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A VIDA COM AUTISMO Luciana Mendina Prefácio de Alfredo Jerusalinsky 1 A vida com autismo Os desafios da adolescência e da vida adulta de Bernardo Martínez, diagnosticado com autismo quando tinha um ano e onze meses 2 Dedico este livro à minha prima Kika, exemplo de resiliência e de superação. Para você, todo meu respeito, admiração e carinho. 3 “Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida” (Carlos Drummond de Andrade) 4 Não poderia haver pessoa mais indicada para escrever o prefácio deste livro do que o Dr. Alfredo Jerusalinsky. O tratamento que ele e Eda Tavares ofereceram ao meu filho foi o diferencial na sua vida. Hoje, Be reverteu praticamente todos os sintomas do autismo e desfruta de uma vida plena, cheia de realizações e de opções. Minha gratidão eterna a estes dois psicanalistas. PREFÁCIO SEM”COTAS” PARA VIVER A VIDA Este não é um manual de psicopatologia sobre autismo. Tampouco é um manual de condutas ou prescrições para lograr que autistas se comportem de acordo com o standard social. É um testemunho de como é possível construir um ser capaz de saber e de amar ali onde seu organismo e sua circunstância se opõem ferrenhamente a que ele aceite se relacionar precisamente com aqueles que constituem a fonte desse saber e desse amor. É a história de uma luta contra essa muralha de rigidez e negativa que caracteriza o autismo. É o relato de anos de laboriosa procura de algumas brechas ou janelas que permitam enlaçar esse ser a um campo de 5 discurso onde ele possa ser sujeito capaz de dizer e defender o que ele sente e deseja. Assistimos, no primeiro livro de Luciana Mendina, ao relato de toda a etapa infantil da evolução de Bernardo. Tempo em que percebíamos o quanto, na costura de cada gesto e no enlace de cada letra com o Outro (encarnado em sua mãe, sua irmã Maria Júlia, e seus psicanalistas), ele demandava com seu olhar oblíquo e translúcido: “não desistam de mim”. Nesse segundo livro, testemunha-se a aventura de viver no mundo para alguém que tem que defender sua dignidade a cada passo. Necessidade que emerge de insignificantes traços de estranhamento, resíduos de quem atravessou uma dura guerra contra a mais radical solidão e contra uma insistente ameaça de exclusão social. Essa é a razão pela qual Bernardo recusa se amparar nas cotas de exceção para conquistar seu lugar na Universidade, ou seja, demanda seu direito a que seu modo de pensar e operar no mundo seja reconhecido como legítimo. Essa é também a razão pela qual Bernardo agradece a sua mãe e sua irmã: “Obrigado por não terem desistido de mim”. Alfredo Jerusalinsky Em Porto Alegre, 17 de agosto de 2020. 6 INTRODUÇÃO I - AUTISMO Mas o que é o autismo, afinal? Maior incidência em meninos O mito do retardo ou da genialidade Epidemia de autistas? Um jeito de ver a vida? Os autistas também crescem II - BERNARDO NA ADOLESCÊNCIA Necessidade de mais amigos Bernardo encontra um esporte pra ele E se? Último degrau para o Ensino Médio Mais conquistas no Ensino Médio Maior coração do mundo Um menino exigente... ...e surpreendente Ghandi e Brioche: mais responsabilidades Mais bichos à vista Mãe, estou namorando! III - BE ABRE MÃO DAS COTAS PARA ENTRAR NA UNIVERSIDADE PAS – Programa de Avaliação Seriada Uma linguagem ainda formal Certo X Errado 7 Pronomes, concordâncias e afins Participação em eventos sobre autismo Outra carta de aniversário Maria Júlia faz 19 anos Mais um Dia das Mães Diretor da Juventude Asperger do MOAB IV – BERNARDO PASSA PARA UNB SEM COTAS Despedida Bernardo nos dá um susto Meu filho faz 19 anos Bernardo no Tinder De Licenciatura para Bacharelado Aprender a dizer não Visita ao túmulo do meu marido Novamente em Brasília Paixão: imortal tricolor Meu filho quer trabalhar e dirigir Mais uma luta à vista Volta para Porto Alegre V – 2020: UM ANO QUE VAI ENTRAR PRA HISTÓRIA Aniversário atípico: Bernardo faz 20 anos em meio à Pandemia 8 INTRODUÇÃO - Em dezembro de 2009, em uma conversa com Dr. Alfredo Jerusalinsky e Dra. Eda Tavares, soube que meu filho Bernardo, então com nove anos, teria alta do tratamento de autismo. Depois de pouco mais de sete anos de tratamento psicanalítico ininterrupto – nos primeiros três anos as consultas eram diárias, sendo depois desse período espaçadas para três vezes por semana e, por fim, nos últimos dois anos, passaram a ser duas vezes por semana – meu filho não precisaria mais de nenhuma intervenção terapêutica, nem mesmo de eventuais sessões de acompanhamento. É verdade que aqueles sete anos de tratamento foram marcados por altos e baixos, alguns fracassos temporários e muitas comemorações, mas o saldo foi mais do que positivo: Bernardo estava curado do autismo. Cabe aqui uma observação: quando digo que meu filho está curado do autismo, eu me refiro aos sintomas incapacitantes do transtorno, que o impediriam de ter uma vida plena de escolhas, sintomas como isolamento, inadequação social, ecolalia, flapping, rocking e dificuldades na linguagem e na aprendizagem. Isso tudo ficou no passado! Diagnosticado com o transtorno pela equipe multidisciplinar do Centro Lydia Coriat quando tinha apenas um ano e onze meses, coordenada pelo Dr. Alfredo Jerusalinsky, o diagnóstico precoce foi essencial para sua “cura”, assim como a inclusão social (Bernardo sempre cursou escolas regulares de ensino) e o tratamento psicanalítico. Com essas três ferramentas, foi criado um ambiente propício para que meu filho se desenvolvesse psíquica e socialmente. Esse tripé – diagnóstico precoce, tratamento clínico e inclusão social – pode ser o grande diferencial para a obtenção ou não da cura dos principais sintomas do autismo e para uma 9 melhora significativa de suas vidas, já que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) abrange desde autistas leves até severos, estes últimos mais comprometidos em muitos aspectos, o que pode impedir, mesmo com o tratamento adequado, que alguns sintomas sejam revertidos. Em abril de 2015, publiquei o livro O Autismo tem cura?, no qual conto a história de Bernardo desde o nascimento até seus quatorze anos, no penúltimo ano do ensino fundamental. Passados mais de dez anos da alta do tratamento do Bernardo em 2009, senti necessidade de compartilhar com leitores uma fase dos autistas pouco explorada até agora: a vida extrafamiliar daqueles que superaram o autismo e seus desafios em busca de independência social, afetiva e profissional. Quando obtive o diagnóstico de autismo do meu filho, não imaginava que ele poderia chegar tão longe e em tão pouco tempo. Apesar de ter começado a falar somente com seis anos, ele recuperou esses anos rapidamente, adaptando-se bem aos colégios por onde passou, fazendo amigos, reduzindo ou revertendo totalmente alguns sintomas, aprendendo a administrar outros sintomas e, o que é fundamental, sentindo-se livre para falar sobre suas angústias, dúvidas e inseguranças. Aos vinte anos recém- completados, ele é um rapaz falante, sociável, cheio de amigos. O cenário social e educacional dos últimos anos também mudou significativamente. Há dezoito anos, a maioria das informações disponíveis sobre autismo eram desanimadoras. Havia muitas notícias pessimistas, muitos pais revoltados com tratamentos e com médicos e a crença de que o autismo era uma sentença. Desisti de participar de qualquer grupo naquela época. Não queria ficar me lamentando pelo fato de meu filho ser autista 10 nem tampouco travar uma briga com médicos etratamentos. Muito pelo contrário. Queria que a história do meu filho fosse totalmente diferente, que os médicos acertassem nas terapias, que meu filho evoluísse no tratamento e que ele fosse tão longe quanto pudesse. E antes de mais nada, não queria me tornar uma pessoa amarga e descrente. Em 29 de março de 2017, houve importante conquista para milhões de bebês brasileiros que poderiam vir a se encontrar com obstáculos para seu desenvolvimento e sua saúde mental, entre eles também os autistas: a aprovação do PL 5501/13, que se tornou a Lei 13.438/17, conhecida como “Lei da Detecção Precoce”. Inicialmente, este projeto de lei foi uma sugestão minha para a senadora Ângela Portela, que a aceitou de imediato e apresentou o PLS 451/11, que altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para tornar obrigatória a adoção, pelo Sistema Único de Saúde, de protocolo que estabeleça padrões para avaliação de riscos para o desenvolvimento psíquico das crianças. Depois de aprovado em duas comissões do Senado, o projeto foi para a Câmara dos Deputados. Em fevereiro de 2017, ao iniciar meu trabalho de assessora de imprensa com o Deputado Delegado Francischini, sugeri que ele relatasse o projeto, o que beneficiaria, especialmente, milhões de autistas brasileiros. Foi o que ele fez. Por ter um filho autista, o também Bernardo, que à época tinha seis anos, o autismo também passou a ser uma das causas de Francischini. Aprovada por unanimidade no plenário da Câmara, esta lei pode colocar o Brasil na vanguarda dos países que realmente se preocupam com a saúde mental de seu povo. E sem custo significativo adicional já que 11 existe um protocolo de fácil aplicação – criado por cientistas brasileiros1 a ser adotado pelo SUS. Inclusive, este protocolo já consta na Cartilha da Atenção Básica ao TEA do Ministério da Saúde. São perguntas e observações feitas durante as consultas habituais de acompanhamento fáceis de serem respondidas, feitas pelo pediatra, o agente de saúde ou educadores – devidamente treinados em breve curso de capacitação - desde o nascimento do bebê até 18 meses de vida, endereçadas aos pais ou aos cuidadores da criança. LEI Nº 13.438, DE 26 DE ABRIL DE 2017. Vigência Altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para tornar obrigatória a adoção pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de protocolo que estabeleça padrões para a avaliação de riscos para o desenvolvimento psíquico das crianças. