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A_VIDA_COM_AUTISMO-final

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A VIDA COM AUTISMO
Luciana Mendina 
Prefácio de Alfredo Jerusalinsky
1 
 
 
 
 
 
 
 
A vida com autismo 
Os desafios da adolescência e da vida adulta de Bernardo Martínez, 
diagnosticado com autismo quando tinha um ano e onze meses 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico este livro à minha prima 
Kika, exemplo de resiliência e de 
superação. Para você, todo meu 
respeito, admiração e carinho. 
 
 
 
3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação 
(duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida” (Carlos 
Drummond de Andrade) 
 
 
4 
 
Não poderia haver pessoa mais indicada para escrever o prefácio deste 
livro do que o Dr. Alfredo Jerusalinsky. O tratamento que ele e Eda 
Tavares ofereceram ao meu filho foi o diferencial na sua vida. Hoje, Be 
reverteu praticamente todos os sintomas do autismo e desfruta de uma 
vida plena, cheia de realizações e de opções. Minha gratidão eterna a 
estes dois psicanalistas. 
 
 
PREFÁCIO 
SEM”COTAS” PARA VIVER A VIDA 
 Este não é um manual de psicopatologia sobre autismo. Tampouco é 
um manual de condutas ou prescrições para lograr que autistas se 
comportem de acordo com o standard social. É um testemunho de como é 
possível construir um ser capaz de saber e de amar ali onde seu organismo 
e sua circunstância se opõem ferrenhamente a que ele aceite se relacionar 
precisamente com aqueles que constituem a fonte desse saber e desse amor. 
 É a história de uma luta contra essa muralha de rigidez e negativa 
que caracteriza o autismo. É o relato de anos de laboriosa procura de 
algumas brechas ou janelas que permitam enlaçar esse ser a um campo de 
5 
 
discurso onde ele possa ser sujeito capaz de dizer e defender o que ele sente 
e deseja. 
 Assistimos, no primeiro livro de Luciana Mendina, ao relato de toda 
a etapa infantil da evolução de Bernardo. Tempo em que percebíamos o 
quanto, na costura de cada gesto e no enlace de cada letra com o Outro 
(encarnado em sua mãe, sua irmã Maria Júlia, e seus psicanalistas), ele 
demandava com seu olhar oblíquo e translúcido: “não desistam de mim”. 
 Nesse segundo livro, testemunha-se a aventura de viver no mundo 
para alguém que tem que defender sua dignidade a cada passo. Necessidade 
que emerge de insignificantes traços de estranhamento, resíduos de quem 
atravessou uma dura guerra contra a mais radical solidão e contra uma 
insistente ameaça de exclusão social. Essa é a razão pela qual Bernardo 
recusa se amparar nas cotas de exceção para conquistar seu lugar na 
Universidade, ou seja, demanda seu direito a que seu modo de pensar e 
operar no mundo seja reconhecido como legítimo. Essa é também a razão 
pela qual Bernardo agradece a sua mãe e sua irmã: “Obrigado por não 
terem desistido de mim”. 
 
Alfredo Jerusalinsky 
Em Porto Alegre, 17 de agosto de 2020. 
6 
 
INTRODUÇÃO 
I - AUTISMO 
Mas o que é o autismo, afinal? 
Maior incidência em meninos 
O mito do retardo ou da genialidade 
Epidemia de autistas? 
Um jeito de ver a vida? 
Os autistas também crescem 
 
II - BERNARDO NA ADOLESCÊNCIA 
Necessidade de mais amigos 
Bernardo encontra um esporte pra ele 
E se? 
Último degrau para o Ensino Médio 
Mais conquistas no Ensino Médio 
Maior coração do mundo 
Um menino exigente... 
...e surpreendente 
Ghandi e Brioche: mais responsabilidades 
Mais bichos à vista 
Mãe, estou namorando! 
 
III - BE ABRE MÃO DAS COTAS PARA ENTRAR NA UNIVERSIDADE 
PAS – Programa de Avaliação Seriada 
Uma linguagem ainda formal 
Certo X Errado 
7 
 
Pronomes, concordâncias e afins 
Participação em eventos sobre autismo 
Outra carta de aniversário 
Maria Júlia faz 19 anos 
Mais um Dia das Mães 
Diretor da Juventude Asperger do MOAB 
 
IV – BERNARDO PASSA PARA UNB SEM COTAS 
Despedida 
Bernardo nos dá um susto 
Meu filho faz 19 anos 
Bernardo no Tinder 
De Licenciatura para Bacharelado 
Aprender a dizer não 
Visita ao túmulo do meu marido 
Novamente em Brasília 
Paixão: imortal tricolor 
Meu filho quer trabalhar e dirigir 
Mais uma luta à vista 
Volta para Porto Alegre 
 
V – 2020: UM ANO QUE VAI ENTRAR PRA HISTÓRIA 
Aniversário atípico: Bernardo faz 20 anos em meio à Pandemia 
 
 
8 
 
 
INTRODUÇÃO - 
Em dezembro de 2009, em uma conversa com Dr. Alfredo 
Jerusalinsky e Dra. Eda Tavares, soube que meu filho Bernardo, então com 
nove anos, teria alta do tratamento de autismo. Depois de pouco mais de 
sete anos de tratamento psicanalítico ininterrupto – nos primeiros três anos 
as consultas eram diárias, sendo depois desse período espaçadas para três 
vezes por semana e, por fim, nos últimos dois anos, passaram a ser duas 
vezes por semana – meu filho não precisaria mais de nenhuma intervenção 
terapêutica, nem mesmo de eventuais sessões de acompanhamento. 
É verdade que aqueles sete anos de tratamento foram marcados por 
altos e baixos, alguns fracassos temporários e muitas comemorações, mas o 
saldo foi mais do que positivo: Bernardo estava curado do autismo. Cabe 
aqui uma observação: quando digo que meu filho está curado do autismo, 
eu me refiro aos sintomas incapacitantes do transtorno, que o impediriam 
de ter uma vida plena de escolhas, sintomas como isolamento, inadequação 
social, ecolalia, flapping, rocking e dificuldades na linguagem e na 
aprendizagem. Isso tudo ficou no passado! 
Diagnosticado com o transtorno pela equipe multidisciplinar do 
Centro Lydia Coriat quando tinha apenas um ano e onze meses, coordenada 
pelo Dr. Alfredo Jerusalinsky, o diagnóstico precoce foi essencial para sua 
“cura”, assim como a inclusão social (Bernardo sempre cursou escolas 
regulares de ensino) e o tratamento psicanalítico. Com essas três 
ferramentas, foi criado um ambiente propício para que meu filho se 
desenvolvesse psíquica e socialmente. Esse tripé – diagnóstico precoce, 
tratamento clínico e inclusão social – pode ser o grande diferencial para a 
obtenção ou não da cura dos principais sintomas do autismo e para uma 
9 
 
melhora significativa de suas vidas, já que o Transtorno do Espectro 
Autista (TEA) abrange desde autistas leves até severos, estes últimos mais 
comprometidos em muitos aspectos, o que pode impedir, mesmo com o 
tratamento adequado, que alguns sintomas sejam revertidos. 
Em abril de 2015, publiquei o livro O Autismo tem cura?, no qual conto a 
história de Bernardo desde o nascimento até seus quatorze anos, no 
penúltimo ano do ensino fundamental. 
Passados mais de dez anos da alta do tratamento do Bernardo em 
2009, senti necessidade de compartilhar com leitores uma fase dos autistas 
pouco explorada até agora: a vida extrafamiliar daqueles que superaram o 
autismo e seus desafios em busca de independência social, afetiva e 
profissional. 
Quando obtive o diagnóstico de autismo do meu filho, não 
imaginava que ele poderia chegar tão longe e em tão pouco tempo. Apesar 
de ter começado a falar somente com seis anos, ele recuperou esses anos 
rapidamente, adaptando-se bem aos colégios por onde passou, fazendo 
amigos, reduzindo ou revertendo totalmente alguns sintomas, aprendendo a 
administrar outros sintomas e, o que é fundamental, sentindo-se livre para 
falar sobre suas angústias, dúvidas e inseguranças. Aos vinte anos recém-
completados, ele é um rapaz falante, sociável, cheio de amigos. 
O cenário social e educacional dos últimos anos também mudou 
significativamente. 
Há dezoito anos, a maioria das informações disponíveis sobre 
autismo eram desanimadoras. Havia muitas notícias pessimistas, muitos 
pais revoltados com tratamentos e com médicos e a crença de que o 
autismo era uma sentença. Desisti de participar de qualquer grupo naquela 
época. Não queria ficar me lamentando pelo fato de meu filho ser autista 
10 
 
nem tampouco travar uma briga com médicos etratamentos. Muito pelo 
contrário. Queria que a história do meu filho fosse totalmente diferente, que 
os médicos acertassem nas terapias, que meu filho evoluísse no tratamento 
e que ele fosse tão longe quanto pudesse. E antes de mais nada, não queria 
me tornar uma pessoa amarga e descrente. 
Em 29 de março de 2017, houve importante conquista para milhões 
de bebês brasileiros que poderiam vir a se encontrar com obstáculos para 
seu desenvolvimento e sua saúde mental, entre eles também os autistas: a 
aprovação do PL 5501/13, que se tornou a Lei 13.438/17, conhecida como 
“Lei da Detecção Precoce”. 
Inicialmente, este projeto de lei foi uma sugestão minha para a 
senadora Ângela Portela, que a aceitou de imediato e apresentou o PLS 
451/11, que altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da 
Criança e do Adolescente), para tornar obrigatória a adoção, pelo Sistema 
Único de Saúde, de protocolo que estabeleça padrões para avaliação de 
riscos para o desenvolvimento psíquico das crianças. 
Depois de aprovado em duas comissões do Senado, o projeto foi para 
a Câmara dos Deputados. Em fevereiro de 2017, ao iniciar meu trabalho de 
assessora de imprensa com o Deputado Delegado Francischini, sugeri que 
ele relatasse o projeto, o que beneficiaria, especialmente, milhões de 
autistas brasileiros. Foi o que ele fez. Por ter um filho autista, o também 
Bernardo, que à época tinha seis anos, o autismo também passou a ser uma 
das causas de Francischini. 
Aprovada por unanimidade no plenário da Câmara, esta lei pode 
colocar o Brasil na vanguarda dos países que realmente se preocupam com 
a saúde mental de seu povo. E sem custo significativo adicional já que 
11 
 
existe um protocolo de fácil aplicação – criado por cientistas brasileiros1 a 
ser adotado pelo SUS. Inclusive, este protocolo já consta na Cartilha da 
Atenção Básica ao TEA do Ministério da Saúde. São perguntas e 
observações feitas durante as consultas habituais de acompanhamento 
fáceis de serem respondidas, feitas pelo pediatra, o agente de saúde ou 
educadores – devidamente treinados em breve curso de capacitação - desde 
o nascimento do bebê até 18 meses de vida, endereçadas aos pais ou aos 
cuidadores da criança. 
LEI Nº 13.438, DE 26 DE ABRIL DE 2017. 
Vigência 
Altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 
(Estatuto da Criança e do Adolescente), para 
tornar obrigatória a adoção pelo Sistema 
Único de Saúde (SUS) de protocolo que 
estabeleça padrões para a avaliação de riscos 
para o desenvolvimento psíquico das crianças. 
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu p 
Art. 1º O art. 14 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do 
Adolescente), passa a vigorar acrescido do seguinte § 5º : 
“Art. 14. ........................................................................ 
............................................................................................. 
§ 5º É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de 
vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em 
consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento 
psíquico.” (NR) 
Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos cento e oitenta dias de sua publicação 
oficial. 
Brasília, 26 de abril de 2017; 196º da Independência e 129º da República. 
MICHEL TEMER 
Osmar Serraglio 
Luislinda Dias de Valois Santos 
Este texto não substitui o publicado no DOU de 27.4.2017 
 
