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2 Índice 1. Redescobrir um Deus capaz de encher o vazio dos corações humanos 2. Somos chamados para voltar, a partir de novas perspectivas, às fontes que nos falam de Deus 3. O Deus da Bíblia se distingue desde o início fundamentalmente de todas as outras divindades das religiões da Mesopotâmia 3.1. Um Deus que tem poder, embora não se situe do lado dos poderosos 3.2. Um Deus que não se fixa por dentro de um Templo 3.3. Um Deus que não exige primordialmente cerimônias cúlticas em seu louvor 4. Os textos da Revelação apresentam um Deus que, com vigor, se posiciona contra toda opressão de pessoas humanas. Com isso, porém, incomoda muito aqueles que querem dominar 5. Deus quer que o ser humano tenha uma vida ampla, plena e repleta de felicidade 6. Se Deus defende os fracos, então todos os seus seguidores deveriam fazer o mesmo 7. Deus, desde o início, se faz conhecer como “go’el”, isto é, como defensor daqueles que não têm mais nenhum defensor 8. O contexto religioso em que Jesus se move 8.1. Lei, pureza e sacrifícios que se tornaram opressivos para o povo 8.2. Jesus recupera o cerne libertador daquilo que é a intenção da Torá 8.3. A repreensão endereçada a uma instituição sacrossanta 9. A maneira pela qual os Evangelhos apresentam a atitude de Jesus em relação ao Templo deve ser interpretada como Revelação teológica que vale para todas as religiões 10. Críticas neotestamentárias do sistema religioso também têm significado universal e se dirigem a toda e qualquer religião e Igreja 11. Em Jesus, Deus revela que uma ordem oposta a Deus até pode ser justificada recorrendo a Deus 12. Vistos da perspectiva da Revelação, as atitudes e o agir de Jesus devem ser compreendidos como atitudes e agir do próprio Deus 13. As opções fundamentais de Jesus são as opções fundamentais de Deus 13.1. Deus opta preferencialmente pelos pobres 13.1.1. Na sua opção pelos pobres, Deus assume a causa dos perdedores, e não a dos vencedores 13.1.2. Na sua opção pelos pobres, Deus concretiza a sua opção pelos injustiçados 13.2. Deus opta pela justiça e é contra toda opressão 13.3. Deus opta pela misericórdia e é contra todo legalismo 13.4. Deus opta pelo serviço e é contra o poder 13.5. Deus opta pela vida 14. Em Jesus, Deus se revela como defensor também daqueles que foram rejeitados pelo sistema religioso 15. Jesus Cristo e a necessária mudança da nossa perspectiva antropológica 15.1. Redescobrir a Revelação como base para a reflexão antropológica 3 15.2. A Kenosis de Deus implica também a Kenosis do homem 15.3. Assumir a perspectiva de Deus 15.4. Recorrendo à imagem de um Deus todo-poderoso, é possível justificar toda aspiração humana pelo poder 15.5. A imagem do Deus todo-poderoso não desafia muito o ser humano 16. Por que Deus, em Jesus Cristo, não se manifestou como cientista, general, ou pelo menos como grande artista? 17. Natal, ou a Revelação de um Deus do qual ninguém precisa ter medo e que por causa disso pode ser amado 17.1. No evento de Natal, Deus se manifesta a nós como ele realmente quer ser conhecido 17.2. O Natal revela que Deus não se interessa pelos mecanismos de prestígio e de poder 17.3. Deus quer ser amado em vez de temido! 