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2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 3 2 Marcos teóricos da Epidemiologia .............................................................. 4 3 História Natural e Prevenção das Doenças .............................................. 13 3.1 Período de pré-patogênese ................................................................ 15 4 Processo Saúde-Doença .......................................................................... 26 5 Análise exploratória de dados epidemiológicos ........................................ 30 5.1 Estudos Ecológicos ............................................................................ 33 5.2 Estatística Espacial ............................................................................ 35 6 Medidas de frequência em Saúde Coletiva............................................... 38 7 Inferência em epidemiologia ..................................................................... 43 8 Vigilância Epidemiológica ......................................................................... 46 9 O Processo Endêmico .............................................................................. 56 10 Integração saúde populacional e políticas públicas ............................... 59 10.1 Sistema de saúde integrado para atender a população .................. 63 10.2 Sistema de atendimento único e igual de saúde ............................. 65 10.3 Direito do cidadão e dever do Estado ............................................. 67 11 REFERÊNCIAS ..................................................................................... 69 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 MARCOS TEÓRICOS DA EPIDEMIOLOGIA Fonte: centroredes.org.ar Epidemiologia pode ser definida como a ciência que estuda o processo saúde doença em coletividades humanas, analisando a distribuição e os fatores determinantes das enfermidades, danos à saúde e eventos associados à saúde coletiva, propondo medidas específicas de prevenção, controle ou erradicação de doenças e fornecendo indicadores que sirvam de suporte ao planejamento, administração e avaliação das ações de saúde (ROUQUAYROL; GOLDBAUM; SANTANA, 2013). Portanto, de forma simplificada, o termo “epidemiologia” significa o estudo sobre a população, que direcionado para o campo da saúde pode ser compreendido como o estudo sobre o que afeta a população. A epidemiologia congrega métodos e técnicas de três áreas principais de conhecimento: estatística, ciências biológicas e ciências sociais. A área de atuação da epidemiologia é bastante ampla e compreende em linhas gerais (PEREIRA, 2013): O ensino e pesquisa em saúde; A descrição das condições de saúde da população; A investigação dos fatores determinantes da situação de saúde; A avaliação do impacto das ações para alterar a situação de saúde. 5 A epidemiologia tem como princípio básico o entendimento de que os eventos relacionados à saúde (como doenças, seus determinantes e o uso de serviços de saúde) não se distribuem ao acaso entre as pessoas. Há grupos populacionais que apresentam mais casos de certo agravo, e há outros que morrem mais por determinada doença. Tais diferenças ocorrem porque os fatores que influenciam o estado de saúde das pessoas não se distribuem igualmente na população, portanto, acometem mais alguns grupos do que outros (PEREIRA, 2013). Em síntese, pode-se afirmar que a distribuição das doenças na população é influenciada pelos aspectos biológicos dos indivíduos, pelos aspectos socioculturais e econômicos de sua comunidade e pelos aspectos ambientais do seu entorno, fazendo com que o processo saúde-doença se manifeste de forma diferenciada entre as populações. Analisando-se a evolução da epidemiologia ao longo dos anos, pode-se observar que os conceitos descritos acima, e que já estão tão bem consolidados dentro do campo científico, precisaram ser reformulados à medida que as descobertas científicas avançavam no campo da saúde, principalmente no que se refere ao processo saúde-doença (GOMES, 2015). Os primeiros registros sobre a concepção da epidemiologia enquanto manifestação da doença nos indivíduos e nas populações datam da Grécia Antiga, período em que se acreditava que as enfermidades e seus desfechos (cura ou morte) eram consequências da punição ou indulgência dos deuses e demônios. Contrapondo-se a tal crença, o médico grego Hipócrates, ao analisar o processo de adoecimento com base no pensamento racional, afastou-se das teorias sobrenaturais vigentes na época e a elas se contrapôs, introduzindo o conceito de doença como produto das relações complexas entre o indivíduo e o ambiente que o cerca, o que se aproxima muito do modelo ecológico da produção de doenças, vigente até os dias atuais (PEREIRA, 2013). A teoria de Hipócrates foi perpetuada na Roma Antiga pelo médico Galeno, mas perdeu força e foi substituída pela Teoria Miasmática ou Teoria dos Miasmas, que perdurou até meados do século XIX. Tal teoria explicava a má qualidade do ar como causa das doenças. Durante a segunda metade do século XIX, a epidemiologia sofreu uma grande revolução a partir dos estudos pioneiros do médico e sanitarista britânico John Snow sobre a epidemia de cólera em Londres (1849-1854) (PEREIRA, 2013). 6 Com base no mapeamento dos casos, óbitos, do comportamento da população (consumo de água) e dos aspectos ambientais da localidade em estudo, ele conseguiu incriminar o consumo de água contaminada como responsável pela ocorrência da doença. Tal constatação só pode ser confirmada 30 anos mais tarde, com o isolamento do agente etiológico da doença (SNOW, 1999. Apud PEREIRA, 2013). Tal feito rendeu a John Snow o título de “Pai da Epidemiologia”, uma vez que conseguiu através de um extensivo e minucioso trabalho de investigação científica – considerado um estudo clássico da Epidemiologia de Campo, determinar a fonte de infecção de uma doença, mesmo sem conhecer seu agente etiológico. Ao final, relatou que as feições clínicas da doença revelavam que “o veneno da cólera entra no canal alimentar pela boca, e esse veneno seria um ser vivo, específico, oriundo das excreções de um paciente com cólera. [...] Assinalou, afinal, que o esgotamento insuficiente permitia que os perigosos refugos dos pacientes com cólera se infiltrassem no solo e poluíssem poços” (PEREIRA, 2013). Fonte: enlinea.santotomas.com Outro cientista marcante do século XIX foi o francês Louis Pasteur (1822-1895), considerado o “Pai da Bacteriologia”, pois identificou inúmeras bactérias e tratou diversas doenças. Ele influenciou profundamente a história da epidemiologia, pois introduziu as bases biológicas para o estudo das doençasinfecciosas (PEREIRA, 2013), determinando o agente etiológico das doenças e possibilitando o estabelecimento futuro de medidas de prevenção e tratamento. Sem sombra de dúvidas os séculos XIX e XX foram marcados pela influência da microbiologia sobre a epidemiologia, uma vez que permitiu não apenas identificar 7 os principais agentes etiológicos envolvidos na transmissão de doenças infectocontagiosas responsáveis por altas taxas de morbimortalidade (tuberculose, influenza, varíola, peste, entre outras), mas também possibilitar o desenvolvimento de medidas de prevenção e tratamento dessas enfermidades (GOMES, 2015). Nesse período, a epidemiologia ganhou destaque científico e acadêmico, com a construção de inúmeros institutos de pesquisa no Brasil e no mundo (Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Pauster, London School of Hygiene & Tropical Medicine, etc.) e a ampliação da sua área de atuação, que culminou na subdivisão desta ciência, como é o caso da Epidemiologia Nutricional, que, segundo Pereira (2013), elucidou as causas de algumas doenças tidas como infecciosas, mas que, na realidade, eram de natureza nutricional. Alguns exemplos desses achados são: prevenção do escorbuto (doença causada pela deficiência severa de vitamina C), do beribéri (deficiência de tiamina – vitamina B1) e da pelagra (deficiência de niacina) (GOMES, 2015). Por fim, pode-se afirmar que, do final do século XX até os dias atuais, a epidemiologia se firmou enquanto ciência, baseada em pesquisas e evidências científicas que visam à determinação das condições de saúde da população e à busca sistemática dos agentes etiológicos das doenças ou dos fatores de risco envolvidos no seu aparecimento, através de diferentes tipos de estudos (ex.: estudos de coorte, caso-controle) e da avaliação de intervenções em saúde para o efetivo controle das doenças que acometem a população. Como observado no tópico anterior, a epidemiologia tornou-se ao longo dos anos uma ciência ampla que abriga inúmeras áreas do conhecimento e muitas subdivisões, tais como (PEREIRA, 2013): No entanto, em linhas gerais, ela apresenta três grandes áreas de atuação (PEREIRA, 2013): Epidemiologia clínica; Epidemiologia investigativa; Epidemiologia nutricional; Epidemiologia de campo; Epidemiologia descritiva; etc. A partir das primeiras décadas, com a melhoria do nível de vida, especialmente nos países desenvolvidos, e com o conseqüente declínio na incidência das doenças infecciosas, outras enfermidades de caráter não-transmissível (doenças 8 cardiovasculares, câncer e outras) passaram a ser incluídas como objeto de estudos epidemiológicos, além do que, pesquisas mais recentes, sobretudo as que utilizam o método de