação teórica para todas as áreas do conhecimento. Daí questionamos: como a deficiência era compreendida pelos gregos? Esparta e Atenas teriam os mesmos ordenamentos? As obras de Platão e Aristóteles, dois expoentes da filosofia grega, retratam as suas concepções sobre o nascimento de crianças com deficiência, o que é relatado na pesquisa de Gugel (2007, p. 63): Quanto a rejeitar ou criar os recém-nascidos, terá de haver uma lei segundo a qual nenhuma criança disforme será criada; com vistas a evitar o excesso de crianças, se os costumes das cidades impedem o abandono de recém- -nascidos deve haver um dispositivo legal limitando a procriação se alguém tiver um filho contrariamente a tal dispositivo, deverá ser provocado o aborto antes que comecem as sensações e a vida (a legalidade ou ilegalida- de do aborto será definida pelo critério de haver ou não sensação e vida). O trecho está na obra Política, de Aristóteles e revela a contrariedade ao nas- cimento de crianças consideradas disformes, as quais se pode entender que são aquelas cujos órgãos se encontram em situação de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, isto é, as pessoas com deficiências. Podemos perceber que o trecho propõe a criação de dispositivos legais que impe- çam a procriação de tais crianças. Assim como Aristóteles, Platão, na obra clássica denominada A República, em seu livro IV, escrito em 460 a.C. também faz considerações a esse respeito: “Pegarão en- tão os filhos dos homens superiores, e levá-los-ão para o aprisco, para junto de amas que moram à parte num bairro da cidade; os dos homens inferiores, e qualquer dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto, como convém.” Figura 5 – Platão e seus alunos na Academia do Jardim Fonte: Wikimedia Commons 12 13 Mais uma vez aparece o termo disforme, que entendemos como alguém que não tem as formas perfeitas e verificamos que a orientação é de escondê-los do restante da sociedade, considerando-os indignos de serem vistos pelos demais. Ainda que houvesse a rejeição aos recém-nascidos com deficiência, em Atenas, os pequenos tinham respaldo legal para não serem mortos. Em Esparta, cidade- -estado grega que também se destacava pelo militarismo, a pessoa que nascia com deficiência não tinha lugar na sociedade. Quando uma criança nascia, independente da deficiência, os pais deveriam apresentar os filhos a um Conselho de Espartanos, órgão composto por anciãos e que tinham poder para decidir questões importantes da sociedade espartana. Caso o conselho avaliasse a criança como forte e saudável, a mesma seria devol- vida à família e criada por ela. Conforme Garcia (on-line), se a criança apresen- tasse qualquer tipo de limitação aparente, mostrando-se “feia, franzina ou disfor- me”, os anciãos, em nome do Estado, tomavam para si a criança e a atiravam no abismo, considerando que estavam fazendo um bem para a criança, que tinha poucas chances de sobreviver e, caso conseguisse, não teria como se adaptar em uma sociedade cujos esforços se voltavam para a preparação e guerra. Também era um benefício para o Estado, que precisava de guerreiros fortes e saudáveis para a defesa de seu território. Outro ponto questionável a respeito da situação dos deficientes em Esparta se refere aos soldados que se feriram em guerras representando a sua cidade-es- tado e adquiriram deficiências ao perderem membros, visão ou outros compro- metimentos em função de ferimentos de guerra. Sobre eles, há poucos registros. Isso é a plena expressão do desprezo ao deficiente: são exaltados quando o passado remete à glória, mas quando sucumbem, não fazem parte da história. O Grande Império Romano e a Deficiência No século VIII a. C. (antes de Cristo), surgiu, na Península Itálica, uma civi- lização que se tornou um dos maiores impérios do mundo, a qual conhecemos por Roma Antiga, pois teve seu apogeu durante a Antiguidade. Nossa análi- se se volta para o período do Império Romano, período compreendido entre 27 a. C. e 476 d. C. (depois de Cristo): tempo em que os romanos lançaram-se às conquistas e ampliaram seus domínios até limites impensáveis para a época e condições. Também abordaremos o início do Cristianismo, que traz formas diferentes de pensar a deficiência na Antiguidade. 