17.4. Um Deus que se manifesta como criança pode ser amado, mas essa criança também pode ser rejeitada e pisada 17.5. Deus, que se manifesta humildemente como criança, identifica-se de maneira plena com as pessoas 18. Em Jesus, Deus nos revela a sua humildade 18.1. Um Deus humilde não corresponde à imagem habitual de Deus 18.2. Um Deus humilde corre o risco de ser crucificado 18.3. Um Deus humilde que opta preferencialmente pelos vencidos desafia todos os nossos sistemas 18.4. Um Deus humilde que opta pelo servir questiona toda e qualquer estrutura que se baseie em atitudes de poder Deus se põe a serviço dos homens 19. Em Jesus, Deus chama também o sistema religioso à conversão 20. Um Deus que não se manifesta como vingador e juiz liberta as pessoas do medo e dos complexos de culpa 21. A Revelação de Deus em Jesus Criston desmascara o agir de todos os sacrificadores de todos os tempos como falso 21.1. Impulsos inconscientes de agressividade e sua projeção em Deus 21.2. O resultado de uma mentalidade sacrifical é a formação da imagem de um Deus vingador 21.3. A imagem de um Deus que exige sacrifícios, outra consequência de projeções humanas 21.4. O mecanismo de projeção possibilita esconder a raiz da violência 21.5. Como desvelar diante dos sacrificadores a verdade sobre o seu agir violento? 22. O Deus que se revela nos textos bíblicos está do lado das vítimas e não dos sacrificadores 22.1. Os sacrificadores não querem admitir que a sua perspectiva é falsa 22.2. Com a sua atitude na cruz e diante da cruz, Deus quebra o círculo vicioso da violência e da vingança 23. Pela ressurreição de Jesus, Deus-Pai ratifica e confirma toda a vida e toda a 4 mensagem de Jesus 23.1. A cruz, sinal de vergonha e de derrota 23.2. Pela morte na cruz, a mensagem de Jesus perdeu, para os seus contemporâneos ortodoxos, toda e qualquer credibilidade 23.3. Os textos bíblicos não falam de uma autorressurreição de Jesus, mas de um agir de Deus-Pai no Jesus morto 23.4. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma que ele é como Jesus, seu filho, o tinha descrito 24. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas que geram morte 24.1. O imaginário cristão é marcado pela cruz 24.2. O fato de a cruz ter se tornado o signo central da religião cristã trouxe profundas consequências para a autocompreensão daqueles que se chamam cristãos e cristãs 24.3. A cruz, por si mesma, não é o fim último da mensagem cristã, ela deve ser vista sempre relacionada à ressurreição 24.4. Ressuscitando Jesus, Deus revela que ele é contra a morte dos crucificados 24.5. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus rejeita os valores dos crucificadores e confirma as opções do seu filho crucificado 24.6. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas que geram morte 25. O significado escatológico da ressurreição de Jesus 25.1. A ressurreição de Jesus se torna sinal de esperança através de toda a história humana 25.2. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus-Pai confirma que a sua fidelidade continua para além da morte 25.3. Pela ressurreição de Jesus, Deus comprova diante de todos que ele de fato é capaz de ressuscitar os mortos 25.4. A ressurreição de Jesus se torna prova e base para a fé em nossa própria ressurreição 25.5. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma tudo aquilo que Jesus tinha dito e feito; isso implica também a promessa de que Jesus nos vai ressuscitar 25.6. Ressuscitando Jesus, este está sendo comprovado como “Cristo” e “Filho de Deus”. Com isso, porém, também é capaz de justificar os pecadores 25.7. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus comprova que chegou o fim do mundo antigo e o começo do novo mundo, chamado de “Reino de Deus” 5 1. REDESCOBRIR UM DEUS CAPAZ DE ENCHER O VAZIO DOS CORAÇÕES HUMANOS Perguntando às pessoas na rua sobre como imaginariam Deus, geralmente ouvem- se respostas como “Deus é onipotente; Deus é Senhor; Deus é eterno, infinito e maior que tudo o que se pode imaginar”. Os mais bem informados ainda lembram que Deus é criador, característica que por sua vez tem muito a ver com o seu poder. E há outros que mencionam a onisciência e às vezes até o amor. Com isso, chegamos, em geral, ao fim do repertório, e os poucos que pensam saber ainda mais explicam que Deus é Pai e