estratificação social, enriqueceram esse campo da ciência, ensejando novos debates. Atualmente, além de dispor de instrumental específico para análise do perfil de saúde-doença na população, a epidemiologia possibilita aclarar questões levantadas pelas rotinas das ações de saúde, gerando novos conhecimentos. Seu fim último é contribuir para a melhoria da qualidade de vida e o soerguimento do nível de saúde das coletividades humanas (ROUQUAYROL, 2003). Uma definição precisa do termo epidemiologia não é fácil: sua temática é dinâmica e seu objeto, complexo. Pode-se, de uma maneira simplificada, conceituá- la como: ciência que estuda o processo saúde-doença em coletividades humanas, analisando a distribuição e os fatores determinantes das enfermidades, danos à saúde e eventos associados à saúde coletiva, propondo medidas específicas de prevenção, controle, ou erradicação de doenças, e fornecendo indicadores que sirvam de suporte ao planejamento, administração e avaliação das ações de saúde (ROUQUAYROL, 2003). Fonte: fcsanahuac.com Esta definição pode ser aclarada pelo aprofundamento de algumas concepções nela expressas (ROUQUAYROL, 2003): A priori, independentemente de qualquer análise, pode ser dito que a atenção da epidemiologia está voltada para as ocorrências, em escala massiva de doença e de não-doença envolvendo pessoas agregadas 9 em sociedades, coletividades, comunidades, grupos demográficos, classes sociais ou quaisquer outros coletivos formados por seres humanos; O universo dos estados particulares de ausência de saúde é estudado pela epidemiologia sob a forma de doenças infecciosas (sarampo, difteria, malária etc.), não-infecciosas (diabetes, bócio endêmico, depressões etc.) e agravos à integridade física (acidentes, homicídios, suicídios); Considerando o conjunto de processos sociais interativos que, erigidos em sistema, definem a dinâmica dos agregados sociais, um em especial constitui o campo sobre o qual trabalha a epidemiologia: é o processo saúde-doença. Segundo Laurel (1983), o processo saúde-doença da coletividade pode ser entendido como “o modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares à presença de um funcionamento biológico diferente, com consequências para o desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença” (GOMES, 2015). Colocada neste contexto, a expressão saúde-doença é um qualificativo empregado para adjetivar genericamente um determinado processo social, qual seja o modo específico de passar de um estado de saúde para um estado de doença e o modo recíproco, descontextualizada, a expressão saúde-doença refere-se a uma ampla gama que vai desde “o estado de completo bem-estar físico, mental e social” até o de doença, passando pela coexistência de ambos em proporções diversas. A ausência gradativa ou completa de um destes estados corresponde ao espaço do outro e vice-versa (GOMES, 2015); Entende-se por distribuição o estudo da variabilidade da frequência das doenças de ocorrência em massa, em função de variáveis ambientais e populacionais, ligadas ao tempo e ao espaço. A análise dos fatores determinantes envolve a aplicação do método epidemiológico ao estudo de possíveis associações entre um ou mais fatores suspeitos e um estado característico de ausência de saúde, definido como doença; 10 A prevenção visa empregar medidas de profilaxia a fim de impedir que os indivíduos sadios venham a adquirir a doença; o controle visa baixar a incidência a níveis mínimos: a erradicação, após implantadas as medidas de prevenção consiste na não-ocorrência de doença, mesmo em ausência de quaisquer medidas de controle; isto significa permanência da incidência zero (a varíola está erradicada desde 1977) (ROUQUAYROL, 2003). A Associação Internacional de Epidemiologia (IEA), em seu “Guia de Métodos de Ensino” (1973), define epidemiologia como “o estudo dos fatores que determinam a frequência e a distribuição das doenças nas coletividades humanas. Enquanto a clínica dedica-se ao estudo da doença no indivíduo, analisando caso a caso, a epidemiologia debruça-se sobre os problemas de saúde em grupos de pessoas – às vezes pequenos grupos – na maioria das vezes envolvendo populações numerosas” (ROUQUAYROL, 2003). Descrever a distribuição e a magnitude dos problemas de saúde nas populações humanas; Proporcionar dados essenciais para o planejamento, execução e avaliação das ações de prevenção, controle e tratamento das doenças, bem como para estabelecer prioridades; Identificar fatores etiológicos na gênese das enfermidades. Fonte: congresos.formacionalcala.es 11 Muitas doenças, cujas origens até bem recentemente não encontravam explicação, têm tido suas causas esclarecidas pela metodologia epidemiológica, que tem por base o método científico aplicado da maneira mais abrangente possível a problemas de doençasocorrentes em nível coletivo. Hiroshi Nakajima, diretor da Organização Mundial de Saúde, por ocasião da 12ª Reunião Científica Internacional da Associação Internacional da Epidemiologia (1990), analisando o alcance da epidemiologia e concentrando seus comentários sobre a epidemiologia na AIDS, comenta que: “O descobrimento desta enfermidade devemo-lo a epidemiologia! A AIDS foi reconhecida pela primeira vez como uma enfermidade em 1981, antes que o vírus da imunodeficiência humana, dois anos mais tarde, fosse identificado, ou que se suspeitasse que era o agente causador da AIDS (ROUQUAYROL, 2003). A observação epidemiológica anotou a prevalência de uma combinação curiosa e inexplicável de manifestações clínicas de outros estados patológicos: astenia, perda de peso, dermatose, deterioração do sistema imunológico e o sarcoma de Kaposi, assim como a presença de “infecções oportunistas”, como a pneumonia por Pneumocystis carinii. Ainda hoje em dia, é este complexo de sinais clínicos, em combinação com o resultado positivo da prova de HIV, o que define um “caso de AIDS” (ROUQUAYROL, 2003). Pode ser o HIV positivo e, ainda assim, não ser portador da AIDS. Ademais, foi através da análise epidemiológica que inicialmente a síndrome foi relacionada com certos grupos de população e comportamentos de risco conexos. Se enfocamos a AIDS como uma epidemia mundial, ela se nos apresenta como algo novo e súbito; porém se o nosso ponto de vista é a AIDS como doença, e o vírus como sua causa, concluímos que nenhum dos dois são novos; pelo menos datam dos anos 50. Fizeram falta as ferramentas de epidemiologia para nos dizer que enfrentávamos uma patologia discreta e letal” (ROUQUAYROL, 2003). Através da epidemiologia, Gregg, na Austrália, em 1941, descobriu a associação existente entre malformações congênitas e rubéola adquirida pela mãe durante os primeiros meses de gestação. Leucemia na infância, provocada pela exposição aos raios X durante a gestação; trombose venosa relacionada ao uso de contraceptivos orais; ingestão de talidomida e o aparecimento de numerosos casos de focomelia; hábito de fumar e câncer de pulmão; cegueira em crianças nordestinas subnutridas e sua relação com a avitaminose A; mortalidade infantil e classes sociais; 12 são alguns dentre os inúmeros exemplos de associações estudadas pelo método epidemiológico (ROUQUAYROL, 2003). A epidemiologia é o eixo da saúde pública. Proporciona as bases para avaliação das medidas de profilaxia, fornece pistas para diagnose de doenças transmissíveis e não transmissíveis e enseja a verificação da consistência de hipóteses de causalidade. Além disso, estuda a distribuição da morbidade a fim de traçar o perfil de saúde-doença nas coletividades humanas; realiza testes de eficácia e de inocuidade de vacinas desenvolve a vigilância epidemiológica; analisa os fatores ambientais e socioeconômicos que possam ter alguma influência na eclosão de doenças e nas condições de saúde; constitui um dos elos de ligação comunidade/governo, estimulando a prática da cidadania através do controle, pela sociedade, dos serviços de saúde (ROUQUAYROL, 2003). Ainda, segundo Nakajima (1990): “A epidemiologia não se limita a avaliar a situação sanitária e socioeconômica existente (ou passada). Se aceitarmos o critério mais amplo do prof. Cruiskshank, teremos que insistir na necessidade de avaliação das tendências futuras, isto é, uma epidemiologia prospectiva”. A pergunta é: o que nos dizem as tendências atuais sobre a provável situação futura para a qual teremos que fazer planos e tomar (ou não tomar) medidas corretivas? Qual será o provável resultado amanhã? Por conseguinte, estamos presenciando o surgimento de uma nova dimensão na ciência da epidemiologia, que será muito importante para o planejamento, a dotação dos recursos, o manejo e a avaliação da saúde, e que poderia afetar o curso futuro da história humana” (ROUQUAYROL, 2003). Autores norte-americanos, europeus e latino-americanos, entre os quais se destacam Mac Mahon (1975), Leavel & Clark (1976), Barker (1976), Lilienfeld (1976), Forattini (1976), Belda (1976), Mausner & Bahn (1977), Rojas (1978), Colimon (1978), Jenicek & Cleroux (1982), definem epidemiologia de modo bastante semelhante, tendo como ponto comum “o estudo da distribuição das doenças nas coletividades humanas e dos fatores causais responsáveis por essa distribuição”. Por outro lado, mostrando ser a epidemiologia uma ciência viva, em fase de crescimento e transformação, rica internamente em diversidades criativas, alguns autores têm se dedicado à sua crítica sob o ponto de vista epistemológico, buscando estabelecer fundamentos e analisar conceitos básicos (Gonçalves, 1990. Apud Ayres, 1992). 