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A Herança Escravagista do Quarto de Empregada na Arquitetura Brasileira1 Nicole Spagnoli Diez2 Viviane Francisco Rocha3 RESUMO: O presente artigo tem como objetivo a análise da influência do período colonial, uma época escravocrata, no racismo do século XXI, tanto na questão arquitetônica como social. Para isso, buscou em livros e artigos científicos a construção de conceitos como racismo estrutural, mito da democracia racial e a relação destes com as transformações da arquitetura brasileira. O caminho percorrido demonstra como o cômodo destinado aos empregados se modificou desde as senzalas até os apartamentos contemporâneos. PALAVRAS-CHAVE: Racismo estrutural; arquitetura brasileira; quarto de empregada. 1 O presente artigo é resultado do curso antirracismo e feminismos do INOVA FAAP. 2 graduanda em Direito do 4º semestre da FAAP. 3 graduanda em Arquitetura do 3º semestre da FAAP. 1 INTRODUÇÃO A condição de vida precária da população negra no Brasil, desde o início da escravidão até o século XXI, é reflexo do racismo estrutural presente no país. Após uma tardia abolição da escravidão, o país nunca teve como foco o desenvolvimento de políticas públicas para integração desse grupo social, que ainda se encontra marginalizado na sociedade. Um reflexo disso é visto no mercado de trabalho, evidenciado na posição que a população preta ocupa em relação à branca por ter menor acesso à educação e, consequentemente, menor qualificação, ocupando cargos de menor remuneração. Diante desse cenário, a presente pesquisa tem como objetivo analisar as condições históricas e sociais que levaram ao desenvolvimento arquitetônico do quartinho de empregada. Essas características configuram um retrato de como o “racismo normaliza a superexploração” (ALMEIDA, 2019, p. 138). Para tanto, a primeira parte da pesquisa abordará o racismo a partir do mercado de trabalho, especialmente quanto à condição a que a empregada doméstica é sujeitada, trazendo um breve histórico das situações que a população preta passou desde a escravidão, a Abolição até o século XIX, ainda vivendo quase as mesmas circunstâncias do passado, resguardadas as devidas mudanças. Com isso, são levantados dados que evidenciam como um menor nível de escolaridade afeta a entrada no mercado de trabalho e sua evolução para cargos superiores, que em sua maioria são ocupados por brancos, restando-lhes trabalhos precários, com baixa remuneração e que dão ensejo ao racismo perpetuado pela sociedade. Já a segunda parte do artigo procura entender como a arquitetura brasileira foi se modificando durante os anos e, principalmente, a precariedade do espaço da empregada no ambiente da casa. Começa pela época colonial com as senzalas, passa pelo estilo pós primeira guerra mundial com a chegada das edículas, pelas casas modernas e o circuito à francesa, e termina com os apartamentos, que trazem a separação das áreas. A pesquisa mostra ambientes hostis, que, mesmo se modificando durante o tempo, não perderam a essência de segregação e discriminação. A dependência da empregada doméstica no Brasil é uma das consequências da escravidão possível de se perceber nos traços racistas presentes em recortes espaciais dentro da arquitetura. Desde as casas coloniais, onde os escravos eram tratados como animais, até os apartamentos do século XXI, a segregação e a presença de ambientes hostis são evidentes. Mesmo após a abolição, o plano de necessidades da casa brasileira continuava excluindo a empregada negra nas edículas que ficavam no quintal, enquanto as empregadas brancas imigrantes ficavam no porão. A primeira mudança percebida ocorreu após a 1ª guerra mundial, quando os cômodos dos serviçais passaram a ser dentro de casa, porém, agora, com separação de áreas e circulação (CARRANZA, 2017). Com o surgimento dos primeiros apartamentos, esse fator de segregação se intensifica, de modo que os elevadores são divididos entre social e de serviço, o que “facilita” a separação da circulação e das áreas. 2 REFLEXOS DO RACISMO NO MERCADO DE TRABALHO O racismo é um fenômeno presente nas relações de trabalho, reiterado nas “desigualdades nas condições materiais de vida e de trabalho dos(das) negros(as) brasileiros(as)” (MARTINS, 2013, p. 12-13); tal “exploração/opressão de raça/etnia” (MARTINS, 2014, p. 114) pode ser percebida pela diferença entre cargos e salários. A condição de trabalho vivenciada pelas pessoas negras sempre foi precária e exploratória, especialmente na escravidão, em que eram vistas como objetos, não havendo leis que as protegessem. Dormiam em senzalas amontoadas, sem higiene pessoal ou boa alimentação: só lhes era dado o mínimo para a sobrevivência. Seu dia de trabalho era longo, servindo os senhores com atividades pesadas e sem descanso. Em 1888, após a abolição da escravidão, as pessoas negras não se encontraram em uma situação muito diferente, pois não tiveram possibilidade de qualificação ou alfabetização, o que gerou mais um fator de dificuldade para a inserção no competitivo mercado de trabalho das pessoas livres4. Dessa forma, tal população teve que migrar para trabalhos informais, de pouca remuneração e sem perspectiva de saída dos estratos sociais inferiores, cenário ainda refletido no século XXI5. “Mesmo depois da institucionalização da CLT em 1943, a situação do negro não se modificou consistentemente, devido ao processo de 4 “estudos do DIEESE mostram que existe diferenciação da remuneração paga para uma mesma função entre negros e não negros, inclusive nas ocupações que oferecem maior remuneração, como medicina