lembram que ele se revelou em Jesus Cristo. Depois disso, normalmente, as pessoas se calam. Mas, no seu silêncio, perdoura a indagação não expressa se atrás de tudo aquilo que foi dito talvez não houvesse mais... E, nas profundezas não vocalizadas de tantos olhos questionadores, sente-se o anseio de que de fato pudesse ser mais. Desejo inconsciente e instantaneamente reprimido pelos chavões interiorizados de longa data, decorados e repetidos desde criança e ouvidos em tantas e tantas lições de catequese. Há de fato relativamente poucos fiéis que, além dos estereótiposcorrentes, ainda conhecem outros conteúdos sobre como Deus é. Estes, em geral, mencionam como fonte do seu saber a própria Bíblia, os livros de piedade e também as celebrações litúrgicas. Do Deus todo-poderoso se fala muito nas liturgias e também na formação dos fiéis. Até o Credo da Igreja católica menciona tal característica em lugar predominante. Sendo assim, os cristãos e as cristãs que baseiam a sua imagem de Deus nesse fundamento com certeza não estão errados. Constatamos, porém, que a maioria das pessoas se contenta com esse saber sobre Deus. Assim vivem com a segurança de uma fé oficialmente sancionada; e o fato de os seus corações ficarem vazios, apesar da onipotência de Deus, apresenta-se para muitos como consequência inevitável da existência humana. Mesmo cientes da onipotência de Deus, não preenchem os seus corações, e, por causa disso, há muitos que deixam esse Deus todo-poderoso lá no céu dele. Eles se lembram de Deus quando precisam da sua onipotência para resolver problemas, mas, além disso, preferem buscar outras fontes para encher o vazio dos seus corações. Estão buscando canções melhores, em lugares muito distantes, enquanto têm tão perto de si aquela única melodia, capaz de satisfazer todos os anseios do seu coração entristecido. Mas eles não o sabem. Há outros, é verdade, que deveriam saber melhor, porque conhecem os textos respectivos. Mas também no meio deles se fala demais de um Deus do poder, da sua autoridade, da sua glória e de seu domínio. Parece que, no psiquismo de muitos, religião e fascínio pelo poder ficam interligados por algumas afinidades secretas. Os peritos em interpretação de textos canônicos, além disso, reagem perplexos 6 quando se chama a atenção deles para o fato de que a sua tradicional caracterização de Deus como todo-poderoso não é muito diferente da maneira pela qual praticamente todas as outras religiões também apresentam os seus deuses. Portanto, as denominações de Deus como onipotente, onisciente, santo ou eterno em nada são exclusivas da religião cristã. Pelo contrário, têm lugar na maioria das religiões. Os deuses supremos do Egito foram venerados a partir dessas características, da mesma maneira como Marduk, o deus astral supremo da Babilônia, ou Zeus, da antiga cultura grega. Todas essas divindades e muitas outras ainda foram consideradas pelos seus adeptos como todo-poderosas. Nos tratados do filósofo grego Aristóteles, encontramos, além disso, longas reflexões sobre a eternidade da divindade. E que Deus é o Alfa e o Ômega não é em nada uma fórmula do cristianismo primitivo, tal como muitos cristãos atualmente imaginam. Quem a usou foi o filósofo pagão mencionado, e este, como se sabe, viveu no século IV a.C. Ideias similares, aliás, encontramos também em Platão e no pensador romano Sêneca. Elas aparecem na teologia de Zaratustra, na Pérsia, mais de seis séculos antes de Cristo, e também na maioria das outras grandes religiões que se formaram fora do espaço cultural euro-mesopotâmico. Diante de tais fatos, aqueles que se chamam cristãos talvez estejam sendo confrontados com um problema totalmente novo. Numa época de crescente diálogo inter-religioso, eles são desafiados por indagações como: “Com que direito mantemos a pretensão de achar que o nosso Deus é o Deus verdadeiro, enquanto o Deus dos não cristãos deve ser considerado um deus falso?”