13 3 HISTÓRIA NATURAL E PREVENÇÃO DAS DOENÇAS Fonte: invdes.com.mx Entre as décadas de 1950-70, nasce uma perspectiva da Saúde Coletiva em âmbito mundial. Diante da nova ordem do pós-II Guerra – mais precisamente no contexto da criação política supranacional da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) – o conceito de saúde ganha nova configuração: “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não mera ausência de moléstia ou enfermidade” (WHO, 1948). De modo geral, podemos afirmar que o modelo explicativo multicausal delineado por Leavell e Clark privilegia o entendimento da saúde como um processo, por meio do conhecimento acumulado do campo científico PUTTINI, JUNIOR, OLIVEIRA, 2010). Nessa lógica causal, o restabelecimento da normalidade está fundamentado na visão positiva da saúde, que é valorizada pela noção de prevenção sobre as doenças. Ou seja, procedimentos e ações promotoras de saúde e de prevenção de doenças, aplicadas tanto ao indivíduo quanto à coletividade de pessoas acometidas ou não por doenças (transmissíveis ou não-transmissíveis), encontram eco no âmbito do conhecimento da saúde humana PUTTINI, JUNIOR, OLIVEIRA, 2010). "Sob o ponto de vista do bem público, uma das implicações práticas da epidemiologia é que o estudo das influências externas torna a prevenção possível, mesmo quando a patogênese da doença concernente não é ainda compreendida. Mas isto não quer dizer que a epidemiologia seja, de alguma maneira, oposta ao 14 estudo de mecanismos ou, reciprocamente, que o conhecimento do mecanismo não seja as vezes crucial para a prevenção”. (ACHESON, 1979). O autor, embora sem se referir explicitamente, opina que a prevenção se faz com base no conhecimento da história natural da doença (ROUQUAYROL, 2003). História natural da doença é o nome dado ao conjunto de processos interativos compreendendo “as inter-relações do agente, do suscetível e do meio ambiente que afetam o processo global e seu desenvolvimento, desde as primeiras forças que criam o estímulo patológico no meio ambiente, ou em qualquer outro lugar, passando pela resposta do homem ao estímulo, até às alterações que levam a um defeito, invalidez, recuperação ou morte”. (LEAVELL, CLARK, 1976. Apud ROUQUAYROL, 2003). A história natural da doença, portando, tem desenvolvimento em dois períodos sequenciados: o período epidemiológico e o período patológico. No primeiro, o interesse é dirigido para as relações suscetível-ambiente, no segundo, interessam as modificações que se passam no organismo vivo. Abrange, portanto, dois domínios interagentes, consecutivos e mutuamente exclusivos, que se completam: o meio ambiente, onde ocorrem as pré-condições, e o meio interno, lócus da doença, onde se processaria, de forma progressiva, uma série de modificações bioquímicas, fisiológicas e histológicas, próprias de uma determinada enfermidade (ROUQUAYROL, 2003). Alguns fatores são limítrofes. Situam-se, de forma indefinida, entre os condicionantes pré-patogênicos e as patologiasexplícitas. São anteriores aos primeiros transtornos vinculados a uma doença específica, sem se confundir com a mesma e, ao mesmo tempo, são intrínsecos ao organismo do suscetível. Em uma situação normal, em ausência de estímulos, jamais se exteriorizariam como doenças. Em presença destes fatores intrínsecos preexistentes, os estímulos externos transformam-se em estímulos patogênicos. Dentre as pré-condições internas, citam- se os fatores hereditários, congênitos ou adquiridos em consequência de alterações orgânicas resultantes de doenças anteriores (ROUQUAYROL, 2003). O homem se faz presente em todas estas etapas. É gerador das condições socioeconômicas favorecedoras das anomalias ecológicas predisponentes a alguns dos agentes diretamente responsáveis por doenças. Ao mesmo tempo, é a principal vítima do contexto de agressão à saúde por ele favorecido. Na expressão história natural da doença, o "natural" não pode e não deve ser entendido como uma declaração de fé de ordem filosófica, negando o social e privilegiando o natural. Na 15 verdade, não há como se negar que, na história da doença, o social e o natural têm, cada qual, sua hora e sua vez (ROUQUAYROL, 2003). Ao tratar a história natural de uma doença em particular como sendo uma descrição de sua evolução, desde os seus primórdios no ambiente biopsicossocial até seu surgimento no suscetível e conseqüente desenvolvimento no doente, deve-se ter um esquema básico, de caráter geral, onde ancorar as descrições específicas. Este esquema geral, arbitrário, é apenas uma aproximação da realidade, sem pretensão de funcionar como uma descrição da mesma. A história natural das doenças, sob este ponto de vista, nada mais é do que um quadro esquemático que dá suporte à descrição das múltiplas e diferentes enfermidades. Sua utilidade maior é de apontar os diferentes métodos de prevenção e controle, servindo de base para a compreensão de situações reais e específicas, tornando operacionais as medidas de prevenção (ROUQUAYROL, 2003). 3.1 Período de pré-patogênese O primeiro período da história natural (denominado por Leavell & Clark [1976] como período pré-patogênese), é a própria evolução das inter-relações dinâmicas, que envolvem, de um lado, os condicionantes sociais e ambientais e, do outro, os fatores próprios do suscetível, até que chegue a uma configuração favorável à instalação da doença. É também a descrição desta evolução. Envolve, como já foi referido antes, as inter-relações entre os agentes etiológicos da doença, o suscetível e outros fatores ambientais que estimulam o desenvolvimento da enfermidade e as condições sócio-econômico-culturais que permitem a existência desses fatores (ROUQUAYROL, 2003). 16 Fonte: invdes.com.mx As pré-condições que condicionam a produção de doença, seja em indivíduos, seja em coletividades humanas, estão de tal forma interligadas e, na sua tessitura, são tão interdependentes, que seu conjunto forma uma estrutura reconhecida pela denominação de estrutura epidemiológica. Por estrutura epidemiológica, que tem funcionamento sistêmico, entende-se o conjunto formado pelos fatores vinculados ao suscetível e ao ambiente, incluindo aí o agente etiológico conjunto este dotado de uma organização interna que define as suas interações e também é responsável pela produção da doença (ROUQUAYROL, 2003). É, na realidade, um sistema epidemiológico. Cada vez que um dos componentes sofrer alguma alteração, está repercutirá, e atingirá os demais, num processo em que o sistema busca novo equilíbrio. Um novo equilíbrio trará consigo uma maior ou menor incidência de doenças, modificações na variação cíclica e no seu caráter, epidêmico ou endêmico (ROUQUAYROL, 2003). San Martin (1981), põe em relevo o sistema formado pelo ambiente, população, economia e cultura, designando este conjunto de sistema epidemiológico- social. Segundo esse autor, qualidade e dinâmica do ambiente socioeconômico, modos de produção e relações de produção, tipo de desenvolvimento econômico, velocidade de industrialização, desigualdades socioeconômicas, concentração de riquezas, participação comunitária, responsabilidade individual e coletiva são componentes essenciais e determinantes no processo saúde-doença (ROUQUAYROL, 2003). 17 Pode-se entender esse sistema a partir do detalhamento dos fatores que o compõe: Fatores sociais O estudo em nível pré-patogênico da produção da doença em termos coletivos, objetivando o estabelecimento de ações de ordem preventiva, deve considerar a doença como fluindo, originalmente, de processos sociais, crescendo através de relações ambientais e ecológicas desfavoráveis, atingindo o homem pela ação direta de agentes físicos, químicos, biológicos e psicológicos, ao se defrontarem, no indivíduo suscetível, com pré-condições genéticas ou somáticas desfavoráveis (ROUQUAYROL, 2003). Moderadamente, os condicionantes sociais da doença considerada em nível coletivo têm sido tratados a partir de dois pontos de vista. Segundo uma forma de ver, o componente social na pré-patogênese poderia ser definido como uma categoria residual: conjunto de todos os fatores que não podem ser classificados como componentes genéticos ou agressores físicos, químicos e biológicos. Os fatores que constituem esse componente social podem ser agrupados, didaticamente, com vistas a uma melhor compreensão, em quatro tipos gerais cujos limites não se pretende que sejam claros ou finamente definidos (ROUQUAYROL, 2003): Fatores socioeconômicos; Fatores sócio-políticos; Fatores socioculturais; Fatores psicossociais. Segundo outra forma de ver e graças aos esforços dos novos epidemiologistas, vem se firmando uma maneira diferente de trabalhar o social. ”Nesses trabalhos, o ‘social’ já não é apresentado como uma variável ao lado dos outros ‘fatores causais’ da doença, mas, antes, como um campo onde a doença adquire um significado específico. O social não é mais expresso sob a forma de um indicador de consumo (quantidade de renda, nível de instrução, etc.). Ele aparece agora sob a forma de relações sociais de produção responsáveis pela posição de segmentos da população na estrutura social” (ROUQUAYROL, 2003). 