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu p Art. 1º O art. 14 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), passa a vigorar acrescido do seguinte § 5º : “Art. 14. ........................................................................ ............................................................................................. § 5º É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico.” (NR) Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos cento e oitenta dias de sua publicação oficial. Brasília, 26 de abril de 2017; 196º da Independência e 129º da República. MICHEL TEMER Osmar Serraglio Luislinda Dias de Valois Santos Este texto não substitui o publicado no DOU de 27.4.2017 1 O IRDI (Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil) construído mediante uma pesquisa que se estendeu de 2000 até 2009, sediada na USP e apoiada e aprovada pelo CNPq, FAPUSP, Coordenada a nível nacional pela Dra. Cristina Kupfer e tendo como coordenador científico o Dr. Alfredo Jerusalinsky. http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2013.438-2017?OpenDocument http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13438.htm#art2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art14%C2%A75 12 I – AUTISMO Mas o que é o autismo, afinal? Considerado uma disfunção global do desenvolvimento, o autismo afeta a capacidade de comunicação, de socialização e de comportamento da criança; faz parte de um grupo de síndromes chamado transtorno global do desenvolvimento (TGD). Dentro desta categoria, recorta-se um conjunto de problemas psíquicos mais graves, que recebe o nome de transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) ou pervasive development disorder (PDD). É dentro deste conjunto que se encontra o autismo. Recentemente, foi adotado o termo Transtorno do Espectro Autista (TEA, dentro do TID), que engloba o autismo clássico, a síndrome de Asperger, a síndrome de Rett e o transtorno desintegrativo da infância. Isso agrega um vasto e heterogêneo conjunto de sintomas que autorizam o diagnóstico de autismo acerca do qual, hoje, há consenso de sua pouca confiabilidade. Em uma espécie de “confissão” da pobreza conceitual de tal metodologia diagnóstica – que impede atribuir uma condição específica a cada tipo de autismo – costuma-se adotar, junto ao diagnóstico assim proferido, a expressão SOE (Sem Outra Especificação). O TEA (transtorno de espectro autista), porém, permite que o transtorno seja graduado desde o autismo mais leve até o mais severo, cuja cura, neste último caso, é muito difícil de ser obtida. Nos últimos vinte anos, os critérios de inclusão de crianças dentro da categoria de autismo diversificaram-se e ampliaram-se, causando uma espécie de epidemia artificial, já que os critérios do TEA abrangem desde as manifestações patológicas mais graves (autistas completamente desligados de seu entorno e governados por automatismos e autoagressões incontroláveis) até crianças neuróticas normais (que recusam o contato com seus semelhantes e são irritáveis e agitadas, ou meramente crianças fóbicas). 13 Segundo a Austism Society of America (ASA), os autistas apresentam pelo menos metade das características a seguir: 1. Dificuldade de relacionamento com outras pessoas; 2. Pouco ou nenhum contato visual; 3. Rotação de objetos; 4. Riso inapropriado; 5. Aparente insensibilidade à dor; 6. Preferência pela solidão; modos arredios; 7. Ecolalia; 8. Age como se estivesse surdo; 9. Inapropriada fixação em objetos; 10. Acessos de raiva; 11. Não faz referência social; 12. Desorganização social; 13. Irregular habilidade motora; 14. Dificuldade em expressar necessidades; 15. Procedimento com poses bizarras; 16. Não tem real medo do perigo; 17. Perceptível hiperatividade ou extrema inatividade; 18. Ausência de resposta aos métodos normais de ensino; 19. Insistência em repetição desnecessária de assuntos, resistência à mudança de rotina; 20. Recusa colos ou afagos. Destes sintomas, os mais perceptíveis no Bernardo eram a dificuldade de relacionamento com outras pessoas que não eu, o pai e a irmã (em alguns momentos, relacionava-se com minhas irmãs, meus tios e minhas primas); pouco ou nenhum contato visual (só olhava nos meus olhos, e de forma fixa, sem manter qualquer contato visual com mais alguém); e o isolamento (preferia ficar no canto do quarto ou na sala de televisão, afastado das pessoas). Comumente, Bernardo ficava em um canto na sala de televisão, segurando e rodando lápis e canetas, o que configurava a rotação de objetos; a ecolalia também era muito frequente: imitava sons, repetia frases de desenhos animados e de propagandas na televisão (isso quando começou a falar, o que demorou a acontecer); resistia à mudança de rotina, preferindo ir aos mesmos lugares, comer as mesmas comidas e ficar em casa em vez de sair. 14 Não queria dormir fora de casa de jeito nenhum, mesmo que a irmã e eu estivéssemoscom ele. No final do dia queria voltar para casa. Era muito apegado às rotinas. Nesse sentido, houve notável melhora, mas ele continua apegado às rotinas, só não mais a ponto de prejudicá-lo. Há mais flexibilidade e ponderação. Até os quatro anos, ele ria de forma estereotipada e sem nenhum motivo aparente. De repente, soltava gargalhadas mecânicas: “ha ha ha”. Nenhum fato engraçado. Nada justificava a risada. Era um riso fora de lugar. Como todo o resto. Dos sintomas listados acima, Bernardo não apresenta mais nenhum deles, embora tenha um comportamento considerado “excêntrico” em algumas situações; até essa excentricidade vem decrescendo ao longo dos anos. Era de se esperar que alguns resquícios do autismo permanecessem e, só com o tempo, fossem completamente revertidos. O que posso garantir é que autista meu filho não é mais. Pode ser considerado excêntrico, diferente, raro, mas não autista. E isso, repito, incomoda os médicos que não sabem mais como “classificá-lo”. Maior incidência em meninos É fato: o autismo é mais comum em meninos do que em meninas. A incidência de autismo em meninos é quatro vezes maior do que em meninas. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os distúrbios de desenvolvimento neurológico - como deficiência intelectual, distúrbio 15 específico de linguagem, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade, epilepsia e autismo - afetam uma em cada seis crianças em países industrializados. Estudos mostram que há de 30% a 50% mais meninos que sofrem destas doenças do que meninas. Um estudo divulgado em 2014 pelo Hospital da Universidade de Lausanne, na Suíça, apontou como causa dessa maior incidência o funcionamento diferente do cérebro feminino, cujas alterações requerem alterações mais extremas do que o cérebro masculino para produzir os sintomas do autismo. “Este foi o primeiro estudo que demonstrou uma diferença em nível molecular entre meninos e meninas no que se refere ao desenvolvimento de uma deficiência neurológica”, disse, em um comunicado, Sébastien Jacquemont, pesquisador do hospital e autor do trabalho. Ainda segundo ele e Evan Eichler, pesquisador da Universidade de Washington, em Seattle, o estudo sugere que há um nível diferente de robustez no desenvolvimento do cérebro, e as meninas parecem ter uma vantagem clara. Para compreender a diferença de gênero, o estudo comparou a frequência de alterações genéticas em cerca de dezesseis mil crianças com transtornos do desenvolvimento neurológico. O resultado mostrou que as meninas diagnosticadas com alguma disfunção do desenvolvimento neurológico ou transtorno do espectro autista tiveram um número muito maior de mutações, o que demonstra que o cérebro feminino requer alterações mais extremas que o masculino para produzir os sintomas. 16 Para o psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Guilherme Polanczyk, é cedo para conclusões. Ele concorda que existe sim uma questão de gênero neste assunto. “Sem dúvida há uma questão de sexo nisto. O próprio autismo e o TDAH - transtorno do déficit de atenção com hiperatividade- são mais comuns em meninos. Mas, após a puberdade, distúrbios de ansiedade e depressão ficam mais comuns em mulheres. Acho que temos um caminho aí que pode nos levar a boas descobertas”, disse. Polanczyk afirmou, no entanto, que embora os dados mostrem que as meninas precisavam apresentar mais mutações para manifestarem os sintomas dos distúrbios, o “modelo protetor” é ainda apenas uma especulação. “Acho a explicação plausível, mas ainda é preciso fazer mais replicações deste tipo de estudo para ter certeza”, esclareceu o psiquiatra. O mito do retardo ou da genialidade Faltava descobrir se Bernardo tinha algum retardo mental. Estava alarmada com essa possibilidade. Fiquei aliviada ao ser informada pelo Dr. Alfredo de que o QI (coeficiente de inteligência) do Bernardo é normal. Ele não possuía nenhum tipo de retardo mental, mas também não era nenhum gênio. Engraçado foi perceber que, para alguns pais, é mais fácil aceitar o autismo se o filho for diagnosticado como Asperger, já que isso significaria que a criança é superdotada, com uma inteligência acima da média. Felizmente, nunca considerei o meu filho gênio nem preferiria que ele fosse Asperger. 