13 UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas Importante! Roma também teve no seio de seu comando muitos imperadores que apresentavam al- gum tipo de deficiência, como: Caio Júlio César, Ápio Cláudio, Cláudio I e Nero. Só que suas deficiências eram “escondidas” e ignoradas pelo povo, devido ao poder que estes possuíam em suas mãos para governar. Além desses imperadores, Roma teve muitos ou- tros imperadores com deficiências, que são: Galba, que apresentava problemas nas mãos e nos pés; Othon, com deformação física nas pernas; e Vitélio, que possuía grave lesão nas pernas (BEZ, (s/d) In: BEZ, Volnei Martins. O Ocaso dos mitos. In: Revista Vivência. Fundação Catarinense de Educação Especial. n. 14, p. 5-9. São José, SC). Você Sabia? Por ser um estado de vocação conquistadora, sempre em busca da ampliação dos seus limites, no Império Romano, o ideal almejado era de um corpo mascu- lino forte e saudável, capaz de enfrentar as batalhas para obter novas conquistas. Assim como na Grécia, dedicavam-se à prática constante de exercícios físicos para garantir velocidade, força e uma linhagem também robusta e saudável. As mulhe- res eram educadas para servirem aos seus pais e posteriormente seus maridos. Era desejado que tivessem corpos saudáveis para gerarem filhos fortes que pudessem dar continuidade à linhagem guerreira de seus pais. Figura 6 – Gladiadores Fonte: Getty Images Um depoimento que ilustra a concepção de como deveriam ser os corpos está em carta de Sêneca (FASTER, on-line), filósofo romano, a seu amigo Lucílio sobre seu ex-colega Claranus, o qual não encontrava havia muitos anos e o viu feio e dis- forme: “Porque a Natureza agiu injustamente quando deu um domicílio pobre para uma alma tão rara; [...]. Um grande homem pode surgir numa choupana; da mesma forma que uma alma bonita e grandiosa pode surgir num corpo feio e insignificante”. 14 15 No texto, não há explicações sobre o que é a disformidade, contudo, o contexto nos dá pistas de que seja a deficiência ou outro tipo de alteração física que altere a beleza dos corpos. Sêneca completa: “Eu acho que Claranus foi feito como um padrão, a fim de que possamos entender que uma alma não fica desfigurada pela feiúra de um corpo, mas, pelo contrário, um corpo pode ser embelezado pela graça da alma” (“Cartas a Lucílius”, de Sêneca). Nessa sociedade que tem como objetivo a perfeição dos corpos, como fica a questão da deficiência? A esse respeito, a Lei das Doze Tábuas, legislação primitiva romana dá o dire- cionamento das concepções daquela sociedade: Tábua IV - Sobre o Direito do Pai e do Lei III - Sobre o direito do pai e do casamento: O pai de imediato matará o filhomonstruoso e contra a forma do gênero humano, que lhe tenha nascido recentemente. (“Tabula IV - De Jure Pátrio et Jure Connubii) Lex III - Pater filium monstrosum et contra formam generis humanae, recens sibi natum, cito necato”). Podemos entender a monstruosidade como a deficiência, um contracenso para uma sociedade que almejava o vigor físico para a participação em guerras e conquis- tas. A legislação citada deu origem ao Direito Romano, que consolidava a ideia de que era proibida a morte intencional de crianças menores de 3 anos, exceto quando fossem mutiladas. Por isso os deficientes deveriam ser eliminados, sendo que aos recém-nascidos sem “vitalidade, com distorções da forma humana (FASTER, on-line) ou nascidos antes do 7º mês de gestação deveriam ser negados os direitos, ou seja, a vida, primeiro direito da criança romana ao nascer. Naquela época, a Medicina não contava com um corpo de conhecimentos sólidos para classificar os males aparentes dos recém-nascidos, de modo que a monstru- osidade seria desde a aparência animalesca, ausência, mutilação ou imperfeições nos membros. De maneira semelhante à Esparta, para constatar a anomalia ou mutilação da criança, o pai deveria apresentá-la a um grupo de cinco vizinhos para se