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0 Práxis no Ensino Superior Jefferson Falcão Sales Artigo científico 1 PRÁXIS NO ENSINO SUPERIOR Jefferson Falcão Sales* RESUMO O presente artigo resulta de uma pesquisa bibliográfica e documental que contemplou livros e marcos legais sobre as peculiaridades do ensino realizado nas instituições de educação superior. A revisão de literatura acerca da formação e prática docente na educação superior realizou-se com base em autores como Farias (2006), Pimenta (1999), Gómez (2001), Imbernón (2009), Nóvoa (1991), Perrenoud (1999), Santaella (2013) e Tardif (2005). A pesquisa documental contemplou o principal marco legal da educação nacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional − LDBEN 9.394/96 (BRASIL, 1996), e a Lei 10.861/04 (BRASIL, 2004), que regula “o Exame Nacional de Desempenho do Estudante (ENADE), o qual avalia a qualidade de ensino da Educação Superior no Brasil. Constatou-se que a práxis no Ensino Superior se manifesta predominantemente na relação professor- aluno-instituição e são explicitados os fatores e os detalhes que a configuram. Além disso, são abordadas a formação do professor reflexivo, a racionalidade prática, a cultura docente, a avaliação da aprendizagem e os saberes mobilizados pelo professor universitário durante sua formação e ação profissional. Ficou compreendido que a práxis docente no Ensino Superior contemporâneo reclama uma articulação teórico-prática entre os conhecimentos da área científica de atuação do professor, saberes pedagógicos e o uso das tecnologias digitais. Palavras-chave: Cultura docente; professor reflexivo; racionalidade prática; ensino superior; cibercultura. INTRODUÇÃO A práxis no Ensino Superior se manifesta predominantemente na relação professor-aluno-instituição. O presente artigo busca explicitar os fatores e os detalhes que configuram essa relação. Iniciamos pelo perfil do professor solicitado pelas demandas do século XXI, considerando que a ação docente é marcada pela cultura de sua época. A discussão percorre o caminho da construção da identidade profissional do professor pela cibercultura. No capítulo seguinte, vamos estudar a Filosofia da Educação de John Dewey, que marcou duas grandes fases da história da educação nacional: o movimento escolanovista (1930-1950) e outro referente à formação de professores (década de 1990). Aprofundamos a temática formação do professor reflexivo, discutindo a racionalidade prática docente na construção de sua cultura profissional. Por fim, apresentamos os pressupostos teóricos da andragogia. A práxis docente na educação superior, suas dimensões históricas, políticas e pedagógicas é o que tratamos na seção final. O foco esteve nos saberes * Professor da educação básica e superior. Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Doutorando em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: salesjf.professor@gmail.com 2 mobilizados pelo docente universitário durante sua formação e sua ação profissional, bem como na avaliação da aprendizagem no Ensino Superior. Esperamos que tenha uma boa viagem pelas peculiaridades inerentes à prática docente na educação superior. 1. CIBERCULTURA E O PROFESSOR DO SÉCULO XXI Neste tópico, vamos abordar o perfil do professor solicitado pelas demandas do século XXI. Inicialmente, consideramos o professor como sujeito de cultura, ou seja, aquele que vive, faz e propaga artefatos simbólicos repletos de significação humana. A discussão transcorre pela construção da identidade profissional do professor e pela influência das tecnologias digitais na formação docente. 1.1 Professor, um sujeito de cultura O professor é um profissional cuja atividade tem especificidades. De modo geral, quando se fala em professor, espera-se que ele seja alguém que apresente o domínio de uma determinada área do conhecimento, que seja capaz de articular o conteúdo de sua formação específica com os conhecimentos pedagógicos, para que obtenha “êxito” no processo de ensino. Tais características são tidas como próprias a todo e qualquer professor. Elas se referem ao núcleo-base do trabalho do professor: o ensino. São habilidades, capacidades em geral de um ensino-padrão, as quais se ampliam e diversificam em situações de ensino voltadas para públicos com demandas específicas e diferenciadas. No que se refere à educação superior, essa modalidade de ensino reclama uma docência que apresenta peculiaridades tributárias da realidade do seu público- alvo e do contexto de trabalho do professor. O professor da universidade, como qualquer outro, desenvolve sua atividade profissional e se constitui como tal no seu lugar de trabalho. Vale dizer que aqui não estamos negando a bagagem social (múltiplas experiências) que ele traz. Antes, está se evidenciando que é no microcontexto do seu local de trabalho que o professor se desenvolve profissionalmente. Esse pressuposto evidencia o caráter dinâmico do Ensino Superior, marcado por fatores externos (de natureza normativa) e internos (de teor interativo-reflexivo). A compreensão que temos de cultura neste estudo corrobora o pensamento de Gómez (2001), que a considera o conjunto de significados, expectativas e comportamentos compartilhados por um determinado grupo social. Desse modo, a universidade é um espaço de encontro e vivência de várias culturas. Isso significa que, no seio da cultura universitária, existem diversas noções e conteúdos simbólicos, tanto no plano maior quanto no patamar microssocial. A universidade vive e reproduz as tensões presentes de sua comunidade social, desejos, anseios e crenças de seus agentes e formuladores, além das teorias e dos conhecimentos sistemáticos da sociedade em que está inserida. Dessas demandas, emergem as subculturas que formam a cultura acadêmica, responsável definitiva pela natureza, sentido e consistência do que os alunos e as alunas aprendem nas faculdades. A sociedade contemporânea exige da universidade um posicionamento crítico e ativo diante das mudanças ocorridas nas últimas décadas. O mundo, de certa 3 forma, perdeu o referencial universal com o esfacelamento do conceito de História e a decadência do pensamento moderno. Vivemos o mundo das redes sociais, as quais nos apresentam diversas direções e rumos a seguir por meio de festivais de imagens e cores, que muitas vezes saltam à capacidade humana de enxergar (e o que dizer de pensar?). A ditadura do relativismo e das fake news imperam, enfatizando grupos sociais que buscam o reconhecimento de suas histórias. Neste mundo, em que todos parecem ter voz e vez, deparamo-nos com um silêncio ensurdecedor de uma maioria miserável, sem a mínima condição de vida. É nesse contexto político- ideológico onde a universidade se encontra e vê confrontada sua função social: formar sujeitos capazes de viver, acompanhar e administrar avanços e conflitos em uma sociedade tecnológica e globalizada, e com relações produtivas cada vez mais complexas e diversificadas. A ideologia da cena social contemporânea se configura em condições econômicas e políticas que desenham uma estrutura de poder caracterizada pelo império das leis do livre mercado como estrutura reguladora dos intercâmbios na produção, na distribuição e no consumo; democracias formais, com estados de direito constitucionalmente regulados; e onipresença dos meios de comunicação de massa (GÓMEZ, 2001). Tais relações sociais, que traduzem os anseios do neoliberalismo, potencializam o individualismo, a competitividade e o isolamento. A universidade, como instituição integrante desse contexto, tende a reproduzir tal realidade, criando um conjunto de fatores que condicionam os processos de ensino e de aprendizagem. Por outro lado, sendo um espaço social permeado por sujeitos com posições diversas e com capacidade reflexivo-argumentativa, produz uma cultura institucionalno seu interior. Presentes, sendo elaborados e formulando essa cultura, estão os docentes, que formam seu principal grupo social. Por fazer parte da universidade (microextensão da sociedade neoliberal) e nela desenvolver-se como profissional, o professor está propenso a configurar seu trabalho, suas interações e seus objetivos pedagógicos reproduzindo, muitas vezes, os princípios que caracterizam as leis do livre mercado. Tal influência, todavia, não é direta nem possui via única. As relações, os valores, as crenças e os saberes que direcionam suas ações representam elaborações não lineares, complexas e constituintes de sua cultura profissional. 