17 Em algumas ocasiões, conhecidos e amigos chegaram a afirmar que sua inteligência era acima da média, coisa que sempre discordei, pois sei que meu filho é inteligente, mas sua inteligência está dentro da média. Um QI mais alto não garante maior capacidade de ser feliz ou mais sucesso e realizações na vida. Aliás, um QI mais alto não garante praticamente nada e, não raro, é a causa de muitos conflitos, sejam eles afetivos ou psíquicos. Há uma discrepância enorme de dados quando o assunto é retardo mental. Chegou-se a acreditar que 70% dos autistas tinham algum tipo de retardo, o que é um absurdo. Feitas as devidas correções, hoje sabe-se que o percentual chega no máximo a 10%, 12% e, mesmo assim, trata-se de um leve retardo. A origem da confusão estava na dificuldade de se separar características “semelhantes” encontradas em crianças que tinham retardo mental e crianças autistas, o que levou muitas crianças que tinham apenas retardo mental a serem consideradas autistas. Daí a falácia do percentual de 70%. Em relação aos autistas com algum tipo de genialidade (normalmente diagnosticados com Asperger), esse número também é bem abaixo da crença popular, com percentual em torno de 5% a 6%. A esmagadora maioria é formada por crianças com inteligência dentro da média, que precisam de estímulos diários para desenvolver suas potencialidades. 18 Epidemia de autistas? Na década de 80, a Associação Psiquiátrica Americana tornou mais abrangentes os parâmetros para diagnóstico do autismo e, com isso, os EUA viveram uma campanha de informação massiva. Até então, a maioria dos médicos americanos tinha a mesma imagem estereotipada que nós, brasileiros, tínhamos, e cuja mudança, no nosso caso, se deu recentemente, mais precisamente de dez a quinze anos para cá. Antes, os médicos americanos consideravam autista apenas a pessoa totalmente incapaz de interagir socialmente; não se falava em espectro autista, muito menos nas graduações do autismo em leve, médio e severo. Com as novas normas, contudo, o número de casos aumentou consideravelmente, representando um “boom” nas estatísticas, e o autismo passou, inclusive, a ser tratado pela Mídia como uma epidemia. É importante frisar que esse “boom” foi resultado, basicamente, da ampliação dos critérios usados para se estabelecer se uma criança era autista ou não. Dessa forma, passou-se de um extremo a outro: se antes o número de autistas não era confiável por não levar em consideração os tipos de autismo mais leves, agora não é confiável por considerar qualquer alteração comportamental como um indício de autismo. Passamos de um extremo para o outro. A flexibilização dos critérios foi a responsável pela diferença nas estimativas internacionais e pela profusão de diagnósticos de autismo. Logo, como ocorreu no EUA na década de 80, é a vez agora de o Brasil ter essa sensação de epidemia. Relevando os exageros, é louvável que haja maior conscientização da comunidade em geral e de pais, professores e médicos, em particular, o que viabilizará o diagnóstico precoce, amplamente defendido por mim. 19 Também merece destaque o fato de que, quanto maior a disponibilidade de informações sobre o distúrbio, mais possibilidade de inclusão social e de combate ao preconceito. Outro aspecto positivo é que as pessoas entendam a importância da terapia tanto para os casos graves da doença quanto para os casos leves, haja vista que, sem o diagnóstico adequado, corremos o risco de considerarapenas “esquisitas” ou “excêntricas” crianças que se beneficiariam muito com ajuda profissional. É provável que, nos próximos anos, haja um rearranjo, com a divulgação de estatísticas que reproduzam, com mais precisão, qual é o número real de autistas no mundo atualmente. Um jeito de ver a vida? Se há dez anos quase não tínhamos informações sobre autismo, hoje temos em demasia, o que pode ser bom por um lado e ruim por outro. Bom porque, finalmente, o autismo saiu do armário e ganhou espaço (merecido) na sociedade. Com isso, podemos trocar experiências, formular políticas públicas efetivas para nossos autistas, conhecer pessoas fantásticas que lutam pela assistência e pelos direitos dos autistas e diminuir o preconceito em torno do assunto. Mas é ruim na medida em que surgem também muitas fake news e desinformações. Com essa profusão de informações sem controle, sem um filtro que nos garanta comprovação científica ou bom senso, pais e mães são bombardeados constantemente com promessas de remédios milagrosos, com terapias alternativas sem nenhuma comprovação de sucesso e, ainda 20 mais preocupante, com uma idealização ou glamourização em relação ao transtorno. Autismo é assunto sério. Não é um “jeito de ver a vida” como algumas pensam tentam nos convencer. Tudo que um autista não consegue, quando o transtorno não é tratado clinicamente, é ver a vida. Meu filho só passou a “ver a vida” e a ter oportunidades e escolhas a partir do momento que os sintomas incapacitantes e de isolamento do autismo foram diminuindo e Be foi se constituindo como pessoa. Sim! Constituir-se como pessoa, separar-se dos demais, ter uma própria identidade é algo possível e desejável. Temos de lutar por isso. Os autistas também crescem Toda doença, síndrome ou transtorno crônicos ou permanentes trazem um novo desafio por si só: a idade. Com o passar dos anos, diferentemente de muitas doenças, ela não melhora ou não vai embora sozinha. O autismo é um transtorno permanente, embora com o tratamento adequado, o diagnóstico precoce e a inclusão social, ele possa praticamente deixar de existir. É o que ocorreu com meu filho. No dia a dia, quase nos esquecemos do seu transtorno. Bernardo vive uma vida bem “comum”, com afazeres domésticos, estudo, vida social, idas a aniversários e eventos, sonhos, frustrações, etc. Quando era criança, os desafios eram de uma ordem: aquisição da fala (linguagem), alfabetização, interação social (fazer amigos e ir a locais públicos sem se incomodar com barulhos e sem representar um perigo para si mesmo), independência funcional (largar as fraldas e ir ao banheiro 21 sozinho), comer com a própria mão, e por aí vai. Todos esses desafios foram superados. Na adolescência, surgiram outros, tais como adquirir mais subjetividade, especialmente na escola e em suas disciplinas, e na relação com amigos e com as pessoas em geral; variar sua alimentação, o que por sinal foi realizado com muito sucesso pois ele come de tudo hoje em dia, gosta de experimentar novos alimentos e não tem nenhuma frescura quanto a isso; fazer um esporte, sendo que o esporte em que ele se destacou foi o Judô, ganhando algumas medalhas e mantendo um bom relacionamento com o professor e com os outros competidores; namorar ou conhecer meninas que o interessassem, conversar sobre isso com seus amigos, sair com eles com a finalidade de conhecerem alguém, isso também aconteceu naturalmente e sem atropelos; terminar o Ensino Fundamental, ingressar no Ensino Médio e, mais tarde, preparar-se para a faculdade. Bernardo teve a tranquilidade necessária para dar esses passos. Em alguns momentos, sentiu-se inseguro quanto ao seu desempenho, é uma característica dele a de exigir-se demais. Em outras vezes, teve a autoconfiança necessária para seguir em frente sem pedir ajuda. O desempenho escolar foi muito acima do esperado por nós. Não faltava às aulas, tirava notas altíssimas, comunicava-se muito bem com todos à sua volta, conquistava a admiração de outros alunos e professores. Saldo mais do que positivo. Mas os autistas crescem, como eu já havia dito. Até este ponto em que Bernardo chegou, terminando o colégio e ingressando no mundo acadêmico, muitos também conseguiram chegar. Não tantos quanto gostaríamos. O objetivo de todos nós que nos envolvemos com a causa autista é aumentar ainda mais esse ingresso nas universidades nos próximos dez anos. 22 Nosso foco não é apenas a criança autista. Os adultos merecem toda nossa atenção e comprometimento. Precisamos propiciar meios de ingressos mais justos nas universidades, no mercado de trabalho, nas repartições do serviço público, além de sua capacitação para obterem carteira de habilitação, para se casarem e constituírem família. Sim! Tudo isso é possível de ser conquistado e tenho certeza de que é o desejo deles: serem aceitos e respeitados em todas as áreas de suas vidas. Os autistas leves têm plenas condições de obterem uma vida praticamente “normal”; os moderados terão mais dificuldades, mas estaremos ao lado deles para vermos até onde eles podem ir, e os severos precisam de ações efetivas para que quando seus pais não estiverem mais aqui, eles tenham condições de não apenas sobreviver no mundo, mas terem uma vida de qualidade, sem maus-tratos pela parte de estranhos, sem preconceito por parte da sociedade, sem negligência nos seus cuidados mais básicos. Em dezembro de 2016, o autista Isaías Costa, 18 anos, concluiu o Ensino Médio na Unidade Escolar Gervásio Costa, escola estadual de Teresina, Piauí. Segundo a diretora da entidade à época, Yonara Lustosa, a educação inclusiva começou a render bons frutos na escola. - Ele chegou na escola ainda na infância, cursou o Ensino Fundamental e ao longo de todos esses anos se empenhou e concluiu o ensino Médio. Isaías é muito interessado e contou com todo o apoio dos professores, da escola e da sua família, além de um acompanhamento especial. Essa foi uma grande conquista – finalizou. Mas é preciso fazer mais. Só 14% das vagas no ensino superior para alunos com deficiência foram ocupadas em 2016. No Rio Grande do Norte, Nataly Pessoa, autista, cursa Direito no Centro Universitário do Rio 23 Grande do Norte (UNI-RN). Ela tem um blog, o “Espaço Autista”, onde