18 “Na explicação do processo epidêmico, fica mais clara a limitação teórica que representa a utilização do ‘social’ como categoria composta por fatores relacionados causalmente com a produção de doenças. A perspectiva de pensar o ‘social’ sob a forma mais totalizante – uma estrutura social particularizada em conjunturas econômicas, políticas e ideológicas – que condiciona uma dada situação de vida de grande parcela da população e um agravamento crítico do seu estado de saúde, dá ao estudo do processo epidêmico na sua real dimensão enquanto fenômeno coletivo”. (Marsiglia et al., 1985. Apud ROUQUAYROL, 2003). Fonte: onicyt.cl.com Um dos aportes da ciência moderna foi ter percebido a complexidade em intuir totalidades. Com vistas a ultrapassar a deficiência da compreensão humana em captar o todo, a ciência passou a fracionar a realidade circunstante em fatores componentes, de limites mais ou menos arbitrários, a analisar a contribuição de cada um dos fatores artificialmente isolados, e finalmente, a tentar organizar as conclusões parciais e incompletas em um todo coerente (ROUQUAYROL, 2003). Na verdade, este processo de se buscar o conhecimento da realidade circunstante é dialético: da percepção de uma realidade parte-se para o conhecimento de seus componentes, deste volta-se novamente ao todo, buscando a sua compreensão. Esta compreensão da totalidade do real percebido, mesmo que precariamente explicado, determina um novo conhecimento das partes e daí uma nova compreensão do todo, partese todo formando uma unidade dialética (ROUQUAYROL, 2003). Fatores socioeconômicos Existe uma associação inversa, que não é somente de ordem estatística, entre capacidade econômica e probabilidade de adquirir doença. Esta percepção não é 19 recente. Já os trabalhos de Villerme (1840), Virchow (1849) e Chadwick (1842) apontam diferenças consideráveis entre grupos sociais em termos de morbidade e mortalidade. Os grupos sociais economicamente privilegiados estão menos sujeitos à ação dos fatores ambientais que ensejam ou que estimulam a ocorrência de certos tipos de doenças cuja incidência é acintosamente elevada nos grupos economicamente desprivilegiados. Segundo Renaud (1992), os pobres (ROUQUAYROL, 2003): São percebidos como mais doentios e mais velhos; São de duas ou três vezes mais propensos a enfermidades graves; Permanecem doentes mais amiúde; Morrem mais jovens Procriam crianças de baixo peso, em maior proporção: Sua taxa de mortalidade infantil é mais elevada. A título de exemplo, pode ser lembrado que a desnutrição, as parasitoses intestinais, o nanismo e a incapacidade de se prover estão sempre presentes onde a miséria se faz presente. Como já deve ter ficado bem claro, modernamente, na epidemiologia, o componente socioeconômico é visto segundo duas óticas alternativas. Por um lado, fatores socioeconômicos – perfeitamente definíveis e metodologicamente isoláveis - são associados aos diferenciais de morbidade e mortalidade (ROUQUAYROL, 2003). Sob outro ponto de vista, o conceito de classe social, como uma totalidade ao mesmo tempo econômica, jurídico-política e ideológica, é o que procura explicar, de forma mais abrangente, o processo saúde-doença como processo biopsicossocial. De acordo com o primeiro modo de ver, a intervenção com vistas à prevenção se consubstanciaria na remoção de fatores sociais prejudiciais ou na introdução de fatores percebidos como ausentes, mas necessários. Na segunda abordagem, a intervenção preventiva verdadeiramente eficiente seria realizada com modificação das estruturas socioeconômicas, com conseqüente alteração de todos os fatores sociais contribuintes, conhecidos e desconhecidos (ROUQUAYROL, 2003). Victora et alii (1990), estudando a determinação do socioeconômico no processo saúde-doença, assim expressam: “Relativamente à utilização de outras variáveis socioeconômicas, o uso da inserção de classe em estudos epidemiológicos apresenta vantagens e desvantagens. Sua principal vantagem é o fato de ser 20 explicativa, isto é, de – em larga parte – determinar uma série de variáveis intermediárias, como renda, escolaridade, nível de consumo etc., por sua vez influenciam o processo saúde-doença (ROUQUAYROL, 2003). Este mesmo aspecto é uma de suas desvantagens: sendo um determinante distal, cuja ação é mediada por uma série de variáveis que possuem certa autonomia, as relações estatísticas entre interseção de classe e o processo saúde-doença podem ser algo enfraquecidas” (ROUQUAYROL, 2003). Fonte: colchesterhealth.com Fatores sócio-políticos Identicamente ao que acontecer com os fatores econômicos, os fatores políticos são indissociáveis da totalidade que os condiciona. Se em estudos analíticos de pré-patogênese, esses fatores, pela própria natureza do proceder científico, são isolados e desta forma analisados, isto jamais poderá ser mais interpretado e confundido como se tratasse de uma forma de traduzir a realidade, reconhecendo-a como resultante da interação dos fatores que serviram à sua análise. As categorias de análise não podem ser confundidas com as categorias de realidade (ROUQUAYROL, 2003). Sob o nosso ponto de vista, são os seguintes alguns dos fatores políticos que devem ser fortemente considerados ao se analisarem as condições de pré- patogênese ao nível do social (ROUQUAYROL, 2003): Instrumentação jurídico-legal; Decisão política; 21 Higidez política Participação consentida e valorização da cidadania; Participação comunitária efetivamente exercida; Transparência das ações e acesso à informação. Fatores socioculturais No contexto do social, devem ser citados preconceitos e hábitos culturais, crendices, comportamentos e valores, valendo como fatores pré-patogênicos contribuintes para a difusão e manutenção de doenças. Vale a pena citar como exemplo de padrão externo de comportamento, com características pré-patogênicas cuja influência se faz sentir quase que diretamente, o proceder das populações rurais em regiões subdesenvolvidas da África e do Brasil, que conservam o hábito de defecar na superfície do solo, nas proximidades de mananciais. Este traço cultural foi no passado e continua sendo, no presente, um dos fatores contribuintes para a disseminação da esquistossomose, cuja endemicidade é alimentada pela permanência de uma pobreza cronificada (ROUQUAYROL, 2003). Um outro exemplo de padrão externo de comportamento, com influência quase que direta na difusão de doença, vem da larga expansão que nas últimas décadas tiveram as doenças de transmissão sexual entre os jovens, fenômeno que deve ser associado às atuais liberdades e promiscuidade sexuais. A par destes e de uma infinidade de outros comportamentos externos pré-patológicos do mesmo jaez, bem mais aproximados aos agentes ambientais do que à estrutura social, é mister apontar fatores culturais de natureza bem diversa, de cuja ação mais distante e mais abrangente, os resultados são menos previsíveis (ROUQUAYROL, 2003). São os padrões conceptuais de comportamento, que poderíamos imaginar (só imaginar!) Sob a forma de um gigantesco superego cultural, determinando o pensar e o fazer coletivos. Como fatores na pré-patogênese estes comportamentos estariam mais adequadamente inseridos no sistema de valores internalizados de natureza cultural/social/econômica/política do que entre os comportamentos externos ou as condutas biossociais inconvenientes (ROUQUAYROL, 2003). Quer-se referir à: Passividade diante do poder exercido com incompetência ou má fé; Alienação em relação aos direitos e deveres da cidadania; 22 Transferência irrestrita, para profissionais da política, da responsabilidade pessoal pelo social; Participação passiva como beneficiários do paternalismo de estado ou oligárquico; Incapacidade de se organizar para reivindicar. Esta tem sido a essência de nossa cultura política, bem como a de outros povos subdesenvolvidos, reforçada através de nossa história pelos estratos político e econômico, em benefício de alguns, com prejuízo para o todo. Têm sido pré- patogênicos na medida em que a sociedade abrangente se vê frustrada em controlar e fiscalizar os investimentos públicos. A Constituição de 1988 gerou possibilidades de participação da comunidade na gerência das ações e serviços públicos de saúde. Agora, há que se lutar por desenvolver, como padrões de comportamento, atitudes de comprometimento e participação (ROUQUAYROL, 2003). “O sistema público está doente e sua febre é expressa em números vermelhos – apenas 5 de cada 10 cruzeiros gastos pelo governo com saúde, chegam ao paciente na forma de algum tipo de assistência. A outra metade de se perde em corrupção ou desperdício” (ROUQUAYROL, 2003). Fonte: medicina.uchile.cl Fatores psicossociais Dentre os fatores psicossociais aos quais pode ser imputada a característica de pré-patogênese, encontram-se: marginalidade, ausência de relações parentais 23 estáveis, desconexão em relação à cultura de origem, falta de apoio no contexto social em que se vive, condições de trabalho extenuantes ou estressantes, promiscuidade, transtornos econômicos, sociais ou pessoais, falta de cuidados maternos na infância, carência afetivade ordem geral, competição desenfreada, agressividade vigente nos grandes centros urbanos e desemprego. Estes estímulos têm influência direta sobre o psiquismo humano, com consequências somáticas e mentais danosas (ROUQUAYROL, 2003). Fatores ambientais Para efeito de análise estrutural epidemiológica, por ambiente deve ser entendido o conjunto de todos os fatores que mantém relações interativas com o agente etiológico e o