e engenharia, que requerem maior qualificação, observa-se pouca participação dos negros. A maioria da população negra atuam ocupações com menores salários e que requerem menor qualificação, criando assim um ciclo negativo que se perpetua ao longo do tempo.” (Mercado De Trabalho: Diferenciais Na Ocupação E Nos Rendimentos Entre Negros E Não Negros, p. 115) 5 “no período de 1995 a 2006 a informalidade atingiu relativamente mais a população preta e parda. Ou seja, enquanto 53,3% da PEA branca estava inserida em ocupações informais, 65% da PEA preta e parda vivenciava essa situação. Ao verificarem os indicadores a partir do enfoque étnico-racial e de gênero, constataram que 51,1% da PEA branca era masculina, enquanto 54,1% era feminina. Da PEA preta e parda inserida na informalidade, 61,5% eram homens e quase 75% mulheres” (PAIXÃO E CARVANO apud MARTINS, 2014, p. 124-125) desqualificação de sua mão de obra para a indústria (Fernandes, 1964/2013).” (MAIA; ZAMORA, 2018, p. 268) A mudança da forma de trabalho e a valorização da “acumulação capitalista, no Brasil, se evidenciam no desemprego6 (..) em combinação (...) flexibilização e a desregulamentação dos direitos sociais, especialmente, via terceirização” (MARTINS, 2014, p. 117), que levam à precarização do trabalho em que a população negra, majoritariamente, se integra, visto que o racismo contribui para esse processo: “construção de uma trajetória do negro no desemprego, na informalidade e na precarização das relações de trabalho, nesse contexto de crise e reestruturação produtiva (MARTINS, 2014, p. 117) Desde a abolição e a inserção da população negra no mercado de trabalho, foi criado um movimento para passar a “ideia de inferioridade do(da) negro(a) e de sua incompatibilidade para assumir o trabalho assalariado”. (MARTINS, 2014, p.118), acarretando na migração da população europeia e numa política de embranquecimento7, na tentativa de buscar uma “força de trabalho compatível com o modelo de desenvolvimento desejado na época” (MARTINS, 2014, p. 118), pois, como já dito, não tinham nenhuma especialização em tais serviços, sendo mais fácil substituí-los do que ensiná-los e inseri-los no mercado. No século XX, a população negra estavapredominantemente inserida no setor primário da economia8 e, a partir de meados de 1960, passou a ocupar cargos na “indústria pesada”, mas, em ambos os casos, eram “ocupações manuais e de menor nível de rendimento” (PORCARO apud MARTINS, 2014, p 119). Isto leva à concentração em trabalhos irregulares não atingidos pelas leis trabalhistas que protegeriam esses trabalhadores, ficando assim marginalizados na sociedade. 6 “ Entre 1995 a 2006, dos desempregados: 60,4% são pretos e pardos, dos quais 22,2% são homens e 40,2% mulheres. Na PEA branca, os desocupados equivalem a 38,3%, sendo 9,8% de homens e 28,5% de mulheres. Os dados apresentados demonstram que, embora a flexibilidade seja um quadro geral, os(as) negros(as) continuam participando em grau diferenciado do desemprego e do emprego com maior grau de precariedade, portanto, em condição diferenciada do nível de exploração do trabalho pelo capital.” (PAIXÃO E CARVANO apud MARTINS, 2014, p. 125) 7 A política de embranquecimento foi um movimento pensando pelo governo da época, visando desaparecer com a população negra através da miscigenação entre brancos, considerada como a “raça superior, (...) uma saída civilizatória para o Brasil. Na seleção natural, o negro se extinguiria pela seleção social, que diz respeito à raça branca ser mais forte e mais bela, e por isso dominadora socialmente” (MAIA; ZAMORA, 2018, p. 278) 8 De fato, na década de 1940, quando se consolidam as relações de trabalho sob bases corporativistas, os negros e “mulatos” formavam 40% dos que se encontravam inseridos no setor primário da economia, compondo 46% dos empregados, 41% dos autônomos e 22% dos empregadores. Em 1950, essa população é acrescida, contando com 42,5% dos que trabalhavam nesse setor, sendo 47% dos empregados, 43% dos autônomos e 22% dos empregadores (HASENBALG apud MARTINS, 2014, p.119) Na década de 1990, em que mais direitos trabalhistas são garantidos, a população negra encontrava-se nas “mais altas taxas de subemprego, de menor nível de rendimento e de não acesso à Previdência Social” (MARTINS, 2014, p. 123). Quando as crises de emprego atingem o Brasil (1980 e 1990), as primeiras parcelas a serem prejudicadas são essas que já não possuem boas condições para se manter, o que é usualmente medido pelo assalariamento9 que pode ser explicitado pelo “peso relativo do emprego sem a carteira assinada, na População Economicamente Ativa10 (IPEA) ocupada/assalariada” (MARTINS, 2014, p. 123). “os(as) trabalhadores(as) negros(as) os(as) não inseridos(as) em uma profissão regulamentada pelo Estado, a sua condição como trabalhador(a) se resume a uma condição de não cidadão(ã) em meio aos(as) cidadãos(ãs) inseridos(as) no processo produtivo formalizado e com o reconhecimento está tal, conforme os termos da definição de “cidadania regulada” de Santos (1987, p. 68)”. (MARTINS, 2014, p. 227) Para as mulheres, foi observado por Bairros (1991, p. 182-183) que se encontravam em “serviços pessoais (cabeleireiros, manicures, estilistas, lavadeiras, passadeiras, confecção, dentre outros serviços) e serviços domiciliares”, mas que os pessoais eram realizados predominantemente por mulheres brancas11, um reflexo do racismo, pois exigem um maior contato com o público, enquanto nos serviços domiciliares a maioria dos cargos era ocupada por trabalhadoras pretas12. Ou seja, as mulheres pretas sofrem uma dupla exploração/opressão, tanto pela relação de gênero como pela relação étnico-racial (MARTINS, 2014, p. 120) 9 “No período de 1995 a 2006, por exemplo, na condição de assalariados com carteira assinada, 36,8% eram brancos(as) e 28,5% eram pretos(as) e pardos(as). Enquanto os homens brancos chegavam a 33%, as mulheres pretas e pardas totalizavam 22%. No emprego assalariado sem carteira assinada, os homens pretos e pardos chegavam a 25,2% e os brancos a 17,2%. Entre as mulheres, as pretas e pardas perfaziam um percentual ligeiramente superior” (PAIXÃO E CARVANO apud MARTINS, 2014, p. 123). 