relata experiências, dificuldades e preconceitos. Nesse espaço, ela também promove debates na luta por direitos dos autistas. Em Santa Catarina, o Núcleo de Acessibilidade da UFSC participa desde 2013 do Projeto de Pesquisa Acessibilidade em Rede (da Capes). O objetivo é o mapeamento nacional em universidades federais de questões como acesso e permanência de estudantes com deficiência. Pretende-se com isso discutir as atuais condições de ensino e políticas públicas brasileiras. - Geralmente são os autistas de grau leve que chegam à Universidade, afirmou o professor de Psicologia da UFSC, Marcos Eduardo Lima. Enquanto a presença de autistas no ensino superior é garantida por lei, a inclusão de deficientes com retardo mental no Ensino Superior não é obrigatória, mas deve ser outra meta a médio prazo. Para isso, contudo, as universidades precisam estar prontas para acolher as diferenças e ser mais condescendente com as dificuldades de aprendizado que, inevitavelmente, surgirão. Para se ter uma idéia da gravidade do assunto, dos 6 mil alunos aprovados no vestibular da UFSC em 2014, apenas um declarou-se autista. Isso por que os candidatos que possuem algum tipo de deficiência ou necessidade especial podem solicitar a aplicação diferenciada do teste. No geral, os vestibulandos da UFSC com laudo de TEA solicitam apenas uma sala separada, de acordo com dados do Núcleo de Acessibilidade Educacional. Outro caso de superação é o de Eduardo Meneghel Barcellos de Souza, autista de 15 anos. Ele conseguiu liminar da JustiçaFederal para 24 que pudesse ingressar no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes). Eduardo participou do processo seletivo, fez prova para uma vaga em Agropecuária Integral, no campus de Alegre, mas como o instituto não dispõe de reserva de vaga nem de outro meio de inclusão para pessoas com deficiência previsto no edital, ele fez o processo na ampla concorrência e obteve 170 pontos, ficando como suplente. A última candidata aprovada havia feito 220 pontos. Quando soube da pontuação, Eduardo pensou em desistir: “Fiquei desanimado, mas meu pai falou que ia lutar por isso, e eu me animei. Como demorou muito, não estava achando que a gente ia conseguir. Mas a gente conseguiu. Agora estou ansioso para estudar”. O pai de Eduardo, Maurice Barcellos da Costa, é professor e desabafou sobre a desvantagem que seu filho teve em relação aos demais candidatos diante da deficiência que apresenta. “Candidatos cotistas foram aprovados uns com 110 pontos, outros com 140 pontos. Meu filho fez 170 pontos. Ou seja, se ele tivesse acesso privilegiado de acordo com suas peculiaridades, Eduardo certamente teria sido aprovado”. II – BERNARDO NA ADOLESCÊNCIA Adolescência: necessidade de mais amigos Quando morávamos em Porto Alegre e Bernardo tinha vários sintomas do autismo, dos dois aos nove anos de idade, ele só tinha praticamente dois amigos: Caio e Eric. Meu filho conheceu Caio na creche Balão Azul, quando tinha quatro anos, e em pouco tempo ficaram bem 25 grudados. Caio tinha um temperamento tranquilo, apaziguador e se tornou intérprete do Be frente aos desafios diários. Estudaram juntos na creche e, anos mais tarde, no 1º ano do Ensino Fundamental no Colégio Bom Conselho. Eric é filho de uma amiga minha, Cristiane Naiber, e também se dava muito bem com Bernardo. Com temperamento mais agitado, um menino curioso, Eric ia lá em casa e os dois brincavam muito, principalmente com dinossauros e com os personagens de Star Wars. Ele passava o dia todo lá em casa e era só diversão. Era raríssimo eles se desentenderem. Ao nos mudarmos para Brasília, Be precisou refazer todo seu círculo de amizades. Seus primeiros amigos na cidade foram Eduardo Godoi e João Felipe. Os três estudavam no Sistema Educacional Brasileiro (SEB) Dínatos Coc. Com o tempo, aos 14 anos, Be sentia necessidade de ter mais amigos e conversou comigo a respeito: - Mãe, como faço para ter mais amigos? Eu não tinha resposta para isso. Como fazer amigos é algo que simplesmente “acontece”, algo que não existe uma fórmula para se ter sucesso, pelo menos essa é a minha experiência, já que se você se esforçar demais o efeito será justamente o contrário, – você será um chato querendo agradar todo mundo – perguntei a ele se gostaria de ir a um psicanalista, que com certeza saberia melhor do que eu para aconselhá-lo. Ele aceitou minha sugestão, liguei para Dr. Alfredo Jerusalinsky em busca de uma indicação de terapeutas em Brasília e ele me sugeriu a Dra. Inês Catão que, além de psiquiatra, é psicanalista e especialista em autismo. Be se afeiçoou rapidamente à Inês. Engraçado foi assistir a irmã tentar arrancar algo dele depois das sessões. 26 - Be, sobre o que vocês falaram? Pode me contar, dizia ela. Bernardo dava risada e dizia: - Maju, eu não vou contar. É segredo nosso. Foi bom meu filho ter um espaço de fala só para ele. Falar e ser escutado sem nossa interferência é essencial para sua autonomia. Por ser muito apegado a nós duas, esse distanciamento é saudável e foi incentivado por nós. Suas amizades no Ensino Médio não se ampliaram tanto, afinal. Alguns novos amigos surgiram como o Gustavo e o Lucas. Antes, Eduardo e João Felipe monopolizavam a atenção dele. Esse assunto de fazer novas amizades deixou de incomodá-lo tanto quando ele percebeu que, atualmente, não convivemos tanto com os amigos quanto gostaríamos devido aos nossos afazeres domésticos e profissionais. Também expliquei a ele que o mais importante não é a quantidade de amigos e sim a qualidade, além do que, essencial mesmo é ter com quem contar, seja amigo, seja familiar, seja quem for. Bernardo encontra um esporte pra ele Em 2013, no sétimo ano do Ensino Fundamental, Bernardo começou a praticar judô. Foi a única modalidade esportiva que combinava com seu temperamento e aptidões. Com essa modalidade esportiva, Be conquistou três medalhas de prata e duas de ouro. Antes, ele praticou basquete por alguns meses, mas 27 não gostou da experiência. Dizia que “só servia para atrapalhar os adversários!”. A capoeira, segundo ele, também foi um desastre: - Mãe, o professor faltava com frequência! Ultimamente, tenho percebido um aumento significativo de autistas, sejam crianças ou adolescentes, que praticam judô. Talvez pela questão da disciplina, dos rituais, ele seja tão atraente para nossos filhos. Há vários projetos nessa modalidade sendo implantados nas cidades. Fico muito feliz que, cada vez mais, os autistas sejam incluídos na sociedade, ainda mais com uma inclusão tão saudável como essa. 28 E se? Havia uma época em que meu filho gostava de supor acontecimentos, na sua maioria, completamente absurdos ou irreais, e queria saber a minha opinião sobre eles. - Mãe, e se..........? Em outras situações, queria que eu escolhesse entre duas opções indesejáveis e estapafúrdias, sendo uma pior do que a outra: - Mãe, se você tivesse que escolher entre ser atirada em um vulcão ou ser esmagada por um avião, o que escolheria? - Como assim, Bernardo? Tá doido, meu filho? - Não. É sério! Você preferia ser atacada por um urso cinzento ou por um leão? - Eu preferia não ser atacada por ninguém, meu filho. Aliás, nem serei, pois ficarei bem longe desses bichos. - Tá, mas é só uma suposição – ele insistia. Se tivesse de escolher, qual você preferiria? Quando eu retribuía a questão, perguntando o que ele preferia, ele dizia que preferia ser atacado por um leão, pois este não tem a mordida tão pesada. É de apenas 400 kg, enquanto a mordida do urso cinzento é capaz de quebrar uma bola de boliche, segundo ele. Errata: Não sou um biólogo. Diante disso, recomendo cautela para quem estiver lendo isso. Seria bom se alguém especializado nesse assunto me alertasse. Eu certamente me confundi. Não me lembro de onde minha cabeça tirou a estimativa de força de mordida de 400 quilogramas para o leão (Panthera leo). Até onde estou sabendo, esse não é o modo devido de se 29 estimar a força de mordida de um bicho. No que diz respeito ao urso cinzento (Ursus arctos horribilis), fui informado por certas fontes na Internet dessa suposta informação na época em que disse isso. Recentemente, descobri que essa informação consta em uma página do canal televisivo National Geograhic (eis o link: http://www.natgeotv.com/int/expedition-wild/facts). Nela, é dito que a força de mordida do urso cinzento é de 8 000 000 Pascais. Essa é uma unidade de pressão. No entanto, não é dito na página o tamanho da superfície que foi utilizada como referência para esse valor. Levando- se em consideração a resistência que uma bola de boliche pode ter (dependendo de sua qualidade), não consigo imaginar um urso cinzento quebrando uma bola de boliche com a força de sua mordida. Pelo que estou sabendo por meio de determinados artigos científicos, em termos proporcionais, leões tem forças de mordida maiores se comparados a ursos pardos (Ursus arctos). Para que um urso cinzento tenha uma força de mordida maior em relação a essa espécie de felino, ele deverá ser maior se comparado a este. E não parava por aí: - Mãe, se você tivesse que escolher entre ser picado por uma vespa mandarina ou por uma vespa caçadora de tarântulas, o que você preferiria? Sem ter a menor idéia do que responder, chutei: - Por uma vespa mandarina! Respostaerrada para variar. Be disse que seria melhor ser picado por uma vespa caçadora de tarântulas pois, apesar de ter a segunda picada mais dolorosa entre todos os insetos (não me pergunte qual é a primeira), ela usa sua picada apenas para paralisar a presa, ao contrário da vespa mandarina, e http://www.natgeotv.com/int/expedition-wild/facts 30 