. Os não cristãos, por sua vez, acham exatamente que o Deus deles é verdadeiro e que os deuses dos outros são falsos. Diante dessa situação, surge para os cristãos deste século, marcado por crescente globalização cultural, uma nova e muito urgente indagação: Em que o seu Deus Supremo, afinal, se distingue das divindades supremas de todas as outras religiões? A informação de que ele é onipotente, onisciente e eterno não é mais prova nenhuma da sua exclusividade. O mesmo dizem os representantes das outras religiões a respeito das suas próprias divindades. Numa época marcada pelo diálogo inter-religioso, tal fato se torna cada vez mais consciente. Junto com essa conscientização, porém, cresce a exigência de definir, de maneira clara e convincente, quais são os elementos específicos da própria imagem de Deus. A imagem de Deus presente na maioria dos cristãos e das cristãs: Deus é: - onipotente - infinito - santo - eterno - onisciente Problema: Deus realmente tem essas características! 7 Mas, para saber isso, não é preciso necessariamente abrir a Bíblia. Todas elas já foram mencionadas pelos filósofos pagãos da antiga cultura grega, além disso, encontramo-nas também na maioria das religiões não cristãs. Daí surge a indagação crítica: Onde se encontra aquilo que é especificamente novo na concepção bíblica e cristã de Deus? As breves reflexões introdutórias mencionadas no quadro anterior já mostraram que não basta – ou não basta mais – apresentar o Deus dos cristãos a partir dessas fórmulas gerais. Tais fórmulas hoje não convencem mais, independentemente de terem, durante séculos, sido transmitidas pelas Igrejas e seus representantes.1 Aliás, transmitidas com êxito, porque até hoje estão presentes, de maneira dominante, no imaginário religioso dos cristãos e das cristãs. Mas a onipotência e a existência eterna de um Deus se apresentam hoje para muitos mais como elementos assustadores do que atraentes, e isso, sobretudo, diante do pano de fundo do inimaginável abuso de poder, com o qual os homens estão sempre sendo confrontados, seja olhando pela história do passado, seja observando as suas manifestações na época presente. O fato de, no decorrer da história, terem sido acentuados insistentemente o poder, a grandiosidade e a glória de Deus tem razões que em muito ultrapassam a teologia. Elas, além do desejo de ter tal aliado ao seu lado, também abrangem a vontade de justificar o próprio poder. Além disso, elas têm a sua raiz também na vontade específica de intimidar e de provocar medo. A maioria dos adeptos da imagem cristã de Deus não tem mais a mínima consciência de que tais mecanismos existiam e em parte até hoje existem. Os efeitos deles atuam ainda de forma inconsciente nas pessoas, e as características assustadoras de Deus são abrandadas em cerimônias cada vez mais suntuosas. Contudo, nem desses mecanismos, em geral, as pessoas estão conscientes. Assim, encontramo-nos, já no início de nossas reflexões, diante de uma situação extremamente complexa. No seu centro, fica a indagação inquietante: “Como será possível encontrar-se hoje e no futuro com aquele Deus do qual fala a religião cristã e cujas primeiras manifestações foram descritas nos textos bíblicos do judaísmo?” Será que ainda é possível acreditar naquele Deus poderoso, numa época cada vez mais sensível diante dos mecanismos de poder, visíveis até nas próprias instituições religiosas? A pretensão autoritária delas e a sua exigência de obediência incondicional já foi rejeitada pela maioria dos integrantes das sociedades pós- modernas e pós-industriais desde o fim do século XX. Será que agora, no século XXI, devem até rejeitar o Deus tantas vezes apresentado por essas instituições como garante ameaçador e onipotente daquela obediência requerida por elas? Há pessoas demais que respondem afirmativamente a essa pergunta. 