suscetível, incluindo-os, sem se confundir com os mesmos. O termo tem maior abrangência do que lhe é dado no campo da ecologia. Além de incluir o ambiente físico, que abriga e torna possível a vida autotrófica e o ambiente biológico, que abrange todos os seres vivos, inclui também a sociedade evolvente sede das interações sociais, políticas, econômicas e culturais (ROUQUAYROL, 2003). Agressores ambientais são agentes que, de forma imediata, sem mais intermediações, podem pôr-se em contato direto com o suscetível. Quanto à sua forma de surgimento ou por sua presença, podem ser inseridos em uma das seguintes categorias (ROUQUAYROL, 2003): Agentes presentes no ambiente de forma habitual, em convivência natural ou tradicional com o homem; Agentes pouco comuns e que, mercê de situações novas, alterações impostas por novos hábitos ou por modificações na maneira de viver, por má administração ou manipulação inábil de meios e recursos, por importação passam a se fazer presentes de forma perceptível, como agentes, em algum evento epidemiológico; Agentes que explodem em situações anormais de grande monta como são os macros perturbações ecológicas, os desastres naturais e as catástrofes. São componentes do ambiente físico: situação geográfica, solo, clima, recursos hídricos e topografia, agentes químicos e agentes físicos. Em situações ecológicas desfavoráveis, algumas produzidas por fatores naturais, outras produzidas artificialmente pela ação do homem, algumas permanentes, outros contingentes, têm 24 desenvolvimento os fatores físicos, químicos e biológicos que, por terem acesso à organização interna de seres vivos, podem funcionar, para estes, como agentes patogênicos (ROUQUAYROL, 2003). Modernamente, o estudo da influência exercida pelos fatores naturais do ambiente físico na produção de doenças tornou-se menos importante que o conhecimento da ação desenvolvida pelos agentes aí agregados artificialmente. O progresso e o desenvolvimento industrial criaram problemas epidemiológicos novos, resultantes da poluição ambiental. O ambiente físico que envolve o homem moderno condiciona o aparecimento de doenças cuja incidência tornou-se crescente a partir da urbanização e da industrialização (ROUQUAYROL, 2003). As doenças cardiovasculares, as alterações mentais e o câncer pulmonar estão também associados a fatores do ambiente físico. Publicação da Organização Pan- americana da Saúde (OPS, 1976) menciona que, com a industrialização crescente e a modificação dos costumes, há um grande número de substâncias carcinogênicas que se ingerem, inalam, absorvem por via cutânea ou que se introduzem no organismo como medicamentos ou por acidente (ROUQUAYROL, 2003). Fonte: fundacionannavazquez.wordpress.com No estudo de fatores agressivos presentes no ambiente físico e aí colocados através de atividade do homem, não deve ser esquecido o uso, às vezes exagerado, de pesticidas na proteção dos cultivos. Os alimentos, tanto os vegetais quanto os de origem animal, veiculam estas substâncias em concentrações mínimas. Teme-se que o seu acúmulo gradual no organismo humano, devido à sua relativa estabilidade, 25 possa trazer sérios danos para a saúde dos consumidores. Outro problema bastante sério são os aditivos alimentares, sob forma de sabores artificiais, corantes, conservantes e até hormônios sintéticos (ROUQUAYROL, 2003). Seus efeitos, a longo prazo, por exposição contínua, ainda são desconhecidos. Não seria demais lembrar que o ambiente físico dos locais de trabalho pode, pelos fatores presentes, estar associado à produção de doenças. No ambiente humano (OPS, 1962), o uso de medicamentos é outro fator importante que pode compor a estrutura epidemiológica de doenças não infecciosas. As características normais do feto poderão sofrer alterações se uma nova droga passar a ser comercializada sem provas suficientes de sua inocuidade. Tal fato aconteceu (ROUQUAYROL, 2003). A partir de 1959, observou-se que, repetidas vezes, em vários consultórios pediátricos, uma síndrome fora do comum, a focomelia, anteriormente um fato raro, passou a ser notificada de modo inusitado: 30 a 70 vezes a mais. Em um estudo com 46 mães chegou-se à certeza de que 41 delas havia feito uso de talidomida nos primeiros meses de gestação. Estudos em animais confirmaram a ação teratogênica da talidomida nos primeiros meses de gestação (MELLIN, KATZENSTEIN, 1962. Apud ROUQUAYROL, 2003). Fatores genéticos Os fatores genéticos provavelmente determinam a maior ou menor suscetibilidade das pessoas quanto à aquisição de doenças, embora isto permaneça ainda na fronteira de pesquisa genética. O fato é que, em relação à incidência de doenças, percebe-se que, quando ocorre uma exposição a um fator patogênico externo, alguns dos expostos são acometidos e outros permanecem isentos. 26 4 PROCESSO SAÚDE-DOENÇA Fonte: biospectrumasia.com Muito se tem escrito sobre o Processo Saúde-Doença, no entanto um novo instrumento intelectual para a apreensão da saúde e da doença deve levar em conta a distinção entre a doença, tal como definida pelo sistema da assistência à saúde – e a saúde, tal como percebida pelos indivíduos. Também, deve incluir a dimensão do bem-estar, um conceito maior, no qual a contribuição da saúde não é a única e nem a mais importante. O sofrimento experimentado pelas pessoas, suas famílias e grupos sociais não corresponde necessariamente à concepção de doença que orienta os provedores da assistência, como os profissionais da Estratégia Saúde da Família (VIANNA, 2011). Por outro lado, como alternativa para a superação dos modelos causais clássicos, centrados em ações individuais, como os métodos diagnósticos e terapêuticos, a vacinação, a educação em saúde, ainda que dirigidos aos denominados grupos de risco, haveria que privilegiar a dimensão coletiva do fenômeno saúde-doença, por meio de modelos interativos que incorporassem ações individuais e coletivas. Uma nova maneira de pensar a saúde e a doença deve incluir explicações para os achados universais de que a mortalidade e a morbidade obedecem a um gradiente, que atravessa as classes socioeconômicas, de modo que menores rendas ou status social estão associados a uma pior condição em termos de saúde. Tal evidência constitui-se em um indicativo de que os determinantes da saúde estão localizados fora do sistema de assistência à saúde (SCHRAIBER, MENDES- GONÇALVES, 1996. Apud OLIVEIRA, EGRY, 2000). Conceito de prevenção 27 O conceito de prevenção é definido como “ação antecipada, baseada no conhecimento da história natural a fim de tornar improvável o progresso posterior da doença”. A prevenção apresenta-se em três fases. A prevenção primária é a realizada no período de pré-patogênese. O conceito de promoção da saúde aparece como um dos níveis da prevenção primária, definido como “medidas destinadas a desenvolver uma saúde ótima”. Um segundo nível da prevenção primária seria a proteção específica “contra agentes patológicos ou pelo estabelecimento de barreiras contra os agentes do meio ambiente” (VIANNA, 2011). A fase da prevenção secundária também se apresenta em dois níveis: o primeiro, diagnóstico e tratamento precoce e o segundo, limitação da invalidez. Por fim, a prevenção terciária que diz respeito a ações de reabilitação. Com o passar dos anos,as mudanças nas sociedades levaram à necessidade de uma ampliação do entendimento sobre saúde: é quando após a II Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) cria a Organização Mundial de Saúde (OMS), composta por técnicos de vários países, com o objetivo de estudar e sugerir alternativas para melhorar a saúde mundial (VIANNA, 2011). Entre 6 e 12 de setembro de 1978, a OMS e a Fundação das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) promoveram em Alma-Ata, ex-União Soviética, uma Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde. Nesta conferência a OMS desenvolveu o conceito de saúde, sendo assim divulgado na carta de princípios de 7 de abril de 1948 (desde então o Dia Mundial da Saúde), implicando o reconhecimento do direito à saúde e da obrigação do Estado na promoção e proteção da saúde, diz que (VIANNA, 2011): “Saúde – estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente à ausência de doença ou enfermidade – é um direito fundamental, e que a consecução do mais alto nível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor saúde” (OMS, 1976). 