10 “no período de 1995 a 2006, perfaz 25% para a PEA branca. Dentro desse grupo étnico-racial, 27,3% eram para a PEA masculina e de 23,9% para a feminina. Quando se analisam os indicadores da PEA preta e parda assalariada, o peso relativo foi de 37,6% dos empregados sem carteira assinada. Na decomposição desse grupo étnico-racial por sexo, identifica-se que a PEA masculina chegou a 40,1%, enquanto a feminina foi de 32,5%. Portanto, a análise a partir do enfoque étnico-racial evidencia que os pretos e pardos (55,5%) ocupam, em maior proporção, os trabalhos informais e sem carteira assinada. (PAIXÃO E CARVANO apud MARTINS, 2014, p. 123). 11 “nos serviços pessoais, as mulheres brancas estão mais presentes, chegando a 24,2%, ao contrário das negras que chegam a 12%”. (BAIRROS apud MARTINS, 2014, p. 120), 12“No período de 1995 a 2006, entre os(as) trabalhadores(as) pretos(as) e pardos(as), nessa ocupação, 75,8% estavam sem carteira assinada. Dentro desse grupo étnico-racial, 76,1% eram mulheres e 63,6% eram homens. Logo, esses(as) trabalhadores(as) não possuíam os seus direitos trabalhistas garantidos. Nessa ocupação, os brancos chegavam a 68,9%. Desse percentual, 57,1% eram homens e 69,8% mulheres. No grupo de trabalhadores(as) domésticos(as) com carteira assinada, 53,8% eram pretos(as) e pardos(as), sendo que, do total de empregados sem carteira assinada, o peso dos homens pretos e pardos chegou a 3,3% e o das mulheres a 58,2%” (PAIXÃO E CARVANO apud MARTINS, 2014, p. 123) “trabalho doméstico, por estar associado a um maior grau de informalidade e precarização, é mesmo assumido essencialmente pelos(as) negros(as)” (MARTINS, 2014, p. 124) Como nos empregos privados, essa mesma estrutura repete-se para cargos públicos, em que há discrepância entre brancos e negros quanto a “empregos hierarquicamente mais elevados e mais bem remunerados e os empregos menos prestigiados e com um menor salário” (ANDREWS apud MARTINS, 2014, p. 121), apesar do maior nível de escolaridade. Assim, a preferência pelo branco é maior, tanto na admissão ao emprego quanto no salário que deve ser pago, mesmo que em cargos hierarquicamente elevados13. “a discriminação racial passou a excluir de ocupações mais nobres aqueles que, depois de muito esforço, haviam alcançado maior renda e escolaridade. No ambiente desfavorável do mercado de trabalho, o bloqueio à ascensão social tende a continuar crescendo no país, sobretudo para a população negra, mesmo quando esta alcança maior escolaridade” (POCHMANN apud MARTINS, 2014, p. 126). A discriminação dá-se em meio “a um regime de trabalho não universalizado para toda a classe trabalhadora e a um racismo encoberto pelo mito da “democracia racial” (MARTINS, 2014, p. 128). Defendia-se que o Brasil era o perfeito exemplo de convivência harmoniosa entre as diferentes raças, não importando sua cor, não existindo barreiras legais que impedissem a ascensão social, uma construção “mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais” (GUIMARÃES, p. 2). Considerava-se, assim, o Brasil um país moderno, que não se deixava levar pelo binarismo, mesmo influenciado pelo fascismo latente na época da Segunda Guerra Mundial. Era pressuposto que, por brancos e negros viverem juntos e sem conflitos aparentes, estaríamos numa democracia14 e viveríamos em harmonia racial, mas essa perspectiva não considerava que, apesar de não-legalizada a segregação (como o apartheid), ainda sim a população negra sofria de forma institucionalizada e estruturada. Portanto, o mito da democracia racial camufla a segregação e o racismo estrutural na sociedade brasileira, visto que, desde o período da colonização, a população negra foi usada como objeto-mercadoria e, mesmo após o fim da escravidão, não foi inserida apropriadamente no mundo da cidadania, algo que tem reflexo até hoje, quando 13 dados da Pesquisa Nacionalpor Amostra de Domicílio (PNAD) de 1976 e de 1982 e do Censo de 1980. 14 “A democracia a que Bastide se refere, inspirada em Freyre e Amado, não pode ser reduzida a direitos e liberdades civis, mas alcançaria uma região mais sublime: a liberdade estética e cultural, de criação e convívio miscigenado”. (GUIMARÃES apud BASTIDE 2002, p.10) “continuaram marginalizados e sem condições objetivas de ascender socialmente na sociedade de classes” (SILVA; CARVALHO, p. 10). A própria abolição da escravidão não foi um ato meramente humanitário, mas principalmente econômico e político. Manter um escravo era mais caro do que pagar salário, além de que, com o salário, o trabalhador remunerado faria parte do mercado consumidor e poderia comprar os produtos 15, sendo justamente esta a pressão da Inglaterra no sentido de aumentar o desenvolvimento econômico e liberar a mão-de-obra escrava para não atrasar esses planos. A mudança da visão e da economia da época levou a diversos atos16 que por fim conduziram à abolição da escravidão. Nesse período deu-se, também, a chegada de imigrantes da Europa, o que ocasionou uma injusta disputa entre os recém-inseridos