8 Aquele Deus das Leis e regras, assustador, que exige a observância rigorosa dos seus mandamentos e pune com dureza intransigente aqueles que não o seguem – um Deus que muitas pessoas da velha geração ainda interiorizaram –, hoje é rejeitado cada vez mais por mulheres e homens. Os jovens simplesmente vão embora, e os representantes ainda vivos da velha geração permanecem sem resposta alguma nas suas igrejas cada vez mais vazias e lamentam a maldade do mundo moderno. Ou, por outro lado, celebram com zelo dobrado a onipotência do seu Deus, atitude que, na realidade, revela-se como tentativa de disfarçar o seu próprio medo inconsciente ante esse Deus esmagador. Diante disso, permanece o dilema de que se o Deus dos cristãos realmente seja assim, tal como durante séculos predominantemente foi apresentado.O resultado óbvio é que cada vez menos representantes da jovem geração se deixam convencer por essa apresentação. De um lado, eles buscam desesperadamente a dimensão espiritual, de outro, distanciam-se cada vez mais de um Deus que assusta. Em consequência, eles se afastam também das instituições que dizem representar esse Deus, isto é, das Igrejas institucionais.2 Tal distanciamento, porém, no fundo nada mais é do que a rejeição de uma mensagem que perdeu o seu caráter de “Boa-nova”, em vez disso tornando-se frustrante. O gelo dos seus corações não foi derretido, e o seu anseio por sentido e amor permaneceu sem respostas, porque o poder, no máximo, consegue inspirar respeito, nunca, porém, amor, que dá amparo. É esse amor que estão buscando, mas as ofertas sempre mais frustrantes da indústria do consumo só aumentam o vazio dos seus corações, que anseiam pelo infinito saber. O poder, na melhor das hipóteses, consegue despertar respeito, porém, muito mais o medo. Nunca o poder desperta o amor! 1 Cf. Em termos de exemplificação atual da problemática: GRETCHA, Job. Comment témoigner du Christ dans un monde qui ne croit pas? Irénikon, Revue des Moines de Chevetogne, n. 1, p. 33-52, 2009. 2 Cf. ABURDENE, Patricia. Megatrends 2010. Charlottesville: Hampton Roads Publishing Company, 2007; FERNANDES, Silvia Regina Alves (org.). Mudança de religião no Brasil. Rio de Janeiro: Ceris, 2006; DUBACH, Alfred & FUCHS, Brigitte. Ein neues Modell von Religion. Zurique: Theologischer Verlag, 2005; Dinâmica populacional e Igreja Católica no Brasil, Cadernos Ceris, ano II, n. 3, 2002; SOUZA, Luiz Alberto Gomez de & FERNANDES, Silvia Regina Alves (org.). Desafios do catolicismo na cidade. São Paulo: Paulus, 2002; NAISBITT, John & ABURDENE, Patricia. Megatrends 2000. São Paulo: Amana-Key, 1990, p. 317ss. 9 2. SOMOS CHAMADOS PARA VOLTAR, A PARTIR DE NOVAS PERSPECTIVAS, ÀS FONTES QUE NOS FALAM DE DEUS Diante do anteriormente exposto, somos desafiados a voltar, de maneira crítica e sincera, às fontes originais que nos informam sobre Deus. Elas, muitas vezes, apresentam-no como um consolador. Mas, para um número cada vez maior de pessoas, esse consolo prometido parece tornar-se inacessível. Tal fato, hoje, não pode ser negado. Ele, ao contrário, torna-se desafio para aprofundar a questão. Será que Deus realmente não responde mais às necessidades das pessoas? Qual a razão de tantas pessoas não mais se sentirem tocadas por ele? Examinar essa indagação se torna cada vez mais urgente. Ao pesquisar o assunto, descobre-se primeiro que as fontes de muitas religiões, ou talvez da maioria delas, informam fundamentalmente que o seu Deus é todo- poderoso, eterno e onisciente. As mesmas características de Deus