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ENSINO MÉDIO PRODUÇÃO DE TEXTO 6 Capa_Humanas cad6_ al_pr.indd 14 06/12/16 16:18 1 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II P R O D U Ç Ã O D E TE X TO 1 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II PRODUÇÃO DE TEXTO Emiliana Abade O DISCURSO NARRATIVO II 1 Conto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 Curiosidade e ficção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 Fases da estrutura da narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5 2 Crônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 Definindo a crônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .16 2137807 (PR) Comentário: A legenda da imagem oferece uma chave de leitura da tela de Salvador Dalí, servindo de in- trodução às reflexões do módulo sobre a narra- tiva ficcional e o conto fantástico. As perguntas são todas abertas e aceitam diversas respostas a partir do repertório dos alunos. O importante é perceberem que estamos cercados tanto de realismo como de fantasia. Faça-os notar que, muitas vezes, a arte (ou a ficção, ou a fantasia) é a melhor forma de revelar e contestar a realidade. MÓDULO O Discurso Narrativo II A tentação de Santo Antão (1946), de Salvador Dalí. Nesta obra, Salvador Dalí retrata o eremita Santo An- tão (ou Antônio) no deserto, despido e tentando se pro- teger apenas com uma cruz. Como num sonho, a situação e as figuras são inusitadas: um cavalo gigante que parece atacar; elefantes de patas alongadas e finas, carregando os símbolos da tentação, como o poder (representado pelos animais), o sexo (a nudez das figuras humanas) e a riqueza (as construções arquitetônicas douradas). A tela mistura medo e desejo, religiosidade e erotismo, realidade e sonho, clássico e espiritualidade, compondo a narrativa com elementos do mundo real em situações fan- tásticas. O fantástico geralmente é entendido como uma violação das leis naturais e o surgimento do impossível, mas muitos artistas consideram o evento fantástico como parte da natureza, um efeito do contato direto com a realidade. REFLETINDO SOBRE A IMAGEM 1 Você se lembra de um sonho com situações absurdas? O que tinha de real e de fantasioso nele? 2 Você gostou da tela de Salvador Dalí? Você pre- fere pinturas mais realistas ou fantasiosas? Dê sua opinião e justifique. 3 Por que será que muitos artistas optam por rea- lizar suas obras de maneiras tão inusitadas? FU N D A Ç Ã O G A LA –S A LV A D O R D A LÍ /M U S E U S R E A IS D E S B E LA S A R TE S , B R U X E LA S , B É LG IC A www.sesieducacao.com.br Objetivos: c Relacionar a estrutura do texto narrativo com os aspectos composicionais do gênero conto. c Produzir contos com estrutura composicional adequada – com enredo, situação de equilíbrio, conflito, clímax e desfecho – e considerando o contexto enunciativo – tempo, narrador, discurso narrativo e espaço. 4 O Discurso Narrativo II CAPÍTULO 1 Conto CURIOSIDADE E FICÇÃO O que será que existe nas narrativas, que fascina o leitor ou o espectador? As crianças ouvem a mesma história e nunca se cansam. Os adultos, muitas vezes, só deixam de lado um romance quando a história termina… Talvez a causa seja a curiosidade, capaz de manter as indagações: E depois? Por quê? Será que ele(a) vai conseguir? Livros e fi lmes com boas histórias proporcionam, e sempre proporcionarão, momentos ines- quecíveis, cativantes, porque a curiosidade e a fi cção são eternas… Leia fragmentos do conto: “Noite de almirante”, de Machado de Assis. Deolindo Venta-Grande saiu do arsenal de marinha […]. — Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! Ceia, viola e os braços de Genoveva. […] Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. […] Deolindo seguiu em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fi ança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fi delidade. […] Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio de Gamboa, onde mora Genoveva […]. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brin- cos, que leva agora no bolso […]. Nisto chegou à Gamboa, e deu com a casa fechada. A velha Inácia veio abrir-lhe a porta. […]. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva. — Não me fale nessa maluca. […] — Mas que foi, que foi? A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada. […] Genoveva andava com a cabeça virada… — Mas virada, por quê? — Está com um mascate, José Diogo. […] — Onde mora ela? — Na praia Formosa, uma rótula pintada de novo. […] Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo. […] — Que é isso, exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo. […] — Sei de tudo, disse ele. — […] Disseram-lhe que eu gostava muito de um moço? Disseram a verdade. Deolindo chegou a ter ímpeto; ela fê- -lo parar só com a ação dos olhos. […] — Quando jurei, era verdade, mas 5 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II veio este moço e eu comecei a gostar dele… — A que horas volta José Diogo? […] — Não volta. E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele? […] Deolindo declarou que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve. […] E ele que tanto enchia a boca de fi delidade, tinha-se lembrado dela por onde andou? A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que trazia. […] — Sim, senhor, muito bonitos os brincos, fazendo uma grande mesura de agradecimento. […] Ele pela sua parte começou a crer que, assim como perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la. […] e o demônio da esperança mordia o coração do pobre diabo e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas. Genoveva escutava com atenção, interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio. […] Deolindo seguiu, praia afora, cabisbaixo, lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste. Genoveva entrou logo, alegre e barulhenta. […] — Sabe o que ele me disse agora? Que vai matar-se. — Jesus! — Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo, diz as coisas, mas não faz. […] A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros cumprimentaram-lhe pela noite de almirante, pediram-lhe notícias de Genoveva. Ele respon- dia a tudo com um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir. SALES, Herberto (org). Antologia de contos brasileiros. São Paulo: Ediouro, 2005. FASES DA ESTRUTURA DA NARRATIVA Vamos, a partir da leitura do conto, recordar as fases da estrutura da narrativa. O texto lido é iniciado com a chegada de Deolindo, após uma longa viagem. Ele é surpreendido pela infi delidade de Genoveva; logo, houve uma transformação da situação anterior, e a transfor- mação é a principal característica de uma estrutura narrativa. Antes da viagem, Deolindo e Genoveva fi zeram um juramento (contrato) de fi delidade. Os dois queriam e deviam cumprir o contrato, portanto a manipulação foi recíproca. Ambos adquiriram um querer e um saber para a manutenção do juramento, entretanto Deo- lindo manteve o contrato e Genoveva rompeu o juramento. Por conseguinte a competência foi igual para os dois, mas a performance foi desigual e oposta. Deolindo perdeu e Genoveva ganhou. A sanção, porém, foi positiva para Genoveva e negativa para Deolindo. Poderia ser diferente, se Deolindo cumprisse uma de suas ameaças: estrangular Genoveva, matar José Diogo ou suicidar-se. Se Deolindo foi capaz de cumprir o contrato de fi delidade, foi incapaz de cumprir as ameaças: “Deolindo é assim mesmo, diz as coisas, mas não faz”. O conceito de conto e sua estrutura narrativa Conto é um texto curto que narra um acontecimento de interesse humano e pertence ao gê- nero das narrativasfi ccionais. Apresenta-se condensado, isto é, com: poucas personagens, nem sempre nomeadas; poucas ações; tempo e espaço reduzidos. O escritor Edgard Allan Poe defi ne o conto como uma peça fi ccional curta, coesa, tendo como tema um único incidente. Esse incidente conduz ao efeito. Existe uma diferença muito importante entre narrativa e história, segundo E. M. Forster, ro- 6 O Discurso Narrativo II mancista britânico. Para conhecê-la, leia, primeiramente, cada exemplo a seguir, acompanhado de um comentário. O filho saiu de casa e sumiu. A mãe foi morar no interior de Minas. Nesse exemplo, existe apenas sequência de tempo. Ao lê-lo, o leitor pode se perguntar: e de- pois que o filho sumiu? Trata-se de uma narrativa. O filho saiu de casa e sumiu. A mãe, de tristeza, foi morar no interior de Minas. Nesse exemplo, aparece a causalidade — a causa da mudança da mãe foi a tristeza pela per- da do filho. O leitor pode perguntar: por que a mãe foi morar no interior de Minas? Trata-se de uma história. No conto, a causalidade é necessária. A sequência de ações que mantém uma relação de causa e consequência constitui o enredo. Ao iniciar o conto, o narrador apresenta uma situação de equilíbrio. Essa situação inicial, geralmente, é