28 Fonte: healthism.com Esta conferência ressaltou o íntimo inter-relacionamento e independência da saúde com o desenvolvimento econômico e social, sendo a primeira causa e consequência da progressiva melhoria das condições e da qualidade de vida. A chave do plano da Conferência de Alma-Ata está na prevenção, no desenvolvimento social e nos cuidados de saúde. Já no Brasil, em 1986, foi desenvolvida a VII Conferência Nacional de Saúde, na qual foram discutidos os temas: saúde como direito; reformulação do Sistema Nacional de Saúde (SUS) e financiamento setorial. Nesta conferência adotou-se o seguinte conceito sobre saúde (VIANNA, 2011): “... em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida” (BRASIL, 1986). Deve-se também considerar o recente e acelerado avanço que se observa no campo da Engenharia Genética e da Biologia Molecular, com suas implicações tanto na perspectiva da ocorrência como da terapêutica de muitos agravos. Desse modo, surgiram vários modelos de explicação e compreensão da saúde, da doença e do processo saúde-doença, como o modelo epidemiológico baseado nos três componentes – agente, hospedeiro e meio, considerados como fatores causais, que evoluiu para modelos mais abrangentes, como o do campo de saúde, com o envolvimento do ambiente (não apenas o ambiente físico), estilo de vida, biologia 29 humana e sistema-serviços de saúde, numa permanente inter-relação e interdependência (GAMBA e TADINI, 2010). Desta maneira, o Processo Saúde-Doença está diretamente atrelado à forma como o ser humano, no decorrer de sua existência, foi se apropriando da natureza para transformá-la, buscando o atendimento às suas necessidades. Fica claro que tal processo representa o conjunto de relações e variáveis que produz e condiciona o estado de saúde e doença de uma população, que se modifica nos diversos momentos históricos e do desenvolvimento científico da humanidade. Portanto, não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas – sendo que o conceito de saúde varia segundo a época em que vivemos, assim como os interesses dos diversos grupos sociais GUALDA e BERGAMASCO, 2004). Assim, vários autores afirmam que “a saúde deve ser entendida em sentido mais amplo, como componente da qualidade de vida e, assim, não é um bem de troca, mas um bem comum, um bem e um direito social, no sentido de que cada um e todos possam ter assegurado o exercício e a prática deste direito à saúde, a partir da aplicação e utilização de toda a riqueza disponível, conhecimento e tecnologia que a sociedade desenvolveu e vem desenvolvendo neste campo, adequados as suas necessidades, envolvendo promoção e proteção da saúde, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação de doenças. Ou seja, deve-se considerar este bem e este direito como componente e exercício da cidadania, compreensão esta que é um referencial e um valor básico a ser assimilado pelo poder público para o balizamento e orientação de sua conduta, decisões, estratégias e ações (VIANNA, 2011). 30 5 ANÁLISE EXPLORATÓRIA DE DADOS EPIDEMIOLÓGICOS Fonte: cafabo.org.ar Desde finais da década de 80 que na área da saúde vem se discutindo, e experimentando, diversas abordagens onde a localização espacial e os Sistemas de Informações Geográficas (SIG) têm papel destacado. Ainda que nos momentos iniciais estes estudos estivessem na contramão dos modelos analíticos vigentes na epidemiologia, baseado em abordagens estritamente individuais na busca por fatores de risco para doenças crônicas, em poucos anos operou-se um importante resgate do papel do ambiente sociocultural na determinação das doenças e, relacionado a isso, no acesso aos recursos e equipamentos de saúde: “o epidemiologista, ao gerar dados, não tem outra opção que ser um agente com influência social. A única questão é que tipo de influência” (CARVALHO, SOUZA-SANTOS, 2005). Os denominados estudos ecológicos, definidos como estudos onde se focaliza a comparação de grupos, ao invés de indivíduos, teriam como razão subjacente o fato de que dados em nível individual da distribuição conjunta de duas (ou talvez todas) variáveis não estariam disponíveis internamente nos grupos. Assim, o estudo ecológico seria um desenho incompleto. Esta ainda é uma visão dominante, particularmente no contexto mais acadêmico. Nos países periféricos, entretanto, a pesquisa em epidemiologia sempre teve forte associação com a prática dos serviços de saúde pública, possivelmente por ter nestes parceiros, financiadores importantes, cumprindo um papel essencial no que se definiu como “informação para ação” (CARVALHO, SOUZA-SANTOS, 2005). 31 O papel dos tipos clássicos de investigação – os diagnósticos de saúde – em epidemiologia está na ênfase que se dá às doenças da população em oposição às doenças do indivíduo. A pergunta que se deseja responder neste caso, não é sobre as causas dos casos de doença, mas sobre as causas da incidência da doença em grupos populacionais, comparando diferentes populações, em geral definidas como moradores de uma mesma área. O interesse focaliza-se não na doença em populações, mas na doença de populações, o objetivo é ver a “floresta e não as árvores”. A visão centralizada no indivíduo leva ao uso do risco-relativo como a representação básica da força etiológica: ou seja, o risco em indivíduos expostos relativo aos não-expostos. Embora esta seja a melhor medida de força etiológica, não é a de maior importância em saúde pública (CARVALHO, SOUZA-SANTOS, 2005). A fim de compreender como um contexto afeta a saúde de grupos populacionais por meio de seleção, distribuição, interação, adaptação e outras respostas, torna-se necessário medir efeitos em nível de grupo, uma vez que medidas em nível individual não podem dar conta destes processos. Recentes avanços metodológicos no campo da estatística, particularmente os denominados modelos de efeitos aleatórios, trazem perspectivas inovadoras para a análise, superando o fato de que “grande parte da pesquisa atual em epidemiologia está baseada no individualismo metodológico: a noção que a distribuição dasaúde e doença em populações pode ser explicada exclusivamente em termos das características dos indivíduos” (CARVALHO, SOUZA-SANTOS, 2005). Neste mesmo campo, investigações de efeitos denominados de vizinhança apontam para os “riscos associados com a estrutura social e ecológica de vizinhança, enseja-se possíveis intervenções inovadoras no nível da comunidade”. Padrões de mortalidade ou morbidade, propagação de epidemias, transmissão sexual de doenças ou a transferência de comportamentos ou valores não podem ser explicados sem uma abordagem que além de considerar os grupos estude o espaço e o tempo (CARVALHO, SOUZA-SANTOS, 2005). Por outro lado, na área relacionada à prestação de serviços em saúde diversas aplicações permitem estudar aspectos geográficos no uso dos serviços de saúde, trazendo novas informações para a discussão da equidade, ao analisar o acesso geográfico, as diferenças no uso segundo aspectos socioeconômicos. Além disso, novos ramos se desenvolvem, ganhando importância cada vez maior os estudos 32 ambientais. Em resumo, os métodos de análise espacial na saúde coletiva vêm sendo usados principalmente em estudos ecológicos, na detecção de aglomerados espaciais ou espaço-temporais, na avaliação e monitoramento ambiental e aplicados ao planejamento e avaliação de uso de serviços de saúde (CARVALHO, SOUZA- SANTOS, 2005). Recente revisão sobre o uso de SIGs e ferramentas de análise espacial em saúde pública aponta para o desenvolvimento de ferramentas que integrem funções de processamento e análise de informações georreferenciadas, cuja implantação dependerá, entretanto, da demanda de métodos de análise espacial, pela comunidade da área da saúde pública. Entretanto, embora bastante extenso, e talvez por causa disso, a modelagem estatística espacial e a integração entre SIG e estatística não são aprofundadas. Alguns livros excelentes publicados nos últimos anos procuram fazer a ponte entre métodos estatísticos espaciais e aplicações em saúde pública e praticamente ignoram os aspectos ligados ao gerenciamento da informação geocodificada em SIGs. Por outro lado, livros voltados para os SIGs pouco desenvolvem as questões estatísticas e de modelagem dos processos (CARVALHO, SOUZA-SANTOS, 2005). Fonte: brzk.com.br Um aspecto deve ser considerado: esta é uma área de investigação onde a inter (ou trans) disciplinariedade mais do que desejável é imprescindível. Além de conhecer profundamente o problema em questão, os métodos necessários à incorporação nos estudos da dimensão espacial, ou espaço-temporal, envolvem, no 33 mínimo, conhecimentos de SIGs e técnicas estatísticas bastante sofisticadas. Isso porque a existência de padrões espaciais implica a incorporação aos modelos estatísticos de estruturas de correlação entre as observações (CARVALHO, SOUZA- SANTOS, 2005). Os modelos mais complexos frequentemente só podem ser estimados usando- se inferência bayesiana, ainda pouco empregada no contexto da epidemiologia e da saúde pública em geral. Mesmo considerando que o custo da aquisição da informação ainda seja elevado (vem caindo dramaticamente nos últimos anos); que o treinamento formal na área ainda seja escasso (apesar da oferta de diversos cursos de atualização); e que os programas de computador não sejam muito amistosos, acreditamos que o reconhecimento do potencial desses métodos na área da saúde coletiva permitirá ampliar seu uso e estimular a criação de redes cooperativas interdisciplinares (CARVALHO, SOUZA-SANTOS, 2005). 5.1 Estudos Ecológicos O estudo dos padrões de distribuição geográfica das doenças e suas relações com fatores socioambientais constitui-se no objeto do que hoje chamamos de Epidemiologia Geográfica, que tem se constituído em campo de aplicação e desenvolvimento de novos métodos de análise. Esse desenvolvimento tem sido viabilizado pela crescente disponibilidade e desenvolvimento de técnicas e recursos de computação eletrônica, que também tornou possível o desenvolvimento de Sistemas de Informações Geográficas com base na cartografia digital, que vêm sendo utilizados em análise de dados espaciais em saúde (CARVALHO et al., 2007). As técnicas de análise espacial se adequam às necessidades dos estudos ecológicos, que utilizam áreas geográficas como unidade usual de observação. No caso particular da análise espacial da ocorrência de doenças, onde se dispõe de dados referidos a uma área geográfica, deve-se dar atenção especial ao pressuposto básico de que taxas e indicadores epidemiológicos de uma doença, calculados para um determinado período, são uma única realização de um processo que é probabilístico e que se procura identificar. A opção por estudos epidemiológicos do tipo ecológico pode ser logicamente adequada para o entendimento da variação do risco de adoecer entre diferentes grupos populacionais (CARVALHO et al., 2007). 