aparecem também nas fontes judaico-cristãs, as quais com certeza correspondem à verdade. Constatamos, porém, que, no decorrer da história da religião cristã, essas características foram acentuadas e ampliadas cada vez mais, de tal maneira que, hoje, elas são, para muitos cristãos e cristãs, dominantes e as mais conhecidas de Deus. Todavia, o que não se destacou e que consequentemente hoje quase foi esquecido por muitos é o fato de que o próprio Deus parece ser muito pouco interessado em ser venerado predominantemente a partir das suas características de autoridade e de poder. De qualquer modo, durante séculos, essas características é que foram primordialmente destacadas pelas instituições que pretendiam defender os interesses de Deus na Terra. Assim, perdeu-se muito o sentido dos textos bíblicos que insistem para que Deus seja conhecido como poderoso, cujo motivo, em geral, é bem específico: a Bíblia quer conscientizar-nos de que Deus não compreende a sua onipotência como incentivo para ser venerado. Em vez disso, tal característica lhe abre a possibilidade irrestrita para poder ajudar aqueles que ama. A veracidade dessa afirmação se torna evidente a partir do momento em que começamos a entrar mais na mensagem central dos textos bíblicos. Encontramos neles de antemão características que distinguem desde o início o Deus da Bíblia da grande maioria das divindades de todas as outras religiões: Deus põe o poder dele primordialmente ao serviço da pessoa humana. Esse fato, por sua vez, abre caminho para enxergar o Deus bíblico por um ângulo bem diferente daquele de costume. É possível vê-lo com outros olhos. Tal mudança de perspectiva é necessária numa época na qual a crítica à Igreja se espalha em todo lugar, enquanto, ao mesmo tempo, cresce o anseio por conhecer Deus. 10 A análise da história da Revelação mostra que Deus, no fundo, fica muito pouco interessado em ser venerado como Deus onipotente. O que lhe interessa é muito mais isso: Conscientizar-nos de que não considera o seu poder o motivo primordial para ser venerado. Em vez disso, mostra que a sua onipotência, para ele, em primeiro lugar, torna possível ajudar aqueles que ama. Estes somos nós. 11 3. O DEUS DA BÍBLIA SE DISTINGUE DESDE O INÍCIO FUNDAMENTALMENTE DE TODAS AS OUTRAS DIVINDADES DAS RELIGIÕES DA MESOPOTÂMIA 3.1. UM DEUS QUE TEM PODER, EMBORA NÃO SE SITUE DO LADO DOS PODEROSOS Em toda a Mesopotâmia e em praticamente todas as outras grandes religiões do mundo, constatamos que uma das características primordiais da divindade suprema é a sua pretensão ao poder. Em geral, o deus supremo, como Poder Espiritual Supremo, está aliado ao poder político supremo.1 Nessa aliança, o poder político legitima os seus interesses mundanos, enquanto a divindade, por sua vez, garante e protege com a sua onipotência o poder dos dirigentes políticos. Assim, o sistema funcionou desde há muito no Império de Assur, até as monarquias absolutistas da história europeia. O poder político sustenta o religioso, e este, por sua vez, legitima e garante o político. Um sistema fechado em si mesmo, com a ajuda do qual podiam ser fixadas e justificadas todas as estruturas de dominação e era possível exigir obediência. No momento, porém, que voltamos às primeiras fontes da fé daquele Deus cuja imagem se formou no contexto judaico-cristão, constatamos que aqui esse sistema descrito não funciona. Não funciona porque o Deus apresentado nesses textos, que, mais tarde, será chamado de “Javé”, resiste desde o início a tal instrumentalização. É verdade que nem sempre tinha sucesso com essa sua atitude, como bem mostra a história. Mas a cronologia da sua Revelação começa, sem dúvida alguma, com uma experiência absolutamente nova: Esse Deus, apesar de ter poder absoluto, não se situa