não causa número significativo de mortes, tendo um comportamento mais calmo. São mais solitárias e menos agressivas. Em uma sexta-feira chuvosa de março de 2015, tomando chimarrão juntos, Bernardo inicia a conversa: - Mãe, eu sinto que minha capacidade cerebral está sendo reduzida! Não dei muita atenção. Em outro momento, anterior a este, ele tinha me falado que estava com problemas no seu “sistema nervoso”. Ah! Não. Que mania de doenças. Soube depois que Be tinha lido na Wikipedia que um dos sintomas do autismo é retardo mental e que ficou com medo de ter esse sintoma. Eu o tranquilizei. Ele é um menino inteligente, fora de série, e não tem qualquer comprometimento intelectual. Às vezes, tudo que ele precisa nesses instantes de insegurança é de reafirmação. E, nessas horas, eu estou pronta para tranquilizá-lo. Último degrau para o Ensino Médio Bernardo ficou apreensivo com a proximidade do Ensino Médio. À medida que o tempo passava, ele parecia cada vez mais preocupado com seu desempenho escolar e demonstrava insegurança quanto ao futuro. Seu principal medo era de que o nono ano do Ensino Fundamental fosse muito mais difícil do que o oitavo ano tinha sido (ele nem o considerou desafiador) e que ele não conseguisse manter as notas altas dos anos anteriores. A irmã e eu o tranquilizamos. Até aquele dia nem recuperação ele tinha feito. Por que todo esse medo? 31 Cada nova fase da vida de meu filho tem sido vivida e ultrapassada com facilidade, apesar de em alguns momentos ter sido essencial a ajuda da irmã e a minha. Sem dúvida a irmã tem sido seu ponto de apoio. Apesar da insegurança, Bernardo não teve qualquer dificuldade para terminar o nono ano e entrar no Ensino Médio. Mais conquistas no Ensino Médio Pouco antes de as aulas do Ensino Médio começarem, Bernardo ficou ansioso e externou várias vezes preocupação em não corresponder às expectativas e não conseguir acompanhar com facilidade essa nova etapa. - Mãe, estou com medo de não ser bom aluno no Ensino Médio. Estou com medo de que seja muito difícil – desabafou, quando perguntei o que estava incomodando ele. Apesar de eu explicar repetidamente que essa etapa não seria tão diferente da que ele tinha vivenciado até agora – o Ensino Fundamental também exige bastante estudo e dedicação – a ansiedade voltava de tempos em tempos e ele me procurava para desabafar novamente. Escutei suas dúvidas todas as vezes que elas surgiram, não queria que ele tivesse a impressão de que eu não me importava com suas emoções, e sugeri, por fim, que ele falasse com a irmã, que tinha entrado no Ensino Médio há dois anos. Em muitas questões relevantes para ele, com as quais ele tem alguma dificuldade de lidar, a irmã tem sido melhor conselheira do que eu. Talvez por ter uma intuição nata a respeito de tudo que o envolva ou por ser muito observadora, talvez pela forte afinidade que existe entre eles. 32 Não é à toa que Maria Júlia está cursando o segundo ano de Psicologia na Universidade Nacional de Brasília (UnB). Quando eram pequenos e Bernardo nem tinha sido ainda diagnosticado com autismo, ela já percebia que havia algo de diferente no irmão e que ele precisava ser protegido. Por isso, embora tenha apenas um ano mais do que ele, ela se postava na frente do carrinho dele e não deixava nenhum estranho ter acesso a ele. Dizia: - Esse é meu irmão! E ficava imóvel, protegendo-o. Ela tinha apenas três anos, mas não desgrudava dele. De qualquer forma, ela também foi extremamente paciente com ele no momento atual e quando, finalmente, as aulas tiveram início, ele comemorou. Era muito mais fácil do que imaginava. Só reclamou um pouco da grande quantidade de conteúdo a ser aprendido em curto espaço de tempo, principal diferença em relação ao Ensino Fundamental. Surpreendentemente, suas notas foram ainda mais altas, e muito acima da média da escola, que era 6, o que garantia um bom desconto na mensalidade do colégio. Das 13 matérias cursadas, era comum ele tirar 10 em mais de 6 ou 7. Chegou a tirar 10 em quase todas. Graças ao espetacular desempenho, recebeu várias vezes o prêmio de Aluno Destaque no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. No 2º semestre de 2016, Be recebeu prêmio Aluno Destaque – Excelência Acadêmica. 33 Outro prêmio Aluno Destaque – Excelência Acadêmica foi concedido no 1º semestre de 2017, quando ele estava no 2º ano do Ensino Médio. 34 No último ano do Ensino Médio, em 2018, Be recebeu três prêmios: Aluno Destaque – Mérito Acadêmico, Ato de Elogio – Empenho Acadêmico e Postura no Ambiente Escolar e Mérito Acadêmico. Foi engraçada sua reação ao receber o Ato de Elogio. Ele me perguntava o que isso significava e se era melhor ou pior do que os outros prêmios. Confesso que também achei engraçada a denominação, mas expliquei a ele que o que importava era a intenção e que era um reconhecimento pelo seu desempenho escolar. Entender o que isso significava – ato de elogio – não entendo até hoje, na verdade. Minha dúvida diz respeito ao fato de que a coloração do Ato de Elogia era azulada, enquanto o certificado de Mérito Acadêmico era dourado. Além disso, percebi que alunos não tão bons quanto outros em termos de nota e desempenho estavam recebendo o prêmio em questão. 35 36 Maior coração do mundo Meu filho tem um coração enorme, gigantesco. Como é muito gozador, ao ler essa frase, ele disse: - Se for verdade, eu vou ficar preocupado pois pode ser sinal de Doença de Chagas! Brincalhão, carinhoso, beijoqueiro, Be desenvolveu empatia pelas pessoas bem acima do esperado até para uma pessoa que não tem autismo. Imagine para um menino que tinha praticamente todos os sintomas do autismo, principalmente os que se referiam à aquisição da linguagem e à socialização. É muito comum Be entrar esbaforido em casa e me perguntar: - Mãe, tem um homem lá embaixo pedindo dinheiro. Posso dar? Ou: - Mãe, um cara me pediu comida. Posso comprar algo pra ele? Uma vez, Be encontrou uma mãe com filhos pequenos e maltrapilhos pedindo dinheiro na rua. Até descalços eles estavam. Ele se apiedou de tal forma, se comoveu tanto com a situação que queria dar um chinelo para cada um deles. Eu o ajudei a procurar os pares das havaianas que tínhamos em casa, havaianas antigas para doação. Eram a mãe e três crianças. Embora os chinelos fossem grandes para a idade deles, era o que tínhamos para oferecer. Também separamos alguns alimentos para eles. Eu não tinha feito supermercado e falta praticamente tudo em casa, mas conseguimos algumas bananas e disse para meu filho que ele poderia comprar algo na 37 padaria para eles, que eles poderiam escolher entre um bolo ou pão e manteiga e café com leite para cada um deles. Foi o que fizeram: escolheram pão e manteiga e o café com leite. Ficaram bem felizes com a ajuda do Be, que ficou um tempo conversando com eles. Também é comum Be chegar com balas em casa. Como nenhum de nós gosta de balas, sei que fez isso para ajudar alguém. Sempre tem alguém vendendo balas no ônibus e meu filho não consegue se omitir. Ajudar, para ele, é algo tão natural que nem comento mais isso. Sei que, às vezes, ele volta pra casa sem um centavo, mas tudo bem. Sinto um orgulho danado dele. Be é caridoso, desprendido em todos os sentidos. A irmã gosta de pegar suas roupas, cortá-las e usá-las. E ele se importa com isso? Nem um pouco. Para ele, está tudo sempre bem. Eu tinha uma camisado conjunto de heavy metal Iron Maiden que o Be adorava. Dei para ele. Mas a irmã, em pouco tempo, pegou a camisa, cortou as mangas, e começou a usar. Qualquer irmão, diante disso, ficaria furioso. Be não. Be não se importou. E isso que ele gostava muito da camisa. Com as calças jeans dele é a mesma coisa. Não consigo nem entender como Maria Júlia acha legal usar calça de homem. Mas ela transforma as roupas dele e usa. Como sempre, ele nem se incomoda com isso. Acha graça de tudo que a irmã faz. É sempre tolerante, compreensivo, amoroso. Um menino exigente... Apesar de ser tão bondoso com os outros, às vezes, ele não é tão condescendente consigo mesmo: ele se exige demais. E o faz em todos os 38 sentidos. Seja no colégio ou em casa, o seu grau de exigência é exagerado e, portanto, é fácil ele se frustrar quando o resultado não é aquele que ele esperava. Ao buscá-los na escola em uma tarde depois da aula do judô do Bernardo, assim que entrou no carro ele disse: - Mãe, eu preciso muito de você porque minha autoestima está baixa hoje. Não deixei por menos. - Pode deixar filho que eu vou ajudá-lo. Até porque quando você entrou no carro, eu pensei: “Quem é esse homem lindo, tão alto, que está entrando no meu carro?” Você está cada dia mais lindo, sabia? A minha fala o comoveu, tenho certeza, mas em vez de fazê-lo rir, como era minha intenção, fez com que seus olhos se enchessem d’água e ele não conseguiu conter as palavras, que passaram a ter vida própria, dominando-o completamente. Elas eram sofridas, um pedido angustiado por ajuda: - Mãe, eu tirei 0,5 em um resumo que valia 2,0. Eu não sou inteligente, mãe. Ignorei o último comentário propositalmente e disse: - Meu filho, era uma redação ou um resumo? - Um resumo, mãe. - E por que você acha que tirou essa nota? - Porque não consegui terminá-lo. Era muito pouco tempo para fazê- lo. O professor só nos deu 45 minutos para fazê-lo, e eu demorei pensando nas melhores palavras para escrevê-lo. Eu queria que fosse perfeito! 