modificada por um conflito. O conflito é a tensão existente entre dois polos opostos, sem duração definida, isto é, ele dura enquanto durar a indefinição. Do conflito, vão sendo geradas outras situações, outras ações encadeadas por causa e conse- quência. A resolução do conflito constitui o desfecho. Para entender melhor a estrutura do conto, retomemos o fragmento de “Noite de almirante”, de Machado de Assis. Nele, a situação de equilíbrio acontece com o juramento de fidelidade entre Genoveva e Deolindo. O conflito aparece quando Deolindo descobre que Genoveva tem outro namorado. Outras ações vão sendo geradas a partir desse conflito: Deolindo dirige-se à casa de Genoveva; Deolindo encontra Genoveva; Genoveva confirma que quebrou o juramento; Deolindo tem ímpeto de matá-la (nesse momento, acontece o clímax, isto é, o momento de maior tensão da história: será que ele vai matá-la ou não?). O desfecho acontece com a resolução do conflito — com o olhar, Genoveva desfaz o clima de tensão entre os dois. Em “Noite de almirante”, Deolindo ainda faz mais duas ameaças, desacreditadas por Genove- va: matar José Diogo e suicidar-se. O desfecho traz novo equilíbrio, diferente do equilíbrio inicial apresentado em “Noite de almi- rante”: Genoveva ficou com José Diogo e Deolindo ficou só. Quanto ao tempo cronológico, este é curto — inicia-se com a chegada de Deolindo, tem con- tinuidade com a ida dele à casa da velha Inácia e, depois, à casa de Genoveva, e prossegue até a manhã seguinte, ao encontrar seus amigos, caracterizando, portanto, horas e não dias ou meses. São poucas as personagens no conto: Deolindo, Genoveva, José Diogo (triângulo amoroso), velha Inácia, amigos de Deolindo, amiga de Genoveva. Com relação ao espaço em que se passam as ações do conto, são mencionados a rua da Bra- gança, Prainha e Saúde, Gamboa, caminho da casa da velha Inácia e a praia Formosa, local da casa de Genoveva. O narrador não é personagem do conto. Ele é observador, por isso escreve em terceira pessoa, como mostram os exemplos: “Deolindo Venta-Grande saiu”; “A velha Inácia veio abrir-lhe a porta”; Deolindo “seguiu praia afora, cabisbaixo”; “A verdade é que o marinheiro não se matou”. Quanto ao modo de narrar, em “Noite de almirante” temos: discurso direto — Sei de tudo. 7 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II — Disseram-lhe que eu gostava muito de um moço? Disseram a verdade. — Quando jurei, era verdade. No diálogo entre Deolindo e Genoveva, o narrador reproduz, na íntegra, as falas das persona- gens. Geralmente essa fala é introduzida por um travessão. discurso indireto A velha disse que descansasse, que não era nada… Genoveva andava com a cabeça virada. No discurso indireto, o narrador exprime indiretamente a fala das personagens. Os verbos di- cendi ou verbos de dizer (dizer, responder, perguntar, pedir, ordenar, mandar e outros) aparecem na 3a pessoa, seguidos do conectivo “que” (dicendi afi rmativo) ou “se” (dicendi interrogativo) para introduzirem a fala na voz do narrador. discurso indireto livre Ele pela sua parte começou a crer que, assim como perdeu, estando ausente, assim o ou- tro, ausente, podia também perdê-la. O discurso indireto livre é uma espécie de monólogo interior da personagem, mas expresso pelo narrador, em que este interrompe a narrativa para inserir refl exões daquela. O discurso indireto livre aparece sem verbos dicendi e sem pontuação capaz de marcar as falas da personagem. Leia o conto “Uma galinha”, de Clarice Lispector, que usaremos também para exemplifi car a estrutura narrativa do conto. Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para nin- guém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá fi cou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente al- gum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário 8 O Discurso Narrativo II da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado. Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificul- dade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre. Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gri- tos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabo- toando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchen- do de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos: — Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem! Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentandoseu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão: — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida! — Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros. Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto. Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado. Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos. LISPECTOR, Clarice. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 9 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II O título do conto, “Uma galinha”, é conciso, bem como a estrutura desse gênero. O conto possui poucas personagens: a galinha, a cozinheira, a mãe, o pai, a fi lha e um rapaz. O tempo é curto — as situações mais importantes acontecem no período de um dia. Os dias seguintes aparecem no conto para mostrar que a morte da galinha, inevitavelmente, chegaria. O narrador é observador, não faz parte das personagens, por isso aparece em 3a pessoa: “Era uma galinha de domingo.”; “A família foi chamada com urgência…”. Discurso narrativo: predomina o discurso direto: “— Mamãe, mamãe, não mate mais a gali- nha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!”. Espaço: as ações ocorrem na casa onde vive a família. Estrutura narrativa Equilíbrio inicial: a galinha estava viva e parecia calma. Confl ito: a galinha alça voo, planejando sua fuga. Clímax: a galinha põe um ovo e, por isso, permanece viva. Desfecho: mataram a galinha, comeram-na e passaram-se anos. Fases da estrutura narrativa Manipulação: a intuição ou o acaso fi zeram com que a galinha tentasse fugir. Competência: ela não sabia voar, somente abria as asas para curtos voos. Performance: a galinha é capturada e põe um ovo de pura afobação. Sanção: positiva e lhe garante a vida, pelo menos, por algum tempo. ATIVIDADES Leia um trecho do conto “O peru de Natal”, de Mário de Andra- de, para responder às questões de 1 a 3. O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai, acontecida cinco meses antes, foi de consequên- cias decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôra- mos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves difi culdades econômicas. Mas, de- vido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade in- capaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aque- le aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisi- ção de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha- -prazeres. Morreu meu pai, sentimos muito etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da famí- lia. Uma vez que eu sugerira à mamãe a ideia dela vir ver uma fi ta no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara ape- nas regularmente de meu pai, mais por instinto de fi lho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de abor- recer o bom do morto. Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontanea- mente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas “loucu- ras”. Essa fora, aliás, e desde muito cedo, a minha esplên- dida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmen- te uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondi- das, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia […]. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar em nada. Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, fi gos, passas, depois da missa do galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de castanhas e monoto- nias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”: — Bom, no Natal, quero comer peru. ANDRADE, Mário de. Contos novos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. 1 Classifi que o narrador do conto, retirando do texto um trecho que comprove sua resposta. 10 O Discurso Narrativo II 2 Releia o trecho do conto. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar em nada. Nesse parágrafo verifi ca-se a presença do discurso indireto li- vre, que consiste na expressão da personagem sem o uso do travessão ou dos verbos dicendi. Retire do texto um exemplo desse tipo de discurso. 3 O(s) motivo(s) que leva(m) o narrador do conto a querer fazer uma loucura, ou seja, a querer comer peru no Natal é (são): a) o pedido feito pela mãe para que a levasse ao cinema a fi m de que a dor do luto fosse minimizada e a característica da ousadia, que lhe era própria. b) a ausência do pai que fora, em vida, um desmancha-prazeres e o próprio jeito de ser do narrador, indivíduo não adepto à monotonia. c) uma maneira de reconquistar o ambiente familiar e a con- fi ança de Tia Velha, perdidos por motivos passados. d) desejo de ascensão social e vontade de experimentar o sabor do peru, já que anteriormente a família era muito pobre. e) experimentar felicidades materiais e surpreender os fami- liares com presentes na ocasião do Natal. 