do lado do poder reinante. A história dos assim chamados Patriarcas (cf. Ex 12ss) apresenta um Deus que faz aliança com um pequeno grupo de seminômades, despojados de todo poder, sem influência alguma e desprovidos de qualquer peso na política de dominação dos grandes. Apesar de ter poder, o Deus verdadeiro não se aliou com os poderosos da sua época, mas com aquele grupo sem poder algum. Tal fato é absolutamente novo! Para os adeptos que fizeram referência a esse Deus, essa novidade e as suas consequências se tornaram a prova mais convincente de que o Deus venerado era o Deus verdadeiro, enquanto os deuses das outras religiões se mostraram falsos. Até nos textos bíblicos que hoje temos em mãos, e nos quais devemos reconhecer o resultado de uma história redacional de séculos, o elemento surpreendente desse fato ainda vem sendo expresso sempre com novas variações (cf. Gn. 12-50). 3.2. UM DEUS QUE NÃO SE FIXA POR DENTRO DE UM TEMPLO Além da característica mencionada, aparece ainda outra característica nos textos sobre as primeiras experiências com o Deus denominado “de Abraão”. Também nela, 12 esse Deus se distingue diametralmente dos outros deuses da época. Para se ter uma noção mais clara dessa diferença, é necessário lembrar as atitudes dos deuses da Mesopotâmia. Estes normalmente eram venerados num lugar determinado. Poderia ser numa montanha, numa árvore, numa nascente ou em algum outro lugar com características especiais. Em estágios evolutivos mais avançados da religião, o lugar especialse tornou Templo, cuja grandiosidade e beleza refletiam explicitamente o poder do deus que habitava nele. Além disso, o Templo também demonstrava o poder e a glória do sistema político que reconhecia o deus como o deus dele, enquanto este, em recompensa, por sua vez sustentava o sistema. Caso algum dos seguidores desse deus quisesse apresentar uma súplica ou um pedido, era óbvio que ele tinha que se deslocar para o lugar em que a divindade se encontrava. Esta, em geral, reinava muito longe dos problemas e das preocupações das pessoas humanas ordinárias. É assim que a absoluta maioria das religiões da Antiguidade apresentava as suas divindades supremas. Tal concepção, porém, foi superada pela nova maneira pela qual os textos bíblicos apresentam o Deus dos Patriarcas: Um Deus eterno e todo-poderoso, mas ao mesmo tempo “um Deus-conosco”, um Deus itinerante que se desloca para o lugar no qual os seus adeptos se encontram e cujo poder nunca esmaga o ser humano. Assim apresentou-se desde as suas primeiras manifestações o Deus bíblico. E essa sua caraterística de um “Deus no caminho” permaneceu “espinha na carne” do sistema religioso de Israel a partir daquele momento, em que também na sua história se estabelece um processo progressivo de distanciamento da imagem transformadora do Deus de Abraão, rumo à institucionalização de um “Deus cúltico do Templo”. Pequeno exemplo da resistência contra tal tendência já se encontra na primeira ocasião na qual tal movimento se torna dominante: é diante do projeto de construir um Templo, assim como todos os outros povos o tinham. Apesar de esse projeto finalmente se impor, os textos bíblicos mantêm até hoje o vestígio de uma oposição, formulada em nome do próprio Deus: Vai dizer ao meu servo Davi: Assim fala o Senhor: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu morar? Pois eu nunca morei numa casa, desde que tirei do Egito filhos de Israel até hoje, mas tenho andado em tenda e abrigo. Por todos os lugares onde andei com os filhos de Israel porventura disse a algum dos juízes de Israel que encarreguei de apascentar o meu povo: Por que não me edificastes uma casa de cedro?”