1 O IRDI (Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil) construído mediante uma pesquisa que 
se estendeu de 2000 até 2009, sediada na USP e apoiada e aprovada pelo CNPq, FAPUSP, Coordenada a 
nível nacional pela Dra. Cristina Kupfer e tendo como coordenador científico o Dr. Alfredo Jerusalinsky. 
http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2013.438-2017?OpenDocument
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13438.htm#art2
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art14%C2%A75
12 
 
I – AUTISMO 
Mas o que é o autismo, afinal? 
 Considerado uma disfunção global do desenvolvimento, o autismo 
afeta a capacidade de comunicação, de socialização e de comportamento da 
criança; faz parte de um grupo de síndromes chamado transtorno global do 
desenvolvimento (TGD). Dentro desta categoria, recorta-se um conjunto de 
problemas psíquicos mais graves, que recebe o nome de transtornos 
invasivos do desenvolvimento (TID) ou pervasive development disorder 
(PDD). É dentro deste conjunto que se encontra o autismo. 
Recentemente, foi adotado o termo Transtorno do Espectro Autista 
(TEA, dentro do TID), que engloba o autismo clássico, a síndrome de 
Asperger, a síndrome de Rett e o transtorno desintegrativo da infância. Isso 
agrega um vasto e heterogêneo conjunto de sintomas que autorizam o 
diagnóstico de autismo acerca do qual, hoje, há consenso de sua pouca 
confiabilidade. Em uma espécie de “confissão” da pobreza conceitual de tal 
metodologia diagnóstica – que impede atribuir uma condição específica a 
cada tipo de autismo – costuma-se adotar, junto ao diagnóstico assim 
proferido, a expressão SOE (Sem Outra Especificação). 
O TEA (transtorno de espectro autista), porém, permite que o 
transtorno seja graduado desde o autismo mais leve até o mais severo, cuja 
cura, neste último caso, é muito difícil de ser obtida. Nos últimos vinte 
anos, os critérios de inclusão de crianças dentro da categoria de autismo 
diversificaram-se e ampliaram-se, causando uma espécie de epidemia 
artificial, já que os critérios do TEA abrangem desde as manifestações 
patológicas mais graves (autistas completamente desligados de seu entorno 
e governados por automatismos e autoagressões incontroláveis) até 
crianças neuróticas normais (que recusam o contato com seus semelhantes 
e são irritáveis e agitadas, ou meramente crianças fóbicas). 
13 
 
Segundo a Austism Society of America (ASA), os autistas apresentam 
pelo menos metade das características a seguir: 
1. Dificuldade de relacionamento com outras pessoas; 2. Pouco ou 
nenhum contato visual; 3. Rotação de objetos; 4. Riso 
inapropriado; 5. Aparente insensibilidade à dor; 6. Preferência pela 
solidão; modos arredios; 7. Ecolalia; 8. Age como se estivesse 
surdo; 9. Inapropriada fixação em objetos; 10. Acessos de raiva; 
11. Não faz referência social; 12. Desorganização social; 13. 
Irregular habilidade motora; 14. Dificuldade em expressar 
necessidades; 15. Procedimento com poses bizarras; 16. Não tem 
real medo do perigo; 17. Perceptível hiperatividade ou extrema 
inatividade; 18. Ausência de resposta aos métodos normais de 
ensino; 19. Insistência em repetição desnecessária de assuntos, 
resistência à mudança de rotina; 20. Recusa colos ou afagos. 
Destes sintomas, os mais perceptíveis no Bernardo eram a dificuldade 
de relacionamento com outras pessoas que não eu, o pai e a irmã (em 
alguns momentos, relacionava-se com minhas irmãs, meus tios e minhas 
primas); pouco ou nenhum contato visual (só olhava nos meus olhos, e de 
forma fixa, sem manter qualquer contato visual com mais alguém); e o 
isolamento (preferia ficar no canto do quarto ou na sala de televisão, 
afastado das pessoas). 
Comumente, Bernardo ficava em um canto na sala de televisão, 
segurando e rodando lápis e canetas, o que configurava a rotação de 
objetos; a ecolalia também era muito frequente: imitava sons, repetia frases 
de desenhos animados e de propagandas na televisão (isso quando começou 
a falar, o que demorou a acontecer); resistia à mudança de rotina, 
preferindo ir aos mesmos lugares, comer as mesmas comidas e ficar em 
casa em vez de sair. 
14 
 
Não queria dormir fora de casa de jeito nenhum, mesmo que a irmã e 
eu estivéssemoscom ele. No final do dia queria voltar para casa. Era muito 
apegado às rotinas. Nesse sentido, houve notável melhora, mas ele continua 
apegado às rotinas, só não mais a ponto de prejudicá-lo. Há mais 
flexibilidade e ponderação. 
Até os quatro anos, ele ria de forma estereotipada e sem nenhum 
motivo aparente. De repente, soltava gargalhadas mecânicas: “ha ha ha”. 
Nenhum fato engraçado. Nada justificava a risada. Era um riso fora de 
lugar. Como todo o resto. 
Dos sintomas listados acima, Bernardo não apresenta mais nenhum 
deles, embora tenha um comportamento considerado “excêntrico” em 
algumas situações; até essa excentricidade vem decrescendo ao longo dos 
anos. 
Era de se esperar que alguns resquícios do autismo permanecessem e, 
só com o tempo, fossem completamente revertidos. O que posso garantir é 
que autista meu filho não é mais. Pode ser considerado excêntrico, 
diferente, raro, mas não autista. E isso, repito, incomoda os médicos que 
não sabem mais como “classificá-lo”. 
 
 
Maior incidência em meninos 
É fato: o autismo é mais comum em meninos do que em meninas. A 
incidência de autismo em meninos é quatro vezes maior do que em 
meninas. 
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os distúrbios 
de desenvolvimento neurológico - como deficiência intelectual, distúrbio 
15 
 
específico de linguagem, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade, 
epilepsia e autismo - afetam uma em cada seis crianças em países 
industrializados. Estudos mostram que há de 30% a 50% mais meninos que 
sofrem destas doenças do que meninas. 
Um estudo divulgado em 2014 pelo Hospital da Universidade de 
Lausanne, na Suíça, apontou como causa dessa maior incidência o 
funcionamento diferente do cérebro feminino, cujas alterações requerem 
alterações mais extremas do que o cérebro masculino para produzir os 
sintomas do autismo. 
“Este foi o primeiro estudo que demonstrou uma diferença em nível 
molecular entre meninos e meninas no que se refere ao desenvolvimento de 
uma deficiência neurológica”, disse, em um comunicado, Sébastien 
Jacquemont, pesquisador do hospital e autor do trabalho. 
Ainda segundo ele e Evan Eichler, pesquisador da Universidade de 
Washington, em Seattle, o estudo sugere que há um nível diferente de 
robustez no desenvolvimento do cérebro, e as meninas parecem ter uma 
vantagem clara. 
Para compreender a diferença de gênero, o estudo comparou a 
frequência de alterações genéticas em cerca de dezesseis mil crianças com 
transtornos do desenvolvimento neurológico. 
O resultado mostrou que as meninas diagnosticadas com alguma 
disfunção do desenvolvimento neurológico ou transtorno do espectro 
autista tiveram um número muito maior de mutações, o que demonstra que 
o cérebro feminino requer alterações mais extremas que o masculino para 
produzir os sintomas. 
16 
 
Para o psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São 
Paulo (USP), Guilherme Polanczyk, é cedo para conclusões. Ele concorda 
que existe sim uma questão de gênero neste assunto. “Sem dúvida há uma 
questão de sexo nisto. O próprio autismo e o TDAH - transtorno do déficit 
de atenção com hiperatividade- são mais comuns em meninos. Mas, após a 
puberdade, distúrbios de ansiedade e depressão ficam mais comuns em 
mulheres. Acho que temos um caminho aí que pode nos levar a boas 
descobertas”, disse. 
Polanczyk afirmou, no entanto, que embora os dados mostrem que as 
meninas precisavam apresentar mais mutações para manifestarem os 
sintomas dos distúrbios, o “modelo protetor” é ainda apenas uma 
especulação. “Acho a explicação plausível, mas ainda é preciso fazer mais 
replicações deste tipo de estudo para ter certeza”, esclareceu o psiquiatra. 
 
 
O mito do retardo ou da genialidade 
Faltava descobrir se Bernardo tinha algum retardo mental. Estava 
alarmada com essa possibilidade. Fiquei aliviada ao ser informada pelo 
Dr. Alfredo de que o QI (coeficiente de inteligência) do Bernardo é 
normal. Ele não possuía nenhum tipo de retardo mental, mas também não 
era nenhum gênio. 
Engraçado foi perceber que, para alguns pais, é mais fácil aceitar o 
autismo se o filho for diagnosticado como Asperger, já que isso 
significaria que a criança é superdotada, com uma inteligência acima da 
média. Felizmente, nunca considerei o meu filho gênio nem preferiria que 
ele fosse Asperger. 
17 
 
Em algumas ocasiões, conhecidos e amigos chegaram a afirmar que 
sua inteligência era acima da média, coisa que sempre discordei, pois sei 
que meu filho é inteligente, mas sua inteligência está dentro da média. 
Um QI mais alto não garante maior capacidade de ser feliz ou mais 
sucesso e realizações na vida. Aliás, um QI mais alto não garante 
praticamente nada e, não raro, é a causa de muitos conflitos, sejam eles 
afetivos ou psíquicos. 
Há uma discrepância enorme de dados quando o assunto é retardo 
mental. Chegou-se a acreditar que 70% dos autistas tinham algum tipo de 
retardo, o que é um absurdo. Feitas as devidas correções, hoje sabe-se que 
o percentual chega no máximo a 10%, 12% e, mesmo assim, trata-se de 
um leve retardo. 
A origem da confusão estava na dificuldade de se separar 
características “semelhantes” encontradas em crianças que tinham retardo 
mental e crianças autistas, o que levou muitas crianças que tinham apenas 
retardo mental a serem consideradas autistas. Daí a falácia do percentual 
de 70%. 
Em relação aos autistas com algum tipo de genialidade (normalmente 
diagnosticados com Asperger), esse número também é bem abaixo da 
crença popular, com percentual em torno de 5% a 6%. 
A esmagadora maioria é formada por crianças com inteligência 
dentro da média, que precisam de estímulos diários para desenvolver suas 
potencialidades. 
 