1.2 A construção da identidade profissional do professor A identidade profissional é uma constituição que atravessa a vida do profissional desde sua opção pela profissão e acompanha sua trajetória pelo tempo concreto da formação inicial e pelos vários espaços institucionais nos quais se desenvolve. Na docência, a referida identidade consiste nos saberes científicos e pedagógicos com os quais o sujeito se defronta ao longo do desenvolvimento de sua formação. Huberman (2000) realizou uma pesquisa acerca da vida profissional dos professores. Apesar de seu modelo ter sido realizado com um grupo de professores franceses, compreendemos que o autor considera possível tal percurso entre os docentes brasileiros. Vejamos as fases da profissão docente, conforme Huberman (2000): 4 a. início de carreira (1 a 3 anos) – anos iniciais de ensino, adaptação constante, choque entre teoria (universidade) e prática (realidade de sala de aula), e o entusiasmo como debutante; b. estabilização (4 a 6 anos) – compromisso e responsabilidade, sentimento de pertença à categoria docente; preocupação com o cumprimento dos objetivos curriculares e didático-pedagógicos; c. diversificação (7 a 25 anos) – diversidade experiencial na prática docente envolvendo todos os âmbitos técnico-pedagógicos (planejamento, ensino, avaliação); o professor desenvolve motivação frente à sua atuação, articulando a função social e política de sua profissão da melhor forma possível; d. indagação (7 a 25 anos) – acontece concomitantemente à diversificação; marca o autoconhecimento docente diante das descobertas e expectativas diante do desenvolvimento profissional ao longo do tempo; envolve questões institucionais, econômicas e familiares; apresenta especificidades de gênero; e. serenidade e maturidade (25 a 35 anos) – momentos em que os professores se tornam capazes de perceber e avaliar o real e o ideal da profissão; encontram a maturidade profissional reconhecendo seus potenciais e limites frente à idade; abrem espaço para os mais jovens na profissão e entendem que sua atuação foi ressignificada pelo tempo de serviço; f. conservantismo e lamentações (25 a 35 anos) – confronto com os alunos e professores mais jovens em questões pedagógicas e de disciplina; passam a considerar a profissão desmotivadora, apresentando resistência à inovação; g. desinvestimento (35 a 40 anos) – momento de reencontro consigo mesmos, filtrando as questões que envolvem a profissão; iniciam a desvinculação psicoafetiva-social com a profissão, buscando novos sentidos de vida. Cavaco (1991) corrobora com a discussão sobre identidade profissional docente afirmando que, na identidade profissional do professor, entrecruzam-se a dimensão pessoal, a linha de continuidade que resulta do que ele é, com os trajetos partilhados com os outros em diversos contextos em que está inserido. Pimenta (1999) argumenta que a identidade profissional docente se constitui por meio da significação social constante da profissão. Essa constituição está permeada de sentido pessoal acerca da atividade docente, bem como de sentido coletivo na qualidade de partícipe de uma instituição, categoria de trabalho e sociedade. Nóvoa (1991) defende que a construção da identidade docente está alicerçada em três pilares de formação: a) o desenvolvimento pessoal, que diz respeito à produção da vida do professor; b) o desenvolvimento profissional, referindo-se aos aspectos da produção da profissão; c) o desenvolvimento relacionado à produção da escola ou os investimentos da instituição para obtenção de seus objetivos pedagógicos. 5 O desenvolvimento profissional docente envolve diretamente a cultura presente nas instituições de ensino. É um espaço social permeado por sujeitos com posições diversas e com capacidade reflexivo-argumentativa; as instituições de ensino produzem uma cultura específica no seu interior. Presentes, sendo e formulando essa cultura, estão os docentes, que formam seu principal grupo social. Por fazer parte da instituição de ensino e nela desenvolver-se como profissional, o professor está propenso a configurar seu trabalho, suas interações e seus objetivos pedagógicos (sua cultura docente) unicamente em princípios referentes à cultura organizacional vigente. Essa influência, todavia, não é direta nem possui via única. As relações, os valores, as crenças e os saberes que direcionam suas ações representam elaborações não lineares, complexas e constituintes de sua cultura profissional. 1.3 Cultura docente, uma construção sempre singular A cultura profissional dos professores é dimensão central à cultura de uma instituição de ensino. Os professores, como grupo ocupacional, produzem, com seus saberes, normas e crenças, modos de educar e de viver nas instituições de ensino que retratam suas individualidades em uma coletividade intelectual e simbólica. A cultura docente enseja a constituição de identidade aos professores e os auxilia na batalha contra os desafios inerentes ao magistério. É na socialização que os mestres internalizam suas experiências, arranjando formas e esquemas culturais que determinam os caminhos de suas atividades profissionais. Sobre o assunto, argumenta Sales (2007, p. 57): A cultura institucional, no entanto, não se desenha somente com seus professores. Nela também estão inseridos os pensamentos e ações dos alunos, assistentes sociais, psicólogos, funcionários, gestores etc. Como sinaliza a literatura neste campo, porém procede dos docentes a contribuição mais significativa na efetivação das crenças e valores que permeiam o interior da organização. Considerando-a um corpo humano, podemos, metaforicamente, dizer que seu centro vital é a cultura de seus professores que irriga toda a organização com efluentes nutrientes provindos de experiências pessoais, sociais, intelectuais e políticas. Na cultura organizacional das instituições, emergem todos esses níveis da cultura docente, seja de forma bem evidente ou implícita. Hargreaves (1998) contribui para a discussão sobre como se processa a formulação da cultura docente em um determinado estabelecimento de ensino. Para esse autor, a cultura profissional do professor é constituída de duas dimensões: conteúdo e forma. De modo epistêmico-didático, assinala ainda que o que os professores pensam, fazem e dizem representa o conteúdo; a forma se expressa nos padrões de relacionamento e nos modos de interação deles. Essa ideia é corroborada por Farias (2006, p. 85): O conteúdo diz respeito a uma variedade de aspectos que constituem o pensamento pedagógico dos professores, envolvendo desde as teorias mais explícitas e difusas até as técnicas que materializam sua atuação. A forma da cultura docente [...] pode ser percebida nas condições concretas em que se desenvolve o trabalho do professor, mais especificamente no modo como este sujeito articula suas relações com os demais colegas. 6 Nesse sentido, o currículo, as concepções sobre o ensino, a aprendizagem, a avaliação, a função social, a estrutura organizacional, os processos de socialização internos e externos a essa organização, bem como o significado e a evolução da sociedade, constituem componentes do conteúdo da culturadocente. Vale ressaltar que, genericamente falando, o conteúdo da cultura dos educadores se manifesta a partir da forma como estes interagem para atender à demanda de suas ações profissionais; ou seja, é mediante as diferentes formas da cultura docente que os professores se realizam, reproduzem e redefinem os conteúdos que norteiam sua ação profissional como grupo (HARGREAVES, 1998). As formas de interação dos professores e demais sujeitos que estabelecem relações são centrais na configuração e na renovação da cultura profissional desse grupo. Agindo sobre elas, é possível impulsionar mudanças1 no modo de pensar e fazer desses profissionais (FARIAS, 2006). Considerando as formulações de Hargreaves (1998), identificamos duas grandes formas na cultura dos professores - o individualismo e a colaboração – as quais apresentam três diferentes manifestações e significados. 1.3.1 O individualismo Essa forma da cultura docente faz referência ao isolamento docente traduzido em práticas pedagógicas individualistas, via de regra caracterizadas por um “sentido patrimonialista” do trabalho. O professor pensa e decide sozinho, conforme seu entendimento sobre o que é mais pertinente, o direcionamento teórico e prático relativo ao ensino e à aprendizagem escolar. Concordamos com Farias (2006) quando acentua que o individualismo ainda se apresenta como a forma da cultura docente predominante. Esse fenômeno sociocultural encontra-se enraizado nos diferentes aspectos da tradição educacional: arquitetura, desvalorização do tempo para situações de interação coletiva, ativismo docente, fragmentação curricular e administração burocrática e centralizada, entre outros. Em geral, ser “individualista” tem uma conotação negativa. Tende-se a não interpretar essa circunstância como uma estratégia de preservação constituída pelo professorado para superar os nós que envolvem seu trabalho. Rompendo essa visão, Hargreaves (1998) inclui em sua análise teórica o argumento da individualidade e da individuação2 como elementos que expressam consciência, autonomia, emancipação, criatividade e intimidade dos professores com sua ação profissional. Desse modo, destaca que o individualismo pode ter conotações diversas e distintas, identificadas como individualismo restringido, individualismo estratégico e o individualismo eletivo. 1 Farias (2006) utiliza o termo mudança na perspectiva da práxis, compreendendo-a com a ressignificação da prática, isto é, diz respeito a alterações substantivas na “visão que orienta o modo de agir, de pensamento e de interagir com as coisas ao seu redor e com os outros. (p. 42). Acrescenta, ainda, que “a mudança como ressignificação da prática ultrapassa as modificações sobre a vida organizativa da instituição e aplicação de tecnologias, envolvendo um novo modo de agir, alicerçado em novos valores, símbolos e rituais” (p. 44). É ao mesmo tempo, individual, coletiva e interativa. (p. 45). 2 A individuação refere-se à ação individual planejada, que busca superar as situações difíceis. A individualidade resulta de avaliação e juízo de sua ação profissional; envolve o sentido de competência (HARGREAVES, 1998). 