certificar da existência de anomalias ou mutilações. Após a constatação, poderia se solicitar o afogamento da criança pela própria parteira ou que a mesma fosse exposta nas proximidades do rio Tibre e outros lugares considerados sagrados por serem dedicados aos deuses, como templos e bosques. Nos lugares citados, em muitas ocasiões, as crianças com deficiências eram co- locadas em cestas enfeitadas antes de serem abandonadas às margens do rio Tibre. Nem todas elas morriam, visto que algumas eram salvas por famílias plebeias ou escravizadas, que as recolhiam com o objetivo de explorá-las tempos depois, dando a elas a tarefa de pedir esmolas nas ruas de Roma para a própria sociedade que as condenou à morte. Um contraponto existente na Antiguidade Clássica era a situação dos surdos – uma vez que era uma condição pouco visível nos recém-nascidos, não costumava dar o mesmo destino como o dado para aqueles que logo eram tidos como deficien- tes visíveis e/ou com alguma deformação (SILVA e CAMPOS, o41). Entretanto, sua 15 UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas participação na sociedade não era efetiva, visto que, sem a utilização da língua oral, ficavam excluídos dos grupos e impossibilitados para outras aprendizagens, à medi- da que não havia preocupação em adaptar métodos e técnicas para a conversação com surdos, principalmente nas sociedades que valorizavam a oratória. Por essas razões, os surdos ficavam excluídos das práticas cotidianas. Ao crescerem, havia outras formas de exploração da pessoa com deficiência, como colocar homens cegos como remadores na travessia do rio Tibre, encami- nhar meninas e adolescentes cegas para prostíbulos ou encaminhá-los para um mercado especial de venda de pessoas sem os membros, anões, hermafroditas ou outras categorias de deficiências consideradas monstruosidades, como afirmou Durant (1987) em sua obra História das civilizações. Ainda em Roma, um fato histórico que marcou as concepções sobre a pessoa com deficiência foi a instituição do Cristianismo como religião oficial do Império Romano, o que ocorreu em 391 d. C., pelo imperador Teodósio, após os cristão terem sido perseguidos por quase 300 anos e depois terem tido a liberdade de culto em 313 d. C., pelo imperador Constantino. Foi um momento em que essas pessoas começaram a escapar do abandono para serem acolhidas por instituições religiosas, destinadas ao cuidado de despro- tegidos, doentes e infelizes de toda espécie (UFMS, on-line). Essas instituições, em sua maioria conventos e igrejas, tinham a função de acolhimento e proteção, porém, não havia preocupação com o respeito, bem estar e inserção da pessoa com deficiência na sociedade. Permaneciam desconsideradas e escondidas de todos e isoladas do convívio social, o que pode ser justificado na cultura religiosa cristã (MAZZOTTA, 1996, p.16): A própria religião, com toda sua força cultural, ao colocar o homem como ‘imagem e semelhança de Deus’, ser perfeito, inculcava a idéia da condição humana como incluindo perfeição física e mental. E não sen- do ‘parecidos com Deus’, os portadores de deficiência (ou imperfeições) eram postos à margem da condição humana. Essa mudança de concepção surge no momento de transição entre as eras Antiga e Média, mas representou avanço significativo nos posicionamentos cultu- rais em relação aos deficientes porque a ideia de matar começou a ser excluída, embora houvesse grande caminhada em relação a um ideário de igualdade de condições nas sociedades. Idade Medieval: Entre as Trevas e o Avanço nas Concepções A Idade Média foi um longo período da história que se estendeu do século V ao século XV. Seu início foi marcado pela queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e o fim, pela tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453 (BEZERRA, 16 17 on-line). Os humanistas a denominam “Idade das Trevas” por considerarem que houve retrocesso intelectual nas artes e filosofia. O conhecimento científico sobre as doenças e suas causas era precário e pouco avançou. Unirio (on-line) aponta que os aspectos culturais foram