 
 
 
18 
 
Epidemia de autistas? 
Na década de 80, a Associação Psiquiátrica Americana tornou mais 
abrangentes os parâmetros para diagnóstico do autismo e, com isso, os 
EUA viveram uma campanha de informação massiva. Até então, a maioria 
dos médicos americanos tinha a mesma imagem estereotipada que nós, 
brasileiros, tínhamos, e cuja mudança, no nosso caso, se deu recentemente, 
mais precisamente de dez a quinze anos para cá. 
Antes, os médicos americanos consideravam autista apenas a pessoa 
totalmente incapaz de interagir socialmente; não se falava em espectro 
autista, muito menos nas graduações do autismo em leve, médio e severo. 
Com as novas normas, contudo, o número de casos aumentou 
consideravelmente, representando um “boom” nas estatísticas, e o autismo 
passou, inclusive, a ser tratado pela Mídia como uma epidemia. 
É importante frisar que esse “boom” foi resultado, basicamente, da 
ampliação dos critérios usados para se estabelecer se uma criança era 
autista ou não. Dessa forma, passou-se de um extremo a outro: se antes o 
número de autistas não era confiável por não levar em consideração os 
tipos de autismo mais leves, agora não é confiável por considerar qualquer 
alteração comportamental como um indício de autismo. Passamos de um 
extremo para o outro. 
A flexibilização dos critérios foi a responsável pela diferença nas 
estimativas internacionais e pela profusão de diagnósticos de autismo. 
Logo, como ocorreu no EUA na década de 80, é a vez agora de o Brasil ter 
essa sensação de epidemia. 
Relevando os exageros, é louvável que haja maior conscientização da 
comunidade em geral e de pais, professores e médicos, em particular, o que 
viabilizará o diagnóstico precoce, amplamente defendido por mim. 
19 
 
Também merece destaque o fato de que, quanto maior a 
disponibilidade de informações sobre o distúrbio, mais possibilidade de 
inclusão social e de combate ao preconceito. 
Outro aspecto positivo é que as pessoas entendam a importância da 
terapia tanto para os casos graves da doença quanto para os casos leves, 
haja vista que, sem o diagnóstico adequado, corremos o risco de considerarapenas “esquisitas” ou “excêntricas” crianças que se beneficiariam muito 
com ajuda profissional. 
É provável que, nos próximos anos, haja um rearranjo, com a 
divulgação de estatísticas que reproduzam, com mais precisão, qual é o 
número real de autistas no mundo atualmente. 
 
 
Um jeito de ver a vida? 
Se há dez anos quase não tínhamos informações sobre autismo, hoje 
temos em demasia, o que pode ser bom por um lado e ruim por outro. Bom 
porque, finalmente, o autismo saiu do armário e ganhou espaço (merecido) 
na sociedade. Com isso, podemos trocar experiências, formular políticas 
públicas efetivas para nossos autistas, conhecer pessoas fantásticas que 
lutam pela assistência e pelos direitos dos autistas e diminuir o preconceito 
em torno do assunto. 
Mas é ruim na medida em que surgem também muitas fake news e 
desinformações. Com essa profusão de informações sem controle, sem um 
filtro que nos garanta comprovação científica ou bom senso, pais e mães 
são bombardeados constantemente com promessas de remédios milagrosos, 
com terapias alternativas sem nenhuma comprovação de sucesso e, ainda 
20 
 
mais preocupante, com uma idealização ou glamourização em relação ao 
transtorno. 
Autismo é assunto sério. Não é um “jeito de ver a vida” como 
algumas pensam tentam nos convencer. Tudo que um autista não consegue, 
quando o transtorno não é tratado clinicamente, é ver a vida. Meu filho só 
passou a “ver a vida” e a ter oportunidades e escolhas a partir do momento 
que os sintomas incapacitantes e de isolamento do autismo foram 
diminuindo e Be foi se constituindo como pessoa. Sim! Constituir-se como 
pessoa, separar-se dos demais, ter uma própria identidade é algo possível e 
desejável. Temos de lutar por isso. 
 
 
Os autistas também crescem 
Toda doença, síndrome ou transtorno crônicos ou permanentes 
trazem um novo desafio por si só: a idade. Com o passar dos anos, 
diferentemente de muitas doenças, ela não melhora ou não vai embora 
sozinha. O autismo é um transtorno permanente, embora com o 
tratamento adequado, o diagnóstico precoce e a inclusão social, ele possa 
praticamente deixar de existir. É o que ocorreu com meu filho. No dia a 
dia, quase nos esquecemos do seu transtorno. Bernardo vive uma vida bem 
“comum”, com afazeres domésticos, estudo, vida social, idas a aniversários 
e eventos, sonhos, frustrações, etc. 
Quando era criança, os desafios eram de uma ordem: aquisição da 
fala (linguagem), alfabetização, interação social (fazer amigos e ir a locais 
públicos sem se incomodar com barulhos e sem representar um perigo para 
si mesmo), independência funcional (largar as fraldas e ir ao banheiro 
21 
 
sozinho), comer com a própria mão, e por aí vai. Todos esses desafios 
foram superados. 
Na adolescência, surgiram outros, tais como adquirir mais 
subjetividade, especialmente na escola e em suas disciplinas, e na relação 
com amigos e com as pessoas em geral; variar sua alimentação, o que por 
sinal foi realizado com muito sucesso pois ele come de tudo hoje em dia, 
gosta de experimentar novos alimentos e não tem nenhuma frescura quanto 
a isso; fazer um esporte, sendo que o esporte em que ele se destacou foi o 
Judô, ganhando algumas medalhas e mantendo um bom relacionamento 
com o professor e com os outros competidores; namorar ou conhecer 
meninas que o interessassem, conversar sobre isso com seus amigos, sair 
com eles com a finalidade de conhecerem alguém, isso também aconteceu 
naturalmente e sem atropelos; terminar o Ensino Fundamental, ingressar no 
Ensino Médio e, mais tarde, preparar-se para a faculdade. 
Bernardo teve a tranquilidade necessária para dar esses passos. Em 
alguns momentos, sentiu-se inseguro quanto ao seu desempenho, é uma 
característica dele a de exigir-se demais. Em outras vezes, teve a 
autoconfiança necessária para seguir em frente sem pedir ajuda. O 
desempenho escolar foi muito acima do esperado por nós. Não faltava às 
aulas, tirava notas altíssimas, comunicava-se muito bem com todos à sua 
volta, conquistava a admiração de outros alunos e professores. Saldo mais 
do que positivo. 
Mas os autistas crescem, como eu já havia dito. Até este ponto em 
que Bernardo chegou, terminando o colégio e ingressando no mundo 
acadêmico, muitos também conseguiram chegar. Não tantos quanto 
gostaríamos. O objetivo de todos nós que nos envolvemos com a causa 
autista é aumentar ainda mais esse ingresso nas universidades nos próximos 
dez anos. 
22 
 
Nosso foco não é apenas a criança autista. Os adultos merecem toda 
nossa atenção e comprometimento. Precisamos propiciar meios de 
ingressos mais justos nas universidades, no mercado de trabalho, nas 
repartições do serviço público, além de sua capacitação para obterem 
carteira de habilitação, para se casarem e constituírem família. 
Sim! Tudo isso é possível de ser conquistado e tenho certeza de que 
é o desejo deles: serem aceitos e respeitados em todas as áreas de suas 
vidas. Os autistas leves têm plenas condições de obterem uma vida 
praticamente “normal”; os moderados terão mais dificuldades, mas 
estaremos ao lado deles para vermos até onde eles podem ir, e os severos 
precisam de ações efetivas para que quando seus pais não estiverem mais 
aqui, eles tenham condições de não apenas sobreviver no mundo, mas 
terem uma vida de qualidade, sem maus-tratos pela parte de estranhos, sem 
preconceito por parte da sociedade, sem negligência nos seus cuidados 
mais básicos. 
Em dezembro de 2016, o autista Isaías Costa, 18 anos, concluiu o 
Ensino Médio na Unidade Escolar Gervásio Costa, escola estadual de 
Teresina, Piauí. Segundo a diretora da entidade à época, Yonara Lustosa, a 
educação inclusiva começou a render bons frutos na escola. 
- Ele chegou na escola ainda na infância, cursou o Ensino 
Fundamental e ao longo de todos esses anos se empenhou e concluiu o 
ensino Médio. Isaías é muito interessado e contou com todo o apoio dos 
professores, da escola e da sua família, além de um acompanhamento 
especial. Essa foi uma grande conquista – finalizou. 
Mas é preciso fazer mais. Só 14% das vagas no ensino superior para 
alunos com deficiência foram ocupadas em 2016. No Rio Grande do 
Norte, Nataly Pessoa, autista, cursa Direito no Centro Universitário do Rio 
23 
 