7 No individualismo restringido, os professores ensinam, planejam e, em geral, trabalham sozinhos em virtude das limitações situacionais e administrativas em que estão inseridos. Salas de aulas superlotadas com alunos em diferentes níveis de aprendizagem, ausência de um ambiente propício e falta de apoio na organização do tempo para interação dos professores ensejam a formação desse tipo de individualismo. Por outro lado, o individualismo estratégico refere-se à forma utilizada pelos professores para construir e criar, ativamente, práticas que respondam às contingências cotidianas de seu ambiente de trabalho. O interesse do professor está voltado basicamente para as atividades referentes ao seu dia a dia, pois dispõe de pouco tempo para dar conta da demanda inerente ao seu trabalho (planejamento de aula, preparação de avaliações, estudo individual, busca de metodologias, diagnóstico dos alunos, preenchimento dos diários etc.). É estratégico porque o professor assume essa forma de relação e interação deliberadamente, buscando conciliar condições de trabalho e a preocupação com a eficácia de sua ação. O individualismo eletivo se caracteriza como uma opção de trabalho assumida pelo professor. Como anota Hargreaves (1998), “es una forma preferida de estar y de trabajar y no una simples respuesta restringida o estrategica a las exigencias y contingencias ocupacionales”. Objetivamente, põe em ressalto a autonomia e a independência profissionais do professor, ao manifestar sua capacidade intelectual e criativa no desenvolvimento de suas atividades (FARIAS, 2006). O individualismo eletivo traz à tona a individualidade do docente como profissional que sabe e pensa sobre o que faz. Essa diferente perspectiva sobre o individualismo assinala que é preciso prudência ao interpretar o isolamento ou a solidão do professor, já que isso pode representar uma forma madura e refletida de realização do seu trabalho. Além disso, a reflexão e a introspecção intelectiva conduzem à formação de indivíduos criativos, autônomos e críticos que, com certeza, são verdadeiramente colaboradores, e não meros copiadores ou oportunistas (HARGREAVES, 1998). Essa compreensão do individualismo procura não desconsiderar sua contribuição ao processo pelo qual o professor constrói e se reconstrói no seu espaço de trabalho. Ressalte-se, ainda, que as práticas individualistas podem manifestar o esforço e a preocupação docente com os fins da ação educativa. Nesse sentido, não se pode desconsiderar seu potencial na consecução desse propósito. Tal reconhecimento, todavia, não significa que não é legítimo questionar sua adequação ao modelo de formação humana que a sociedade contemporânea – globalizada e tecnológica – reclama. As ponderações e restrições, se pertinentes, devem articular esses aspectos, haja vista o entendimento de que cada momento histórico tem especificidades, as quais são decisivas nos modelos de relação e produção que o caracterizaram. A educação, o professor e sua ação não estão ilesos desse processo. 1.3.2 A colaboração A colaboração se caracteriza como um consenso que surge e se desenvolve entre os sujeitos, ao reconhecerem que as necessidades, os interesses e as complexidades dos propósitos da tarefa educativa solicitam uma ação cooperativa (GÓMEZ, 1992). Essa forma de cultura enseja uma gestão do ensino/aprendizagem mais democrática e participativa. 8 Uma cultura cooperativa faz com que os professores transcendam a autorreflexão e a introspecção, desenvolvendo uma prática pedagógica mais autônoma. Ao requerer a constituição de uma comunidade de trocas de experiências e saberes, essa forma de cultura promove o desenvolvimento profissional mútuo entre os professores e amplia a relação de trabalho entre eles de caráter espontâneo, afetando o ambiente escolar nas suas diversas dimensões (operacionais e funcionais). Essa é a forma mais vigorosa da cultura cooperativa; no entanto, também é a mais complexa e rara no contexto escolar. Com efeito, ela apresenta “facetas variadas, cada uma com objetivos e consequências diversas e distintas” (FARIAS, 2006, p. 7), que revelam suas limitações. Por exemplo, um grupo docente pode se reunir para fazer o planejamento da avaliação da aprendizagem, discutindo os conteúdos a cobrar, os procedimentos a serem adotados na ocasião, definindo como será dimensionado/calculado o desempenho do aluno. Esse momento de cooperação, porém, restringe-se à discussão de questões vinculadas à sala de aula que, embora necessária, não propicia nem estimula uma reflexão crítica sobre os fatores que condicionam a prática profissional e entravam o desenvolvimento docente (CONTRERAS, 1997). Diferentemente da instituição de ensino cuja gestãose empenha em estabelecer relações de confiança e de valorização autêntica com os professores, promovendo uma colaboração verdadeira, a escola burocrática configura ambiente propício para o surgimento da colegialidade artificial, uma manifestação da cultura de natureza cooperativa. Na colegialidade artificial, os professores se apresentam como operários do ensino, que obedecem aos comandos de execução dos seus “supervisores” para alcançar as metas de avaliação. Argumenta FARIAS (2006, p. 94) que: O poder administrativo, nesse caso, funciona como uma força compressora, que determina e supervisiona a realização das atividades estabelecidas sem anuência dos professores. Estes, por sua vez, assumem uma posição mais executiva do que proponente, sendo dificultada sua capacidade criativa e independente. A colegialidade artificial é uma das mais comuns manifestações da cultura docente e também umas das mais prejudiciais à dinâmica interacional e de aprendizagem nas instituições de ensino. Pondera SALES (2007, p. 62): Como evidencia a transcrição, na colegialidade artificial, cooperação e participação dos professores são impulsionadas e condicionadas a propósitos administrativos que, nem sempre, estão alinhados aos interesses dos professores ou às suas necessidades ante os problemas que enfrentam no trabalho. A organização curricular por disciplina caracteriza a “balcanização” (HARGREAVES, 1998), outra manifestação da cultura cooperativa. Hargreaves (1998) argumenta que a “balcanização” do ensino é a compartimentação de professores em suas respectivas disciplinas, segundo o valor que a cultura social hegemônica da sociedade lhes atribui. Trata-se de um tipo de cultura cooperativa que sustenta e é sustentada pelo poder do saber e da especialização disciplinar. É uma colaboração que divide, separa os professores ao fomentar relacionamentos baseados na formação de grupos isolados (as famosas “panelinhas”). Essa forma de cultura docente impede o estabelecimento de um projeto único e consensual e uma orientação interdisciplinar do currículo. Está presente, mais comumente, em instituições que trabalham com diferentes áreas do 9 conhecimento, sobretudo nas escolas de Nível e Educação Superior. Comportam mais alunos, professores, funcionários com diferentes interesses e valores que produzem conflitos interativos e sistemas de comunicação extremamente complexos, acirrando a disputa ideológica pelo poder. Segundo Gómez (2001), esse clima competitivo resulta de um sistema acadêmico burocrático que faz uso dos princípios neoliberais da sociedade de livre mercado. Vive-se a mercantilização do rendimento acadêmico que incentiva as premiações e compensações, originando entre os professores a ideia de que é melhor trabalhar em seus respectivos grupinhos com o objetivo de conseguir as “comendas” oferecidas pela administração escolar e pelos sistemas educacionais onde se encontram. As diferentes manifestações da cultura cooperativa mostram sua complexidade; todavia, a colaboração se apresenta como uma demanda social no século XXI. Desenvolver práticas cooperativas constitui desafio à docência contemporânea, em face tanto da diversificação e da ampliação das atividades do professor quanto da heterogeneidade do público escolar com que lida e interage. As demandas do século XXI reclamam uma identidade profissional docente multifacetada e plural, em que questões étnico-raciais, de gênero, religiosas e de inclusão social permeadas pela cibercultura se propagam nos meios institucionais, de representação da categoria e da sociedade como um tudo. É preciso o treino da escuta, o aprendizado da acolhida e o exercício contínuo da reflexão para a confecção coerente da prática docente em tempos de tecnologias digitais e redes sociais. 1.4 Tecnologias digitais e formação de professores Os artefatos digitais da cibercultura influenciam diretamente na formação do professor contemporâneo. Os smartphones e os aplicativos, por exemplo, criaram a possibilidade de compor um cenário de inovação a simples ação de copiar um texto em uma sala de aula. Contudo, é essencial refletir acerca do impacto do uso desses dispositivos na efetivação de práticas educativas. As possibilidades informacionais e de ensino que surgem na cultura contemporânea, articuladas às mudanças sociais e ao desenvolvimento e à popularização das tecnologias digitais móveis, fomentam atitudes de inovação na construção da identidade profissional docente do século XXI. Os sites de redes sociais digitais, os jogos on-line, os sites de compartilhamento de vídeos, os gadgets e os smartphones tornaram-se acessórios de cultura, e, por sua vez, possíveis mecanismos de facilitação e de mediação do trabalho pedagógico e formativo em geral. Em contrapartida, algumas tensões da prática docente e dos professores educativos surgem e colocam em questionamento os modelos de ensino mais tradicionais que reconhecem com estranhamento os hábitos da cultura vigente. No entanto, conforme Santaella (2013), a utilização de dispositivos móveis nos processos educacionais envolve processos de aprendizagem abertos que significam processos espontâneos, assistemáticos e atualizados pelas circunstâncias e pelas curiosidades contingentes. No contexto educacional, a aprendizagem, nessa perspectiva, depende de ações discentes, não de natureza passiva, mas colaborativas e articuladas coletivamente. 