34 A correta compreensão das dimensões envolvidas nos estudos de nível ecológico e de nível individual, além das relações entre eles, possibilita explorar o potencial da abordagem ecológica em saúde pública, mediante o emprego de ferramentas de análise apropriadas que permitam controlar possíveis fatores de confusão e evitar vieses de análise, principalmente os clássicos, como os de produzir inferências cruzadas, ou seja, de um nível para outro. Inferências enviesadas serão produzidas não só quando se extrapolam resultados do nível ecológico para o individual (falácia ecológica), mas também quando ocorre o oposto, do nível individual para o ecológico (falácia atomística), desconsiderando-se os efeitos de grupo (CARVALHO et al., 2007). Apesar de não se dever considerar essas duas abordagens como antagônicas, a análise da variabilidade do risco no nível ecológico é fundamental para a compreensão dos determinantes sociais e ambientais do processo saúde-doença, onde, particularmente, a condição socioeconômica dos grupos populacionais desempenha papel preponderante na explicação das condições de saúde desses grupos. Nesse sentido, uma importante abordagem do ponto de vista ecológico é considerar o espaço como fator multidimensional de estratificação de populações, o que permite visualizar espacialmente, de forma articulada, as distribuições da doença e do risco, entendido como situação coletiva e definido sob diferentes abordagens. Além disso, pode propiciar ao Sistema de Vigilância em Saúde Pública compreender a dinâmica e identificar diferenças e “causas” das diferenças na ocorrência das doenças nos diversos subconjuntos da população (CARVALHO et al., 2007). Fonte: noetic-labs.com 35 Essa abordagem possibilita não só a vigilância dos indivíduos de risco, mas também uma visão antecipada do risco coletivo, coerentemente com o entendimento de que as consequências dos processos endêmicos e das intervenções de saúde pública nos vários grupos sociais devem ser analisadas a partir de uma perspectiva ecológica. Tal perspectiva deve considerar a dinâmica evolutiva dos processos sociais e buscar identificar causas da incidência das doenças em grupos populacionais e não as causas da doença no indivíduo. Cada vez mais, trabalhos vêm sendo desenvolvidos utilizando uma abordagem espacial e produzindo análises integradas da associação dos eventos de saúde com indicadores e/ou variáveis socioambientais, com vistas a suprir as necessidades de um Sistema de Vigilância em Saúde (CARVALHO et al., 2007). As fontes de informação para essas variáveis e as abordagens para construção desses indicadores, principalmente aqueles capazes de medir índices de carência social, variam e vêm sendo objeto de estudos e debates que podem contribuir para superar desigualdades e iniquidades em saúde. Emmuitos casos essas informações são provenientes dos censos demográficos, disponibilizadas no nível dos setores censitários, possibilitando análises para este nível ou níveis mais agregados, como bairros, distritos e municípios. No caso dos indicadores ambientais especificamente, as informações são obtidas junto a institutos municipais ou estaduais de meio ambiente ou planejamento urbano, oriundas de levantamentos de campo, levantamentos aéreos ou de imagens de satélite (CARVALHO et al., 2007). 5.2 Estatística Espacial Denomina-se estatística espacial o ramo da estatística que permite analisar a localização espacial de eventos. Ou seja, além de identificar, localizar e visualizar a ocorrência de fenômenos que se materializam no espaço, tarefas possibilitadas pelo uso dos SIG, utilizando-se a estatística espacial é possível modelar a ocorrência destes fenômenos, incorporando, por exemplo, os fatores determinantes, a estrutura de distribuição espacial ou a identificação de padrões (CARVALHO et al., 2007). Usamos a estatística nos estudos em saúde para modelar a realidade. Modelos são simplificações da realidade usadas para entender um sistema, estudar seu funcionamento, buscar causas de fenômenos, avaliar intervenções, prever desfechos. 36 Segundo Box (1979) “todos os modelos estão errados, alguns modelos são úteis”, ou seja, não existe modelo certo, mas modelos que servem a algum propósito. Quando então são úteis os modelos estatísticos na análise espacial? Quando queremos estudar a saúde e os fatores relacionados à saúde no contexto ambiental. A idéia é entender, estimar e modelar como esse contexto afeta a saúde das pessoas, seja o contexto derivado de fatores socioeconômicos, da oferta de serviços de saúde, do ambiente físico ou cultural. Sem medir esses contextos, nem padrão de mortalidade e morbidade, nem o espalhamento epidêmico, ou o risco de uma fonte de contaminação ambiental podem ser explicados e ter seu efeito estimado (CARVALHO et al., 2007). A denominação estatística espacial surge em oposição às técnicas estatísticas comuns nos estudos em saúde – testes do tipo chi-quadrado, regressão múltipla, análise de aglomerados, por exemplo – quando se necessita focalizar explicitamente a localização espacial, quando é necessário considerar a possível importância de seu arranjo espacial na análise e interpretação de resultados. Isso porque um dos pressupostos mais gerais na estatística, que permite estimar diversas estatísticas é o da independência entre as observações: o que se mede em um indivíduo não está associado ao medido em outro indivíduo, exceto pelos possíveis fatores comuns que desejamos exatamente descobrir (CARVALHO et al., 2007). Fonte: pngimage.net.com Entretanto, quando olhamos para o espaço, esse pressuposto é pouco realístico, pois “todas as coisas são parecidas, mas coisas mais próximas se parecem mais que coisas mais distantes”. Esse simples fato, que todos conhecemos, tem implicações diretas para abordagem quantitativa baseada na teoria e técnicas 37 estatísticas que aplicamos usualmente sobre nossas observações. Por uma razão muito simples, e que às vezes esquecemos: as técnicas de análise estatística não- espaciais que utilizamos para nossos dados têm como pressuposto fundamental que as observações em análise representam pedaços de evidência independentes sobre as associações que estamos descrevendo e modelando (CARVALHO et al., 2007). Ou, generalizando, a maior parte das ocorrências, sejam estas naturais ou sociais, se relacionam, seja em sinergia ou antagonismo, e esta relação se enfraquece com a distância. E é esta a especificidade deste ramo da estatística: técnicas que permitem modelar os fenômenos cuja distribuição é afetada pela sua localização geográfica e pela sua relação com seus vizinhos (CARVALHO et al., 2007). Principais Aplicações doenças, os estudos ecológicos, a identificação de aglomerados espaciais (cluster) e o monitoramento de problemas ambientais. O mapeamento de doenças consiste na descrição do processo de distribuição espacial, visando a avaliar a variação geográfica na sua ocorrência para identificar diferenciais de risco, orientar a alocação de recursos e levantar hipóteses etiológicas. Os métodos têm como objetivo produzir um mapa “limpo”, sem o “ruído” gerado pela flutuação aleatória dos pequenos números, e controlando as diferenças na estrutura demográfica. Os estudos ecológicos visam a estudar a relação entre incidência de doenças e potenciais fatores etiológicos, que expliquem as diferenças na incidência de determinado evento de saúde (CARVALHO et al., 2007). Do ponto de vista estatístico, esses estudos consistem, essencialmente, em modelos de regressão, onde se busca explicar a variação na incidência da doença por meio de outras variáveis. O modelo estatístico se complica pela necessidade de controlar, simultaneamente, o processo espacial, variáveis explicativas e variáveis de confusão. Um “cluster” espacial é: qualquer agregado de eventos que não seja meramente casual, cuja identificação é foco de pesquisas na área de estatística espacial. Estes aglomerados podem ser causados por diferentes fatores, tais como agentes infecciosos, contaminação ambiental localizada, efeitos colaterais de tratamentos, cada problema destes com peculiaridades e técnicas particulares (CARVALHO et al., 2007). A avaliação e monitoramento ambiental visam a estimar a distribuição espacial de fatores ambientais relevantes para a saúde, acompanhando potenciais fontes 38 ambientais de problemas de saúde, tais como poluentes químicos, insolação (Raios UV), vegetação, clima, entre outros. Nesse caso, em geral, os modelos estatísticos têm por objetivos fazer a predição espacial ou espaço-temporal de processos com forte correlação espacial e temporal (CARVALHO et al., 2007). 