Grande do Norte (UNI-RN). Ela tem um blog, o “Espaço Autista”, onde 
relata experiências, dificuldades e preconceitos. Nesse espaço, ela também 
promove debates na luta por direitos dos autistas. 
Em Santa Catarina, o Núcleo de Acessibilidade da UFSC participa 
desde 2013 do Projeto de Pesquisa Acessibilidade em Rede (da Capes). O 
objetivo é o mapeamento nacional em universidades federais de questões 
como acesso e permanência de estudantes com deficiência. Pretende-se 
com isso discutir as atuais condições de ensino e políticas públicas 
brasileiras. 
- Geralmente são os autistas de grau leve que chegam à 
Universidade, afirmou o professor de Psicologia da UFSC, Marcos 
Eduardo Lima. 
Enquanto a presença de autistas no ensino superior é garantida por 
lei, a inclusão de deficientes com retardo mental no Ensino Superior não é 
obrigatória, mas deve ser outra meta a médio prazo. Para isso, contudo, as 
universidades precisam estar prontas para acolher as diferenças e ser mais 
condescendente com as dificuldades de aprendizado que, inevitavelmente, 
surgirão. 
Para se ter uma idéia da gravidade do assunto, dos 6 mil alunos 
aprovados no vestibular da UFSC em 2014, apenas um declarou-se autista. 
Isso por que os candidatos que possuem algum tipo de deficiência ou 
necessidade especial podem solicitar a aplicação diferenciada do teste. No 
geral, os vestibulandos da UFSC com laudo de TEA solicitam apenas uma 
sala separada, de acordo com dados do Núcleo de Acessibilidade 
Educacional. 
Outro caso de superação é o de Eduardo Meneghel Barcellos de 
Souza, autista de 15 anos. Ele conseguiu liminar da JustiçaFederal para 
24 
 
que pudesse ingressar no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes). Eduardo 
participou do processo seletivo, fez prova para uma vaga em Agropecuária 
Integral, no campus de Alegre, mas como o instituto não dispõe de reserva 
de vaga nem de outro meio de inclusão para pessoas com deficiência 
previsto no edital, ele fez o processo na ampla concorrência e obteve 170 
pontos, ficando como suplente. A última candidata aprovada havia feito 
220 pontos. 
Quando soube da pontuação, Eduardo pensou em desistir: “Fiquei 
desanimado, mas meu pai falou que ia lutar por isso, e eu me animei. Como 
demorou muito, não estava achando que a gente ia conseguir. Mas a gente 
conseguiu. Agora estou ansioso para estudar”. 
O pai de Eduardo, Maurice Barcellos da Costa, é professor e 
desabafou sobre a desvantagem que seu filho teve em relação aos demais 
candidatos diante da deficiência que apresenta. “Candidatos cotistas foram 
aprovados uns com 110 pontos, outros com 140 pontos. Meu filho fez 170 
pontos. Ou seja, se ele tivesse acesso privilegiado de acordo com suas 
peculiaridades, Eduardo certamente teria sido aprovado”. 
 
 
II – BERNARDO NA ADOLESCÊNCIA 
Adolescência: necessidade de mais amigos 
Quando morávamos em Porto Alegre e Bernardo tinha vários 
sintomas do autismo, dos dois aos nove anos de idade, ele só tinha 
praticamente dois amigos: Caio e Eric. Meu filho conheceu Caio na creche 
Balão Azul, quando tinha quatro anos, e em pouco tempo ficaram bem 
25 
 
grudados. Caio tinha um temperamento tranquilo, apaziguador e se tornou 
intérprete do Be frente aos desafios diários. Estudaram juntos na creche e, 
anos mais tarde, no 1º ano do Ensino Fundamental no Colégio Bom 
Conselho. 
 Eric é filho de uma amiga minha, Cristiane Naiber, e também se 
dava muito bem com Bernardo. Com temperamento mais agitado, um 
menino curioso, Eric ia lá em casa e os dois brincavam muito, 
principalmente com dinossauros e com os personagens de Star Wars. Ele 
passava o dia todo lá em casa e era só diversão. Era raríssimo eles se 
desentenderem. 
Ao nos mudarmos para Brasília, Be precisou refazer todo seu círculo 
de amizades. Seus primeiros amigos na cidade foram Eduardo Godoi e 
João Felipe. Os três estudavam no Sistema Educacional Brasileiro (SEB) 
Dínatos Coc. Com o tempo, aos 14 anos, Be sentia necessidade de ter mais 
amigos e conversou comigo a respeito: 
- Mãe, como faço para ter mais amigos? 
Eu não tinha resposta para isso. Como fazer amigos é algo que 
simplesmente “acontece”, algo que não existe uma fórmula para se ter 
sucesso, pelo menos essa é a minha experiência, já que se você se esforçar 
demais o efeito será justamente o contrário, – você será um chato querendo 
agradar todo mundo – perguntei a ele se gostaria de ir a um psicanalista, 
que com certeza saberia melhor do que eu para aconselhá-lo. 
Ele aceitou minha sugestão, liguei para Dr. Alfredo Jerusalinsky em 
busca de uma indicação de terapeutas em Brasília e ele me sugeriu a Dra. 
Inês Catão que, além de psiquiatra, é psicanalista e especialista em autismo. 
Be se afeiçoou rapidamente à Inês. Engraçado foi assistir a irmã tentar 
arrancar algo dele depois das sessões. 
26 
 
- Be, sobre o que vocês falaram? Pode me contar, dizia ela. 
Bernardo dava risada e dizia: 
- Maju, eu não vou contar. É segredo nosso. 
Foi bom meu filho ter um espaço de fala só para ele. Falar e ser 
escutado sem nossa interferência é essencial para sua autonomia. Por ser 
muito apegado a nós duas, esse distanciamento é saudável e foi incentivado 
por nós. 
Suas amizades no Ensino Médio não se ampliaram tanto, afinal. 
Alguns novos amigos surgiram como o Gustavo e o Lucas. Antes, Eduardo 
e João Felipe monopolizavam a atenção dele. 
Esse assunto de fazer novas amizades deixou de incomodá-lo tanto 
quando ele percebeu que, atualmente, não convivemos tanto com os amigos 
quanto gostaríamos devido aos nossos afazeres domésticos e profissionais. 
Também expliquei a ele que o mais importante não é a quantidade de 
amigos e sim a qualidade, além do que, essencial mesmo é ter com quem 
contar, seja amigo, seja familiar, seja quem for. 
 
 
Bernardo encontra um esporte pra ele 
Em 2013, no sétimo ano do Ensino Fundamental, Bernardo começou 
a praticar judô. Foi a única modalidade esportiva que combinava com seu 
temperamento e aptidões. 
Com essa modalidade esportiva, Be conquistou três medalhas de 
prata e duas de ouro. Antes, ele praticou basquete por alguns meses, mas 
27 
 
não gostou da experiência. Dizia que “só servia para atrapalhar os 
adversários!”. A capoeira, segundo ele, também foi um desastre: 
- Mãe, o professor faltava com frequência! 
Ultimamente, tenho percebido um aumento significativo de autistas, 
sejam crianças ou adolescentes, que praticam judô. Talvez pela questão da 
disciplina, dos rituais, ele seja tão atraente para nossos filhos. Há vários 
projetos nessa modalidade sendo implantados nas cidades. Fico muito feliz 
que, cada vez mais, os autistas sejam incluídos na sociedade, ainda mais 
com uma inclusão tão saudável como essa. 
 
 
 
 
 
 
 
28 
 
E se? 
Havia uma época em que meu filho gostava de supor 
acontecimentos, na sua maioria, completamente absurdos ou irreais, e 
queria saber a minha opinião sobre eles. 
- Mãe, e se..........? 
Em outras situações, queria que eu escolhesse entre duas opções 
indesejáveis e estapafúrdias, sendo uma pior do que a outra: 
- Mãe, se você tivesse que escolher entre ser atirada em um vulcão ou ser 
esmagada por um avião, o que escolheria? 
- Como assim, Bernardo? Tá doido, meu filho? 
- Não. É sério! Você preferia ser atacada por um urso cinzento ou por um 
leão? 
- Eu preferia não ser atacada por ninguém, meu filho. Aliás, nem serei, pois 
ficarei bem longe desses bichos. 
- Tá, mas é só uma suposição – ele insistia. Se tivesse de escolher, qual 
você preferiria? 
Quando eu retribuía a questão, perguntando o que ele preferia, ele 
dizia que preferia ser atacado por um leão, pois este não tem a mordida tão 
pesada. É de apenas 400 kg, enquanto a mordida do urso cinzento é capaz 
de quebrar uma bola de boliche, segundo ele. Errata: Não sou um 
biólogo. Diante disso, recomendo cautela para quem estiver lendo isso. 
Seria bom se alguém especializado nesse assunto me alertasse. Eu 
certamente me confundi. Não me lembro de onde minha cabeça tirou a 
estimativa de força de mordida de 400 quilogramas para o leão 
(Panthera leo). Até onde estou sabendo, esse não é o modo devido de se 
29 
 
estimar a força de mordida de um bicho. No que diz respeito ao urso 
cinzento (Ursus arctos horribilis), fui informado por certas fontes na 
Internet dessa suposta informação na época em que disse isso. 
Recentemente, descobri que essa informação consta em uma página do 
canal televisivo National Geograhic (eis o link: 
http://www.natgeotv.com/int/expedition-wild/facts). Nela, é dito que a 
força de mordida do urso cinzento é de 8 000 000 Pascais. Essa é uma 
unidade de pressão. No entanto, não é dito na página o tamanho da 
superfície que foi utilizada como referência para esse valor. Levando-
se em consideração a resistência que uma bola de boliche pode ter 
(dependendo de sua qualidade), não consigo imaginar um urso 
cinzento quebrando uma bola de boliche com a força de sua mordida. 
Pelo que estou sabendo por meio de determinados artigos científicos, 
em termos proporcionais, leões tem forças de mordida maiores se 
comparados a ursos pardos (Ursus arctos). Para que um urso cinzento 
tenha uma força de mordida maior em relação a essa espécie de felino, 
ele deverá ser maior se comparado a este. 
E não parava por aí: 
- Mãe, se você tivesse que escolher entre ser picado por uma vespa 
mandarina ou por uma vespa caçadora de tarântulas, o que você preferiria? 
Sem ter a menor idéia do que responder, chutei: 
- Por uma vespa mandarina! 
Respostaerrada para variar. Be disse que seria melhor ser picado por 
uma vespa caçadora de tarântulas pois, apesar de ter a segunda picada mais 
dolorosa entre todos os insetos (não me pergunte qual é a primeira), ela usa 
sua picada apenas para paralisar a presa, ao contrário da vespa mandarina, e 
http://www.natgeotv.com/int/expedition-wild/facts
30 
 
não causa número significativo de mortes, tendo um comportamento mais 
calmo. São mais solitárias e menos agressivas. 
Em uma sexta-feira chuvosa de março de 2015, tomando chimarrão 
juntos, Bernardo inicia a conversa: 
- Mãe, eu sinto que minha capacidade cerebral está sendo reduzida! 
Não dei muita atenção. Em outro momento, anterior a este, ele tinha 
me falado que estava com problemas no seu “sistema nervoso”. Ah! Não. 
Que mania de doenças. 
Soube depois que Be tinha lido na Wikipedia que um dos sintomas 
do autismo é retardo mental e que ficou com medo de ter esse sintoma. Eu 
o tranquilizei. Ele é um menino inteligente, fora de série, e não tem 
qualquer comprometimento intelectual. Às vezes, tudo que ele precisa 
nesses instantes de insegurança é de reafirmação. E, nessas horas, eu estou 
pronta para tranquilizá-lo. 
 