10 Desse modo, é urgente refletir acerca do uso das redes sociais, Telegram e WhatsApp no processo de ensino-aprendizagem e na formação de professores, possibilitando motivação, formação e auxílio no desenvolvimento cognitivo do sujeito; atingindo diferentes perfis e estilos de aprendizagem; potencializando a formação via feedbacks constantes e interfaces informacionais mediante comunicação síncrona e assíncrona. Esses novos mecanismos didáticos solicitam ao professor o entendimento de que a educação não é somente a transferência da informação, mas um processo de construção do conhecimento do aluno como produto do seu próprio engajamento intelectual ou do aluno como um todo. No aspecto formativo, as tecnologias móveis favorecem a aprendizagem, o pensamento reflexivo e o senso de autoria, permitindo exímia interação em rede, para além do hipertexto, já que os links podem ser selecionados e localizados rapidamente. (OLIVEIRA, 2017). As Tecnologias Digitais (TD) diversificaram os ambientes e os contextos de aprendizagem, apresentando ao professor um menu de possibilidades para a inovação de suas práticas pedagógicas, que, por sua vez, fomentará nos alunos a produção de conhecimento coletivamente (OLIVEIRA, 2017). O professor potencializa o alcance de seu trabalho docente via aplicativos móveis com o desenvolvimento de tarefas, a veiculação de dados, os ajustes às necessidades aos objetivos de cada curso, na organização, na reorganização e na flexibilização curricular, a fim de atender às novas exigências para a construção do conhecimento sistematizado, que instiguem a investigação e a curiosidade do sujeito em formação (OLIVEIRA, 2017). A web integra e favorece o processo de ensino e aprendizagem pela sua própria metodologia dialógica: pensamentos, conceitos, imagens, mídias e ideias, nas quais o sujeito atua de forma consciente com os objetos do conhecimento. Valoriza a construção colaborativa da aprendizagem por meio da imagem, do audiovisual, das trocas, da constante interação, privilegiando, além do cognitivo, o afetivo e o intuitivo, para potencializar estratégias didáticas, proporcionando ao aluno o desenvolvimento do senso criativo e autoral (LUCENA; OLIVEIRA; SANTOS JUNIOR, 2017). Assim, com a implementação das inovações tecnológicas no contexto do Ensino Superior as universidades são convidadas a reestruturar seus planejamentos de ensino e integralizações curriculares considerando a nova cultura de estudos e aprendizagem proporcionadapela sociedade atual, onde a comunicação audiovisual e interativa impera por meio da imagem, do som e do movimento (LUCENA; OLIVEIRA; SANTOS JUNIOR, 2017). É fundamental repensar a formação do professor do Ensino Superior em situações educativas que possibilitem o uso de recursos tecnológicos para o auxílio e para a implementação de novas abordagens e estratégias didáticas, criando espaços ao enfrentamento de ações que, além da formação inicial, priorizem também cursos de aperfeiçoamento e formação continuada, e oficinas on-line que envolvam atividades nas quais o professor possa experienciar os diferentes recursos tecnológicos. Isso pode permitir a superação de projetos de formação docente, ainda pautados na polaridade entre as disciplinas de teoria específica, e as disciplinas pedagógicas (LUCENA; OLIVEIRA; SANTOS JUNIOR, 2017). Paralelamente a essa discussão, Imbernón (2009) chama a atenção para a necessidade de mudanças nas modalidades e nas estratégias utilizadas nos cursos 11 de formação de professores. O autor propõe a construção de uma metodologia formativa de trabalho nos cursos de formação de professores. Essa metodologia passaria pela efetiva participação na resolução de problemas existentes, cujas discussões envolveriam todos os professores para além de análises teóricas da situação, pois o mais importante seria modificar a realidade por meio de uma da prática. Assim, podemos afirmar que o ideário formativo proposto pelo autor se enquadra nas possibilidades interativas e hipertextuais promovidas pela cibercultura, pois esta revoluciona formas de registro e de comunicação via suporte digital: blogs, redes sociais, aplicativos, que, além da escrita, registram fotos, áudios e vídeos do que se vivencia. Esse contexto revela um emergir de uma racionalidade prática docente cibernética. 2. O PENSAMENTO DE DEWEY E AS ORIGENS DA PEDAGOGIA REFLEXIVA Neste capítulo, discorreremos sobre a Filosofia da Educação de John Dewey, que marca duas grandes fases da história da educação nacional: o movimento escolanovista (1930-1950) e outro referente à formação de professores (década de 1990). Aprofundaremos a temática formação do professor reflexivo e discutiremos a racionalidade prática docente na construção de sua cultura profissional. Por fim, abordaremos a importância dos pressupostos teóricos da andragogia para o Ensino Superior. 2.1 O filósofo Dewey John Dewey nasceu em 20 de outubro de 1859, nos Estados Unidos. Foi influenciado intelectualmente pela religião, segundo estudiosos, não por aspectos teológicos, mas pela experiência comunitária democrática vivenciada. Iniciou, em 1882, os estudos na Universidade John Hopkins. Doutorou-se em Filosofia em 1884, defendendo uma tese sobre a psicologia de Kant. Dewey é considerado um dos mais importantes pensadores do século XX. Entre suas diversas obras, destaca-se Democracia e Educação, de 1916, texto que marca o pensamento pedagógico deweyano. Acerca do pensamento reflexivo, Dewey publicou o livro Como pensamos, em 1933. Lecionou em inúmeras universidades americanas, sobretudo na Universidade de Columbia, onde permaneceu por mais de 30 anos até sua morte, em 1952, aos 92 anos. Epistemologicamente falando, o pensamento de Dewey está enquadrado na corrente filosófica do pragmatismo. Considerado um pensador democrata liberal por muitos estudiosos, também efetuava críticas severas ao pensamento político do liberalismo clássico. Teve seguidores no mundo inteiro. No Brasil, Anísio Teixeira foi o mais ilustre. Dewey apresentava uma visão democrática de educação, escola e universidade. Sempre deixou claro que a vida democrática depende de uma educação da reflexão. Segundo Dewey (1959), a educação deve propiciar um ambiente favorável para que todos sejam capazes de desenvolver seus potenciais. Para Cunha (1994), as concepções deweyanas de democracia reclamam não apenas uma renovação de metodologia de ensino e do cotidiano escolar, mas sobretudo uma nova forma de visão de mundo. Prossegue, afirmando que a filosofia 12 educacional de Dewey é marcada por um espírito político largamente democrático, provocador de novas possibilidades de organização da educação e da vida. 2.2. A Pedagogia Nova O pensamento filosófico de Dewey é considerado como um dos responsáveis pelo desencadeamento do movimento da Escola Nova. Esse movimento promoveu uma significativa mudança na conhecida educação tradicional, que, por sua vez, era marcada pelos princípios clássicos da Ratio Studiorum jesuíta, retomados pelo positivismo. Para Dewey, esse tipo de educação rigorosa, disciplinar e centrada no conhecimento de conceitos apresentava-se insuficiente frente às inúmeras transformações históricas, sociais e econômicas ocorridas na primeira metade do século XX. O pragmatismo deweyano marcou profundamente a educação nacional. Em Anísio Teixeira, encontramos a brasilidade do pensamento de Dewey. É considerado o principal mensageiro da Filosofia da Educação deweyana no Brasil. Além dele, podemos acrescentar outros educadores defensores dos princípios pedagógicos de Dewey: Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Francisco Campos, que, juntos, idealizaram e confeccionaram, em 1932, o “Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova”, documento este, entre outras teses, que defendia a escola como representação direta da sociedade. No entanto, os percalços da história democrática nacional adiaram o ideal escolanovista de educação. Na década de 1930, foi cerceado pela ditadura Vargas e, em 1964, com o Golpe Militar, mais uma vez o ideal de educação para a democracia foi impedido de se efetivar. 2.3 O professor reflexivo A prática pedagógica reflexiva remonta ao pensamento filosófico de Dewey e está fundamentada no processo de ação, reflexão e ação respeitando dinamismo e interatividade dos processos educacionais. O professor, como sujeito reflexivo, não é um mero contemplativo de seus alunos e de seus estudos ao longo de sua trajetória acadêmica, mas sim um sujeito marcado pela cinestesia reflexiva da criação e da recriação de sua prática cotidiana, visando atender cada vez melhor às demandas dos discentes no processo de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, Dewey (1953) distingue duas espécies de experiências, conforme a proporção de reflexão que contenham: a da ação imediatista marcada pelos erros e pelos acertos da contingência; e a da ação consciente caracterizada pelo uso da faculdade mental e intelectual, tornando-a vivência racional. Para o ensino reflexivo, Dewey afirma que o professor precisa ter espírito aberto para as inovações e transformações sociais e científicas de sua época. Necessita, também, de comprometimento, ética e responsabilidade com sua prática profissional para além do ativismo da docência. E, para concluir, o professor tem de ser um entusiasta da docência que realiza para contagiar todos à sua volta e permanecer com a sua performance criativa e inovadora em prontidão (DEWEY, 1953). 13 Seguindo a base teórica de Dewey, o professor necessita de sensibilidade para identificar problemas, de discernimento para percebê-los e de originalidade para liberar-se de formas convencionais e experimentar novas alternativas. Por isso, a reflexão atua, ao mesmo tempo, como recurso de desenvolvimento do pensamento e da ação: o professor identifica situações singulares, processa informações sobre elas, elabora o diagnóstico e delibera sobre as necessárias intervenções pedagógicas. Libâneo (2012), Pimenta (2012) e Ghedin (2012) realizam críticas ao conceito de professor reflexivo sob a argumentação de que um ambiente acelerado e imprevisível como a sala de aula não induz ao pensamento e reflexão; justificam que essa teoria é apenas uma falácia (retórica) imposta pela política neoliberal. No entanto, a reflexão não exige uma atitude contemplativa; apenas o equilíbrio entre a mudança e a rotina, entreum trabalho e um modismo acrítico. 