39 - Ah! Filho, então o problema foi justamente esse: o tempo. Quando você faz um resumo em casa, você tem todo o tempo do mundo para terminá-lo. Nessa situação, você pode buscar as melhores palavras para redigi-lo e, mesmo assim, acho que não precisa fazer isso. Se você fizer um texto muito rebuscado, ele ficará pernóstico, não é assim que as pessoas falam no dia a dia. Tem de ser mais natural. Lembre-se de que, nessas horas, menos é mais, meu filho. O que você tem de fazer para da próxima vez tirar uma nota melhor? Faça o seguinte: leia o texto que precisa ser resumido, lembre-se de que você tem pouco tempo, e reescreva o que você entendeu do que leu. Não fique procurando palavras para enfeitar o seu texto. - Mãe – disse Maria Júlia – deixa que eu converso depois com ele. - Tá bem, Ju. – E mudei de assunto. Tive de parar na papelaria para comprar mais canetas para escrever meus contos. Tenho mania de escrevê- los primeiro à mão e só depois transcrevê-los para o computador. E detalhe: as canetas têm de ser pretas. É uma mania da qual não abro mão. Quando saí da papelaria, nova surpresa: Júlia, que antes estava sentada no banco da frente, estava agora sentada no banco de trás, juntamente com o Bernardo e os dois estavam abraçados. Ainda escutei ela dizer, antes de se mudar para o banco da frente: - Entendeu direitinho o que eu disse, Be? Ele concordava com a cabeça. O certo é que ela aproveitou a minha ausência para ter uma conversinha com ele. Ela sabe a grande influência que tem sobre ele e não quis perder tempo: decidiu confortá-lo ali mesmo. O “tempo” é uma questão muito importante para os autistas de um modo geral. Eles possuem um tempo interno muito peculiar. Se forem 40 apressados, o mais provável é que fiquem confusos e se paralisem, não conseguindo mais render o que deveriam. Se se sentirem pressionados, podem sofrer um “completo apagão”. É como se desse um branco em suas mentes e eles não soubessem mais o que fazer, o próximo passo a dar. Tenho sido muito cautelosa quanto a isso. Muitas vezes eu o apressei e a resposta foi desoladora. Bernardo não age bem sob pressão. O melhor é deixá-lo agir em seu próprio tempo, respeitar o tempo de que necessita para agir. Por ele ter ficado tão frustrado com o 0,5 que tirou no resumo, pensei em ir ao colégio para falar com a coordenadora e pedir para os professores um tempo maior de tolerância para os trabalhos do meu filho. Mas depois de ponderar por uns minutos, percebi que não era uma boa opção. O melhor seria que ele se acostumasse com as exigências da realidade e procurasse se adaptar a elas. Eu deveria ajudá-lo nessa adaptação e não tentar mudar o “mundo” para que ele se sentisse mais confortável. ... e surpreendente... No Carnaval de 2015, durante a visita de minha prima Patrícia, filha de Tia Gilce, irmã de meu pai, Bernardo nos mostrou mais uma faceta de sua personalidade. Depois de eles conversarem por mais de quinze minutos em espanhol, Patrícia comentou: - Que legal que você sabe falar espanhol! É a língua mais falada do mundo, não é? Bernardo, no entanto, a corrigiu: 41 - Não, espanhol é a segunda língua mais falada. A primeira é o inglês. Let´s speak english a bit!* (no rodapé: Vamos conversar um pouco em inglês) E despejou um arsenal de frases, respondendo corretamente a todas as perguntas feitas por ela (que é tradutora e foi professora de inglês em vários cursos no país), dando continuidade a um diálogo que durou quase uma hora. Não presenciei a conversa deles. Eu estava lendo no quarto quando minha prima me chamou (com certa urgência na voz) para eu ver o que estava acontecendo. - Você sabia que o Bernardo fala inglês? Ela me perguntou. - Não, que eu saiba ele sabe bem pouco. Teve apenas algumas aulas no colégio, e isso já faz um tempo. Atualmente ele só estuda espanhol. - Pois ele está falando fluentemente - disse ela. E reiniciou uma conversa com ele na minha frente que, para meu completo espanto, não só entendia tudo que ela dizia, como ainda respondia, apropriadamente, em inglês. Eu estava boquiaberta. - Meu filho, onde você aprendeu a falar assim? - Ah! Mãe, em vários lugares. Jogando videogames, assistindo a séries americanas na TV, visualizando vídeos no Youtube e, principalmente, pesquisando sobre Biologia na Internet. O mais impressionante é que ele conhece muitas expressões idiomáticas e conjuga os verbos não apenas no presente ou no passado (o que é mais fácil de se fazer), mas também no Present Perfect, bem mais complexo. 42 - I´ve forgotten....*, disse ele. Minha prima e eu nos entreolhamos, pasmas. Bernardo dominava até as inversões de palavras e expressões mais difíceis daquela língua, tais como “Can I? Did I?”, que são empregadas nas perguntas. Patricia, em tom de brincadeira, disse: - Bernardo, estou com medo de você! E ele rebateu na hora: - Why do I look scary for you?* (no rodapé: por que eu pareço assustador para você?) Em outro momento, quando Patricia prendeu a manga da camisa na maçaneta da porta, ele veio ajudá-la imediatamente. Ela agradeceu, dizendo: “como a vida, sozinha, faz coisas. Eu não fiz nada para prender a blusa na maçaneta”. - Exato, disse Bernardo. Você tem de estar preparada... you have to be ready*...(no rodapé: você tem de estar preparada...) - For what life brings to you*, ela completou. (no rodapé para o que a vida lhe traz). Minha prima lingüista ficou impressionada com a competência idiomática dele, pois o que ele fez (assim como os intérpretes profissionais) foi uma tradução idiomática, e não literal, o que necessita de mais abstração. Ele poderia ter traduzido a frase literalmente com a expressão “to be prepared”, mas a expressão mais usual é mesmo “to be ready”, que foi o que ele fez. E assim, sem mais nemmenos, descubro, em uma tarde de Carnaval, que meu filho é poliglota. Fala português, espanhol e inglês com 43 desenvoltura, sendo que este último ele aprimorou por conta própria e sem estardalhaço. Além de poliglota, é autodidata. Outro medo que eu tinha era de que Bernardo não tivesse iniciativa na vida e precisasse sempre de um empurrão para seguir em frente, para enfrentar novos desafios. Esse medo, assim como tantos outros que povoavam minha mente, acabou. Até o segundo ano do Ensino Médio, Bernardo não teve aulas de inglês extra-classe. Mas como a disciplina se tornou obrigatória no currículo em 2017, ele teve de se inscrever. Fez uma prova de nivelamento e foi aprovado para o nível 4, último nível do curso. Das 30 questões respondidas, Bernardo acertou 28. Admirável! No entanto, como o horário coincidia com as aulas de judô, ele optou por fazer o nível 3. Em novembro de 2016, Bernardo concluiu o nível intermediário de espanhol. Na formatura, fez um discurso de mais de cinco minutos em um auditório quase lotado. Sua irmã e eu ficamos impressionadas com sua desenvoltura. 44 Gandhi e Brioche: mais responsabilidade Meus filhos sempre quiseram ter um cachorro. Volta e meia, apesar das minhas constantes negativas, eles me pediam novamente. A minha negativa era só pelo fato de morarmos em apartamento. Apesar de eles serem muito novos para cuidar de um cachorro, eu não me importaria de fazê-lo, desde que morássemos em uma casa. Durante toda a minha infância, eu morei em casas. A primeira foi uma casa térrea na Rua Uçá, na Ilha do Governador, no Rio. Essa casa, mais tarde, tornou-se um colégio, o nosso colégio. Meus pais eram os donos do colégio Pingo de Gente. Lá não tivemos bicho de estimação, mas também eu era muito pequena. Vivemos nesta casa só até os meus seis anos. A casa para a qual nos mudamos tinha três pavimentos, sendo um deles uma piscina, totalmente gradeada. Foi nessa casa que ganhamos nosso primeiro cachorro: um boxer. Não por acaso essa é uma das minhas raças preferidas. Depois dessa experiência, tínhamos constantemente um bichinho por perto. Tivemos até coelhinhos e pintinhos. Tivemos uma gata, a “Chiquinha”, que durou apenas um dia. Nosso portão da garagem era eletrônico e de subir e descer. No mesmo dia em que a ganhamos, ela desceu junto com o portão para nunca mais. Achei esse lance de ter gatos muito sem graça! Foi nossa primeira e última experiência com eles. Veio, então, a “Estrelinha”, uma cachorra vira-lata que recolhemos da rua, a “Evita Perón”, uma Lhasa Apso cor de mel, roubada por um dos vizinhos da minha avó materna, em Santana do Livramento, onde passávamos nossas férias (só soubemos do roubo anos depois; pensamos 45 que ela tivesse se perdido). Tivemos também a “Beija”, uma poodle branca, que mostrava clara preferência pela minha irmã do meio, e os poodles creme “Bella” e seu filho “Clark Gable”. Com o passar dos anos, percebi que voltar a morar em uma casa com os meus filhos não seria possível nem a curto nem a médio prazo. O nosso apartamento em Porto Alegre fica no Bom Fim, um bairro que dá acesso a tudo que precisamos: supermercados, lojas, bancos, padarias, pontos de ônibus e de táxis, hospitais, shoppings, farmácias. Não precisávamos de carro para nos locomovermos. Não tinha a menor intenção de vendê-lo e mudarmos para uma casa. A maioria dos compromissos fora de casa eu fazia a pé. Até o colégio das crianças era perto. Menos de seis quadras de distância. Por tudo isso, trocar esse apartamento bem localizado por uma casa em um bairro distante, precisando de carro para ir a qualquer lugar, não estava nos meus planos. Com a mudança para Brasília, fomos morar, mais uma vez, em um apartamento, o apartamento emprestado da minha tia, na Asa Norte, no Plano Piloto. Foram dois anos e outra mudança: desta vez para um apartamento alugado na Asa Sul. A vantagem do apartamento da Asa Sul era que ficava em frente ao Dínatos COC e meus filhos só precisavam atravessar a faixa de pedestre para irem para a escola. Praticidade total! Além disso, era bem mais perto do meu trabalho no Senado Federal. Também