 
Último degrau para o Ensino Médio 
Bernardo ficou apreensivo com a proximidade do Ensino Médio. À 
medida que o tempo passava, ele parecia cada vez mais preocupado com 
seu desempenho escolar e demonstrava insegurança quanto ao futuro. 
Seu principal medo era de que o nono ano do Ensino Fundamental 
fosse muito mais difícil do que o oitavo ano tinha sido (ele nem o 
considerou desafiador) e que ele não conseguisse manter as notas altas dos 
anos anteriores. A irmã e eu o tranquilizamos. Até aquele dia nem 
recuperação ele tinha feito. Por que todo esse medo? 
31 
 
Cada nova fase da vida de meu filho tem sido vivida e ultrapassada 
com facilidade, apesar de em alguns momentos ter sido essencial a ajuda da 
irmã e a minha. Sem dúvida a irmã tem sido seu ponto de apoio. Apesar da 
insegurança, Bernardo não teve qualquer dificuldade para terminar o nono 
ano e entrar no Ensino Médio. 
 
Mais conquistas no Ensino Médio 
Pouco antes de as aulas do Ensino Médio começarem, Bernardo 
ficou ansioso e externou várias vezes preocupação em não corresponder às 
expectativas e não conseguir acompanhar com facilidade essa nova etapa. 
- Mãe, estou com medo de não ser bom aluno no Ensino Médio. 
Estou com medo de que seja muito difícil – desabafou, quando perguntei o 
que estava incomodando ele. 
Apesar de eu explicar repetidamente que essa etapa não seria tão 
diferente da que ele tinha vivenciado até agora – o Ensino Fundamental 
também exige bastante estudo e dedicação – a ansiedade voltava de tempos 
em tempos e ele me procurava para desabafar novamente. 
Escutei suas dúvidas todas as vezes que elas surgiram, não queria 
que ele tivesse a impressão de que eu não me importava com suas emoções, 
e sugeri, por fim, que ele falasse com a irmã, que tinha entrado no Ensino 
Médio há dois anos. Em muitas questões relevantes para ele, com as quais 
ele tem alguma dificuldade de lidar, a irmã tem sido melhor conselheira do 
que eu. 
Talvez por ter uma intuição nata a respeito de tudo que o envolva ou 
por ser muito observadora, talvez pela forte afinidade que existe entre eles. 
32 
 
Não é à toa que Maria Júlia está cursando o segundo ano de Psicologia na 
Universidade Nacional de Brasília (UnB). 
Quando eram pequenos e Bernardo nem tinha sido ainda 
diagnosticado com autismo, ela já percebia que havia algo de diferente no 
irmão e que ele precisava ser protegido. Por isso, embora tenha apenas um 
ano mais do que ele, ela se postava na frente do carrinho dele e não deixava 
nenhum estranho ter acesso a ele. Dizia: 
- Esse é meu irmão! E ficava imóvel, protegendo-o. Ela tinha apenas 
três anos, mas não desgrudava dele. 
De qualquer forma, ela também foi extremamente paciente com ele 
no momento atual e quando, finalmente, as aulas tiveram início, ele 
comemorou. Era muito mais fácil do que imaginava. Só reclamou um 
pouco da grande quantidade de conteúdo a ser aprendido em curto espaço 
de tempo, principal diferença em relação ao Ensino Fundamental. 
Surpreendentemente, suas notas foram ainda mais altas, e muito 
acima da média da escola, que era 6, o que garantia um bom desconto na 
mensalidade do colégio. Das 13 matérias cursadas, era comum ele tirar 10 
em mais de 6 ou 7. Chegou a tirar 10 em quase todas. 
Graças ao espetacular desempenho, recebeu várias vezes o prêmio de 
Aluno Destaque no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. 
No 2º semestre de 2016, Be recebeu prêmio Aluno Destaque – Excelência 
Acadêmica. 
 
33 
 
 
Outro prêmio Aluno Destaque – Excelência Acadêmica foi concedido no 1º 
semestre de 2017, quando ele estava no 2º ano do Ensino Médio. 
 
 
 
34 
 
No último ano do Ensino Médio, em 2018, Be recebeu três prêmios: 
Aluno Destaque – Mérito Acadêmico, Ato de Elogio – Empenho 
Acadêmico e Postura no Ambiente Escolar e Mérito Acadêmico. Foi 
engraçada sua reação ao receber o Ato de Elogio. Ele me perguntava o que 
isso significava e se era melhor ou pior do que os outros prêmios. 
Confesso que também achei engraçada a denominação, mas 
expliquei a ele que o que importava era a intenção e que era um 
reconhecimento pelo seu desempenho escolar. Entender o que isso 
significava – ato de elogio – não entendo até hoje, na verdade. Minha 
dúvida diz respeito ao fato de que a coloração do Ato de Elogia era 
azulada, enquanto o certificado de Mérito Acadêmico era dourado. Além 
disso, percebi que alunos não tão bons quanto outros em termos de nota e 
desempenho estavam recebendo o prêmio em questão. 
 
 
 
35 
 
 
 
 
 
36 
 
Maior coração do mundo 
Meu filho tem um coração enorme, gigantesco. Como é muito 
gozador, ao ler essa frase, ele disse: 
- Se for verdade, eu vou ficar preocupado pois pode ser sinal de 
Doença de Chagas! 
Brincalhão, carinhoso, beijoqueiro, Be desenvolveu empatia pelas 
pessoas bem acima do esperado até para uma pessoa que não tem autismo. 
Imagine para um menino que tinha praticamente todos os sintomas do 
autismo, principalmente os que se referiam à aquisição da linguagem e à 
socialização. 
É muito comum Be entrar esbaforido em casa e me perguntar: 
- Mãe, tem um homem lá embaixo pedindo dinheiro. Posso dar? 
Ou: 
- Mãe, um cara me pediu comida. Posso comprar algo pra ele? 
Uma vez, Be encontrou uma mãe com filhos pequenos e maltrapilhos 
pedindo dinheiro na rua. Até descalços eles estavam. Ele se apiedou de tal 
forma, se comoveu tanto com a situação que queria dar um chinelo para 
cada um deles. 
Eu o ajudei a procurar os pares das havaianas que tínhamos em casa, 
havaianas antigas para doação. Eram a mãe e três crianças. Embora os 
chinelos fossem grandes para a idade deles, era o que tínhamos para 
oferecer. 
Também separamos alguns alimentos para eles. Eu não tinha feito 
supermercado e falta praticamente tudo em casa, mas conseguimos 
algumas bananas e disse para meu filho que ele poderia comprar algo na 
37 
 
padaria para eles, que eles poderiam escolher entre um bolo ou pão e 
manteiga e café com leite para cada um deles. Foi o que fizeram: 
escolheram pão e manteiga e o café com leite. Ficaram bem felizes com a 
ajuda do Be, que ficou um tempo conversando com eles. 
Também é comum Be chegar com balas em casa. Como nenhum de 
nós gosta de balas, sei que fez isso para ajudar alguém. Sempre tem alguém 
vendendo balas no ônibus e meu filho não consegue se omitir. Ajudar, para 
ele, é algo tão natural que nem comento mais isso. Sei que, às vezes, ele 
volta pra casa sem um centavo, mas tudo bem. Sinto um orgulho danado 
dele. 
Be é caridoso, desprendido em todos os sentidos. A irmã gosta de 
pegar suas roupas, cortá-las e usá-las. E ele se importa com isso? Nem um 
pouco. Para ele, está tudo sempre bem. Eu tinha uma camisado conjunto 
de heavy metal Iron Maiden que o Be adorava. Dei para ele. 
Mas a irmã, em pouco tempo, pegou a camisa, cortou as mangas, e 
começou a usar. Qualquer irmão, diante disso, ficaria furioso. Be não. Be 
não se importou. E isso que ele gostava muito da camisa. 
Com as calças jeans dele é a mesma coisa. Não consigo nem 
entender como Maria Júlia acha legal usar calça de homem. Mas ela 
transforma as roupas dele e usa. Como sempre, ele nem se incomoda com 
isso. Acha graça de tudo que a irmã faz. É sempre tolerante, compreensivo, 
amoroso. 
 
Um menino exigente... 
Apesar de ser tão bondoso com os outros, às vezes, ele não é tão 
condescendente consigo mesmo: ele se exige demais. E o faz em todos os 
38 
 
sentidos. Seja no colégio ou em casa, o seu grau de exigência é exagerado 
e, portanto, é fácil ele se frustrar quando o resultado não é aquele que ele 
esperava. Ao buscá-los na escola em uma tarde depois da aula do judô do 
Bernardo, assim que entrou no carro ele disse: 
- Mãe, eu preciso muito de você porque minha autoestima está baixa 
hoje. 
Não deixei por menos. 
- Pode deixar filho que eu vou ajudá-lo. Até porque quando você 
entrou no carro, eu pensei: “Quem é esse homem lindo, tão alto, que está 
entrando no meu carro?” Você está cada dia mais lindo, sabia? 
A minha fala o comoveu, tenho certeza, mas em vez de fazê-lo rir, 
como era minha intenção, fez com que seus olhos se enchessem d’água e 
ele não conseguiu conter as palavras, que passaram a ter vida própria, 
dominando-o completamente. Elas eram sofridas, um pedido angustiado 
por ajuda: 
- Mãe, eu tirei 0,5 em um resumo que valia 2,0. Eu não sou 
inteligente, mãe. 
Ignorei o último comentário propositalmente e disse: 
- Meu filho, era uma redação ou um resumo? 
- Um resumo, mãe. 
- E por que você acha que tirou essa nota? 
- Porque não consegui terminá-lo. Era muito pouco tempo para fazê-
lo. O professor só nos deu 45 minutos para fazê-lo, e eu demorei pensando 
nas melhores palavras para escrevê-lo. Eu queria que fosse perfeito! 
39 
 