2.4 A práxis docente reflexiva Os professores conhecem procedimentos capazes de solucionar satisfatoriamente situações relativas à sala de aula, como solicitar silêncio e atenção durante as explicações e atividades individuais. No entanto, para o cotidiano de sala não existe receita, pois ele é marcado pela complexidade, constituído por uma sucessão de acontecimentos, muitas vezes imprevisíveis. Perrenoud (1993) considera receita a concretização de normas, de modelos tirados de um elenco mais ou menos amplo, baseados em uma racionalidade técnica que acaba se configurando como uma rotina. A rotina, conforme Perrenoud (1993), é constituída de ações não refletidas em profundidade, interiorizadas pela força da repetição, assimiladas da vivência de outros docentes ou das próprias, desprovida de questionamentos teóricos. A rotina é guiada por tradição coletiva, senso comum, autoridade ou hábitos pessoais. Porém, as situações inéditas e imprevistas exigem respostas inovadoras, que precisam ser criadas com rapidez e urgência. Daí, Perrenoud (1993) argumenta que a docência oscila entre a rotina e a improvisação. Mesmo afirmando que o professor improvisa, isso não significa dizer que ele chega despreparado. A nova resposta é uma atitude reflexiva que resulta em uma criação ou recriação. O docente utiliza seu referencial pedagógico inventando, experimentando novos conhecimentos e novas estratégias que ele considere as mais ajustadas àquela situação imediata. Bourdieu (1983) define habitus como o conjunto de esquemas de ação que permite engendrar uma infinidade de práticas adaptadas a situações sempre renovadas sem nunca se constituir em princípios explícitos. Desse modo, na docência o habitus se configura como um esforço integrador do professor, contemplando diferentes elementos vivenciados no passado e a situação presente para deliberar o que deve ser feito conciliando teorias e realidade (PERRENOUD, 1993). Então, a deliberação do professor relaciona-se à [...] leitura que ele faz naquela ocasião e é influenciada por múltiplas combinações: características pessoais e estado emocional momentâneo, características de cada aluno e do grupo, domínio de conteúdo e preparação daquela aula e, ainda o habitus, que traduz sua relação com a cultura e o mundo. O habitus sintetiza experiências, conhecimentos 14 implícitos e explícitos, valores e rotinas e torna possível a realização de tarefas diversificadas, pela comparação de semelhanças e diferenças de esquemas diversos. (GRILLO, 2000, p. 78) Outro bom exemplo de atividade reflexiva docente se encontra no processo de transposição didática que consiste na transformação de um objeto de saber a ser ensinado em objeto de ensino. A transposição de didática está associada à reprodução da cultura e da ciência, didaticamente planejadas e organizadas. O professor, com sua criatividade, passa a construir soluções para atender à necessidade dos alunos, buscando as melhores estratégias para possibilitá-los aprender (GRILLO, 1999; PERRENOUD, 1993). A capacidade reflexiva do professor, seja pela transposição didática, seja pelo simples controle da indisciplina, denota que o trabalho docente é permeado por uma racionalidade prática condutora de intenções técnico-pedagógicas. 2.5 A razão prática docente A ação educativa não é uma atividade qualquer, fazer por “fazer”, mas um fazer intencional, como pertinentemente ressalva a Teoria da Ação Comunicativa, de Habermas3. Trata-se da intencionalidade de um coletivo de sujeitos. Essa intencionalidade coletiva, porém, é impossível de ser reconstituída sem que os envolvidos explicitem as razões que motivam suas práticas, pois é produzida por uma ação reflexiva, crítica e situada. Para tanto, é preciso, como adverte Peres (2000, p. 225), “compreender o como e o porquê dos comportamentos docentes numa perspectiva contextualizada”. Para Gómez (1992), a capacidade reflexiva configura-se como componente fundamental à compreensão da racionalidade que norteia o pensamento e a ação do professor. Esse autor aponta, ainda, três elementos integrantes da reflexão: a) conhecimento na ação - é o componente inteligente que orienta toda atividade humana e se manifesta no “saber fazer” e “saber explicar” o que faz; b) reflexão-na-ação - deliberação prática com todas as suas dificuldades e limitações, é o primeiro espaço de confrontação empírica com a realidade problemática; e c) reflexão sobre a ação e sobre a reflexão-na-ação - reporta-se como a análise que o indivíduo realiza a posteriori sobre as características e processos de sua própria ação. É a capacidade reflexiva do docente que lhe possibilita enfrentar as situações complexas, urgentes e divergentes da prática. É ela que garante uma intervenção prática racional. As decisões docentes são balizadas por elementos de julgamento. 3 O conceito de ação comunicativa de Habermas torna-se importante e fecundo no campo das Ciências Sociais à medida que revela o modo de racionalidade presente em processos de reprodução da sociedade; reprodução no sentido de integração social operada mediante a reprodução simbólica do mundo da vida (BOUFLEUER, 1997). 15 O professor se questiona acerca do melhor encaminhamento para sua ação, considerando sua função social, as condições de vida do aluno e o entendimento que possui das relações entre escola e sociedade. Sua ação é orientada pelos juízos que formula a partir de situações contextuais singulares e urgentes, por isso mesmo, complexas. As deliberações do professor, mediatizadas por critérios de análise, expressam sua ética prática. Como lembra Hargreaves (1998, p. 40), “[...] en la etica de la praticidad de los profesores existe uno poderoso sentido de lo que sirve y de lo que no sirve [...] no en abstracto, ni siquier como regla general, sino para ‘este’ profesor en ‘este’ contexto!” Mais adiante, esse autor acrescenta a noção de que esse sensível e profundamente influente “sentido prático” destila complexas e poderosas combinações entre o fim pretendido, a pessoa, a política e as limitações do lugar de trabalho. A ética prática que o professor utiliza para tomar decisões revela a natureza crítico-reflexiva de sua ação, ao mesmo tempo em que explicita, tomando de empréstimo a formulação de Farias (2002, p. 100), sua condição de sujeito racional e capaz. Reconhecer o professor como sujeito cuja ação tem um sentido ético implica negar a visão que o concebe como técnico ou mero executor de tarefas. Em uma administração escolar centralizada, o docente tende a ser desvalorizado. Não lhe são atribuídas responsabilidades sobre aspectos como os conteúdos programáticos, a gestão do tempo escolar e a gestão curricular, os métodos de avaliação, processos e critérios avaliativos, os procedimentos de orientação educativa etc. Todos esses aspectos são objeto de codificação pela administração, que impõe metodologia e conteúdo uniformes para a realização das tarefas pedagógicas (SARMENTO, 1993). Tanto esse tipo de administração tecnocrático quanto o laissez-faire produzem um estado de acomodação que nega a capacidade reflexiva dos professores e reprime suas energias de criação e transformação, ensejando o conformismo, a indiferença e a passividade ante as necessidades socioeducativas que vivenciam. Com respeito à natureza dessa racionalidade, diz Boufleuer (1997, p. 23): [...] o critério de racionalidade está na forma como os sujeitos fazem uso do saber encarnado em suas ações e manifestações simbólicas, podemos chamar de racional o sujeito que é capaz de fundamentar a convicção que motiva sua ação ou sua fala e que, em princípio, sempre é susceptível de crítica. As formulações de Therrien e Souza (2000, p. 4) também contribuem para a compreensão do caráter ético da racionalidade prática do professor, ao destacar que “as direções dadas aoprocesso de ensino-aprendizagem pelo docente situam-se num patamar ético porque envolve decisões de caráter político-ideológico suscetíveis de afetar a concepção de vida e mundo do aluno aprendiz”. Esses aspectos destacam a dimensão ético-reflexiva do trabalho docente, bem como a natureza da cultura do professor. Nesse sentido, o profissional da Educação age em função de ideias, motivos, projetos, objetivos, ou melhor, de razões das quais ele está consciente e que ele pode justificar. Em síntese, um professor sabe o que faz e por que o faz. O trabalho docente é, sobretudo, rico de intencionalidade, já que ele precisa desenvolver sua 16 atividade levando em consideração o ambiente escolar, a característica do seu alunado, a relação com a comunidade, entre outros elementos. É no cotidiano situado da ação docente que o professor desenvolve a racionalidade prática4 do seu trabalho. Ela se manifesta na recorrência a critérios de julgamento para balizar sua intervenção em uma dada situação. Essa racionalidade prática, ao dar conteúdo e forma à ação docente, o que é compartilhado e legitimado por um coletivo, vai configurando a cultura do grupo. Portanto, é possível dizer que a cultura docente é constituída da pluralidade de saberes ou da base de conhecimentos constantemente mobilizada pelo professor no desenvolvimento de sua ação pedagógica no contexto da sala de aula (THERRIEN; SOUZA, 2000); saberes que estão diretamente imbricados com as teorias e as crenças dos professores sobre seu trabalho. A razão prática docente está diretamente relacionada aos saberes da experiência formados mediante prática pedagógica cotidiana, revelando a cultura docente em ação (THERRIEN; SOUZA, 2000). Nesse sentido, é possível apreender os elementos dessa cultura no âmbito das razões que lhe dão sentido e sustentação, ou seja, considerando