ficamos dois anos nesse apartamento e nos mudamos novamente. Desta vez, para um apartamento no Guará. Essa última mudança ocorreu em agosto de 2014. Quinze dias depois, ainda estávamos nos acostumando com o apartamento, quando em uma ida à Feira dos Importados, vimos vários filhotes de cães à venda. Sabendo de antemão que eu não iria concordar 46 em comprar um filhote, as crianças só pediram para vê-los. Nada além disso. Concordei com o pedido e caminhamos lentamente, encantados, vendo todos os filhotes que estavam sendo expostos. Avistamos, então, um lindo filhote de boxer. Meus filhos perceberam como eu fiquei comovida com o cachorrinho e, em um momento de insanidade, perguntei o preço. Não estava caro. Fiquei dividida. Queria tanto lhes proporcionar essa alegria, tinha adiado por tanto tempo esse pedido deles! Em um impulso, comprei o filhote de boxer. Eles ficaram eufóricos e eu também. Teríamos, finalmente, um cachorrinho. O único senão é que ele teria de ser buscado no dia seguinte. Tudo bem. Somente um dia de espera. À noite, praticamente não dormi. Perdi o sono ao imaginar aquele filhotinho crescendo em um espaço tão pequeno. Ele cresceria muito. Comecei a imaginá-lo mijando e cagando em todo nosso apartamento. Imaginei também como seria pequeno o espaço para ele se movimentar livremente. Boxer é uma raça para grandes espaços, de preferência, uma casa com gramado. Seria estressante para ele morar tão confinado! E tinha mais: eu ficava fora a maior parte do dia no trabalho e meus filhos tinham o colégio. Quem limparia a sujeira do cachorro? Onde ele dormiria? Na sacada? Compreendi que tinha cometido um grave erro ao comprar esse cachorro, mas não sabia como voltar atrás, não sabia como dizer às crianças que o sonho deles seria, mais uma vez, adiado. Não queria desapontá-los, mas não havia outra opção. Eu teria de desfazer o negócio. Foi quando surgiu a idéia de trocar o filhote de boxer por um cachorro menor. Bem menor. Conversei com o vendedor e só havia à 47 venda um Lhasa Apso branco, de um mês e meio, pelo qual as crianças e eu nos apaixonamos no minuto que o vimos. Peguei-o no colo e disse: - Já é meu. Maria Júlia e Bernardo exultaram. E como havíamos planejado, voltamos para casa com dois potes de comida, uma coleira e o Gandhi. Esse foi o nome escolhido por nós em meio a muitos nomes cogitados. Eu só estranhei a conversa do vendedor. Ele ficava repetindo que se o Gandhi tivesse qualquer problema, por mínimo que fosse, que eu ligasse para ele que o seu veterinário de confiança o atenderia. Ressaltou várias vezes para eu não levar o Gandhi a outro veterinário ou não haveria garantia para a compra do cachorro. Insistia também para eu manter a mesma ração que ele estava dando. Dizia que se eu trocasse de ração, com certeza o Gandhi ficaria doente. Achei muito estranha essa conversa, mas logo, logo, ela faria sentido. Foram quatro dias animadíssimos. Todo branco, Gandhi parecia um coelhinho, saltitava para todos os lados, era agitado, brincalhão, um encanto. Engraçado como nos apegamos tanto a ele em tão pouco tempo. No quinto dia, de madrugada, ele começou a vomitar. E não parou mais. Ele se contorcia todo. Não quis esperar. Chamei meus filhos, minha irmã, que estava de visita em minha casa, e fomos ao plantão veterinário. Não sem antes ligar para o vendedor. Em vão. Ele não atendeu. Eram quase três horas da manhã. Ainda bem que não esperei raiar o dia. No plantão, foi feito exame de sangue, constatando que Gandhi tinha Parvovirose, uma doença fatal na maioria das vezes. Aquela conversa fiada de doença fez sentido, afinal. Ao vender o filhote, ele sabiaque o cachorro podia estar contaminado e, mesmo assim, ele o vendeu para mim. E eu tinha provas disso: a 48 Parvovirose tem um período de incubação de quase quinze dias e eu estava com o Gandhi há apenas quatro dias. Foi apenas durante a conversa com o veterinário que fui informada de que não se pode comprar filhotes na Feira dos Importados, uma vez que não se pode confiar na procedência dos filhotes e nas condições de higiene em que eles vivem. O preço baixo é resultado dessa falta de cuidado. Em menos de uma semana, Gandhi morreu. Tive de dar a notícia para os meus filhos. Assim como eles, eu estava inconsolável. Para minha surpresa, Bernardo foi quem consolou a Júlia. Eu pensei que seria o contrário. Muito abalada, Júlia disse que não queria outro cachorro e eu respeitei sua decisão. Em junho de 2015, quase um ano depois da morte do Gandhi, ao passar por um Pet Shop no Sudoeste, vi um filhote de Shitzu, de aproximadamente três meses. Parecia uma bolinha de pêlos marrom. Eu me apaixonei por ele na hora e pensei que já era tempo de esquecer a morte do Gandhi e olhar para frente. Foi uma surpresa para meus filhos. Liguei para a Maria Júlia, que estava no colégio, e disse que passaria para buscá-los. Ao mesmo tempo que queria surpreendê-los, precisava da ajuda deles para carregar o cachorrinho no carro. Peguei uma casinha emprestada no Pet Shop, mas ele não parava de latir. Maria Júlia ficou tão, mas tão surpresa com a novidade que não se deu conta de que era um cachorro. Pensou que fosse um bicho de pelúcia ou algo parecido quando o viu. - Olha o seu Brioche, filha. Esse foi o nome que ela disse que colocaria se tivesse outro cachorro. Achei por bem deixá-la escolher o nome desta vez. Na outra, quem escolheu fui eu. Até brincávamos que o Gandhi morreu cedo pois 49 era muito “espiritualizado”, que não colocaríamos mais nomes de pessoas de bem nos animais. Riamos que, para viver bastante, o nome deveria ser “Hitler, Stalin, Sarney”. Brioche trouxe mais do que alegria para nossas vidas: ele trouxe mais responsabilidade e mais amadurecimento para o Bernardo. Embora ele não seja exclusivamente de ninguém – Maria Júlia, brincando, afirma que é a “sua mãe” – foi o meu filho quem chamou para si praticamente todos os cuidados com o Brioche. Sem reclamar ou ficar de má vontade. Está sempre disposto a alimentá-lo, a brincar com ele, a passear. Mesmo que isso signifique vários passeios por dia. Nosso cachorrinho é, disparado, o animal que mais vive na rua. Há dias que passeia mais de seis vezes! Os passeios fazem parte da sua rotina diária: Brioche nos acorda às 7 horas da manhã, às vezes até antes, para a primeira volta do dia. Como não consegue pular em nossas camas, ele fica em pé, nas duas patinhas traseiras, e late para chamar nossa atenção. Já levei cada susto! Invariavelmente, quem atende ao seu chamado é o Bernardo. Mesmo sonolento, em jejum e em férias escolares, ele levanta prontamente, acaricia o cachorrinho e cumpre o seu dever. Preocupado com a saúde do Brioche, ele nos impede de alimentá-lo com qualquer coisa que não a sua ração. E insiste em nos explicar que os bichos, independente da espécie, não devem ser alimentados com comida para humanos. E repete, sempre que surge a oportunidade: - Mãe, não se esqueça de que ele é um cachorro! É muito benéfico para meu filho que ele tenha essa lucidez, essa compreensão sobre o mundo animal e a vida. Bernardo respeita profundamente a natureza e suas leis, e vive em harmonia com tudo que o cerca. 50 Mais bichos à vista... Quase um ano depois de termos comprado o Brioche, adotamos um gatinho preto de apenas dois meses, o Oliver. Maria Júlia sempre demonstrou interesse por gatos e quando eu o vi em um pet shop na Asa Norte, eu me encantei na hora. Sabia que seria necessária uma adaptação entre o Brioche e ele, mas pensei que isso seria fácil. Como eu estava errada. Talvez por ser totalmente inexperiente em tudo que diz respeito a gatos, fiz tudo da forma mais difícil possível. A veterinária havia me explicado que eu deveria apresentar o gatinho aos poucos para o Brioche e foi exatamente o que fiz. No entanto, como Brioche é muito afoito, afobado e exageradamente amistoso, ele se aproximava rápido demais, o que assustava Oliver e o fazia se arrepiar todo em posição de luta. Para evitar tais enfrentamentos, eu os deixava afastados. Oliver ficava trancado no quarto de meus filhos e Brioche reinava absoluto pelo resto da casa. Não foi uma sábia decisão. Os dias se passavam e nada de os dois se entenderem. Quando eu dizia que era preciso deixar os dois se enfrentarem, Bernardo concordava comigo, mas Maria Júlia ficava histérica com a possibilidade de eles brigarem e ao primeiro sinal de briga entre eles, gritava e pedia para eu separá-los. Essa rotina estava virando um estresse e eu já estava desanimada, questionando se algum dia eles poderiam ficar juntos em um mesmo ambiente. Já fazia quase dois meses que ele estava lá em casa e nada de os bichos se entenderem. Foi quando levei o Oliver para tomar vacina e fui informada por outra veterinária de que estava fazendo tudo errado. O enfrentamento entre eles, que tanto temíamos, era inevitável e deveria já ter ocorrido. O que mais tínhamos medo – de que Brioche machucasse Oliver 51 – não aconteceria, a veterinária me garantiu, mas nós teríamos de relaxar e botá-los juntos para que se cheirassem e, enfim, perdessem a animosidade. Expliquei, então, para minha filha que não adiaria mais esse enfrentamento e que, se ela não quisesse fazer parte disso, que fosse para seu quarto. Botei os dois na sala e Bernardo e eu ficamos de mediadores, prontos para entrar na jogada caso a briga se tornasse feia. Bernardo, como é de se esperar, é sempre o mais tranquilo em relação aos bichos. Quando chegamos do veterinário com o Oliver, imediatamente deixei ele e Brioche na sala. Oliver sibilou várias vezes, afastando Brioche e nos arranhando quando tentávamos acalmá-lo. No entanto, em