marcados pela falta de educação, informação, medo do desconhecido e uso de significados religiosos e sobrenaturais para explicar as deformidades físicas e os comprometimentos mentais e sensoriais. Ou seja, havia completa ignorância sobre as origens e significados das deficiências. Embora o advento do Cristianismo tenha trazido visões e tratamentos diferentes sobre a deficiência, imbuídos de ideais cristãos voltados para a caridade e a piedade, as incapacidades físicas, problemas de ordem mental e más formações congênitas eram compreendidos como castigos e sinais de ira divina. Mais um motivo para essas pessoas serem vistas de maneira diferente: até Deus as castigou e encarcerou em corpos e mentes inoperantes. Além dos deficientes de nascença, havia aqueles que sofriam sequelas de doenças como hanseníase, peste bubônica, difteria e outros males que tornavam as pessoas incapazes para a vida normal. Numa época em que não existiam políticas públicas de assistência social, aqueles que adquiriram deficiência, como perda auditiva ou visual ou se tornaram doentes crônicos, passaram o resto dos seus dias em situação de extrema pobreza ou envolvidos com a marginalidade. O rei Luís IX, cujo reinado ocorreu entre 1214 e 1270, fundou o primeiro hospital para pessoas cegas, o Quinze-Vingts. Quinze - Vintes significa 15 x 20 = 300. Era o número de cavaleiros cruzados que tiveram seus olhos vazados na 7ª Cruzada. (GUGEL, on-line). Ex pl or Com essa mentalidade, a ideia que se formava era que pessoas deficientes, maltrapilhas e pedindo esmolas pelas ruas estavam também deformadas em seus pensamentos e atitudes. Para exemplificar um pouco do que foi escrito, buscamos um exemplo na litera- tura clássica: o livro Notre-Dame de Paris (em português, Nossa Senhora de Paris) ou O corcunda de Notre-Dame, publicado inicialmente em 1831, com diversas tra- duções e adaptações para cinema, teatro e outros veículos. O Corcunda de Notre-Dame Originalmente intitulado Nossa Senhora de Paris, o célebre romance de Victor Hugo não se centra propriamente em Quasímodo. Aliás, o personagem só surge no título em 1833, com a tradução inglesa. A obra, passada no ano de 1482, pretendia ser um retrato da sociedade e da cultura francesa do século XV, funcionando enquanto representação histórica do período. Leia mais sobre em: http://bit.ly/2Q1tIYL Ex pl or 17 UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas Essa obra foi citada porque reuniu vários elementos apontados na cultura medie- val a respeito da deficiência, ainda que o personagem Quasímodonão apresente um quadro explícito de deficiência, mas, de deformidades que o levam a ser visto como deficiente pela sociedade. Em função de suas anomalias, Quasímodo foi abandonado, recolhido em instituição e vítima de toda a repugnância da sociedade por estar fora dos padrões de normalidade e beleza. Por conta disso, permaneceu escondido, como todos que não se encaixavam nos padrões. A Modernidade e as Concepções de Deficiência O período histórico conhecido como Idade Moderna, subsequente à Idade Média, tem como marco a queda da cidade de Constantinopla, perante os turcos otomanos em 1453 e seu fim se dá com a queda da prisão de Bastilha, na França, em 1789, dando início à Revolução Francesa. A Modernidade é um período marcado por mui- tas mudanças que deram origem ao surgimento das bases sociais e econômicas da sociedade atual, com o impacto da formação dos estados nacionais e renascimento científico cultural e da Reforma Protestante. Vemos aí mudanças de diversas ordens, com impacto nos hábitos, costumes e formas de pensar. E quanto às pessoas com deficiência? Haverá novo olhar? Será possível uma cultura diferente das concepções de morte, miséria e desprezo de outros períodos históricos? Ao fim da Idade Média, meados do século XV, as pessoas com deficiência es- tavam completamente inseridas no contexto de marginalidade e pobreza em que estavam as pessoas pobres, enfermas ou em situação de mendicância. A piedade religiosa acolhia, de certa forma, sem nenhuma inclusão ou perspectiva de melhoria. Ainda que, de