os saberes contextualizados. Conforme Therrien e Loiola (2001), os saberes contextualizados se elaboram com respaldo nas características do contexto no interior do qual os docentes evoluem. Trata-se de saberes associados à cultura institucional e ao mundo sistêmico, como os saberes curriculares – representados pelo corpus orgânico dos programas escolares incorporados pelos docentes na sua formação e na integração à atividade de ensino (TARDIF; LESSARD; LAHAYE, 1991); os disciplinares – que correspondem às diversas áreas do conhecimento, organizadas em formas distintas de disciplinas (TARDIF; LESSARD; LAHAYE, 1991); os de formação – produzidos pelas ciências humanas e da educação que encontram no ensino e nos docentes objetos de estudos (FARIAS, 2000); bem como os saberes relacionados à cultura da experiência vivida - mundo vivido, os saberes de experiência e da prática social – resultante da contingência e complexidade da atividade de ensino (FARIAS, 2000). Todos esses saberes compõem o universo de referência do professor (THERRIEN; DAMASCENO, 1996). Segundo Tardif (2005), a natureza dos saberes mobilizados pelos professores respeita um enfoque argumentativo e não cognitivo. O autor compreende esses saberes como um constructo social mobilizado na racionalidade concreta dos professores, por suas deliberações, racionalizações e motivações que constituem a fonte de seus julgamentos, escolhas e decisões. Ressalta, ainda, que a epistemologia da prática docente evidencia um trabalho que tem como objeto o ser humano e cuja realização é fundamentalmente interativa (TARDIF, 2005). Sobre o caráter interativo do trabalho do professor, Therrien e Souza (2000, p. 115) acrescentam que: [...] A interação pressupõe que o docente domina uma base essencial de saberes que ele articula no contexto da ação, os quais lhe fornecem competência para a gestão pedagógica da sala de aula. Completada pelas teorias da argumentação essa abordagem permite caracterizar a 4 “Fenstemacher e Richardson buscam em Aristóteles a compreensão da noção de racionalidade prática, também designada pela expressão de raciocínio prático como processo do pensamento que resulta numa intenção.” (THERRIEN; SOUZA, 2000, p. 118). 17 racionalidade prática do educador e desvelar elementos definidores de sua identidade profissional. Tal perspectiva aponta a racionalidade prática da docência como elemento primordial no estabelecimento da cultura profissional do professor em um determinado contexto de ação, espaço de socialização, configuração e reconfiguração de sua identidade, cujas especificidades podem ser assim identificadas: uma atividade que requer saberes específicos à práxis profissional; uma ação que solicita a superação da dimensão técnica de aplicação direta, posicionando-se de forma dialética; um profissional responsável pelo processo de formação humana, que atua orientado por fins éticos (THERRIEN; SOUZA, 2000). Entendemos que a racionalidade prática do professor se apresenta como elemento constitutivo de sua cultura, reconhecendo-o como um profissional com identidade própria e produtor de saberes situados e contextualizados. 2.5.1 Os princípios teóricos da andragogia para o Ensino Superior Durante muito tempo, na história da educação, as fases do desenvolvimento humano não eram consideradas no processo de ensino e aprendizagem. Com o florescer dos estudos da pedagogia e da psicologia moderna passou-se a pensar na forma diferenciada que o ser humano aprende nas suas diferentes fases de evolução: infância, adolescência, vida adulta. Nesta seção, abordaremos a andragogia (“pedagogia para adultos”) e sua importância para a práxis no Ensino Superior. 2.5.1.1 Como aprendem os adultos? Os aprendizes adultos são singulares no que diz respeito à forma como decidem e se interessam em aprender. Assim, os educadores devem considerar que estes apresentam objetivos claros, contundentes e são, em sua maioria, autodiretivos. Desse modo, a aprendizagem autodirigida tornou-se uma importante área de estudo na educação de adultos. Para Knowles apud Moura (1998), a aprendizagem autodirigida descreve que: [...] o processo no qual os indivíduos formam a iniciativa de com ou sem ajuda de outros diagnosticar as suas necessidades de aprendizagem, formular de aprendizagem, identificar os recursos humanos e materiais para aprender, escolher e implementar as estratégias apropriadas e avaliar os resultados na aprendizagem (KNOWLES apud MOURA, p. 20, 1998). Diversos fatores influenciam o processo de aprendizagem autodirigida: ambiente, informação, aprendizes, temática da aprendizagem, circunstâncias envolventes. Knowles apud Moura (2000) considera que o processo ocorre de forma unívoca e linear, seguindo a sucessão de etapas: 1) diagnóstico das necessidades de aprendizagem; 2) identificação dos objetivos a alcançar; 3) identificação de recursos de aprendizagem; e 4) avaliação dos resultados. Sua teoria ainda enfatiza o uso de grupos de aprendizagem. 2.5.1.2 A andragogia 18 Malcom Knowles iniciou a popularização do termo Andragogia publicando a obra The Adult Learner – a neglected Species (1975), introduzindo e definindo Andragogia como a arte e a ciência de orientar adultos a aprender. Esse autor definiu a pedagogia como a arte e a ciência de ensinar, e a andragogia como a arte e a ciência de ajudar outra pessoa a aprender, ou seja, aprendendo como aprender. Segundo ele, os pedagogos preparam para as crianças materiais e recursos definidos; já os andragogos consideram o adulto como “recurso” no sentido do aproveitamento de tarefas relacionadas a suas vidas e trabalho (KNOWLES apud CAVALCANTI, 1999). A andragogia propõe um diferente entendimento acerca do processo de ensino e aprendizagem se comparado com o da educação tradicional, ou seja, compreende a aprendizagem como processo de investigação mental, e não apenas recepção passiva do que foi transmitido. A andragogia estabelece fundamentos didáticos e metodológicos para uma adequada gestão pedagógica dassalas de aulas compostas por jovens e adultos nas universidades. 2.5.1.3 Princípios psicopedagógicos para uma didática andragógica Na elaboração de princípios psicopedagógicos de uma didática para adultos, Knowles apud Cavalcanti (1999) afirma que o adulto aprendiz é alguém que traz consigo uma gama de conhecimentos e experiências que servem como ponto de partida na confecção de situações de aprendizagem, tanto no que se refere aos conteúdos quanto nas estratégias de ensino. O modelo didático andragógico, segundo Knowles apud Cavalcanti (1999), deve seguir os seguintes pressupostos: a) os adultos são motivados a aprender de acordo com suas necessidades e seus interesses práticos; b) os planejamentos e planos de curso para aprendizes adultos devem ser centrados na realidade; c) é preciso respeitar estilo, tempo, local e ritmo de aprendizagem dos adultos. Goguelin (1973) afirma que formar um adulto é favorecer a evolução global da sua personalidade e, a partir da experiência vivida e dos conhecimentos adquiridos, permitir-lhe adquirir os elementos de toda a espécie que lhe darão a possibilidade de modificar o seu existir por meio de uma realização própria e autêntica aceitação de si mesmo e do mundo à sua volta. Enfim, a finalidade da ação andragógica é não somente fornecer apenas conteúdos informativos, mas a de construir condições para a emancipação do adulto nos campos cognitivos, afetivos e comportamentais. Uma situação didática, assim pensada, configura-se como desafiadora e motivadora. Conforme Goguelin (1973), quando a pessoa adulta está motivada para aprender (isto é, positivamente e em um grau útil de tensão) tem atitudes que são altamente satisfatórias ao seu crescimento cognitivo e interpessoal, como foco no tema e prontidão no estudo, iniciativa própria, perseverança nos obstáculos e dificuldades, e capacidade de autoavaliação. Segundo Mucchielli (1981), as motivações mais comuns nos aprendizes adultos são: a) a curiosidade e a necessidade de saber – desejo de alcançar o desconhecido e desvelar a realidade; 19 b) o sucesso pessoal – buscar e alcançar o sucesso e a vitória frente aos seus objetivos e metas; c) a prova de si mesmo, e a capacidade de autoavaliar-se - necessidade de conhecer e saber sobre seu desempenho e sobre suas potencialidades de aprendizagem; d) a competição – a necessidade de autoafirmação mediada por saudáveis competições intelectuais; e) a presença do grupo – o trabalho em grupo traz benefícios ao desenvolvimento da motivação e equilibra determinados conflitos individuais. Associadas a essas motivações, Mucchielli (1981) acrescenta outros fatores determinantes de atenção e de atividade presente nos aprendizes adultos: Percepção da utilidade: para si e para aqueles pelos quais somos responsáveis pelo trabalho a executar, para a consecução dos objetivos pessoais é motivadora; Percepção clara da finalidade: “saber para onde se vai” é uma necessidade adulta, que justifica o caminho proposto e faz aceitar os obstáculos eventuais; Percepção da facilidade: no campo da instrução, a clareza da imposição, a ordem racional, a facilitação do conhecimento a ser adquirido, a inteligibilidade são fatores motivantes. O contrário desanima; Percepção da conformidade: o fato de pertencer a grupos (ou a grupos dos quais desejaria fazer parte) determina atividades e aquisições com a finalidade de “colocar-se no nível”; O prestígio social: é um valor e como tal, motivante. A procura de ascensão social, profissional, de promoção, de consideração, estimula os esforços pessoais perseverantes. (MUCCHIELLI, 1981, p. 105-106) Estudos e pesquisas de Dália et al. (1983), envolvendo a psicologia e a andragogia, apontam que aprendizes adultos apresentam comportamentos singulares no processo ensino-aprendizagem: a) Os adultos