trabalhadores e esses novos. Observou-se uma preferência pelo europeu, com a “marginalização do negro em detrimento da mão-de-obra branca e de preferência europeia considerada mais “adaptada” ao trabalho nos moldes da sociedade capitalista de classes” (SILVA; CARVALHO, p. 17). “superioridade técnica e moral do trabalhador europeu e que processo de marginalização que o negro sofre dentro da sociedade de classes acontece porque este não conseguiu se ajustar as exigências e as técnicas do trabalho capitalista por causa da permanência valores culturais da ordem tradicionalista em suas consciências.” (SILVA; CARVALHO apud FERNANDES, p. 18). Estas práticas foram consideradas racistas, por Domingues, promovendo a exclusão social e econômica dos negros, pois, apesar de livres e possuindo direitos como qualquer outro cidadão, eram muito comuns: “Quando enfocamos a dinâmica da inserção do negro na sociedade de classes na primeira república em São Paulo, aventamos a hipótese de que as práticas racistas discriminatórias e as desigualdades raciais plasmaram o processo de organização do trabalho livre, gerando o banimento dos negros das velhas relações de trabalho e impedindo-lhes o acesso às novas oportunidades de emprego. ” (SILVA; CARVALHO, p. 19 apud DOMINGUES, 2004, p.106). 15 SCHAHIN, Marcos Renato. A história brasileira através da filosofia do direito, São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 38 16 “o tratado de 1810, firmado entre D. João e a Inglaterra, obrigava o príncipe regente a proibir o tráfico negreiro, sendo que em 1815 foi assinado um novo tratado onde a Inglaterra conseguiu que D. João proibisse o comercio de escravos ao norte do Equador, a convenção de 1817 permitia a inspeção de navios mercantes suspeitos de traficar escravos (...). Em 1827, foi assinado com o Brasil um tratado que extinguiria o tráfico de escravos ao país no período de três anos. (...) No brasil, muitos estudiosos que vinham da Europa começaram a defender a causa abolicionista, assim começaram a surgir às leis abolicionistas no país (...) a Lei Eusébio de Queiroz reprimia o tráfico negreiro (...). Em 1871 a Lei do Ventre Livre garantiu que os filhos dos escravos nasceriam livres. Em 1885, a Lei dos Sexagenários, garantiu a liberdade aos escravos com mais de 65 anos. Em 1888, a Lei Áurea que extinguiu a escravidão no Brasil. Mesmo após a libertação, os negros continuaram sendo marginalizados pela sociedade, pois as leis abolicionistas não se preocuparam com a integração dos negros no país. (SCHAHIN, 2008, p 39-44) Escravizados por séculos e privados de qualquer liberdade, os negros não se adequaram de imediato ao novo estilo de vida, mas também não queriam se submeter às antigas condições. Já os senhores não viam os negros de outra forma senão como escravos. O Estado, embora devesse oferecer políticas de inclusão e acolhimento, mais uma vez deixou o negro sem nenhuma assistência. Assim, criou-se a imagem de que os negros eram “indivíduos irresponsáveis, inúteis, vagabundos e incapazes de cumprir acordos” (NUNES, 2008, p. 250). Perdendo seus trabalhos, sua identidade e até mesmo sua cor (política de embranquecimento) foram compelidos a viver no mundo dos brancos. Nesse cenário, sem conhecimento ou educação, não sabendo ler, escrever ou prestar qualquer outra atividade que não a do trabalho no campo, sem bons contatos para obter indicação ou até mesmo causar boa impressão, só restou a marginalização, especialmente do homem, que passou a viver de trabalhos temporários, em geral ‘pesados’, como os da construção civil. Já no caso das mulheres, conseguiram se inserir no mercado de trabalho através de atividade com que já tinham familiaridade nos tempos de escravidão, trabalhando em casas como domésticas, lavadeiras, engomadeiras, costureiras, praticamente na mesma servidão encaixada em outros moldes. (NUNES, 2008, p. 251). Tal contexto ainda persiste nos séculos XX e XXI com a mulher preta17 submissa à patroa branca e às condições degradantes em que vivem, como o quartinho da empregada, naturalizado e normalizado por viverem em uma situação dessa, “responsabilizando por essa dificuldade uma suposta “natureza” dos negros” (FALCÃO, 2020 apud FERNANDES 2008a, p.100). Se não se submeterem a isso, morrem de fome. Assim, como na época da escravidão/pós-escravidão, encontra-se o mesmo cenário e dilema18, passando da “escravidão física para entrar na escravidão moral” (FALCÃO, 2020 apud FERNANDES 2008a, p.109). Florestan Fernandes coleta depoimentos para saber o que as pessoas pensavam na época e, com estes dados, corrobora suas pesquisas. Em uma dessas entrevistas, a seguinte fala deve ser destacada: “os pretos, quando a gente trata bem, pensam que são iguais, que 17 “o serviço doméstico remunerado é responsável por 67,8% da ocupação”. Nesse caso, verifica-se a existência de uma “apartação” entre negras e brancas, ou seja, nos serviços domiciliares, as negras, particularmente as pretas, chegam a 86,4% das trabalhadoras ocupadas. (MARTINS, 2014, p. 120). 