pouco tempo, eles passaram a tolerar a presença um do outro e em poucos dias, Brioche adotou Oliver como seu “gato”. Se tivéssemos parado por aí, teríamos apenas um cachorro e um gato. Seria o mais coerente da minha parte já que durante anos eu disse que não teria bichos de estimação em apartamento. Enquanto estava em Porto Alegre, cumpri minha palavra. Mas em Brasília não foi assim. Como diz aquele ditado popular: depois de porta arrombada não adianta tranca de ferro; depois de abrirmos uma, duas exceções, até onde podemos ir? Era maio de 2017 e eu trabalhava como Chefe de Comunicação no gabinete do Deputado Francischini, do Paraná, quando Maria Júlia me mandou uma mensagem com uma imagem. Era um gatinho lindo, de menos de um mês, que estava para adoção. Parecia um tigrinho, uma graça mesmo. O texto dizia: Mãe, posso ficar com ele? Ah! Mãe, deixa, por favor! E depois, ela acrescentava: pensa com carinho sobre isso, tá? Nem tive tempo de pensar, embora saiba que não saberia devolver um bichinho depois que ele estivesse em nosso apartamento, convivendo conosco. Ao chegar em casa, o gatinho já estava lá, no quarto da Júlia, 52 dentro de uma caixa de papelão. Sou coração mole mesmo e não consegui devolver o gatinho. Em poucos minutos, eu já estava escolhendo o nome dele com meus filhos. Já que Maria Júlia o tinha trazido para casa e ela estava cursando Psicologia, sugeri vários nomes de psiquiatras, psicólogos e psicanalistas famosos. Piaget, Pinel, Freud, Lacan... Lacan seria, afinal! Bernardo aprovou o nome. Novamente, teríamos de fazer uma intermediação entre gato e cachorro. O novo gatinho, no entanto, lidava de outra forma com a aproximação do Brioche. Enquanto Oliver sibilava e se preparava para o ataque, Lacan apenas chorava. Isso mesmo! Lacan era dramático. Briochenão podia sequer se aproximar que Lacan fazia um som de choro. Riamos muito. Brioche não fazia nada, absolutamente nada, e Lacan reagia dessa maneira. Portanto, entre esses dois não foi difícil a aproximação. Em pouco tempo, Lacan não dava a mínima para o Brioche e, coincidentemente, Brioche tinha fixação era pelo Oliver mesmo, seu gatinho preto. Quando parecia que a parceria cão e gatos estava formada, eis que surge um novo membro. Em uma madrugada de janeiro de 2018, madrugada extremamente quente, Júlia e eu ouvimos um miado, que vinha do outro lado da rua, no prédio em frente ao nosso. Olhei pela janela e vi um gatinho cinza, de mais ou menos três meses, ainda bem pequeno, no meio da rua. Com medo de que ele fosse atropelado, pedi para Maria Júlia descer e levar ração para ele. Ju estava só de pijama, mas eu disse que tudo bem, que ela não precisava trocar de roupa. Não havia ninguém na rua naquela hora. Era para ir bem rápido, deixar a ração para o gatinho e voltar. Todavia, apareceu outro gato, bem maior do que o primeiro, e Maria Júlia se dividiu entre um e outro. Era só para ela botar ração para os gatinhos e 53 voltar, mas ela estava demorando. Vi quando ela entrou no prédio e o gatinho cinza a seguiu. Pensei: - Eta, Maju vai querer ficar com esse gato. Dito e feito! Quase cinco minutos depois de ficar esperando por ela, decidi ver o que estava acontecendo. Moramos no 3º andar e desci as escadas à sua procura. Ela estava sentada nas escadas do térreo, com o gatinho no colo. Fez uma cara de expectativa ao me ver se aproximar e disse: - Mãe, eu não sei o que fazer. Sei que você não vai aceitar mais um gato, então, não sei o que faço. Eu disse: - Vamos levá-lo pra casa, Maju. Eu já esperava por isso. Estava pressentindo que você iria pedir para ele ficar conosco. E assim foi! De repente, de um gato adotado passamos a ter três e um cachorro. Só que desta vez, acreditávamos que era uma gatinha. Mais complicado ainda. E para escolher o nome foi outra maratona: como já tínhamos os nomes franceses Brioche e Lacan, queríamos manter a tradição. Tínhamos de escolher nomes femininos desta vez. Concordamos com Piaf. A cantora francesa Edith Piaf era fantástica e merecia nossa homenagem. Piaf seria. Era hora, então, de vacinar os gatos e o Brioche. Aliás, já tinha passado da hora. Demorei um pouco para tomar essa atitude, mas com três gatos em casa, ela deveria ser tomada. Chamei Isabelle, veterinária de uma clínica da Asa Norte, para vacinar os gatos em casa. Isso quase duas semanas depois de Piaf ter se juntado aos outros. E a surpresa foi grande: não tínhamos uma gatinha. Era mais um gato. Desta vez, erramos feio! De 54 Piaf, nosso gatinho passou a se chamar Prince, uma homenagem a outro cantor, mas desta vez norte-americano. “Mãe, estou namorando” No início de junho de 2017, Bernardo chegou em casa numa sexta- feira à noite com uma grande novidade: - Estou namorando! Maria Júlia e eu ficamos em choque, sem reação por alguns segundos, olhando uma para a outra. Por fim: - Como assim? Disse a irmã. Me conta tudo, acrescentou ela. Então, com toda tranquilidade do mundo, Bernardo explicou como tudo tinha acontecido. Há cerca de uma semana, ele soube por amigos que uma menina do 1º ano, Mallena, estava interessada nele. Pouco tempo depois de saber disso, uma amiga dela o procurou e perguntou se ele gostaria de conversar com ela. Ele disse que sim e, uma semana depois, na hora do recreio, a amiga em questão procurou Bernardo na hora do recreio e disse que Mallena gostava muito dele. Sem perder tempo e sem fazer rodeios, ele perguntou se ela gostaria de namorar com ele. Diante da afirmativa, eles se beijaram ali mesmo, com direito a abraço demorado depois do beijo. Ao ouvir esse relato, eu sentia um misto de surpresa, de felicidade, de excitação, de suspense. Sempre tive muito medo desse dia, o dia que meu filho estivesse interessado em alguém e tivesse de tomar a iniciativa do relacionamento. 55 Sempre tive medo de que esse dia chegasse, ele precisasse da minha ajuda, e eu não pudesse ajudá-lo, não soubesse o que dizer a ele ou dissesse algo que só dificultasse ainda mais a aproximação dos dois. Não queria que ele fracassasse na primeira tentativa e isso o marcasse a partir de então, tornando mais difícil o envolvimento em futuros relacionamentos. Talvez eu tenha imaginado sempre o pior para que, estando preparada para ele, pudesse lidar bem com qualquer resultado um pouco menos desfavorável. Definitivamente, não imaginei que seria tão fácil. Isso nunca passou pela minha cabeça. Tudo é sempre tão complicado no autismo. Tarefas corriqueiras do dia a dia se tornam verdadeiras batalhas quando o autismo está envolvido. Falar, comer, dormir, tomar banho, ir para a escola, brincar com os amigos, tudo que flui naturalmente em uma criança sem autismo é motivo de angústia, de incertezas e de muita, muita luta para que aconteça com os autistas. Por que esse aspecto da vida do meu filho seria fácil, então? A irmã fez várias brincadeiras a respeito do “namoro”, debochando, inclusive, da incompetência dela nessa área: - Be, como assim? Como você pode namorar antes de mim? Eu que deveria estar namorando, não você! Eu fazia coro! - É mesmo, Bernardo, sua irmã vai a todas as festas da faculdade, sai direto com as amigas e nada. Você, que só vai ao colégio, arruma namorada? Como pode? E riamos os três, comemorando mais uma conquista na vida dele que, nitidamente, sentia-se orgulhoso e animado. 56 - Viu, minha filha, do que adianta ir a tantas festas e paquerar tanto se o seu irmão, que não sai de casa, consegue namorar? Eu insistia, reforçando a autoestima dele. - Vou proibi-la de ir a festas! Conclui. Uma sensação boa, de que tudo se ajeita com o tempo, tomava conta de mim. A verdade é que nem tudo tinha que ser custoso para meu filho. Ainda bem! III – BE ABRE MÃO DAS CONTAS PARA ENTRAR NA FACULDADE Em uma caminhada comigo e com a irmã no Parque do Sudoeste, no início de 2017, expliquei ao Bernardo que ele poderia entrar na faculdade por meio das cotas para deficientes. Embora eu não o considere mais autista clássico (ele reverteu praticamente todos os sintomas e tem uma vida cheia de escolhas e de possibilidades), essa não é a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e dos médicos, que consideram a doença incurável. Dessa forma, meu filho tem alguns direitos que, em tese, facilitariam seu acesso aos estudos e ao mercado de trabalho. No entanto, esses direitos surgiram há bem pouco tempo e ainda existem lacunas importantes a serem preenchidas. Muitas vezes, a intenção é até nobre, mas falta entendimento sobre o assunto para que a política pública realmente se torne efetiva. Nós, pais de autistas, lutamos diariamente para que as leis para autistas sejam cumpridas e para que haja menos preconceito em relação a 57 eles. As cotas para deficientes ingressarem no ensino superior é uma iniciativa nobre, mas no caso dos autistas, se não houver alguém que os oriente na hora da prova ou se o tempo de duração da prova não for flexível (normalmente eles precisam de mais tempo para fazerem as provas) ou se as dúvidas não forem esclarecidas, de nada adiantará esta iniciativa. Será perda de tempo. É preciso haver adaptação entre as necessidades dos autistas e a realização do exame. Há muito ainda a ser feito. Como disse anteriormente, ao mencionar para meu filho o direito que ele tinha de ingressar na universidade por meio de cotas, ele disse: - Mãe, eu não vou entrar por cotas não. Eu sou como todo mundo. Vou estudar e passar como todo mundo! A irmã fixou extasiada: - Como eu tenho orgulho de você! Disse. E o abraçou com força. E acrescentou: - Esse é o meu menino! Realmente, Be nos surpreendeu. Fiquei emocionada
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