só aprendem se quiserem – os formadores devem estar cientes de que adultos são práticos e somente se submetem a novos desafios de aprendizagem se os resultados lhes forem úteis e de imediato; b) Os adultos aprendem resolvendo problemas ligados à realidade – a vida real com suas imprevisibilidades e dificuldades deve ser o objeto de estudo dos adultos, pois seus interesses se dirigem nesse sentido; c) A experiência afeta a maneira de aprender dos adultos – os conhecimentos prévios, fruto das experiências anteriores dos adultos, são pré-requisitos de toda e qualquer nova empreitada de aprendizagem para os adultos; d) Os adultos aprendem melhor em um ambiente descontraído - a sala de aula de adultos deve ser bem distinta das convencionais existentes nas instituições educacionais; 20 e) Os adultos querem ser orientados, e não classificados – os adultos não aprendem apenas por processos como estímulo-resposta, boas notas ou recompensas. f) Trabalhar a autoestima do adulto - proporcionar momentos em sala, em que os adultos usem habilidades artísticas (pintura, canto, desenho, filmagem, escultura e outras), com o intuito de permitir a descontração nas situações estressantes surgidas durante o período letivo; g) Evitar o excesso de exposição oral e memorização - utilizar metodologias colaborativas e de participação para a resolução de tarefas; h) Favorecer a aprendizagem significativa - os adultos aprendem mais facilmente ao serem desafiados a solucionar problemas e desafios inerentes à realidade que vivenciam. A experiência é o livro-texto vivo do adulto. Conforme Lindeman apud Cavalcanti (1999), aprendemos aquilo que fazemos. Assim, o educador de adultos deve se posicionar em sala de aula como um facilitador de atividades de grupo, demonstrando a importância prática do objeto de estudo e entusiasmo pelo ensino. O professor da Educação Superior deve promover e permitir a participação e o envolvimento de seus alunos. Pode alcançar esse objetivo planejando as aulas mediante os resultados de uma avaliação prévia das necessidades do grupo e se engajando em uma mútua investigação no processo de ensino e aprendizagem. Ao orientar sua ação docente nesses parâmetros, o professor assegura a presença do clima democrático, colaborativo e de curiosidade intelectual na universidade. 3. DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR Neste capítulo, abordaremos sobre a práxis docente na Educação Superior iniciando pelas dimensões históricas e políticas relacionadas ao ensino nas universidades. O foco seguinte diz respeito aos saberes mobilizados pelo docente universitário durante sua formação docente e ação profissional. Por fim, faremos a discussão das especificidades da avaliação da aprendizagem no Ensino Superior. 3.1 A universidade A universidade é um produto histórico e sua identidade revela-se na própria construção do seu devir como instituição de ensino. No Brasil, o Ensino Superior comporta peculiaridades, como o surgimento tardio, a dicotomia entre o público e o privado, e perfil do aluno ingressante contemporâneo. 3.1.1 O nascimento da universidade 21 A palavra universitas (Universidade) refere-se à comunidade de alunos e mestres. Posteriormente, passou a adquirir a conotação que temos hoje: uma faculdade ou um conjunto delas. A origem da universidade remonta à época helênica, quando, no ano 387 a.C., Platão, na Grécia antiga, criou a Academia em Atenas. No entanto, muitos historiadores concedem esse título à Universidade de Alexandria. Essa defesa está fundamentada nos achados arqueológicos que comprovam a presença de um conjunto constituído por biblioteca e museu na Universidade de Alexandria, denotando a visão contemporânea do que compreendemos por universidade (REALE, 2008; BARRETO; FILGUEIRAS, 2007). O nascimento da universidade é considerado a maior realização intelectual da Idade Média. Essa universidade apresentava grandes semelhanças com as escolas atenienses de Platão e Aristóteles, respectivamente a Academia e oLiceu. Na Idade Média, a Igreja Católica sempre incentivou o desenvolvimento escolar, e a universidade apresenta-se como um novo espaço de ensino e aprendizagem, não apenas ligado à fé cristã, mas a conhecimentos e saberes diversos. A universidade europeia conservou essencialmente a estrutura medieval até a Revolução Científica no século XIX (VERGER, 2001). As universidades da América Latina, devido às influências da colonização, seguiram o padrão das universidades europeias. No Brasil, foi com a chegada da Família Real, em 1808, que se inicia a base estrutural do Ensino Superior nacional, antecedido por escolas de formação profissional e academias militares. 3.1.2 A Educação Superior no Brasil As primeiras escolas superiores brasileiras criadas em 1908 objetivavam a formação de profissionais liberais tradicionais, como médicos, advogados e engenheiros. A presença e o controle do Estado sobre as instituições eram severos, a ponto de determinar seus objetivos e programas curriculares, além de distribuir as cátedras por indicações e interesses políticos. Esse modelo serviria para atender aos filhos da aristocracia colonial, que não possuía mais um acesso fácil às academias europeias. Foi nesse centralismo político do regime imperial que emergiram as primeiras universidades no Brasil, desvalorizando os critérios acadêmicos e de qualificação no planejamento institucional e a contratação de professores. Com a Proclamação da República (1889), ocorreram grandes mudanças sociais no Brasil e com a educação não foi diferente. Com a constituição da República, o Ensino Superior foi descentralizado, além de ser permitida a criação de instituições privadas, o que diversificou e ampliou a educação superior nacional. As novas universidades foram criadas não por demandas sociais, mas por iniciativas de políticos, intelectuais e educadores não ligados à educação superior (SAMPAIO, 1991). O ensino superior no Brasil alcançou o cunho universitário apenas nos anos 1930. O desenvolvimento do sistema federal de ensino, a partir de 1945, ocorreu em grande parte pela federalização de algumas universidades estaduais criadas nas décadas de 1930 e início dos anos 1940. Essa difusão no território nacional demonstra presença de forças políticas regionais atreladas à Igreja e ao Estado. Na Reforma Universitária de 1968, a autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira às universidades foram contempladas. Um novo modelo 22 organizacional foi implementado tanto para as universidades públicas quanto para as privadas e, de certa forma, o espírito dessa legislação perdura até hoje (SAMPAIO, 1991). A Lei 9.394/1996, no seu artigo 43, e em conformidade com o artigo constitucional 206, solicita modelos educacionais na educação superior com padrões mínimos de qualidade. Nos artigos 45 e 46 da referida lei, são “evidenciadas duas características para a educação superior brasileira: a possibilidade de oferta de cursos de graduação por instituições públicas e privadas e o uso de avaliações como mecanismo legitimador de autorizações, reconhecimentos, credenciamentos e classificação das instituições de nível superior” (BRASIL, 1996). A avaliação destinada ao Ensino Superior denomina-se Exame Nacional de Desempenho do Estudante (ENADE) e é regulada pela Lei 10.861/04 (BRASIL, 2004), que, junto com a avaliação in loco e a avaliação institucional (realizada por meio da Comissão Própria de Avaliação – CPA), forma a tríade que compõe o processo avaliativo em busca da qualidade do ensino. Com a implantação desse sistema de avaliação nacional da educação superior, o docente passa a ter avaliado o seu desempenho, inclusive didático. Este passa a sofrer uma pressão advinda da legislação vigente para sua qualificação e seu desempenho, em que suas competências disciplinares e didáticas merecem destaque na manutenção do seu emprego e no credenciamento e no reconhecimento da instituição de Ensino Superior a que está atrelado. 3.2 O professor universitário e seus saberes A identidade do professor da Educação Superior resulta de uma conjunção entre a formação inicial recebida na universidade e sua experiência docente. A seguir, vamos nos aprofundar sobre a formação acadêmica e a cultura docente do professor da educação superior. 3.2.1 A formação acadêmica do professor da universidade A Universidade é promotora de um serviço educacional efetivado pela docência e pela investigação. Considera-se que o ensino universitário se constitui como um processo de busca e de construção científica e crítica do conhecimento mediante a criação, o desenvolvimento e a transmissão da ciência e cultura. Nesse sentido, o ensino na universidade segue algumas determinações: a) domínio de um conjunto de conhecimentos, métodos e técnicas científicas; b) promoção da autonomia e da reflexão do aluno na aquisição de conhecimentos; c) consideração do processo ensino-aprendizagem como investigação; d) construção de clima colaborativo entre professores na efetivação do ensino; e) criação de situações de aprendizagem entre alunos e professores; 23 f) efetivação de um projeto institucional de avaliação diagnóstica e formativa. Essas características do ensino universitário reclamam uma ação docente interativa e emancipadora. Para tanto, o professor universitário precisa atuar como profissional reflexivo, crítico e competente no âmbito de sua disciplina, além de apresentar habilidades e competências na realização da tríade ensino, pesquisa e extensão (GARCÍA, 1992). Desse modo, os saberes dos professores do Ensino Superior não podem limitar-se unicamente aos técnico-científicos da disciplina que leciona. A docência na universidade solicita a integração de conhecimentos teórico-práticos que compõem um arcabouço de conteúdos profissionais a saber: a) história