18 “das relações [...] próximas da escravidão” e de garantias de “condições mínimas de sobrevivência material” –, os(as) racialmente discriminados(as) historicamente distanciaram-se do acesso a direitos mínimos, a exemplo de auxílio-doença, aposentadoria e seguro-desemprego”. (MARTINS apud BOSCHETTI, 2014, p. 127) podem fazer tudo que querem!” (FERNANDES, 2008a, p. 337), fala muito comum e que bem representa o pensamento das pessoas quando se tem uma empregada, especialmente negra, julgando-as “folgadas” porque, como foi dito no próprio depoimento, “pensam que são iguais”. Um clássico exemplo do racismo estrutural enraizado no pensamento brasileiro, em que, apesar de todos serem iguais (juridicamente), no íntimo e nas ações não é isso que é visto e praticado. Ou ainda, também retirado de outro trecho de Fernandes (A Integração do Negro na Sociedade de Classes, 2008a), quanto mais dedicado for, maior estima o patrão terá por ele, sendo até considerado um “preto de alma branca” (outra expressão racista), pois se parece com um branco e se aproxima dele: “criado fiel e devotado ou fazer jus aos atributos correlatos (mesmos sem ser empregado ou dependente), mais o “negro” encontra correspondência afetiva, compreensão e consideração no ânimo do “branco” (FERNANDES, 2008a, p.354 apud FALCÃO, p. 94).” O racismo está presente em diversos campos da vida em sociedade, tanto explicitamente na linguagem cotidiana quanto inconscientemente19, em situações do cotidiano, por exemplo, o salário, que, segundo Silvio Almeida, é a “explicação mais vulgar ao atribuir a desigualdade salarial ao mérito”, em uma referência ao que aquela pessoa merece ganhar pelo serviço prestado(Racismo Estrutural, 2019, p. 124). Apesar de exercer a mesma função, deter as mesmas técnicas e qualificações, ainda assim, sua produtividade seria a justificativa usada, não sendo a mais correta, pois não explica por que negros ainda recebem um menor salário20 já que presentes os mesmos requisitos de uma pessoa branca. Ou ainda, a posição que eles ocupam, geralmente mais baixa, de 19 Num estudo feito por Lia Vainer Schucman, ela propõe uma entrevista para entender como o branco se insere no contexto do racismo. Por exemplo, na fala de uma das entrevistadas "Às vezes me chamam de branca negra, porque eu não tenho os traços delicados, eu tenho lábios grossos, nariz largo e, mesmo sendo loira, meu cabelo é ruim" (Lilian). “A fala de Lilian, mais uma vez, nos leva a pensar que o que está em jogo, para os padrões estéticos, não é a tonalidade da pele, mas sim aquilo que se refere aos traços, feições e cabelos associados culturalmente ao branco europeu, sem miscigenações. Quando Lilian diz que seu cabelo é ruim, na mesma frase em que diz que às vezes é chamada de branca negra, associa à negritude os próprios traços que ela mesma não considera bonitos ou bons.” (Schucman, 2014, p. 90) 20 Uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de ONGs (Organizações Não Governamentais -Abong) em 2019 mostra discrepâncias entre a remuneração e cargos ocupados por negros e brancos, foi levantado que a população negra ganha em média 27% a menos que as brancas nas ONGs. “Entre as pessoas que receberam, em 2019, mais de 20 salários-mínimos nas ONGs, 44,42% eram homens brancos; 31,45% mulheres brancas; 12,97% homens negros; e 10,01% mulheres negras. Já na faixa de remuneração de até meio salário-mínimo, a maioria é de homens negros (38,19%), seguidos de mulheres negras (37,11%), mulheres brancas (12,81%) e homens brancos (11,11%). Os dados levantados apontam ainda que a maior participação de pessoas negras (41,62%) está na ocupação de auxiliar de manutenção predial. E a maior presença de pessoas brancas (64,81%) situa-se na ocupação de pesquisador ou pesquisadora. Na função de diretor, em 2019, 59,25% das pessoas eram brancas, e 25,07%, negras. Nas gerências, 59,27% eram brancas, e 27,60%, negras.” (ESTUDO EXPÕE DIFERENÇA DE SALÁRIOS ENTRE NEGROS E BRANCOS EM ONGS, 2020) pouco prestígio, menor remuneração (ALMEIDA, 2019, p.125) – isso quando têm um trabalho e não estão desempregados. “A situação da população negra poderia ser explicada pelo que denominava de causas cumulativas” (ALMEIDA apud MYRDAL, 2019, p. 125). O racismo começa mesmo antes da pessoa nascer, na medida em que não se tem acesso ao básico para sobreviver: atendimento médico, alimentação, moradia. Nem depois de nascer, sem educação de qualidade, agravada no futuro quando se entra no mercado de trabalho (gerando o desemprego por não ter qualificação), além de tantos outros fatores enfrentados ao longo da vida. Tudo isso leva a uma precarização e obriga a população preta e parda a aceitar trabalhos com as menores remunerações21, impedindo a ascensão social e uma mudança de vida. Torna-se um ciclo vicioso. Percebe-se, então, que o “racismo é derivado das relações econômicas capitalistas”, pois a população negra é forçada a se adequar a tal modelo, mas não teve e nem tem o suporte necessário para tanto. Desde o momento da mudança e da Abolição, até os dias de hoje, essa população é deixada à margem e à sua própria sorte. Uma ‘mera’ consequência do capitalismo: “transformando, ao longo do séc. XVIII, de ‘deixar viver ou fazer morrer’ a ‘fazer viver e deixar morrer’” no contexto da biopolítica de Foucault (1999) “A solução do racismo envolveria algum tipo de mudança institucional e reorientação moral - segundo Myrdal - ou até mesmo estrutural e revolucionária - segundo Cox – que, de um modo ou de outro, exigiriam interferências na relação Estado/mercado, e não apenas em comportamentos.” (ALMEIDA, 2019, p. 127) Assim, segundo Silvio Almeida, surgem teorias para evitar a interferência do Estado no mercado, baseando-se no neoclassicismo: i) Teoria da discriminação por preferência ou da propensão à discriminação (Gary Becker, A economia da discriminação, 1957) – racismo é um comportamento de informações insipientes ou ignoradas, guiados por um pensamento utilitarista, que vê o negro como “desutilidade”, pois não dá o retorno esperado. Um racismo que afeta o capitalismo como um todo, pois deixa esse pensamento impedir a contratação de alguém somente por essa ignorância. ii) 21 “localiza mais de 80% dos(das) negros(as) em apenas cinco setores de atividades com prevalência de trabalho secundário, ou seja, nos setores de trabalho instáveis e mal remunerados, marcados pela constante troca de emprego: [...] no nordeste: setor primário 52,4%; prestação de serviço, 10,9%; comércio de mercadorias, 7,2%; indústria tradicional, 7,0%; e a construção civil, 6,6%;.