início, haja poucas mudanças culturais em relação à concepção de deficiência, um dos fatores que favoreceram as condições de vida dessas pessoas foi o Renascimento científico e cultural, que não resolveu os problemas imediatamente, contudo, tratou de forma mais esclarecida e racional, ancorados em uma filosofia humanista, progressos científicos e sociais, quando as nações em formação, deram início ao advento dos direitos universais, com a promulgação de suas constituições. As mudanças culturais instauraram um período de antropocentrismo, em que o ser humano é colocado como o centro dos processos, o que determinou o reconhe- cimento do valor humano. Em paralelo a isso, houve avanços na ciência que, nos dizeres de Silva (1987, p. 226), libertaram o homem dos dogmas e crendices típicos da Idade Média: [...] o homem deixou de ser um escravo dos “poderes naturais” ou da ira divina, posto que houve pesquisas que buscaram as causas científicas das doenças e deficiências, revolucionando a vida dos pobres, enfermos e das pessoas com problemas físicos, mentais ou sensoriais. 18 Jessyka Marcela 19 Essas descobertas fizeram com que a ideia de dar cuidados próprios à pessoa com deficiência fosse fortalecida, oferecendo atenção diferenciada às suas parti- cularidades. Desse modo, no século XVI, foram dados passos significativos para melhoria do atendimento a essas pessoas, principalmente aos deficientes auditivos, considerados ineducáveis até então, como se explica a seguir. Alguns fatos importantes, conforme Gugel (on-line): Tabela 1 DATA FATO / INVENÇÃO AUTOR Século XVI Invenção de método para ensinar a pessoa surda a ler e a escrever. Gerolano Cardamo 1620 Publicação de Reduction de las letras y arte para ensinar a hablar los mudos, sobre as causas da deficiência auditiva e apresentação do alfabeto em língua de sinais pela primeira vez. Juan Pablo Bonet Século XVI Pesquisas para encontrar a cura para ferimentos de guerra que causavam amputações. Grande contribuição para a criação de próteses. Ambroise Paré, médico francês que atendia em campos de batalha. Século XVI Desafiou o reformador luterano Martinho Lutero ao descumprir ordens de afogar crianças com deficiência mental. Joaquim Anhalt, príncipe da Alemanha. Século XVI e XVII Criação, em toda a Europa, de confrarias para mendicância organizada por pobres, mendigos e pessoas com deficiência, com divisão de lucros e cobrança de taxas. Paul Lacroix, jornalista que se dedicou a escrever sobre o assunto. 1655 Invenção da cadeira de rodas autopropulsada. Stephen Flarfer, relojoeiroalemão paraplégico. Séculos XVII e XVIII Grande desenvolvimento no atendimento às pessoas com deficiência em hospitais. Havia assistência especializada em ortopedia para os mutilados das guerras e para pessoas cegas e surdas. – Século XVIII Estudos explicam que pessoas com perturbações mentais devem ser tratadas como doentes, ao contrário do que acontecia na época, quando eram tratados com violência e discriminação. Phillipe Pinel, médico psiquiatra francês. Outras iniciativas foram tomadas no intuito de melhorar as condições de vida das pessoas com deficiência. Essas ações, que indicavam preocupações de grupos ou agentes individuais sinalizavam mudança de mentalidade em relação aos deficientes, interferindo na cultura existente, na qual o deficiente tinha um perfil marginal. Inicia- -se um movimento de mudança, que perdura até os dias atuais, em que convivem a repugnância e a cultura de inclusão. A Modernidade também trouxe a divulgação da deficiência de grandes per- sonalidades em suas áreas que eram ou tornaram-se deficientes e continuaram realizando trabalhos destacáveis, como se vê em novo quadro, de acordo com Gugel (on-line): 19 UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas Tabela 2 Personalidade Área Deficiência Luís Vaz de Camões Poeta português, escritor de Os Lusíadas. Visual: perdeu a visão de um dos olhos em batalha no Marrocos. Galileu Galilei Físico, matemático e astrônomo italiano. Em consequência de reumatismo, ficou cego nos últimos anos de sua vida, mas permaneceu fazendo