social, política e epistemológica da área científica em que atua; b) psicopedagogia e didática referente à educação de pessoas adultas; c) historicidade experiencial acumulada desde a formação inicial. Os conteúdos científicos e psicopedagógicos atuam nos saberes acadêmicos para que os docentes sejam capazes de compreender analiticamente o processo de ensino e aprendizagem. Os empíricos dão origem a uma racionalidade prática da ação docente promotora de uma reflexão acerca das rotinas e dos esquemas de intervenção realizadas. A práxis no Ensino Superior se localiza em um plano epistemológico intermediário entre o saber técnico-científico (acadêmicos) e o prático (experiência). Consideramos que o saber prático resulta de uma reflexão crítica promotora da compreensão de conexões entre os saberes acadêmicos e os advindos da experiência. Esse mecanismo torna os ambientes que envolvem o ensino e a aprendizagem na universidade em espaços investigativos e de autoavaliação para o professor. O docente do Ensino Superior é um professor investigador à medida que: a) conhece com profundidade o objeto de estudo, as leis e as teorias fundamentais da sua disciplina específica; b) relaciona os conteúdos de sua disciplina com as de outros colegas, sendo capaz de construir projetos interdisciplinares e colaborativos; c) compreende o contexto histórico, social e ideológico dos problemas da ciência de sua época; d) domina os conhecimentos de metodologia científica e pesquisa da área específica em que atua; e) considera as questões socioambientais, étnico-raciais, de inclusão social e de direitos humanos como inerentes à prática docente democrática na universidade; 24 f) organiza seu plano de ensino considerando as concepções iniciais dos alunos acerca da disciplina; g) adéqua sua prática em sala de aula ao perfil psíquico, cognitivo e social dos alunos. No mundo contemporâneo, portanto, a práxis docente no Ensino Superior não pode ficar restrita ao domínio da área científicade atuação. O professor deve desenvolver também saberes pedagógicos e políticos, que lhe permitirão conduzir seu trabalho formativo com competência, lucidez e criticidade. Compreendemos o profissional da docência universitária não como um mero instrutor de conhecimentos de determinadas áreas da ciência, mas como formador de consciências transformadoras da sociedade. 3.2.2 A formação do professor universitário É inconcebível resumir a formação docente de um professor universitário unicamente por ter cursado uma ou duas disciplinas pedagógicas na sua formação inicial, ou a disciplina, tradicionalmente conhecida nas especializações e pós- graduações stricto sensu, como Didática do Ensino Superior. Essa concepção distorcida e limitada dos aspectos pedagógicos em torno da atuação docente na universidade remonta ao tradicionalismo político e histórico do Ensino Superior no Brasil desde a colonização portuguesa. O condicionante de superioridade das ciências exatas, médicas e do próprio Direito tornou os conhecimentos pedagógicos relegados ao ensino de crianças e jovens. Na legislação educacional brasileira, a questão da formação do professor superior é tratada de forma simplista e pontual. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional vigente afirma, no art. 66, que “a preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado” (BRASIL, 1996). A LDBEN 9.394/1996 não concebe a docência universitária como um processo formativo, mas sim de preparação ou capacitação para o exercício do magistério superior, a ser realizado exclusivamente nos cursos de pós-graduação stricto sensu. No Brasil, a concepção de treinamento para o atendimento dos setores “produtivos” prevalece. No campo do Ensino Superior, essa concepção prejudica a participação efetiva dos professores nas decisões curriculares, restringindo-a a deliberações sobre seus espaços disciplinares, dificultando o desenvolvimento de habilidades pedagógicas no que tange ao questionamento de como está se processando a formação de seus alunos. Os professores ficam focados em uma direção única: a execução de suas tarefas disciplinares. Tal contexto ocasiona uma visão míope de sua verdadeira função dentro da universidade: a formação integral e crítica de um profissional de nível superior. Nesse caso, esse tipo de formação docente precisa ser repensado de forma a contribuir com as demandas contemporâneas da sociedade. É necessária uma compreensão do trabalho docente na universidade como práxis transformadora de um sujeito (professor) em interação situada com outro sujeito (aluno) em que a aprendizagem, como produção de identidade pela aquisição 25 de novos saberes e significados, procede do diálogo e vai em direção à emancipação profissional e humana. Da complexidade do mundo contemporâneo, decorre uma racionalidade complexa, condicionante de práxis dialógicas de entendimento. Assim, os processos de ensino e aprendizagem no Ensino Superior passam pela elaboração de consensos que são expressão da interdisciplinaridade, da multirreferencialidade e da interculturalidade inerentes às formulações científicas. Nessa perspectiva, a formação continuada de professores em serviço se apresenta como uma boa alternativa para revisão das práticas pedagógicas via reflexão sistemática da ação docente in loco. Partindo das necessidades detectadas, busca-se colocar os professores em condições de reelaborar seus saberes. Assim, passam a ser investigadores de suas próprias práticas, realizam análises por meio de seus estudos teóricos e refletem sobre novas formas de condução de seu magistério. A ampliação da compreensão de autoformar-se continuamente e da participação do aluno e da instituição nesse processo permitem ao docente conhecer a repercussão dos aspectos identitários da sua reprodução social profissional, a exemplo de seu planejamento de ensino e avaliação. 3.3 Avaliação da aprendizagem no Ensino Superior A avaliação é um dos componentes do processo de ensino realizado pelos professores seguindo diversas concepções teórico-filosóficas por eles assumidas. Nesse sentido, iremos discutir sobre os condicionantes que circundam a práxis da avaliação da aprendizagem na universidade, propondo o ideário da avaliação formativa como substitutivo de práticas avaliativas tradicionais que desconsideram os contextos sociais e os diferentes estilos de aprendizagem dos alunos. 3.3.1 Estilos de aprendizagem Estilos de aprendizagem representam as competências pessoais dos aprendizes para processar informação em um ambiente de aprendizado. Cada aluno tem uma forma singular para receber e processar a informação, que resulta de sua historicidade e perfil cognitivo. O estilo de aprendizagem representa a maneira preferencial de um indivíduo aprender. Um dos grandes desafios dos professores do Ensino Superior está no reconhecimento da importância de compreender o estilo de aprendizagem de seu alunado. A ausência dessa consciência proporciona a geração de estereótipos e de rotulações de alunos como despreparados, inconvenientes ou incapazes. É demasiado importante que se conheçam os diferentes estilos de aprendizagem para que haja sintonia entre professores e alunos. Assim, o estilo de ensino do professor estará alinhado com o estilo de aprender do alunado, tornando o ambiente de sala de aula um espaço dialógico e de aprendizagem mútua. Podemos elencar algumas ações do educador promotoras do alinhamento cognitivo entre eles e os alunos pertencentes à educação superior: a) identificação dos estilos de aprendizagem predominantes na sala de aula para adaptar o planejamento de ensino disciplinar; 26 b) aplicação de diversas estratégias de ensino para atender à demanda dos estilos de aprendizagens da sala de aula. Para alcance do objetivo de constatar o estilo de aprendizagem de seus alunos, o professor precisa definir meios para tanto. Desse modo, vamos apresentar uma das correntes do cognitivismo, que incorpora as competências psíquicas e sociais na aquisição do conhecimento pelos alunos: a Teoria das Inteligências Múltiplas, de Howard Gardner. Gardner (1994) desenvolveu um instrumento que possibilita a avaliação de aprendizagem mediante as inteligências múltiplas. Ele afirma que, para que uma aprendizagem seja eficaz, todas as inteligências devem ser consideradas no processo de aprendizagem e estas pertencem a três domínios: físico, cognitivo e emocional. O professor deve considerar que as inteligências funcionam como um termômetro que sinaliza os tipos de áreas dominantes, onde a aprendizagem dos alunos se apresenta mais eficazmente. Vale ressaltar que as inteligências podem ser todas desenvolvidas e que algumas são mais ou menos prevalentes devido a questões genéticas e ambientais. Mesmo que os instrumentais de detecção das inteligências respeitem uma abordagem predominante qualitativa, o estudo da Inteligências Múltiplas se populariza cada vez mais no Brasil e no mundo. Conforme Gardner (1994), as inteligências múltiplas são assim designadas: a) Verbal-linguística – representa a capacidade de efetivamente manipular a linguagem para se expressar de forma retórica ou poética. Muito relevante para o sucesso acadêmico, pode ser desenvolvida via leitura, escrita e comunicação mediada por computador; b) Lógico-matemática – representa a capacidade de detectar padrões, de racionalizar de forma dedutiva e de pensar de maneira lógica. Essa é outra inteligência marcante na vida acadêmica e é desenvolvida mediante a resolução de problemas, pela programação e pelo uso de planilhas eletrônicas; c) Visual-espacial – representa a capacidade de manipular e criar imagens mentais para possibilitar a solução de problemas. Seu desenvolvimento relaciona-se à preparação de desenhos, fotos, animações e criação de sites e
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