[...] em São Paulo [...] prestação de serviços (20,1%) [...] com o crescimento da demanda por serviços pessoais, de confecção, de higiene pessoal etc., e domiciliares (15,5%), no qual se destaca o serviço doméstico remunerado (11,7%) [...] [e] outros serviços de prestação de serviços (4,6%) [...] A construção civil e a prestação de serviços [...] quase 40% das pessoas ocupadas no primeiro e 32,7% no segundo são negras, enquanto a média em São Paulo é de 24,4%.” (MARTINS apud PORCARO, 2014, p. 122) Teoria do capital humano – diferentes níveis de produtividade entre negros e brancos, justificando nas falhas educacionais refletidas nas falhas de mercado, já que historicamente o branco teve mais acesso à educação e ao conhecimento do que o negro. iii) Teoria da discriminação estatística – as desigualdades são frutos das decisões dos agentes de mercado, preconceitos reproduzidos pela sociedade, naturalizado em nosso povo, evidenciando o racismo institucionalizado. Nesse sentido, encontra-se um fenômeno chamado de ameaça do estereótipo (ALMEIDA, 2019, p. 131), em que os grupos já historicamente marginalizados não conseguem se ver mudando de situação e “aceitam” seu espaço e lugar na sociedade, reiterando o racismo e o estereótipo que foi colocado, como, por exemplo, mulher negras e pobres trabalhando de domésticas. “O excesso de intervenção do Estado, leis limitadoras da liberdade contratual e educação insuficiente seriam os reais motivos da ignorância que levaria a práticas discriminatórias” (ALMEIDA, 2019, p. 131) Pensando nisso e na situação das empregadas domésticas como um exemplo ilustrativo, pode-se “dizer que o racismo normaliza a superexploração do trabalho” (ALMEIDA, 2019, p. 138) ao impor condições precárias de ambiente de trabalho (especialmente de descanso, o quartinho da empregada), como um baixo valor do salário, a exploração da força de trabalho desproporcional e a falta de direitos que deveriam ser garantidos (férias, décimo terceiro salário e outros benefícios empregatícios). O racismo parte do pressuposto da discriminação racial, ou seja, a diferenciação das pessoas segundo as características físicas específicas de um grupo. Um grupo que detém o poder, usa as vantagens e os privilégios que sua categoria racial oferece, ao passo que outro será desvalorizado e discriminado, de forma consciente ou não, numa forma sistemática e estrutural, o que se manifesta nos espaços econômicos, políticos e institucionais. Assim, Silvio de Almeida (2019) define três formas em que o racismo pode ser manifestado: individual, institucional e estrutural, mas, no fim, toda forma de racismo acaba sendo estrutural. A individual passa uma ideia “patológica” tanto individual como coletiva, sendo constituída pelas outras duas (institucional e estrutural). Já a forma institucional, para Almeida (2019), remete-se os modos de funcionamento das instituições que corroboram os privilégios de certos grupos de acordo com a raça, como setivessem sido criadas para reforçar a posição de cada um na sociedade, “as instituições são a materialização das determinações formais na vida social” (ALMEIDA, 2019, p. 32), moldando e naturalizando essas práticas quando não questionamos a falta da presença das pessoas negras em altos cargos (públicos e privados22) ou aceitamos as condições por eles vividas, como menores salários, falta de escolaridade e empregos. Por fim, a forma Estrutural, inerentemente ligada com a Institucional, está diante da normalidade da segregação nas relações sociais políticas, jurídicas e econômicas, determinando as regras que devem ser seguidas. Mesmo que procuremos punir o individual e o institucional, a única coisa que verdadeiramente irá mudar a sociedade será promover educação e internalizar valores, para que, assim, seja alcançada a mudança em todas as formas de racismo. Segundo Silvio Almeida, a educação antirracista deve ser concomitante a mudanças institucionais. Nesse sentido, o próximo capítulo da presente pesquisa abordará o quartinho de empregada como um reflexo arquitetônico da teoria racial apresentada. 3 TRANSFORMAÇÕES ARQUITETÔNICAS: DAS SENZALAS ATÉ OS APARTAMENTOS Entender o que significa o quarto de empregada em uma residência e o seu significado social vai muito além da arquitetura. É preciso relembrar o passado para entender o presente, tendo em vista que o quartinho de empregada carrega a herança das relações escravistas, excludentes e patriarcais, que relembram um período de segregação e servidão no Brasil. Durante a história da arquitetura brasileira, o espaço dos empregados se mostra presente nos programas de necessidades das habitações voltadas à elite, sendo derivado do processo de colonização, passando por mudanças com os anos – nos fundos ou no quintal, no porão, no sótão ou separado do restante da edificação sob a forma de edícula – mas sempre situado na área de serviço. Em relação às dimensões espaciais, à circulação interna, à inserção de janelas, aos aspectos ambientais (ventilação, iluminação e acústica), os quartos sempre encontraram situações precárias. (MORAIS, 2017). A dependência da empregada doméstica dentro da residência unifamiliar, pode ser compreendida pela relação trabalho/moradia. Já