- Ah! Filho, então o problema foi justamente esse: o tempo. Quando 
você faz um resumo em casa, você tem todo o tempo do mundo para 
terminá-lo. Nessa situação, você pode buscar as melhores palavras para 
redigi-lo e, mesmo assim, acho que não precisa fazer isso. Se você fizer um 
texto muito rebuscado, ele ficará pernóstico, não é assim que as pessoas 
falam no dia a dia. Tem de ser mais natural. Lembre-se de que, nessas 
horas, menos é mais, meu filho. O que você tem de fazer para da próxima 
vez tirar uma nota melhor? Faça o seguinte: leia o texto que precisa ser 
resumido, lembre-se de que você tem pouco tempo, e reescreva o que você 
entendeu do que leu. Não fique procurando palavras para enfeitar o seu 
texto. 
- Mãe – disse Maria Júlia – deixa que eu converso depois com ele. 
- Tá bem, Ju. – E mudei de assunto. Tive de parar na papelaria para 
comprar mais canetas para escrever meus contos. Tenho mania de escrevê-
los primeiro à mão e só depois transcrevê-los para o computador. E detalhe: 
as canetas têm de ser pretas. É uma mania da qual não abro mão. 
Quando saí da papelaria, nova surpresa: Júlia, que antes estava 
sentada no banco da frente, estava agora sentada no banco de trás, 
juntamente com o Bernardo e os dois estavam abraçados. Ainda escutei ela 
dizer, antes de se mudar para o banco da frente: 
- Entendeu direitinho o que eu disse, Be? 
Ele concordava com a cabeça. O certo é que ela aproveitou a minha 
ausência para ter uma conversinha com ele. Ela sabe a grande influência 
que tem sobre ele e não quis perder tempo: decidiu confortá-lo ali mesmo. 
O “tempo” é uma questão muito importante para os autistas de um 
modo geral. Eles possuem um tempo interno muito peculiar. Se forem 
40 
 
apressados, o mais provável é que fiquem confusos e se paralisem, não 
conseguindo mais render o que deveriam. Se se sentirem pressionados, 
podem sofrer um “completo apagão”. 
É como se desse um branco em suas mentes e eles não soubessem 
mais o que fazer, o próximo passo a dar. Tenho sido muito cautelosa 
quanto a isso. Muitas vezes eu o apressei e a resposta foi desoladora. 
Bernardo não age bem sob pressão. O melhor é deixá-lo agir em seu 
próprio tempo, respeitar o tempo de que necessita para agir. 
Por ele ter ficado tão frustrado com o 0,5 que tirou no resumo, pensei 
em ir ao colégio para falar com a coordenadora e pedir para os professores 
um tempo maior de tolerância para os trabalhos do meu filho. Mas depois 
de ponderar por uns minutos, percebi que não era uma boa opção. O melhor 
seria que ele se acostumasse com as exigências da realidade e procurasse se 
adaptar a elas. Eu deveria ajudá-lo nessa adaptação e não tentar mudar o 
“mundo” para que ele se sentisse mais confortável. 
 
 
... e surpreendente... 
No Carnaval de 2015, durante a visita de minha prima Patrícia, filha 
de Tia Gilce, irmã de meu pai, Bernardo nos mostrou mais uma faceta de 
sua personalidade. Depois de eles conversarem por mais de quinze minutos 
em espanhol, Patrícia comentou: 
- Que legal que você sabe falar espanhol! É a língua mais falada do 
mundo, não é? 
Bernardo, no entanto, a corrigiu: 
41 
 
- Não, espanhol é a segunda língua mais falada. A primeira é o 
inglês. Let´s speak english a bit!* (no rodapé: Vamos conversar um pouco 
em inglês) 
E despejou um arsenal de frases, respondendo corretamente a todas 
as perguntas feitas por ela (que é tradutora e foi professora de inglês em 
vários cursos no país), dando continuidade a um diálogo que durou quase 
uma hora. 
Não presenciei a conversa deles. Eu estava lendo no quarto quando 
minha prima me chamou (com certa urgência na voz) para eu ver o que 
estava acontecendo. 
- Você sabia que o Bernardo fala inglês? Ela me perguntou. 
- Não, que eu saiba ele sabe bem pouco. Teve apenas algumas aulas 
no colégio, e isso já faz um tempo. Atualmente ele só estuda espanhol. 
- Pois ele está falando fluentemente - disse ela. E reiniciou uma 
conversa com ele na minha frente que, para meu completo espanto, não só 
entendia tudo que ela dizia, como ainda respondia, apropriadamente, em 
inglês. Eu estava boquiaberta. 
- Meu filho, onde você aprendeu a falar assim? 
- Ah! Mãe, em vários lugares. Jogando videogames, assistindo a 
séries americanas na TV, visualizando vídeos no Youtube e, 
principalmente, pesquisando sobre Biologia na Internet. 
O mais impressionante é que ele conhece muitas expressões 
idiomáticas e conjuga os verbos não apenas no presente ou no passado (o 
que é mais fácil de se fazer), mas também no Present Perfect, bem mais 
complexo. 
42 
 
- I´ve forgotten....*, disse ele. Minha prima e eu nos entreolhamos, 
pasmas. 
Bernardo dominava até as inversões de palavras e expressões mais 
difíceis daquela língua, tais como “Can I? Did I?”, que são empregadas 
nas perguntas. 
Patricia, em tom de brincadeira, disse: 
- Bernardo, estou com medo de você! E ele rebateu na hora: 
- Why do I look scary for you?* (no rodapé: por que eu pareço 
assustador para você?) 
Em outro momento, quando Patricia prendeu a manga da camisa na 
maçaneta da porta, ele veio ajudá-la imediatamente. Ela agradeceu, 
dizendo: “como a vida, sozinha, faz coisas. Eu não fiz nada para prender a 
blusa na maçaneta”. 
- Exato, disse Bernardo. Você tem de estar preparada... you have to 
be ready*...(no rodapé: você tem de estar preparada...) 
- For what life brings to you*, ela completou. (no rodapé para o que 
a vida lhe traz). 
Minha prima lingüista ficou impressionada com a competência 
idiomática dele, pois o que ele fez (assim como os intérpretes profissionais) 
foi uma tradução idiomática, e não literal, o que necessita de mais 
abstração. Ele poderia ter traduzido a frase literalmente com a expressão 
“to be prepared”, mas a expressão mais usual é mesmo “to be ready”, que 
foi o que ele fez. 
E assim, sem mais nemmenos, descubro, em uma tarde de Carnaval, 
que meu filho é poliglota. Fala português, espanhol e inglês com 
43 
 
desenvoltura, sendo que este último ele aprimorou por conta própria e sem 
estardalhaço. Além de poliglota, é autodidata. 
Outro medo que eu tinha era de que Bernardo não tivesse iniciativa 
na vida e precisasse sempre de um empurrão para seguir em frente, para 
enfrentar novos desafios. Esse medo, assim como tantos outros que 
povoavam minha mente, acabou. 
Até o segundo ano do Ensino Médio, Bernardo não teve aulas de 
inglês extra-classe. Mas como a disciplina se tornou obrigatória no 
currículo em 2017, ele teve de se inscrever. Fez uma prova de nivelamento 
e foi aprovado para o nível 4, último nível do curso. Das 30 questões 
respondidas, Bernardo acertou 28. Admirável! No entanto, como o horário 
coincidia com as aulas de judô, ele optou por fazer o nível 3. 
Em novembro de 2016, Bernardo concluiu o nível intermediário de 
espanhol. Na formatura, fez um discurso de mais de cinco minutos em um 
auditório quase lotado. Sua irmã e eu ficamos impressionadas com sua 
desenvoltura. 
 
44 
 
 
Gandhi e Brioche: mais responsabilidade 
 
 Meus filhos sempre quiseram ter um cachorro. Volta e meia, apesar 
das minhas constantes negativas, eles me pediam novamente. A minha 
negativa era só pelo fato de morarmos em apartamento. Apesar de eles 
serem muito novos para cuidar de um cachorro, eu não me importaria de 
fazê-lo, desde que morássemos em uma casa. Durante toda a minha 
infância, eu morei em casas. 
 A primeira foi uma casa térrea na Rua Uçá, na Ilha do Governador, 
no Rio. Essa casa, mais tarde, tornou-se um colégio, o nosso colégio. Meus 
pais eram os donos do colégio Pingo de Gente. Lá não tivemos bicho de 
estimação, mas também eu era muito pequena. Vivemos nesta casa só até 
os meus seis anos. 
 A casa para a qual nos mudamos tinha três pavimentos, sendo um 
deles uma piscina, totalmente gradeada. Foi nessa casa que ganhamos 
nosso primeiro cachorro: um boxer. Não por acaso essa é uma das minhas 
raças preferidas. 
 Depois dessa experiência, tínhamos constantemente um bichinho 
por perto. Tivemos até coelhinhos e pintinhos. Tivemos uma gata, a 
“Chiquinha”, que durou apenas um dia. Nosso portão da garagem era 
eletrônico e de subir e descer. No mesmo dia em que a ganhamos, ela 
desceu junto com o portão para nunca mais. Achei esse lance de ter gatos 
muito sem graça! Foi nossa primeira e última experiência com eles. 
 Veio, então, a “Estrelinha”, uma cachorra vira-lata que recolhemos 
da rua, a “Evita Perón”, uma Lhasa Apso cor de mel, roubada por um dos 
vizinhos da minha avó materna, em Santana do Livramento, onde 
passávamos nossas férias (só soubemos do roubo anos depois; pensamos 
45 
 
que ela tivesse se perdido). Tivemos também a “Beija”, uma poodle 
branca, que mostrava clara preferência pela minha irmã do meio, e os 
poodles creme “Bella” e seu filho “Clark Gable”. 
 Com o passar dos anos, percebi que voltar a morar em uma casa 
com os meus filhos não seria possível nem a curto nem a médio prazo. O 
nosso apartamento em Porto Alegre fica no Bom Fim, um bairro que dá 
acesso a tudo que precisamos: supermercados, lojas, bancos, padarias, 
pontos de ônibus e de táxis, hospitais, shoppings, farmácias. Não 
precisávamos de carro para nos locomovermos. Não tinha a menor 
intenção de vendê-lo e mudarmos para uma casa. 
 A maioria dos compromissos fora de casa eu fazia a pé. Até o 
colégio das crianças era perto. Menos de seis quadras de distância. Por 
tudo isso, trocar esse apartamento bem localizado por uma casa em um 
bairro distante, precisando de carro para ir a qualquer lugar, não estava nos 
meus planos. 
 Com a mudança para Brasília, fomos morar, mais uma vez, em um 
apartamento, o apartamento emprestado da minha tia, na Asa Norte, no 
Plano Piloto. Foram dois anos e outra mudança: desta vez para um 
apartamento alugado na Asa Sul. 
A vantagem do apartamento da Asa Sul era que ficava em frente ao 
Dínatos COC e meus filhos só precisavam atravessar a faixa de pedestre 
para irem para a escola. Praticidade total! Além disso, era bem mais perto 
do meu trabalho no Senado Federal. Também ficamos dois anos nesse 
apartamento e nos mudamos novamente. Desta vez, para um apartamento 
no Guará. Essa última mudança ocorreu em agosto de 2014. 
Quinze dias depois, ainda estávamos nos acostumando com o 
apartamento, quando em uma ida à Feira dos Importados, vimos vários 
filhotes de cães à venda. Sabendo de antemão que eu não iria concordar 
46 
 