6 MEDIDAS DE FREQUÊNCIA EM SAÚDE COLETIVA Fonte: estudandocomchicoxavier.wordpress.com Existem diversas formas de medir a saúde, dependendo de qual é a sua definição; uma definição ampla mediria o nível de saúde e bem-estar, a capacidade funcional, a presença e causas de doenças e óbito e a expectativa de vida das populações (DONALDSON, 1989). Existem diferentes medidas e indicadores de bem- estar (social e econômico) na saúde e foram desenvolvidos certos índices de “saúde positiva” (ALLEYNE, 1998), tanto com fins operacionais, como para a investigação e promoção de condições saudáveis, em dimensões tais como a saúde mental, autoestima, satisfação com o trabalho, exercício físico, etc. A coleta de dados e a estimativa de indicadores têm como finalidade gerar, de forma sistemática, evidências que permitam identificar padrões e tendências que ajudem a empreender ações de proteção e promoção da saúde e de prevenção e controle de doenças na população. Entre as formas mais úteis e comuns de medir as condições gerais de saúde da população, destacam-se os sensos nacionais, que são 39 feitos a cada década em vários países. Os sensos proporcionam a contagem periódica da população e a descrição de várias das suas características, cuja análise permite fazer estimativas e projeções (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Para permitir as comparações ao longo do tempo numa mesma população ou entre populações diferentes, são necessários procedimentos de medição padronizados. A medição do estado de saúde requer sistemas harmonizadores e unificados como a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), na sua Décima Revisão, cujos XXII capítulos iniciam com certas doenças infecciosas e parasitárias (A00-B99) e terminam com o capítulo referente aos códigos para propósitos especiais (U00-U99). Os indicadores de saúde medem napopulação diferentes aspectos relacionados com a função ou incapacidade, a ocorrência de doença ou óbito, bem como os aspectos relacionados com os recursos e desempenho dos serviços de saúde. Os indicadores de saúde funcional tratam de medir o impacto dos problemas de saúde na vida diária, por exemplo, a capacidade para realizar atividades cotidianas, lesões e acidentes domésticos e no local do trabalho, e anos de vida livres de incapacidade. Os dados são obtidos geralmente através de inquéritos e registros de incapacidade. Os índices de qualidade de vida incluem variáveis de função como a atividade física, a presença de dor, o nível do sono, de energia e o isolamento social (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Os indicadores de morbidade medem a frequência de problemas de saúde específicos como infecções, cânceres, acidentes de trabalho, etc. As fontes de dados costumam ser registros de hospitais e serviços de saúde, notificação de doenças sob vigilância e inquéritos de soro prevalência e de autorrelato de doenças, entre outros. É necessário mencionar que as doenças crônicas, pela sua longa duração, requerem o monitoramento das etapas clínicas, pelo que é preferível contar com os registros de doença (ex: câncer, defeito congênito etc) (NEWCOMER, 1992. Apud ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Os indicadores de mortalidade geral ou por causas específicas permitem comparar o nível geral de saúde e identificar causas de mortalidade relevantes como acidentes, tabagismo, etc. O registro da mortalidade requer o atestado de óbito, para o qual é usado a Declaração de Óbito. A mortalidade se apresenta geralmente como números absolutos, proporções, ou taxas por idade, sexo e causas específicas. Além da medição do estado de saúde, também é necessário medir o desempenho dos serviços de saúde. Tradicionalmente, essa medição é focada para os insumos e 40 serviços; atualmente, considera-se preferível medir os processos e funções dos serviços de saúde (TURNOCK, 1997). Conjuntamente com os indicadores mencionados, a mensuração na saúde requer a disponibilidade de dados sobre características relevantes da população (variáveis), tais como seu tamanho, composição, estilos de vida, classes sociais, eventos de doenças, nascimentos e óbitos. Os dados para a medição da saúde provêm de diversas fontes, motivo pelo qual devem ser considerados os aspectos relacionados com a invalidez, qualidade, integridade e cobertura dos próprios dados e suas fontes. Os dados, quantitativos ou qualitativos, que se obtêm e se registram dos serviços de saúde e das estatísticas vitais representam a “matéria prima” para o trabalho epidemiológico (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Quando os dados são incompletos ou inconsistentes, serão obtidas medidas enviesadas ou inexatas, sem importar a sofisticação da análise epidemiológica, e as intervenções derivadas do seu uso não serão efetivas. A deficiente cobertura dos serviços, em amplos setores da população de vários países, limita a geração de informação útil e necessária para resolver os problemas de saúde que atingem de forma específica as suas comunidades. Ainda quando os dados estiverem disponíveis e sejam confiáveis, sua utilização para a gestão em saúde pode ser insuficiente (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Fonte: iadb.org.com Com o propósito de responder às necessidades de contar com um conjunto de dados válidos, padronizados e consistentes dos países das Américas, a Organização 41 Pan-Americana da Saúde (OPAS) trabalha desde 1995 na Iniciativa Regional de Dados Básicos de Saúde. Está incluída nessa fonte uma série histórica de 117 indicadores demográficos, socioeconômicos, de morbidade, mortalidade, de recursos, acesso e cobertura de serviços de saúde, dos 48 países e territórios da região (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Uma vez contados os dados e calculados os indicadores de saúde, uma das dificuldades apresentada nos serviços de saúde está relacionada com as limitações do manuseio correto da informação numérica, sua análise e interpretação, funções que requerem o uso dos princípios da epidemiologia e da bioestatística. No entanto, no âmbito em que ocorrem os problemas e onde eles são solucionados, os procedimentos e técnicas para obtenção, medição, processamento, análise, interpretação dos dados e uso das informações ainda não estão plenamente desenvolvidas (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Para a correta tomada de decisões em todos os níveis dos serviços de saúde, baseada na informação pertinente, é necessária a capacitação permanente da equipe local de saúde e das suas redes na coleta, manuseio, análise e interpretação de dados epidemiológicos. A quantificação dos problemas de saúde na população requer procedimentos e técnicas estatísticas diversas, algumas delas de relativa complexidade. Dadas as características de múltiplos fatores dos problemas de saúde, as técnicas qualitativas são também valiosas para aproximar-se do conhecimento dos determinantes da saúde. É por isso que existe a necessidade de incorporar, de forma dialética, métodos e técnicas quantitativas e qualitativas que permitam estudar os diversos componentes dos objetos de estudo (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Na análise quantitativa o uso de programas informatizados facilita o manuseio e a análise de dados, mas não se deve superestimar seu alcance e aplicações. Sua utilidade é maior quando são estabelecidas redes de colaboração e sistemas de informação em saúde, que permitem o manuseio eficiente de grandes bases de dados e geram informação oportuna e útil para a tomada de decisões. Um programa informatizado reduz notavelmente o tempo de cálculo, processamento e análise dos dados, mas é o trabalho humano o que aporta resultados racionais e válidos para o desenvolvimento dos objetivos de saúde pública (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). 42 Existem dois pacotes de programas de cálculo desenhados especificamente para a saúde que facilitam o armazenamento, processamento e análise de informação epidemiológica: Epi-Info, produzido pelo Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), e o Epi-Dat, desenvolvido pela OPAS e a Xunta de Galicia, Espanha. Longe de competir entre si, os pacotes de programas, de grande uso e de livre distribuição, oferecem processos e rotinas de manuseio e análise epidemiológica de dados que são complementares (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Em um sentido amplo, podemos considerar que o trabalho da saúde pública parte da constatação de uma realidade de saúde não desejável em uma população e aponta para conseguir mudanças sociais, deliberadas e sustentáveis nessa população. Nesse sentido, e do ponto de vista metodológico, a epidemiologia como toda ciência tem exigência de método, desde uma perspectiva estatística. O foco epidemiológico consiste basicamente em: i) a observação dos fenômenos de saúde e doença na população; ii) a quantificação dos mesmos em frequências e distribuições; iii) a análise das frequências e distribuições de saúde e de seus determinantes; e iv) a definição de cursos de ação apropriados (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2010). Esse processo de observar-quantificar-comparar-propor serve também para avaliar a efetividade e o impacto das intervenções em saúde, para construir novos modelos que descrevam e expliquem as observações e para utilizá-los na predição de novos fenômenos. Em resumo, em todo esse processo, os procedimentos e técnicas de quantificação são de grande relevância, e a capacitação da equipe local de saúde nestes aspectos do enfoque epidemiológico é, consequentemente, fundamental (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE,
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