no âmbito de produto de formação social, é entendida pelo oprimido, como espaço de exploração contínuo e pelo opressor, como o lugar da falta de privacidade e individualidade do trabalhador doméstico, ocasionando problemas como o assédio sexual e a confirmação de hierarquias socioespaciais entre 22 “Assim, o domínio de homens brancos em instituições públicas – o legislativo, o judiciário, o ministério público, as reitorias de universidades etc. – e instituições privadas – por exemplo, a diretoria de empresas” (ALMEIDA, 2019, p. 32) ambos (MAIA; MORAIS, 2018). As configurações espaciais físicas são determinadas pelos fatores sociais, ressaltados por discursos da sociedade e da época em que elas se inserem. É no espaço edificado que se formam as estruturas de hierarquia nas relações entre patrão-empregado (LEITÃO, 2014). Desde o século XVII, com o estilo bandeirista, as casas possuíam uma separação para as acomodações destinadas aos donos da casa, hóspedes e empregados. A planta da casa tinha uma configuração em que os dois cômodos principais ficavam em direção à capela, enquanto a varanda alpendrada (conhecida também como corredor) servia como a única conexão entre o dono da casa e as demais pessoas que ali estivessem. A cozinha ficava externa à casa, junto ao alojamento dos escravos, que não tinham a menor importância no plano de necessidades da casa. Quando não dormiam na senzala, que possuía um espaço extremamente hostil, podiam dormir perto dos fogões ou nos porões, afinal a imagem do escravo era a mesma de um animal (LEMES, 1996). “O ato de morar é uma manifestação de caráter cultural e enquanto as técnicas construtivas e os materiais variam com o progresso, o habitar um espaço, além de manter vínculos com a modernidade também está relacionado com os usos e costumes tradicionais da sociedade” (LEMOS, 1996, p.08) Figura 1 - Casa Bandeirista Sítio do Padre Inácio, desenho a partir de: KATINSKY, Julio Roberto. Casas Bandeiristas: Nascimento e reconhecimento da arte em SãoPaulo. São Paulo: Instituto de Geografia, USP, 1976. http://revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine-1/arquitetura/o-quartinho- de-empregada-e-a-tradicao Figura 2 - Preparação de farinha de mandioca no início do século XIX, segundo gravura de Rugendas. (Biblioteca Nacional da Alemanha) http://profmarcioramos.blogspot.com/2013/07/quarto-grande-e- senzala.html Após a Abolição da Escravatura em 1888, houve mudanças no quadro socioeconômico. O trabalho remunerado começava a aparecer com a chegada dos imigrantes e junto a isso a necessidade de uma edícula fora de casa, não mais uma senzala. As edículas possuíam quartos e banheiros, com acesso independente do quintal. Agora com novos programas, a casa burguesa passa a adotar a distribuição à francesa. O que significa uma maneira de distribuir a casa, de forma que cada cômodo tenha uma única função específica e que haja um plano de circulação em que, para acessar a zona de estar e repouso não se necessite passar pela área de serviço (CARRANZA, 2017). Vale ressaltar que há distinções conforme a prestação dos serviços domésticos. Existe uma hierarquia entre: faxineira, cozinheira e babá. Dessa forma, as trabalhadoras que estavam no topo dessa pirâmide, como as babás, brancas, dormiam nos quartos internos à casa, perto das cozinhas ou nos porões, já as faxineiras, em sua maioria pretas, dormiam nas edículas (MAIA; MORAIS, 2018). “A acomodação da criadagem apresentou problemas naquela época em que era chique ter empregadas brancas, preferivelmente estrangeiras, para não só servirem de preceptoras dos filhos como para executarem toda ordem de trabalho doméstico. Essas serviçais dormiam infalivelmente nos porões, nas mansardas que os novos estilos proporcionavam ou em quartos ao lado da cozinha. As famílias remediadas, sem muitos luxos no arranjo da casa, ainda recorriam à mão de obra crioula, acomodando-a no quintal, ao lado das galinhas e cachorros.” (LEMOS, 1996, p.52) Figura 3 - Croqui com edícula equipada com lavanderia e garagem. Fonte: Reis Filho, 2014, p. 75. Editado por Fernando Morais. https://www.editorarealize.com.br/editora/ebooks/join/2019/5f5928b782e57_09092020161047.pdf No século XX, após a Primeira Guerra Mundial, ocorreram mais mudanças no programa de necessidades. Com a chegada da industrialização e de eletrodomésticos, a copa surgiu para facilitar a vida das donas de casas e se tornar a “área” da família, como também, tomou o lugar da antiga varanda, a qual acabou se tornando um apêndice da sala de estar (LEMES, 1996, p. 66). A arquitetura pós-industrial, traz novos sistemas construtivos como o concreto armado, aço e vidro. Isso permitiu com que as paredes deixassem de ser unicamente estruturais e passassem a ser de vedação, o que implicou na criação do conceito de ‘planta livre’. Dessa forma, os conceitos internos da casa burguesa paulistana se transformaram completamente. O que antes era dividido por suas funções, a arquitetura moderna mudou para uma divisão feita por maior fluidez dos espaços junto a uma valorização das áreas sociais e, em alguns casos, a integração entre o externo e o interno. (CARRANZA, 2017). “A edícula no quintal, com suas dependências de serviço e de morada da empregada doméstica e a copa ao lado da cozinha vieram singularizar soluções eminentemente brasileiras.” (LEMES, 1996, p.66) Figura 4 – Casa no Pacaembu, Arquitetos Eduardo Corona, Luis Fernando Corona e Roberto José G. Tibau, 1951 http://revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine-1/arquitetura/o-quartinho-de- empregada-e-a-tradicao Em 1935,ocorre a aparição