4 (Insper-SP) Ele se encontrava sobre a estreita marquise do 18o andar. Tinha pulado ali a fi m de limpar pelo lado externo as vi- draças das salas vazias do conjunto 1801/5, a serem ocu- padas em breve por uma fi rma de engenharia. Ele era um empregado recém-contratado da Panamericana — Serviços Gerais. O fato de haver se sentado à beira da marquise, com as pernas balançando no espaço, se devera simplesmente a uma pausa para fumar a metade de cigarro que trouxera no bolso. Ele não queria dispensar este prazer, misturando-o com o trabalho. Quando viu o ajuntamento de pessoas lá embaixo, apontando mais ou menos em sua direção, não lhe passou pela cabeça que pudesse ser ele o centrodas atenções. Não estava habituado a ser este centro e olhou para baixo e para cima e até para trás, a janela às suas costas. Talvez pudesse haver um princípio de incêndio ou algum an- daime em perigo ou alguém prestes a pular. Não havia nada identifi cável à vista e ele, através de operações bastante lógicas, chegou à conclusão de que o único suicida em potencial era ele próprio. Não que já houvesse se cristalizado em sua mente, algum dia, tal desejo, embora como todo mun- do, de vez em quando… E digamos que a pouca importância que dava a si próprio não permitia que afl orasse seriamente em seu campo de decisões a possibilidade de um gesto tão grandiloquente. E que o instinto cego de sobrevivência levava uma vantagem de uns quarenta por cento sobre seu instinto de morte, tanto é que ele viera levando a vida até aquele preciso momento sob as mais adversas condições. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. Esse texto é abertura do conto “Um discurso sobre o método”, de Sérgio Sant’Anna. A partir da análise dos elementos narrati- vos, julgue (V ou F) para as afi rmações que tratam do confl ito da personagem principal. ( ) Por rotineiramente se considerar relegado a um segundo plano, o protagonista procurou encontrar, perto de si, algum perigo que explicasse o que chamava a atenção do agrupamento de pessoas. ( ) Ao notar a multidão que apontava em sua direção, o ho- mem sentado sobre a marquise do prédio passou a refl etir acerca das condições adversas de vida do ser humano. ( ) O protagonista admite que o suicídio é uma atitude nobre que ele, um trabalhador humilde e insignifi cante, seria incapaz de pensar algum dia. 5 +Enem [H15] Leia o seguinte texto. […] Ali na rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho. O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem. […] Gaetaninho enfi ou a cabeça embaixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empena- chados levavam a tia Filomena para o cemitério. […] Gaetaninho ia berrar, mas a tia Filomena com a mania de can- tar o “Ahi, Mari!” todas as manhãs o acordou. […] Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do so- 3. O narrador, vendo-se livre da natureza cinzenta do pai, permite-se fazer uma loucura no Natal que se aproxima: trocar a reles ceia de outrora pelo peru de Natal. Alternativa b. V F F O narrador é personagem, pois usa a 1a pessoa do discurso para narrar os fatos. “O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai…”; “Fiz tudo o que a vida me apresentou…” são exemplos de trechos que comprovam a resposta. “E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado”. A expressão destacada revela o que pensavam as pessoas a respeito do narrador. Não há travessão ou verbos dicendi para indicar a reprodução de uma fala, fi cando caracterizada, assim, a presença do discurso indireto livre. 11 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II PARA PRATICARCOMPLEMENTARES Leia o trecho fi nal do conto “A causa secreta”, de Machado de Assis, para responder às questões 6 e 7. Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e vol- tou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou as- sombrado. Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e con- templara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Esta- cou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao res- sentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços. Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em solu- ços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde fi cara, saboreou tranquilo essa explo- são de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. Contos escolhidos, 1994. 6 (F. Cultura Inglesa-SP) O narrador relata que Fortunato, ao chegar à porta, estacou assombrado. Isso ocorreu porque este: a) pensou que Garcia descobrira a relação adúltera e por isso chorava ao corpo morto. b) encontrou a sua mulher morta, provavelmente por Garcia, que a tinha beijado. c) confi rmou que a relação entre a sua mulher e Garcia era uma amizade sincera. d) fl agrou a sua mulher morta sendo beijada por Garcia, indício de que fora traído. e) reconheceu que seu amor pela mulher era muito mais ver- dadeiro do que pensara. 7 (F. Cultura Inglesa-SP) A última frase do texto — “[…] saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa” — revela, por meio de: a) hipérbole, a crítica do narrador ao comportamento de For- tunato. b) gradação, a satisfação de Fortunato ante a situação viven- ciada. c) contradição, o pesar que expressa Fortunato com a morte da mulher. d) eufemismo, a avaliação pejorativa do narrador para a atitude de Garcia. nho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de subs- tituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. […] Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído. […] O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho fi cou pronto para a defesa. — Passa pro Beppino! Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua. — Vá dar tiro no inferno! — Cala a boca, palestrino! — Traga a bola! Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai do Gaetaninho. A gurizada assustada espalhou a notícia na noite. — Sabe o Gaetaninho? […] Às dezesseis horas do dia seguinte, saiu um enterro da rua do Oriente, e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente, dentro de um caixão fe- chado com fl ores pobres por cima. […] Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia so- berbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino. MACHADO, Alcântara. “Gaetaninho”. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. “Gaetaninho” foi escrito por Alcântara Machado e faz parte da coletânea de contos Brás, Bexiga e Barra Funda do autor. As- sinale a alternativa que contenha, respectivamente, uma pas- sagem do conto que mostre que as personagens pertencem a uma camada social baixa e outra que sugira que se tratam de imigrantes italianos. a) “De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro.” / “dentro de um caixão fechado com fl ores pobres por cima.” b) “No bonde vinha o pai do Gaetaninho” / “Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.” c) “O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade.” / “Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho.” d) “Gaetaninho enfi ou a cabeça embaixo do travesseiro” / “tia Filomena com a mania de cantar o “Ahi, Mari!” todas as manhãs…” e) “Ali na rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde.” / “— Cala a boca, palestrino!” 5. Ralé signifi ca plebe ou camada social de indivíduos desclassifi cados. QuandoBeppino se dirige a Gaetaninho usando o termo palestrino, o autor mostra que o menino era torcedor do Palestra Itália, time fundado por imigrantes italianos na cidade de São Paulo. Alternativa e. 12 O Discurso Narrativo II e) paradoxo, a ambiguidade dos sentimentos de Fortunato com a situação. 8 (Fuvest-SP, adaptada) No conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, o protagonista é um homem rude e cruel, que sofre violenta surra de capangas inimigos e é abandonado como morto, num brejo. Recolhido por um casal de matutos, Matra- ga passa por um lento e doloroso processo de recuperação, em meio ao qual recebe a visita de um padre, com quem estabelece o seguinte diálogo: — Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruin- dade que fi z, e tendo nas costas tanto pecado mortal? — Tem, meu fi lho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum… […] Sua vida foi entortada no verde, mas não fi que triste, de modo nenhum, porque a triste- za é aboio de chamar demônio, e o reino do céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito. a) A transformação de uma situação é a principal característica de uma estrutura narrativa. O texto apresenta elementos que comprovem a transformação da personagem Augusto Matraga? Justifi que. b) A linguagem fi gurada, amplamente empregada pelo padre, é adequada ao seu interlocutor? Justifi que sua resposta. TAREFA PROPOSTA Leia o texto para responder às questões 1 e 2. Conto de verão no 2: “Bandeira branca” Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferen- tes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. […] ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira […]. Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, […] ela de egíp- cia. […] Passaram o tempo todo de mãos dadas. Só no terceiro Carnaval se falaram. — Como é teu nome? — Janice. E o teu? — Píndaro. […] — Que nome! Ele de legionário romano, ela de índia americana. Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mis- tério de só se encontrarem no Carnaval […]. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia […]. […] quase no fim do baile, na hora do “Bandeira branca”, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o bei- jou na face […]. No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e baila- rina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito […]. Até na boca. […] No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. […] Mas, no ano seguinte, […] lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida. […] Estava diferente. […] Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval. […] quando a banda começou a tocar “Bandeira branca” e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim […]. Ela encostando a cabeça no seu ombro. Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando […] para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. […] […] ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o mo- mento mais feliz da minha vida, “Bandeira branca”, a cabe- ça dela no meu ombro […]. E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo […]. Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu… VERISSIMO, Luis Fernando. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 1 Analise cada etapa da estrutura narrativa do conto. Equilíbrio inicial: Confl ito: Clímax: Desfecho: 2 Analise as fases da estrutura narrativa sob a perspectiva da per- sonagem masculina. Manipulação: Competência: Performance: Sanção: As respostas encontram-se no portal, em Resoluções e Gabaritos. “Bandeira branca”: marchinha de carnaval. 13 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II 3 Identifi que e explique o tipo de discurso presente nos trechos transcritos. a) — A vida é um buraco, meus amigos, murmurou Ale- xandre. De volta da feira, dei uma topada, esfolei o dedo grande, rebentei a correia desta infeliz e andei légua e meia com um pé calçado e outro no chão. Estava aqui pensando no meu tempo de rico. Dinheiro no baú, roupa fi na e um quarto cheio de sapatos de toda a versidade. RAMOS, Graciliano. “História de uma bota”. In: Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 2005. b) Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro — trabalho, tra- balho e mais trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta duma boa revolução!… Ah, se ela fosse homem!… Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada — cozinhava, varria, co- sia. Encerava a casa também, aos sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiénico e muito econômico. REBELO, Marques. “Uma senhora”. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Leia o texto a seguir e responda às questões 4 e 5. — Canudos pretos! exclamou ele. Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio, o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moder- no. Porque, note V. Exª, ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia… — Feia, mas séria, disse-lhe. Olha, entretanto, a graça do cor- te, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição. E vendo que ele abanava a cabeça: — Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, — belo à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodas recitando os seus versos, nem os oradores os seus dis- cursos, nem os fi lósofos as suas fi losofi as. Tu mesmo, se te acostu- mares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque… — Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim. Antes de entender a causa do grito e do gesto, fi quei sem pin- ga de sangue. A causa era uma ilusão. Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata, e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a enfi m, depois vesti o colete. — Por Afrodita! exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite — uma noite com três estrelas apenas — continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar imensamente melancólico, se esco- lheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos… ASSIS, Machado de. “Uma visita de Alcibíades (Carta do desembargador X… ao chefe de polícia da Corte.)”. In: Papéis avulsos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 4 (U. E. Londrina-PR)Com base no texto, considere as afi rmativas a seguir. I. O trecho “uma noite com três estrelas apenas” assinala a ideia de que somente três botões brilhantes do colete con- trastavam com a melancolia evocada pela cor preta do tra- je. II. A passagem assinala o choque cultural entre fi guras repre- sentantes de momentos históricos distintos. Diante do nar- rador, o homem da antiguidade assombra-se com a moda oitocentista. III. Ao reconhecer a supremacia da arte grega, cujo símbolo é o Júpiter Olímpico, o narrador admite a falta de requinte dos vestuários modernos. IV. Ironicamente, a escolha da cor preta para o vestuário de uma noite de gala evoca, no conto, a ideia de luto pela extin- ção dos valores da antiguidade clássica. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afi rmativas I e II são corretas. b) Somente as afi rmativas I e IV são corretas. c) Somente as afi rmativas III e IV são corretas. d) Somente as afi rmativas I, II e III são corretas. e) Somente as afi rmativas II, III e IV são corretas. 5 (U. E. Londrina-PR, adaptada) Com base no trecho citado, con- sidere as afi rmativas a seguir. I. No segundo parágrafo, os termos “melindre”, “mofar” e “so- brolho” signifi cam, respectivamente, “escrúpulo”, “zombar” e “sobrancelha”. II. No último parágrafo, o trecho “És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte” constitui uma reelaboração criativa do ditado popular: “Eu vou morrer e ainda não vou ver tudo”. III. A recorrência do sinal de travessão, a indicar a mudança de interlocutores na narrativa, assinala que, embora seja um conto, “Uma visita de Alcibíades” estrutura-se como uma 14 O Discurso Narrativo II peça teatral. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afi rmativas I e II são corretas. b) Somente a afi rmativas I é correta. c) Somente as afi rmativas II e III são corretas. d) Somente a afi rmativa II é correta. e) Somente a afi rmativa III é correta. Texto para as questões 6 e 7. Dois velhinhos Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo. Ao lado da janela, retorcendo os aleijões* e esticando a ca- beça, apenas um podia olhar lá fora. Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifi xo negro, as moscas no fi o de luz. Com in- veja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro: — Um cachorro ergue a perninha no poste. Mais tarde: — Uma menina de vestido branco pulando corda. Ou ainda: — Agora é um enterro de luxo. Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afi nal debaixo da janela. Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfi ava que o outro não revelava tudo. Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo. TREVISAN, Dalton. Mistérios de Curitiba. Rio de Janeiro: Editora Record, 1979, p. 110. 6 (ESCS-DF, adaptada) A respeito do conto de Dalton Trevisan, é correto afi rmar que: a) é, predominantemente, narrado em discurso indireto livre. b) sua estrutura rompe com os padrões característicos desse gênero. c) trata-se de uma narrativa tradicional com abundantes tre- chos descritivos. d) a narrativa é apresentada de forma irônica pelo narrador. 7 (ESCS-DF) Tendo em vista a linguagem e a estrutura da narrativa, assinale a opção correta, a respeito do conto de Dalton Trevisan. a) A modalidade de linguagem que predomina no conto é a informal, dada a presença abundante de gírias. b) A expressividade do conto tem base no contraste entre a visão restrita de um personagem e a aparente visão ampla do outro. c) A perspectiva do narrador do conto identifi ca-se irrestrita- mente com a visão do velhinho que faleceu, cuja cama se encontrava próxima à janela. d) A estrutura dos diálogos é calcada na expressividade do discurso indireto. 