em comprar um filhote, as crianças só pediram para vê-los. Nada além 
disso. 
Concordei com o pedido e caminhamos lentamente, encantados, 
vendo todos os filhotes que estavam sendo expostos. Avistamos, então, um 
lindo filhote de boxer. Meus filhos perceberam como eu fiquei comovida 
com o cachorrinho e, em um momento de insanidade, perguntei o preço. 
Não estava caro. Fiquei dividida. Queria tanto lhes proporcionar essa 
alegria, tinha adiado por tanto tempo esse pedido deles! 
Em um impulso, comprei o filhote de boxer. Eles ficaram eufóricos 
e eu também. Teríamos, finalmente, um cachorrinho. O único senão é que 
ele teria de ser buscado no dia seguinte. Tudo bem. Somente um dia de 
espera. 
À noite, praticamente não dormi. Perdi o sono ao imaginar aquele 
filhotinho crescendo em um espaço tão pequeno. Ele cresceria muito. 
Comecei a imaginá-lo mijando e cagando em todo nosso apartamento. 
Imaginei também como seria pequeno o espaço para ele se movimentar 
livremente. 
Boxer é uma raça para grandes espaços, de preferência, uma casa 
com gramado. Seria estressante para ele morar tão confinado! E tinha 
mais: eu ficava fora a maior parte do dia no trabalho e meus filhos tinham 
o colégio. Quem limparia a sujeira do cachorro? Onde ele dormiria? Na 
sacada? 
Compreendi que tinha cometido um grave erro ao comprar esse 
cachorro, mas não sabia como voltar atrás, não sabia como dizer às 
crianças que o sonho deles seria, mais uma vez, adiado. Não queria 
desapontá-los, mas não havia outra opção. Eu teria de desfazer o negócio. 
Foi quando surgiu a idéia de trocar o filhote de boxer por um 
cachorro menor. Bem menor. Conversei com o vendedor e só havia à 
47 
 
venda um Lhasa Apso branco, de um mês e meio, pelo qual as crianças e 
eu nos apaixonamos no minuto que o vimos. Peguei-o no colo e disse: 
- Já é meu. 
Maria Júlia e Bernardo exultaram. E como havíamos planejado, 
voltamos para casa com dois potes de comida, uma coleira e o Gandhi. 
Esse foi o nome escolhido por nós em meio a muitos nomes cogitados. Eu 
só estranhei a conversa do vendedor. 
Ele ficava repetindo que se o Gandhi tivesse qualquer problema, por 
mínimo que fosse, que eu ligasse para ele que o seu veterinário de 
confiança o atenderia. Ressaltou várias vezes para eu não levar o Gandhi a 
outro veterinário ou não haveria garantia para a compra do cachorro. 
Insistia também para eu manter a mesma ração que ele estava dando. 
Dizia que se eu trocasse de ração, com certeza o Gandhi ficaria doente. 
Achei muito estranha essa conversa, mas logo, logo, ela faria sentido. 
Foram quatro dias animadíssimos. Todo branco, Gandhi parecia um 
coelhinho, saltitava para todos os lados, era agitado, brincalhão, um 
encanto. Engraçado como nos apegamos tanto a ele em tão pouco tempo. 
No quinto dia, de madrugada, ele começou a vomitar. E não parou 
mais. Ele se contorcia todo. Não quis esperar. Chamei meus filhos, minha 
irmã, que estava de visita em minha casa, e fomos ao plantão veterinário. 
Não sem antes ligar para o vendedor. Em vão. Ele não atendeu. Eram 
quase três horas da manhã. 
Ainda bem que não esperei raiar o dia. No plantão, foi feito exame 
de sangue, constatando que Gandhi tinha Parvovirose, uma doença fatal na 
maioria das vezes. Aquela conversa fiada de doença fez sentido, afinal. Ao 
vender o filhote, ele sabiaque o cachorro podia estar contaminado e, 
mesmo assim, ele o vendeu para mim. E eu tinha provas disso: a 
48 
 
Parvovirose tem um período de incubação de quase quinze dias e eu estava 
com o Gandhi há apenas quatro dias. 
Foi apenas durante a conversa com o veterinário que fui informada 
de que não se pode comprar filhotes na Feira dos Importados, uma vez que 
não se pode confiar na procedência dos filhotes e nas condições de higiene 
em que eles vivem. O preço baixo é resultado dessa falta de cuidado. 
Em menos de uma semana, Gandhi morreu. Tive de dar a notícia 
para os meus filhos. Assim como eles, eu estava inconsolável. Para minha 
surpresa, Bernardo foi quem consolou a Júlia. Eu pensei que seria o 
contrário. Muito abalada, Júlia disse que não queria outro cachorro e eu 
respeitei sua decisão. 
Em junho de 2015, quase um ano depois da morte do Gandhi, ao 
passar por um Pet Shop no Sudoeste, vi um filhote de Shitzu, de 
aproximadamente três meses. Parecia uma bolinha de pêlos marrom. Eu 
me apaixonei por ele na hora e pensei que já era tempo de esquecer a 
morte do Gandhi e olhar para frente. 
Foi uma surpresa para meus filhos. Liguei para a Maria Júlia, que 
estava no colégio, e disse que passaria para buscá-los. Ao mesmo tempo 
que queria surpreendê-los, precisava da ajuda deles para carregar o 
cachorrinho no carro. Peguei uma casinha emprestada no Pet Shop, mas 
ele não parava de latir. 
Maria Júlia ficou tão, mas tão surpresa com a novidade que não se 
deu conta de que era um cachorro. Pensou que fosse um bicho de pelúcia 
ou algo parecido quando o viu. 
- Olha o seu Brioche, filha. 
Esse foi o nome que ela disse que colocaria se tivesse outro 
cachorro. Achei por bem deixá-la escolher o nome desta vez. Na outra, 
quem escolheu fui eu. Até brincávamos que o Gandhi morreu cedo pois 
49 
 
era muito “espiritualizado”, que não colocaríamos mais nomes de pessoas 
de bem nos animais. Riamos que, para viver bastante, o nome deveria ser 
“Hitler, Stalin, Sarney”. 
Brioche trouxe mais do que alegria para nossas vidas: ele trouxe 
mais responsabilidade e mais amadurecimento para o Bernardo. Embora 
ele não seja exclusivamente de ninguém – Maria Júlia, brincando, afirma 
que é a “sua mãe” – foi o meu filho quem chamou para si praticamente 
todos os cuidados com o Brioche. Sem reclamar ou ficar de má vontade. 
Está sempre disposto a alimentá-lo, a brincar com ele, a passear. 
Mesmo que isso signifique vários passeios por dia. Nosso cachorrinho é, 
disparado, o animal que mais vive na rua. Há dias que passeia mais de seis 
vezes! 
 Os passeios fazem parte da sua rotina diária: Brioche nos acorda às 
7 horas da manhã, às vezes até antes, para a primeira volta do dia. Como 
não consegue pular em nossas camas, ele fica em pé, nas duas patinhas 
traseiras, e late para chamar nossa atenção. Já levei cada susto! 
Invariavelmente, quem atende ao seu chamado é o Bernardo. 
Mesmo sonolento, em jejum e em férias escolares, ele levanta 
prontamente, acaricia o cachorrinho e cumpre o seu dever. 
Preocupado com a saúde do Brioche, ele nos impede de alimentá-lo 
com qualquer coisa que não a sua ração. E insiste em nos explicar que os 
bichos, independente da espécie, não devem ser alimentados com comida 
para humanos. E repete, sempre que surge a oportunidade: 
- Mãe, não se esqueça de que ele é um cachorro! 
É muito benéfico para meu filho que ele tenha essa lucidez, essa 
compreensão sobre o mundo animal e a vida. Bernardo respeita 
profundamente a natureza e suas leis, e vive em harmonia com tudo que o 
cerca. 
50 
 
Mais bichos à vista... 
Quase um ano depois de termos comprado o Brioche, adotamos um 
gatinho preto de apenas dois meses, o Oliver. Maria Júlia sempre 
demonstrou interesse por gatos e quando eu o vi em um pet shop na Asa 
Norte, eu me encantei na hora. Sabia que seria necessária uma adaptação 
entre o Brioche e ele, mas pensei que isso seria fácil. 
Como eu estava errada. Talvez por ser totalmente inexperiente em 
tudo que diz respeito a gatos, fiz tudo da forma mais difícil possível. A 
veterinária havia me explicado que eu deveria apresentar o gatinho aos 
poucos para o Brioche e foi exatamente o que fiz. 
No entanto, como Brioche é muito afoito, afobado e exageradamente 
amistoso, ele se aproximava rápido demais, o que assustava Oliver e o fazia 
se arrepiar todo em posição de luta. Para evitar tais enfrentamentos, eu os 
deixava afastados. Oliver ficava trancado no quarto de meus filhos e 
Brioche reinava absoluto pelo resto da casa. Não foi uma sábia decisão. 
Os dias se passavam e nada de os dois se entenderem. Quando eu 
dizia que era preciso deixar os dois se enfrentarem, Bernardo concordava 
comigo, mas Maria Júlia ficava histérica com a possibilidade de eles 
brigarem e ao primeiro sinal de briga entre eles, gritava e pedia para eu 
separá-los. Essa rotina estava virando um estresse e eu já estava 
desanimada, questionando se algum dia eles poderiam ficar juntos em um 
mesmo ambiente. 
Já fazia quase dois meses que ele estava lá em casa e nada de os 
bichos se entenderem. Foi quando levei o Oliver para tomar vacina e fui 
informada por outra veterinária de que estava fazendo tudo errado. O 
enfrentamento entre eles, que tanto temíamos, era inevitável e deveria já ter 
ocorrido. O que mais tínhamos medo – de que Brioche machucasse Oliver 
51 
 