dos primeiros apartamentos. Houve um preconceito vindo da classe alta, pois a primeira impressão era que os edifícios eram parecidos com cortiços habitados por negros, então os percursores do aluguel foram pessoas da classe média. Além desse preconceito racista da classe alta, presente sobre os apartamentos, foi possível perceber também, a ideia de segregação que permaneceu, dividindo áreas e criando lugares de transição apenas para empregados. Essas moradias mostram uma planta com um tamanho cinco vezes maior que os quartinhos de empregada e com uma área de serviço separada do resto, além de apresentar dois elevadores, o social e o “dos fundos”, reforçando a tradição que existe desde a escravidão de manter os trabalhadores domésticos o mais longe possível da área social (LEMES, 1996, p. 78). Desde a década de 20, quando surgiram, até o século XXI, observa-se no programa de necessidades essa circulação à francesa, já citada anteriormente, independentemente da Lei Municipal Nº 16.050, de 31 de julho de 2014, que determina a não segregação dos acessos (CARRANZA, 2017). "Tanto no projeto como no uso, essa área de serviço faz apelo ao mais atávico dos valores da classe média: a cozinha do apartamento continua a ser a cozinha da casa-grande, um lugar afastado do espaço de vida do patrão: é o lugar dos empregados, raramente o da dona da casa: a empregada continua a ser uma escrava cuja presença é malvista nas áreas da família; e seu pequeno quarto com a porta abrindo para o tanque de lavar roupa no corredor de serviço ainda é a senzala.” (HOLSTON, 1993, p.188) Figura 5 - Exemplo de apartamento com duplo acesso e quarto de empregada junto a área de serviço. http://revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine-1/arquitetura/o-quartinho-de-empregada-e-a- tradicao Figura 6 - Uma representação do quartinho de empregada no Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, em Belo Horizonte. Foto: Flavio Tavares / O TEMPO https://www.otempo.com.br/economia/lei-das-domesticas-nao-resolveu-problemas-estruturais-do-oficio- 1.2352677 O Brasil é um dos únicos países que possuem separação entre o espaço de serviço e o social, imutável até o século XXI. Dentre esse aspecto, a relação entre o público e privado é bem demarcada, no sentido de que, as trabalhadoras que moram nas casas onde trabalham, são delimitadas a ficarem nas áreas públicas da casa, ou seja, de serviço, mas ao mesmo tempo encontram o contrastante paradoxo entre o que é ‘seu’ e o que não é. Após trabalhar incessantemente o dia inteiro, é esperado que a empregada que reside na casa dos patrões, encontre descanso no quartinho que é destinado a ela. Todavia, o espaço http://revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine-1/arquitetura/o-quartinho-de-empregada-e-a-tradicao http://revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine-1/arquitetura/o-quartinho-de-empregada-e-a-tradicao é o ambiente mais simbólico e indicador da segregação social que ainda persiste e que toma forma através das relações no trabalho doméstico. Este cômodo pode ser visto como a fronteira entre o espaço privativo da funcionária e o espaço de trabalho público (RODRIGUES; MACIEL; BILHALVA, 2018). Para tratar de público e privado, partimos da ideia de que os espaços vividos são carregados de sentidos sociais e culturais: o espaço privado (ou a casa) é o local de moradia, da tranquilidade, do conforto social, do conhecido, do descanso – o bom e o belo, o decente; por outro lado, o espaço público, é o lugar do movimento, de perigo, do desconhecido, do genérico, da batalha, da luta, do trabalho (a subsistência como instância pública). São as oposições que necessitam uma da outra, marcadas por relações de tensão que, no entanto, se complementam e interagem (ARENDT, 2005; DAMAT- TA, 2000, 2001). O privado, portanto, seria o local de não-trabalho. Entretanto, para o trabalho doméstico essa dicotomia não se mantém, como podemos acompanhar ao longo da história dessa atividade como uma herança do sistema escravista (RODRIGUES; MACIEL; BILHALVA, 2018, p.314) Figura 6 - Planta baixa de unid. do Edifício Armando Lobo (1978) Fonte: Adaptado do banco de dados do gEPA Sem Escala. https://eventos.ufu.br/sites/eventos.ufu.br/files/documentos/136_f_dependencia_de_empregada_15_0.pdf 4 CONCLUSÃO A partir disso, é possível analisar que o racismo no Brasil se perpetua até o século XXI, com os reflexos enraizados na sociedade. A forma como a empregada doméstica é tratada, apenas intensifica uma ideia que vem desde os tempos coloniais. Desde poucas oportunidades no mercado de trabalho para pessoas negras, o que a faz trabalhar em empregos como doméstica, até a precariedade em seus cômodos. É notório como o racismo está em todas as esferas e campos da sociedade, sendo as condições que a doméstica se submete, exemplificado pelo quartinho da empregada, um reflexo de um racismo estrutural englobando o institucional e o individual ao interferir na vida econômica, na habitação, no pensar e na normatização dessa conjuntura. Evidenciando o mito da democracia racial que, supostamente, viveriam em harmonia pela discriminação não ser jurídica, mas que não considera todo histórico e contexto que a população preta ainda enfrenta no século XXI. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. Editora Jandaíra, 1ª edição, 2019. BAIRROS, L. Mulher Negra: o reforço da subordinação. In: LOVELL, Peggy (Org.). Desigualdades Sociais no Brasil Contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 1991.DOMINGUES, Petrônio José. 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