8 +Enem [H23] Leia o seguinte texto. A lebre e a tartaruga Humilhada depois da competição, a lebre correu — dessa vez, sim, bem depressa — tentando escapar da zombaria de todos os bichos do bosque. Ninguém tentou segui-la para que explicasse a razão da derrota, e muito menos para con- solá-la. A plateia estava feliz; todos sentiam-se vingados da petulância da lebre e gritavam vivas à tartaruga, que incansavelmente, e com muita paciência, manteve o passo para derrotar a conven- cida. Carregaram o quelônio nos ombros e desfi laram com ele durante horas, até que caíram exaustos no capim, com um sor- riso de íntima satisfação. Enquanto isso, a lebre se esgueirou com as orelhas abaixa- das até a toca da doninha. Ali, entre brindes e gargalhadas, repartiram com o coiote o prêmio que haviam recebido por apostar na tartaruga. David Hernández Labastida. Não era uma vez… O texto é uma releitura da fábula A lebre e a tartaruga. Assinale a alternativa que mostra que essa versão da história pode ser classifi cada como conto de esperteza e que, portanto, dialoga com outras narrativas orais do imaginário brasileiro. a) A lebre aprendeu, em meio a uma grande humilhação, que não deve se gabar dos demais. Assim, sai cabisbaixa em direção à toca da doninha para receber seu apoio moral. b) A lebre aprendeu que o excesso de confiança é um obs- táculo para alcançar objetivos, reconhecendo a esperteza da tartaruga que saiu vencedora da competição. c) Os animais da fl oresta sentiram-se vingados “da petulância da lebre e gritaram vivas à esperteza da tartaruga, que incan- savelmente, e com muita paciência, manteve o passo para derrotar a convencida”. d) A lebre finge apenas o sentimento de humilhação, pois, na verdade, perdeu de propósito a competição para poder ganhar o dinheiro das apostas junto com a doninha e o coiote, entre brindes e gargalhadas. e) A lebre, num gesto de esperteza, correu para escapar da zombaria dos bichos do bosque. Preferiu não dar explicações sobre a derrota, que lhe parecia extremamente humilhante. PARA PRATICARCONSTRUINDO O TEXTO 1 Leia um trecho do poema “Caso do vestido”, de Carlos Drum- mond de Andrade. Caso do vestido Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego? *Aleijões: deformidades 15 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II Minhas fi lhas, é o vestido de uma dona que passou. Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida? Minhas fi lhas, boca presa. Vosso pai evém chegando. Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido. Minhas fi lhas, mas o corpo fi cou frio e não o veste. O vestido, nesse prego, está morto, sossegado. Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo! Minhas fi lhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. E fi cou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida, se fechou, se devorou, chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou. Carlos Drummond de Andrade Com base na leitura, observamos que o equilíbrio inicial da vida da família foi quebrado pela presença de uma mulher, dona do vestido que ali se encontra. O marido rompe o relacio- namento para ir atrás dessa mulher. Escreva um conto sobre a história do poema “Caso do vesti- do”. Caracterize as personagens, descreva a casa, o vestido, os lugares que frequentam. Imagine diálogos entre o marido e a mulher. A partir do envolvimento do marido com a mulher do vestido, narre como se desenvolveu o confl ito e qual foi o desfe- cho. Se quiser, você pode começar a narrativa pela sanção ou pela perfomance, usando o recurso do flash-back para esclarecer as causas da sanção negativa ou positiva. Para que seu conto fi que bem escrito, siga as orientações: dê atenção à estrutura do conto, observando as fases que o constituem; como o poema sugere o desfecho, o confl ito poderá ser de- senvolvido de uma forma muito interessante; procure escrever de maneira clara e coesa. Lembre-se de dar um título ao seu trabalho. 2 (U. F. São Carlos-SP,adaptada) Narre um conto que contenha novo desfecho para a personagem de Jorge Amado, Gabriela. Gabriela rodopiava em frente ao espelho, admi- rando-se. Era bom ser bonita: os homens enlouque- ciam, murmuravam-lhe frases com voz machucada. Gostava de ouvir, se era um moço a dizer. […] Era ruim ser casada, gostava não… Jorge Amado (1912-2001) A personagem vive um grande confl ito: a liberdade e o cárcere que o casamento representa para ela. Com base nesse confl ito, dê continuidade à história, dando atenção à estrutura do gê- nero conto. RE PR O D U ÇÃ O VÁ EM FRENTE Assista A desigualdade, as injustiças e as exigências do mundo em que vivemos acabam infl uenciando as pessoas que, por sua vez, atingem níveis elevados de estresse ou, até mesmo, a depressão. Algumas chegam a explodir. O fi lme Relatos selvagens, de Damián Szifrón (Ar- gentina, Espanha, 2014) retrata, em seis histórias, justamente a reação dessas personagens, vulneráveis diante de uma realidade que, subitamente, se altera e se torna imprevisível. Leia Os cem melhores contos brasileiros do século, organização de Ítalo Moriconi (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001). O livro reúne narrativas extraordinárias de alguns dos principais nomes de nossa literatura. Os contos dessa antologia traduzem as mudanças do país e as inquietações de várias gerações de brasileiros, em cem anos de produção literária. Vários contos foram usados na produção deste capítulo, vale a pena a leitura! Objetivos: c Compreender os tipos textuais que constroem o gênero crônica. c Identificar as características do gênero crônica, por meio do reconhecimento do assunto, da linguagem, das personagens e do narrador do texto. c Produzir crônicas a partir da transposição entre gêneros textuais, por meio da adequação de suas estruturas composicionais. 16 O Discurso Narrativo II CAPÍTULO 2 Crônica DEFININDO A CRÔNICA Leia fragmentos de algumas crônicas de grandes escritores. A partir deles, e refl etindo sobre as ideias que os constituem, fi cará mais fácil identifi car um gênero textual cujas características levam os teóricos da literatura a classifi car como crônica. Os trovões de antigamente […] Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda, mas eu in- vejava os que moravam do outro lado da rua, onde as casas dão fundo para o rio. Como a casa das Martins, como a casa dos Leão, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia, casa com varanda fresquinha dando para o rio. Quando começavam as chuvas, a gente ia toda manhã lá no quintal deles para ver até onde chegara a enchente. […] Mais de uma vez, no meio da noite, o volume do rio cresceu tanto que a família defronte teve medo. Então, vinham todos dormir em nossa casa. Isso para nós era uma festa, aquela faina de arrumar camas na sala, aquela intimidade improvisada e alegre. […] como se fazia café e se tomava café tarde da noite! E às vezes o rio atravessava a rua, entrava pelo nosso porão, e me lembro que nós, os meninos, torcíamos para ele subir mais e mais. […] Às vezes chegava alguém a cavalo, dizia que lá para cima tinha caído chuva muita, anunciava água nas cabecei- ras, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez crescer, queríamos sempre que aquela fosse a maior de todas as enchentes. Rubem Braga 17 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II O trecho lido possui traços descritivos, o que o faz tornar-se quase cinematográfi co. O leitor, mesmo que não queira, “visita” o local: casa verde, com tamareira na varanda; varanda fresquinha (sinestesia: visão e tato)… Encontram-se aqui características da descrição. Além disso, a linguagem empregada é muito coloquial, mas não isenta de poesia: “Como a casa das Martins, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia…”; “lá para cima tinha caído chuva muita”. As ações registradas são solidárias — oferta da casa para os vizinhos dormirem, camas na sala, intimidade improvisada, muito café — e esse clima era tão marcante que continuava nos sonhos dos meninos. Essas são características da narração. Logo, o fragmento da crônica que você leu pode ser caracterizado como um texto narrativo- -descritivo. A sensibilidade do cronista está presente na percepção das coisas que a maioria das pessoas não enxerga; por meio dela, ele consegue transmitir ações e sensações incríveis, experimentadas pelo lei- tor em algum momento da vida (quem não se lembra de reunião com amigos em noites de chuva?); daí o fascínio e a beleza encontrados na leitura desse tipo de texto, que traz consigo a experiência do dia a dia. A crônica não tem as mesmas características essenciais identifi cadas no conto, porque ela lida com o cotidiano, com fatos corriqueiros, apreendidos subjetivamente pelo cronista. Por isso, o que se busca em seu desfecho é apenas levar o leitor a refl etir sobre o assunto apresentado. O cronista possui ainda o domínio dos signifi cados das palavras para expressar, com perfeição e brevidade, as nuanças de fatos que muitos presenciam, mas nem sempre registram, nem sempre generalizam. Garagem Acordar é uma pequena tragédia. Seja cutucado pela luz, seja estapeado pelo despertador, sempre abro os olhos com um