pesquisas científicas Johannes Kepler Astrônomo alemão, desenvolveu estudos sobre o movimento dos planetas. Deficiência visual. John Mílton Poeta inglês, autor de Paraíso Perdido. Deficiência visual. Figura 7 – Johannes Kepler (1571-1630) Fonte: Wikimedia Commons Após estudarmos um pouco sobre o que foram as concepções de deficiência na Modernidade, percebemos que nessa época houve um grande avanço no trata- mento dado às pessoas com deficiência, embora saibamos que as questões culturais avançam em menor velocidade que a ciência. Contudo, as ações e descobertas favoreceram o princípio de uma nova mentalidade e forma de conceber a pessoa com deficiência. Permanecia a ideia de que deficientes e outras categorias de desfa- vorecidos deveriam ser afastados ou asilados, mas já se buscava o consenso de que não bastava o isolamento, era preciso que essas pessoas tivessem atenção individu- alizada voltada para as particularidades de sua deficiência. Junta-se a isso a preocu- pação em buscar meios de reabilitar a pessoa que adquiriu deficiência em combates de guerra, defendendo a sua nação, algo muito comum nas sociedades antigas e medievais mas, com poucas soluções. 20 21 Importante! Podemos resumir esta unidade nas palavras-chave: Antiguidade Clássica (Grécia e Roma): deficiência como exclusão e morte; Egito: deficientes participantes da sociedade; Idade Medieval: exclusão e acolhimento cristão; Idade Moderna: novas concepções a partir do Renascimento e estudos e pesquisa para melhoria das condições de vida. Em Síntese 21 UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Sites Bengala Legal http://bit.ly/2ZRMWVp AMPID – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência http://bit.ly/2ZQQ2c5 Livros Os infames da História: pobres, escravos e deficientes no Brasil LOBO, L. Os infames da História: pobres, escravos e deficientes no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2008. A Epopeia Ignorada: A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje SILVA, O. M. da. A Epopeia Ignorada: A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje. SãoPaulo: CEDAS, 1986. Filmes O Nome da Rosa Direção: Jean Jacques Annaud. Produção: Bernd Eichinger. Local: Itália. Ano: 1986. Duração: 126 min. 22 23 Referências AGÊNCIA FAPESP. Anões no Antigo Egito. Disponível em: <http://agencia.fa- pesp.br/anoes-no-antigo-egito/4849/>. Acesso em: 21 jun. 2019 ANATALINO, J. Deficiente na cultura greco-romana. Disponível em: <https://www. recantodasletras.com.br/artigos-de-educacao/6141362>. Acesso em: 26 jun. 2016. BEZERRA, J. Idade Média. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/ idade-media/>. Acesso em: 28 jun. 2019. DIANA, D. Osíris. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/osiris/>. Acesso em: 21 jun. 2019. DURANT, W. História da Civilização. São Paulo: Companhia Editora Nacional. FASTER, C. Roma Antiga e as pessoas com deficiência. Disponível em: <http://www.crfaster.com.br/Roma.htm>. Acesso em 27 jun. 2019 GARCIA, V. 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PINTO, T. dos S. O que é Idade Moderna? Brasil Escola. Disponível em: <https:// brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-e-idade-moderna.htm>. Acesso em: 29 de junho de 2019. SILVA, D. Roma Antiga. Disponível em: <https://www.todoestudo.com.br/histo- ria/roma-antiga>. Acesso em: 27 jun. 2019. 23 UNIDADE Deficiências e suas Representações nas Sociedades Antigas, Medievaise Modernas SILVA, E.; CAMPOS, M. O percurso dos surdos na história e a necessidade da LIBRAS para a inclusão dos sujeitos na escola. Disponível em: <https:// www.editorarealize.com.br/revistas/joinbr/trabalhos/TRABALHO_EV081_MD1_ SA144_ID1281_12092017192714.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2019 SILVA, O. A epopeia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de on- tem e hoje. São Paulo: CEDAS, 1987. UFMS. Fundamentos da Educação Especial. Campo Grande: UFMS. Disponí- vel em: <http://coral.ufsm.br/edu.especial.pos/unidadeA_fund.html>. Acesso em: 28 jun. 2019. UNIRIO. 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