– não aconteceria, a veterinária me garantiu, mas nós teríamos de relaxar e 
botá-los juntos para que se cheirassem e, enfim, perdessem a animosidade. 
Expliquei, então, para minha filha que não adiaria mais esse 
enfrentamento e que, se ela não quisesse fazer parte disso, que fosse para 
seu quarto. Botei os dois na sala e Bernardo e eu ficamos de mediadores, 
prontos para entrar na jogada caso a briga se tornasse feia. Bernardo, como 
é de se esperar, é sempre o mais tranquilo em relação aos bichos. 
Quando chegamos do veterinário com o Oliver, imediatamente 
deixei ele e Brioche na sala. Oliver sibilou várias vezes, afastando Brioche 
e nos arranhando quando tentávamos acalmá-lo. No entanto, em pouco 
tempo, eles passaram a tolerar a presença um do outro e em poucos dias, 
Brioche adotou Oliver como seu “gato”. 
Se tivéssemos parado por aí, teríamos apenas um cachorro e um gato. 
Seria o mais coerente da minha parte já que durante anos eu disse que não 
teria bichos de estimação em apartamento. Enquanto estava em Porto 
Alegre, cumpri minha palavra. Mas em Brasília não foi assim. Como diz 
aquele ditado popular: depois de porta arrombada não adianta tranca de 
ferro; depois de abrirmos uma, duas exceções, até onde podemos ir? 
Era maio de 2017 e eu trabalhava como Chefe de Comunicação no 
gabinete do Deputado Francischini, do Paraná, quando Maria Júlia me 
mandou uma mensagem com uma imagem. Era um gatinho lindo, de 
menos de um mês, que estava para adoção. Parecia um tigrinho, uma graça 
mesmo. O texto dizia: Mãe, posso ficar com ele? Ah! Mãe, deixa, por 
favor! E depois, ela acrescentava: pensa com carinho sobre isso, tá? 
Nem tive tempo de pensar, embora saiba que não saberia devolver 
um bichinho depois que ele estivesse em nosso apartamento, convivendo 
conosco. Ao chegar em casa, o gatinho já estava lá, no quarto da Júlia, 
52 
 
dentro de uma caixa de papelão. Sou coração mole mesmo e não consegui 
devolver o gatinho. Em poucos minutos, eu já estava escolhendo o nome 
dele com meus filhos. Já que Maria Júlia o tinha trazido para casa e ela 
estava cursando Psicologia, sugeri vários nomes de psiquiatras, psicólogos 
e psicanalistas famosos. Piaget, Pinel, Freud, Lacan... 
Lacan seria, afinal! Bernardo aprovou o nome. Novamente, teríamos 
de fazer uma intermediação entre gato e cachorro. O novo gatinho, no 
entanto, lidava de outra forma com a aproximação do Brioche. Enquanto 
Oliver sibilava e se preparava para o ataque, Lacan apenas chorava. Isso 
mesmo! Lacan era dramático. Briochenão podia sequer se aproximar que 
Lacan fazia um som de choro. Riamos muito. Brioche não fazia nada, 
absolutamente nada, e Lacan reagia dessa maneira. 
Portanto, entre esses dois não foi difícil a aproximação. Em pouco 
tempo, Lacan não dava a mínima para o Brioche e, coincidentemente, 
Brioche tinha fixação era pelo Oliver mesmo, seu gatinho preto. 
Quando parecia que a parceria cão e gatos estava formada, eis que 
surge um novo membro. Em uma madrugada de janeiro de 2018, 
madrugada extremamente quente, Júlia e eu ouvimos um miado, que vinha 
do outro lado da rua, no prédio em frente ao nosso. Olhei pela janela e vi 
um gatinho cinza, de mais ou menos três meses, ainda bem pequeno, no 
meio da rua. 
Com medo de que ele fosse atropelado, pedi para Maria Júlia descer 
e levar ração para ele. Ju estava só de pijama, mas eu disse que tudo bem, 
que ela não precisava trocar de roupa. Não havia ninguém na rua naquela 
hora. Era para ir bem rápido, deixar a ração para o gatinho e voltar. 
Todavia, apareceu outro gato, bem maior do que o primeiro, e Maria Júlia 
se dividiu entre um e outro. Era só para ela botar ração para os gatinhos e 
53 
 
voltar, mas ela estava demorando. Vi quando ela entrou no prédio e o 
gatinho cinza a seguiu. Pensei: 
- Eta, Maju vai querer ficar com esse gato. 
Dito e feito! Quase cinco minutos depois de ficar esperando por ela, 
decidi ver o que estava acontecendo. Moramos no 3º andar e desci as 
escadas à sua procura. Ela estava sentada nas escadas do térreo, com o 
gatinho no colo. Fez uma cara de expectativa ao me ver se aproximar e 
disse: 
- Mãe, eu não sei o que fazer. Sei que você não vai aceitar mais um 
gato, então, não sei o que faço. 
Eu disse: 
- Vamos levá-lo pra casa, Maju. Eu já esperava por isso. Estava 
pressentindo que você iria pedir para ele ficar conosco. 
E assim foi! De repente, de um gato adotado passamos a ter três e um 
cachorro. Só que desta vez, acreditávamos que era uma gatinha. Mais 
complicado ainda. 
E para escolher o nome foi outra maratona: como já tínhamos os 
nomes franceses Brioche e Lacan, queríamos manter a tradição. Tínhamos 
de escolher nomes femininos desta vez. Concordamos com Piaf. A cantora 
francesa Edith Piaf era fantástica e merecia nossa homenagem. Piaf seria. 
Era hora, então, de vacinar os gatos e o Brioche. Aliás, já tinha 
passado da hora. Demorei um pouco para tomar essa atitude, mas com três 
gatos em casa, ela deveria ser tomada. Chamei Isabelle, veterinária de uma 
clínica da Asa Norte, para vacinar os gatos em casa. Isso quase duas 
semanas depois de Piaf ter se juntado aos outros. E a surpresa foi grande: 
não tínhamos uma gatinha. Era mais um gato. Desta vez, erramos feio! De 
54 
 
Piaf, nosso gatinho passou a se chamar Prince, uma homenagem a outro 
cantor, mas desta vez norte-americano. 
 
 
“Mãe, estou namorando” 
No início de junho de 2017, Bernardo chegou em casa numa sexta-
feira à noite com uma grande novidade: 
- Estou namorando! 
Maria Júlia e eu ficamos em choque, sem reação por alguns 
segundos, olhando uma para a outra. Por fim: 
- Como assim? Disse a irmã. Me conta tudo, acrescentou ela. 
Então, com toda tranquilidade do mundo, Bernardo explicou como 
tudo tinha acontecido. Há cerca de uma semana, ele soube por amigos que 
uma menina do 1º ano, Mallena, estava interessada nele. 
Pouco tempo depois de saber disso, uma amiga dela o procurou e 
perguntou se ele gostaria de conversar com ela. Ele disse que sim e, uma 
semana depois, na hora do recreio, a amiga em questão procurou Bernardo 
na hora do recreio e disse que Mallena gostava muito dele. 
Sem perder tempo e sem fazer rodeios, ele perguntou se ela gostaria 
de namorar com ele. Diante da afirmativa, eles se beijaram ali mesmo, com 
direito a abraço demorado depois do beijo. Ao ouvir esse relato, eu sentia 
um misto de surpresa, de felicidade, de excitação, de suspense. 
Sempre tive muito medo desse dia, o dia que meu filho estivesse 
interessado em alguém e tivesse de tomar a iniciativa do relacionamento. 
55 
 
Sempre tive medo de que esse dia chegasse, ele precisasse da minha ajuda, 
e eu não pudesse ajudá-lo, não soubesse o que dizer a ele ou dissesse algo 
que só dificultasse ainda mais a aproximação dos dois. 
Não queria que ele fracassasse na primeira tentativa e isso o 
marcasse a partir de então, tornando mais difícil o envolvimento em futuros 
relacionamentos. Talvez eu tenha imaginado sempre o pior para que, 
estando preparada para ele, pudesse lidar bem com qualquer resultado um 
pouco menos desfavorável. Definitivamente, não imaginei que seria tão 
fácil. Isso nunca passou pela minha cabeça. 
Tudo é sempre tão complicado no autismo. Tarefas corriqueiras do 
dia a dia se tornam verdadeiras batalhas quando o autismo está envolvido. 
Falar, comer, dormir, tomar banho, ir para a escola, brincar com os amigos, 
tudo que flui naturalmente em uma criança sem autismo é motivo de 
angústia, de incertezas e de muita, muita luta para que aconteça com os 
autistas. Por que esse aspecto da vida do meu filho seria fácil, então? 
A irmã fez várias brincadeiras a respeito do “namoro”, debochando, 
inclusive, da incompetência dela nessa área: 
- Be, como assim? Como você pode namorar antes de mim? Eu que 
deveria estar namorando, não você! 
Eu fazia coro! 
- É mesmo, Bernardo, sua irmã vai a todas as festas da faculdade, sai 
direto com as amigas e nada. Você, que só vai ao colégio, arruma 
namorada? Como pode? 
E riamos os três, comemorando mais uma conquista na vida dele 
que, nitidamente, sentia-se orgulhoso e animado. 
56 
 
- Viu, minha filha, do que adianta ir a tantas festas e paquerar tanto 
se o seu irmão, que não sai de casa, consegue namorar? Eu insistia, 
reforçando a autoestima dele. 
- Vou proibi-la de ir a festas! Conclui. 
Uma sensação boa, de que tudo se ajeita com o tempo, tomava conta 
de mim. A verdade é que nem tudo tinha que ser custoso para meu filho. 
Ainda bem! 
 
 
III – BE ABRE MÃO DAS CONTAS PARA ENTRAR NA 
FACULDADE 
Em uma caminhada comigo e com a irmã no Parque do Sudoeste, no 
início de 2017, expliquei ao Bernardo que ele poderia entrar na faculdade 
por meio das cotas para deficientes. Embora eu não o considere mais 
autista clássico (ele reverteu praticamente todos os sintomas e tem uma 
vida cheia de escolhas e de possibilidades), essa não é a recomendação da 
Organização Mundial da Saúde (OMS) e dos médicos, que consideram a 
doença incurável. 
Dessa forma, meu filho tem alguns direitos que, em tese, facilitariam 
seu acesso aos estudos e ao mercado de trabalho. No entanto, esses direitos 
surgiram há bem pouco tempo e ainda existem lacunas importantes a serem 
preenchidas. Muitas vezes, a intenção é até nobre, mas falta entendimento 
sobre o assunto para que a política pública realmente se torne efetiva. 
Nós, pais de autistas, lutamos diariamente para que as leis para 
autistas sejam cumpridas e para que haja menos preconceito em relação a 
57 
 
eles. As cotas para deficientes ingressarem no ensino superior é uma 
iniciativa nobre, mas no caso dos autistas, se não houver alguém que os 
oriente na hora da prova ou se o tempo de duração da prova não for flexível 
(normalmente eles precisam de mais tempo para fazerem as provas) ou se 
as dúvidas não forem esclarecidas, de nada adiantará esta iniciativa. Será 
perda de tempo. É preciso haver adaptação entre as necessidades dos 
autistas e a realização do exame. Há muito ainda a ser feito. 
Como disse anteriormente, ao mencionar para meu filho o direito que 
ele tinha de ingressar na universidade por meio de cotas, ele disse: 
- Mãe, eu não vou entrar por cotas não. Eu sou como todo mundo. 
Vou estudar e passar como todo mundo! 
A irmã fixou extasiada: 
- Como eu tenho orgulho de você! Disse. E o abraçou com força. E 
acrescentou: 
- Esse é o meu menino! 
Realmente, Be nos surpreendeu. Fiquei emocionada

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