profundo sentimento de injustiça: por que já?! Por que eu?! Tende piedade, Se- nhor, dai-me mais cinco minutinhos — e abençoai, se tiverdes tempo, o inventor da “função soneca”. Quando eu era adolescente, pensava que o problema fosse a escola. Afi nal, quem quer sair da cama às 6 h da madrugada pra estudar adjuntos adnominais e alcalino-terrosos? (Melhor fi car adjunto do travesseiro, como que embalado por alcaloides-celestiais.) […] Agora, virando de um lado pro outro na cama, dividido entre a preguiça e a culpa, ten- to amaldiçoar alguma tarefa enfadonha que supostamente me aguarda na primeira esquina depois da escova de dentes, mas não encontro nada horroroso por lá. Hoje é quinta, dia de começar a crônica. Gosto de escrever a crônica. […] Antônio Prata. In: Folha de S.Paulo, 21 set. 2014. No texto lido, escrito em primeira pessoa, o cronista desabafa sobre o fato de ter de acordar cedo, “por que já?! Por que eu?! Tende piedade, Senhor, dai-me mais cinco minutinhos”. No início, apresentando o tema, o cronista consegue manter o interesse do leitor, exatamente porque, na realidade, os fatos enumerados são vividos, também pelo leitor, em seu dia a dia que, “cutucado pela luz” ou “estapeado pelo despertador”, precisa acordar cedo. No segundo parágrafo, o cronista relembra a época em que o motivo que o tirava cedo da cama era a escola (“pra estudar adjuntos adnominais e alcalino-terrosos”), para, no parágrafo seguinte, questionar-se sobre o motivo de tamanho tédio, já que atualmente faz apenas aquilo de que gosta (“Gosto de escrever a crônica”). Ao tratar de assunto corriqueiro, o autor emprega uma linguagem simples, coloquial: “função soneca”, “pra estudar”; “virando de um lado pro outro na cama”. Lendo a crônica, o leitor certamente concordará com os fatos relatados, vividos por ele diaria- mente, mas nem sempre percebidos em suas pequenas sutilezas. O texto apresenta humor, mas não deixa de ser refl exivo, na medida em que leva o leitor a pensar sobre a maneira como encara esse fato cotidiano. 18 O Discurso Narrativo II A falta que ela me faz Como bom patrão, resolvi, num momento de insensatez, dar um mês de férias à emprega- da. No princípio achei até bom ficar completamente sozinho dentro de casa o dia inteiro. […] Aos poucos, porém, passei a desejar ardentemente essa volta. O apartamento, ao fim de alguns dias, ganhava um aspecto lúgubre de navio abandonado. A geladeira começou a fazer gelo por todos os lados — só não tinha água gelada, pois não me lembrara de encher as garrafas […]. A um canto do quarto um monte de roupas crescia. […] Eu poderia enfrentar tudo […] até que um dia, comecei a sentir no ar um vago mau cheiro. Intrigado, olhei as solas dos sapatos, saí farejando o ar aqui e ali e acabei sendo conduzidoà cozinha, onde ultimamente já não ousava entrar. […] Na panela, a carne assada que a empregada gentilmente deixara preparada para mim, se descom- punha num asqueroso caldo putrefato, onde pequenas formas brancas se agitavam. Mudei-me no mesmo dia para um hotel. Fernando Sabino O cronista, escrevendo em primeira pessoa, reflete sobre um fato corriqueiro urbano — férias para a empregada. As impressões transcritas são do ponto de vista masculino, do ho- mem que não sabe absolutamente nada sobre o serviço doméstico. Os fatos são colocados com humor, característica de um tipo de crônica: geladeira que faz gelo por todo lado, mas não possui água gelada; roupa suja acumulada… e a insensibilidade dele em não perceber a carne assada que, estragada, conseguiu movê-lo para… um hotel. Na crônica, aparece a linguagem coloquial: “monte”; “farejando aqui e ali”… E ainda que a crônica seja humorística, na conclusão, existe uma reflexão a ser feita: as limita- ções encontradas por muitos homens, quando se encontram sozinhos e precisam resolver questões domésticas, e o valor a ser atribuído ao trabalho da empregada doméstica que quase sempre é percebido apenas quando elas se ausentam. Eu sei, mas não devia Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apar- tamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vistas, logo se acostuma a não olhar mais para fora, a não abrir as cortinas. E à medida que se acostuma, esquece o sol, o ar, a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado, porque está na hora. A to- mar café correndo, a ler o jornal no ônibus, porque não pode perder tempo […]. A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. […] A gente se acostuma para poupar a vida […] Marina Colasanti “Eu sei, mas não devia” é típica crônica reflexiva. Deixa pressuposta a enumeração de espaços e atitudes que poderiam ser fascinantes — apartamento de frente, com sol, ar e amplidão; co- mer, degustando, e não sobressaltado. Tudo isso, porém, é lentamente esquecido e não desfrutado pelas pessoas. E mesmo quando essas pessoas têm a percepção desse cotidiano ruim, a realidade em que estão inseridas não permite que transformem a sua existência em algo mais prazeroso. Desse modo, acostumam-se à pequenez, ao limitado, ao desconforto, à pressa, buscando poupar a vida, sem perceber que é a vida que se esvazia e se gasta, no percurso… Ponte aérea Os jornais não deram destaque, nenhum deles contou a história do servo-croata que pas- sou horas detido no aeroporto do Galeão. Ele visitara o Corcovado, se esborrachara nas esca- das que dão acesso ao Cristo, teve de colocar grampos metálicos na cabeça do fêmur, meses 19 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II depois tentou voltar para casa. Ao passar pelo detector de metais, o servo-croata apitou por todos os poros. Sem falar português, foi levado para uma sala, despido e pesquisado. Convocaram uns cães que fareja- ram o cara de alto a baixo. Mais sofreria, se um policial, que fi zera um curso não sei onde, não entendesse o que ele tentava explicar. CONY, Carlos Heitor. In: Folha de S.Paulo, 5 abr. 2011. A crônica de Cony é simples. Conta uma cena vivenciada no aeroporto do Galeão e não regis- trada por nenhum jornal, somente pelo cronista. O fato, rotineiro em um aeroporto, revela carac- terística marcante da crônica — a não percepção de circunstâncias corriqueiras que acontecem à maioria das pessoas. Para o registro do acontecimento, o cronista emprega linguagem bem coloquial: “esborracha- ra”; “apitou por todos os poros”; “cães farejaram o cara de alto a baixo”… Qualquer leitor, ao ler a crônica, irá se lembrar de cena semelhante já vista, como simples es- pectador ou na situação do servo-croata. Bomba, em inglês Relatório de uma instituição internacional que mede a proficiência (habilidade) em inglês testou dois milhões de pessoas de 16 a 30 anos em 44 países. O Brasil pegou um opaco 31o lugar. É mais uma derrota para as nossas cores em educação. Isto num país em que, ao sair à rua, ligar a TV, o cidadão é assolado pela língua inglesa. Nenhuma loja brasileira faz mais liquidação — oferece sales ou 50% off . Ninguém faz en- tregas — faz delivery. Ponta de estoque é outlet. Um resort promete all inclusive […]. Aliás, nada supera as legendas dos filmes em DVD. O rapaz pergunta à moça “Are you in love?” (Está apaixonada?). E a legenda: “Você está no amor?”. Mais hilariante mesmo é o personagem que se descabela e grita “I can’t help myself!” (Não consigo evitar!), enquanto a legenda diz: “Não posso ajudar a mim mesmo!” Pensando bem, o 31o lugar está muito bom. CASTRO, Ruy. In: Folha de S.Paulo, 6 abr. 2011. A partir do título: “Bomba, em inglês” (linguagem informal com signifi cado de reprovação), o cronista refl ete, com leveza, sobre o desempenho medíocre do país em exame de profi ciência em inglês. Inclui ainda humor, ao enumerar, com ironia, situações em que os brasileiros substituem a língua portuguesa pela inglesa, no dia a dia, além da confusão encontrada nas legendas, em português, dos diálogos, em inglês. Agora veja se, após a leitura de várias crônicas, algumas características fi caram evidentes para você reconhecer esse gênero textual. Quem apresenta os acontecimentos ou as refl exões é o narrador, pois o cronista é a fi gura de “carne e osso”, aquele que escreveu o texto, o seu autor. O assunto é sempre o resultado da perspicácia do cronista: eventos do cotidiano, fatos do noti- ciário; incidentes domésticos; situações inusitadas etc. A crônica possui linguagem própria; nasceu a partir de textos que eram publicados em jornais ou em revistas; normalmente é um texto breve. O desfecho costuma apresentar refl exões sobre o assunto abordado. As personagens são levemente caracterizadas, com traços genéricos, geralmente sem nomes pró- prios: a moça, a velha, o deputado, a mulher, a dona de casa, seu Chiquinho, dona Nina etc. Muitas vezes, o cronista conversa com o leitor. 1 OBSERVAÇÃO 1 As crônicas podem ser escritas em primeira ou em terceira pessoa e são classifi cadas como textos: descritivos, narrativos, narrativo-descritivos, de humor, refl exivos, metalinguísticos, poéticos e ainda outros. 20 O Discurso Narrativo II ATIVIDADES Leia o trecho da crônica a seguir e responda às questões de 1 e 2. Depois entrou em casa: entrou e parece que não gostou ou não entendeu. Foi perguntando onde é que ficava o elevador. E sabendo que não havia elevador, indagou como é que se ia para cima. Nós explicamos que não havia lá em cima. Ele ficou completamente perplexo e quis saber onde é que o povo morava. E não acreditou direito quando lhe afi rmamos que não havia mais povo, só nós. Calou-se, percorreu o resto da casa e as dependên- cias, se aprovou, não disse. Mas, à porta da sala de jantar, inesperadamente, deu com o quintal. Perguntou se era o Russell. Perguntou se tinha escorrega, se tinha gangorra. Perguntou onde é que estavam “os outros meninos”. Cla- ro que achava singular e até meio suspeito aquela porção de terra e árvores sem ninguém dentro. Todas essas observações, fê-las ainda do degrau da sala. Afinal, estirou tentativamente a ponta do pé, ta- teou o chão, resolveu explorar aquela floresta virgem. Sacudia os galhos baixos das fruteiras, arrancava fo- lhas que mastigava um pouco, depois cuspia. Rodeou o poço, devagarinho, sem saber o que havia por trás daquele muro redondo e branco, coberto de madeira. Enfim, chegou debaixo da goiabeira grande, onde se via uma goiaba madura, enorme. Declarou então que queria comer aquela pera. Lembrei-me do Padre Car- dim — não era o Padre Cardim? — que definia goiabas como “espécie de peros, pequenos no tamanho” —, onde se vê que os clássicos e as crianças acabam sem- pre se encontrando. Decerto porque uns e outros vão apanhar a verdade nas suas fontes naturais. QUEIROZ, Rachel. Conversa de menino. São Paulo: Global, 2004.(Me- lhores Crônicas.) 1 A crônica de Rachel de Queiroz classifi ca-se, predominantemen- te, como: a) descritiva. b) narrativa. c) de humor. d) metalinguística. e) poética. 2 (U. E. Londrina-PR) Com base no texto, julgue (V ou F) as afi r- mativas a seguir. ( ) Em “Mas, à porta da sala de jantar, inesperadamente, deu com o quintal”, há uma expressão informal que revela o modo de o narrador adulto se distanciar da perspectiva do menino. ( ) Em “Todas essas observações, fê-las ainda do degrau da sala”, há o emprego de linguagem formal exemplifi cada pelo uso da ênclise. ( ) Em “Enfi m, chegou debaixo da goiabeira grande, onde se via uma goiaba madura, enorme”, as perspectivas do narrador adulto e do menino aproximam-se por meio do uso do pronome “se”. ( ) Em “Decerto porque uns e outros vão apanhar a verdade nas suas fontes naturais”, há a formulação de uma refl exão do narrador adulto motivada por observações do compor- tamento geral de crianças. 3 (UEAL) Leia um trecho da crônica “A carta”, de Rubem Braga. Existe, no jornal em que trabalho, como existe em muitos jornais, um redator essencialmente agrícola. É um homem encarregado de explicar diariamente aos seus leitores qual o melhor meio de plantar batatas. Recebe do interior mis- teriosos embrulhinhos registrados, contendo lagartas, pe- dacinhos de raízes e punhados de terra, para opinar sobre esses objetos. E opina. É um of ício heroico, remediar a dis- tância a dor de barriga de um porco ou matar os insetos que atacam um pé de abacate situado a novecentos e cinquenta quilômetros da redação do jornal. Na sua correspondência de hoje, o meu colega recebeu uma carta que o deixou profundamente triste. Passou-a à minha mesa, dizendo que eu devo respondê-la. Na sua opinião, eu sou um literato, e a carta é de literata. Veio de Lençóis. Quem a assina […] é uma senhorita que, estando profun- damente sem ter o que fazer, diverte-se escrevendo cartas anônimas a todos os jornalistas. […] Creio que mora em alguma fazenda, onde se entrega à contemplação da natureza e à leitura de bons livros. Ela mandou dizer ao meu colega agrícola […] que está procu- rando se consolar, no campo, das mágoas que a cidade lhe causou. E pede conselhos minuciosos a respeito. Apud FRANCHETTI, Paulo Elias Allane e PECORA, Antônio Alcir Bernardez. Rubem Braga — Literatura comentada. São Paulo: Abril, 1980. Levando-se em consideração esse trecho, depreende-se que as crônicas, em geral: a) expressam-se por meio de linguagem formal e rebuscada que visa se distanciar do coloquial. b) têm semelhanças com a notícia, texto em que o repórter também deve ser impessoal ao relatar os fatos. c) optam por expressões poéticas, não admitindo observações irônicas ou cômicas por parte do narrador. d) são textos que, por sua extensão, se tornam inadequados para a publicação em jornais e revistas. e) apresentam narrador em primeira pessoa o qual se atém a eventos do cotidiano para elaborar o texto. Na crônica predomina a narração. Os verbos no passado mostram as mudanças operadas pela ação da personagem. Alternativa b. F F V V 3. A questão é sobre a defi nição do gênero crônica, em que o narrador é o próprio cronista, portanto, geralmente, narra em primeira pessoa eventos do cotidiano. Alternativa e. 2. Na primeira afi rmação, não há expressão informal e, se houvesse, aproximaria o adulto da criança ao invés de distanciá-los. O pronome “se” de que trata a terceira afi rmação não é responsável por aproximar as pers- pectivas do adulto e da criança. 21 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II 4 (Fuvest-SP, adaptada) Leia o excerto. Ninguém mais vive, reparou? Vivencia. “Estou vivenciando um momento dif ícil”, diz Maricotinha. Fico penalizado, mas fi caria mais se Maricotinha estivesse passando por ou viven- do aquele momento dif ícil. Há uma diferença, diz o dicioná- rio. Viver é ter vida, existir. Vivenciar também é viver, mas implica uma espécie de refl exão ou de sentir. Não é o caso de Maricotinha. O que ela quer dizer é viver, passar por. Mas disse vivenciar porque é assim que, ultimamente, os pe- dantes a ensinaram a falar. Adaptado de Ruy Castro. In: Folha de S.Paulo, 27 jun. 2012. Preencha a lacuna da frase, empregando o verbo viver ou o verbo vivenciar, de acordo com a preferência do autor do texto. Justifi que sua escolha. a) Quem já viveu a perda de um parente conhece a dor que estou sentindo. b) No trecho “os pedantes a ensinaram a falar”, a pa- lavra “pedante”, considerada no contexto, pode ser substituída por pretensioso . 5 +Enem [H18] Leia o texto a seguir. O seguro morreu de chato Toda longa caminhada começa com um primeiro post usando o aplicativo da Nike. Passarinho que come pedra andou usando tóxico. De grão em grão, a galinha tem uma alimentação super rica em fi bras. Em briga de marido e mulher, se chama a polícia. Se Maomé não vai à montanha, é porque ela está sendo bombardeada. Quem conta seus males, espanta. O pior cego é o Andrea Bocelli. Os cães ladram, a caravana para pra postar foto de cachorro no Instagram. Quem não arrisca, não morre de atropelamento. Casa de Ferrero, espeto de Lindt. O Santos, em casa, não faz milagre. A fé move montanhas de dinheiro. Nunca diga nunca, a não ser em ditados. A pressa é inimiga da perfeição e deseja a ela vida longa pra que ela veja cada dia mais sua vitória. Água mole em pedra dura tanto bate até que cansa. Quem espera sempre cansa. Quem não tem net, caça com gato. A justiça tarda, mas antes tarde do que nunca diga nunca diga dessa água não beberei. Antes tarde do que só depois do Globo Repórter. O seguro morreu de chato. A voz do povo é a voz da Claudia Leitte. Cabeça vazia, ofi cina do pastor. Todos os caminhos levam ao coma. Um olho no gato, outro no namorado dele. Jogar Chávez para colher Maduro. Uma andorinha não faz ideia. Aos amigos, a justiça brasileira. Aos inimigos, a malha fi na. Gregorio Duvivier. Folha de S.Paulo, 28 jul. 2014. Na crônica de Duvivier, a estratégia para gerar o efeito de hu- mor decorre do(a): a) linguagem rebuscada empregada pelo narrador no trata- mento do assunto. b) inserção de diálogo com o leitor acerca do acontecimento narrado. c) referência a frases prontas para elaborar outra com sentido diferente. d) referência a histórias bíblicas de forma descontextualizada. e) contraste entre o tema abordado e a linguagem usada. PARA PRATICARCOMPLEMENTARES As questões de 6 a 8 tomam por base uma passagem da crônica “O pai, hoje e amanhã”, de Carlos Drummond de Andrade. A civilização industrial, entidade abstrata, nem por isso me- nos poderosa, encomendou à ciência aplicada a execução de um projeto extremamente concreto: a fabricação do ser humano sem pais. A ciência aplicada faz o possível para aviar a encomenda a médio prazo. Já venceu a primeira etapa, com a insemi- nação artifi cial, que, de um lado, acelera a produtividade dos rebanhos (resultado econômico) e, de outro, anestesia o sentimento fi lial (resultado moral). O ser humano concebido por esse processo tanto pode con- siderar-se fi lho de dois pais como de nenhum. Em fase mais evoluída, o chamado bebê de proveta dispensará a incuba- ção em ventre materno, desenvolvendo-se sob condições artifi ciais plenamente satisfatórias. Nenhum vínculo de me- O verbo que preenche adequadamente a lacuna é viver. Para o cronista, viver, e não vivenciar, deve ser empregado no sentido de “passar por uma experiência”, pois vivenciar implicaria também uma atitude refl exiva. O vocábulo “pedante” pode ser substituído por “pretensioso”, no sentido de “aquele que se pretende culto, alardeando conhecimento que não possui”. 5. O autor faz referência a frases prontas/ditados populares com a intenção de criar humor e, ao mesmo tempo, faz uma crítica àquilo que se aceita como sabedoria popular que, em muitos casos, é questionável. Alternativa c. 22 O Discurso Narrativo II mória, gratidão, amor, interesse, costume— direi mesmo: de ressentimento ou ódio — o ligará a qualquer pessoa res- ponsável por seu aparecimento. O sêmen, anônimo, obtido por masturbação profi ssional e recolhido ao banco especia- lizado, por sua vez cederá lugar ao gerador sintético, extraí- do de recursos da natureza vegetal e mineral. Estará aboli- da, assim, qualquer participação consciente do homem e da mulher no preparo e formação de uma unidade humana. Esta será produzida sob critérios políticos e econômicos tecnicamente estabelecidos, que excluem a inútil e mesmo perturbadora intromissão do casal. Pai? Mito do passado. Aparentemente, tal projeto parece coincidir com a tendên- cia, acentuada nos últimos anos, de se contestar a fi gura tra- dicional do pai. Eliminando-se a presença incômoda, ter- -se-ia realizado o ideal de inúmeros jovens que se revoltam contra ela — o pai de família e o pai social, o governo, a lei — e aspiram à vida isenta de compromissos com valores do passado. Julgo ilusória esta interpretação. O projeto tecnológico de eliminação do pai vai longe demais no caminho da quebra de padrões. A meu ver, a insubmissão dos fi lhos aos pais é fenômeno que envolve novo conceito de relações, e não ruptura de relações. De notícias e não notícias faz-se a crônica, 1975. 6 (Vunesp) Com ironia e fi ngida concordância, o cronista afi rma que o resultado fi nal do projeto encomendado à ciência apli- cada será: a) a prova de que a ciência é mais poderosa que qualquer divindade. b) o monopólio genético, com um só país produzindo a popu- lação. c) a eliminação das diferenças culturais no planeta. d) a exclusão dos pais na geração de bebês. e) a criação de androides, que substituirão os seres humanos. 7 (Vunesp) De acordo com a crônica, o autor acredita que a inse- minação artifi cial apresentará uma consequência no sistema de valores familiares: a) anestesia do sentimento fi lial. b) negação do poder de Deus. c) valorização da fi gura paterna. d) divinização da ciência. e) quebra das leis da natureza. 8 (Vunesp) “Pai? Mito do passado.” Esta pergunta e sua resposta, de acordo com o conteúdo da crônica, sintetizam um dos argumentos que, aparentemente, fundamentaram o projeto: a) a autoridade dos fi lhos sobre os pais foi a base da civilização. b) a fi gura paterna é necessária à sociedade. c) a mãe educa melhor o fi lho para a vida real. d) a estrutura familiar não foi descrita em mitos e lendas. e) a função do pai é hoje ultrapassada e dispensável. TAREFA PROPOSTA Texto para as questões de 1 a 3. O culpado é ele mesmo Relutei em tocar nesse assunto, não só porque já se escreveu muito sobre ele, como porque, ao abordá-lo, passo a inte- grar a “glória” póstuma com que sempre contam crimino- sos como o autor da recente matança de escolares no Rio de Janeiro. Desprezados, ofendidos, marginalizados, humilha- dos, ignorados, esses assassinos sabem, porque se espelham em precedentes, que, depois de sua morte, serão fi nalmente vistos e comentados e sua foto será estampada por jornais, revistas e cadeias de televisão. […] A impressão que às vezes se tem é que ninguém é mais res- ponsável por nada. Acredita-se numa espécie de determi- nismo para o comportamento humano, que seria sempre efeito de “causas” como a pobreza, a ignorância ou a injus- tiça. Não tivesse o inocente sido vitimado por elas, não se tornaria criminoso, como se os pobres, os ignorantes e os injustiçados fossem majoritária e necessariamente crimino- sos. A ruindade, a mesquinharia, a inclinação pela violência, a inveja, a cobiça, o egocentrismo, o cultivo dos maus senti- mentos, nada disso é levado em conta. […] Quando o criminoso apresenta problemas de saúde mental, não pode ser responsabilizado pelos seus atos. Então quem pode? […] […] Acho que não dá para se pôr no lugar das mães e dos pais atingidos, somente eles sabem do que passaram, do que estão passando e do que nunca passará. […] […] A fi losofi a do nosso sistema penal é a recuperação do criminoso, mas tem gente que é ruim irrecuperavelmente e quem quiser pode chamar isso de doença. Que diferença faz, notadamente para as vítimas? […] RIBEIRO, João Ubaldo. In: O Estado de S. Paulo, 17 abr. 2011. 1 Sobre a crônica, assinale o que for correto: a) O cronista aproveita-se de um fato que causou espanto e indignação a toda a sociedade brasileira e leva o leitor a As respostas encontram-se no portal, em Resoluções e Gabaritos. 23 P R O D U Ç Ã O D E TE X TO O Discurso Narrativo II refl etir sobre a ação da justiça em nosso país. b) O cronista narra um fato que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro que tem como culpada a própria sociedade. c) Para o cronista, a ruindade, a mesquinharia, a inclinação pela violência, a inveja, a cobiça, o egocentrismo, o cultivo dos maus sentimentos, nada disso pode ser levado em conta no julgamento do fato. d) O cronista coloca-se no lugar dos familiares das vítimas e demonstra saber o que eles realmente sentiram naquele momento. e) Para o cronista o nosso sistema penal é efi ciente na recupe- ração de criminosos. 2 Podemos classifi car a crônica como: a) narrativo-descritiva. b) metalinguística. c) refl exiva. d) poética. e) humorística. 3 No início da crônica, João Ubaldo Ribeiro afi rma ter relutado em tocar no assunto que desenvolve em seu texto. Ele revela por que não queria escrever sobre o ocorrido? Texto para as questões de 4 a 6. A pátria de ponteiros Numa demonstração de abertura e inequívoca coragem, Fritz pediu uma feijoada. Eu comentei que, aparentemente, ele não estava tendo difi culdades de adaptação. O alemão disse que não. Por conta do seu trabalho — instala e conserta máquinas de to- mografi a computadorizada —, viajava o mundo todo. A única coisa que lhe incomodava, no Brasil, era nunca saber quando as pessoas chegariam aos encontros. O problema era menos o atra- so, confessou, do que nossa difi culdade em admiti-lo: “O pessoa manda mensagem, diz ‘tô chegando!’, eu levanta do minha ca- deirrra e olha prrro porrrta da restaurrrante, mas pessoa chega só quarrrenta minutos depois”. Então me fez a pergunta que só poderia vir de um compatriota de Imanuel Kant: “‘Quando a brrrasileirrro diz tô chegando!’, em quanto tempo brrrrasileirrro chega?”. Pensei em mentir, em dizer que uns atrasam, mas outros aparecem rapidinho. Achei, porém, que em nome de nossa dignidade — ali, naquela mesa, eu era a “pátria de ponteiros” — o melhor seria falar a verdade: “Fritz, é assim: quando o brasileiro diz ‘tô chegando!’ é porque, na real, ele tá saindo”. Tentei atenuar o assombro do alemão: veja, não é exatamente mentira, afi nal, ao pôr o pé pra fora de casa dá-se início ao processo de chegada, assim como ao sair do útero se começa a caminhar para a cova. É só uma questão de perspectiva. “Mas e quando o pessoa diz ‘tô saindo!’?” Expliquei que as declarações do brasileiro, no que tange ao atraso, estão sem- pre uma etapa à frente da realidade — são uma manifestação do seu desejo. Se a pessoa diz que está chegando, é porque tá saindo, e se diz que tá saindo, é porque ainda precisa tomar banho, tirar a roupa da máquina e botar comida pro cachorro. Fritz fi cou pensativo. Uma morena entrou no bar e percebi certa reverberação nos hormônios teutões. Era a chance de mudar de assunto, mas eu havia sido mordido pela mosca da sinceridade e resolvi ir até o fi m: revelei que, além do “tô chegando!” e do “tô saindo!”, ele teria de aprender a lidar com “chego em 15!” e “cinco minutinhos!”. “Chego em 15!” é sinônimo de “tô chegando!”: quer dizer que o patrício está saindo. Quinze minutos é o tempo má- gico que o brasileiro acredita gastar em qualquer percurso — a despeito da experiência, da Sulamérica trânsito e do Waze. Da Mooca pra USP? “Chego em 15!” De Santo Amaro pra Cantareira? “Quinze!” Mais uma vez, não é propriamente mentira. Se pegássemos todos os faróis abertos e todos os carros saíssem da nossa frente, em tese, vai que…? Já o “cinco minutinhos!” é um pouco mais vago. Pode
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