[...] (2Sm 7,5-7; 1Cr 17,4-6) Independentemente do fato de esse Deus não querer um Templo, foi-lhe construído um ao preço de suor e sofrimento do povo (cf. 1Rs 5,17; 9,20-22). A problemática por trás daquilo que os textos bíblicos relatam não desapareceu até hoje. Também durante toda a história da religião cristã, encontramos, no coração de muitos cristãos e de muitas cristãs, os elementos do imaginário arcaico de um Deus onipotente e esmagador, de um Deus que deve ser acalmado por cerimônias e louvores e cuja honra exige gestos suntuosos e até dolorosos. E para muitos, até hoje, Deus fica fixado nos lugares específicos das Igrejas, separadas e claramente distintas do mundo chamado de “profano”. A imagem, porém, que se mostra de Deus nas tradições bíblicas mais antigas é 13 bem diferente. Recuperá-la para os dias de hoje é um dos desafios urgentes. 3.3. UM DEUS QUE NÃO EXIGE PRIMORDIALMENTE CERIMÔNIAS CÚLTICAS EM SEU LOUVOR Finalmente, detecta-se na imagem bíblica de Deus ainda a oposição a um terceiro elemento que pode ser encontrado em praticamente todas as outras religiões da Mesopotâmia: as divindades delas exigiam veneração por meio de um culto sacralizado, complexo e em geral até muito custoso. As despesas desses cultos tinham que ser assumidas pelos seguidores, através de sacrifícios, tributos e doações, cujo peso em muitos casos esmagava o povo. Independentemente disso, valia como regra geral a relação estabelecida ao poder do deus venerado, o qual se expressava de acordo com a pompa das cerimônias em seu louvor. Quanto mais suntuosas tais cerimônias fossem, tanto maior aparecia o poder da divindade. A partir dessa relação, podia-se estabelecer até uma reviravolta da relação entre a divindade e os seus adeptos: em vez de as cerimônias e os sacrifícios refletirem o poder e a influência do deus venerado, o prestígio dele diminuía ou crescia em função dos sacrifícios realizados pelos seus seguidores. Caso os seguidores não realizassem um culto conforme o deus pensou merecer, este, por sua vez, tinha a possibilidade de, através de mandamentos e ameaças, dar mais peso às suas exigências. E uma vez que o deus em geral não falava, havia em torno dele toda uma bem estruturada casta sacerdotal, que vigiava o cumprimento das exigências por ela mesma formuladas. Eram esses os elementos-chave estruturais de praticamente todas as religiões da Mesopotâmia, muito embora não só ali. Em tal contexto agora se forma, num grupo determinado e dentro de uma constelação histórico-social bem específica, a convicção de que o Deus verdadeiro não pode ser assim. Através de um longo processo de amadurecimento da cosmovisão religiosa, fixa-se como terceiro elemento novo a ideia de um Deus que não exige em primeiro lugar a realização de rituais e cerimônias cúlticas em seu louvor, em vez disso, incentiva o agir dentro da história. A partir dessa nova perspectiva, abre-se a possibilidade de compreender o culto religioso como aquilo que ele é: uma necessidade humana, mas em nada uma exigência pesada por parte de Deus.2 Da novidade absoluta, escondida nessa descoberta, a maioria dos adeptos atuais daquele Deus tem muito pouca consciência. Recuperá-la é mais uma das precondições para que se possa redescobrir o fascínio daquilo que Deus na realidade é. Para responder a esse desafio, os textos bíblicos mencionam a figura de um homem, Abraão, e descrevem, em narrações variadas e em parte até fantasiosas, o devir de uma nova concepção em relação ao Deus verdadeiro. Ela pode ser resumida pelos três enfoques-chave a seguir: 14 • O Deus verdadeiro é poderoso, mas ele não se situa ao lado daqueles que têm poder. • O Deus verdadeiro não está fixado num lugar ou num Templo, mas é um Deus que acompanha os seus seguidores como “Deus-conosco”. • O Deus verdadeiro não está interessado primordialmente e em primeiro lugar em cerimônias e rituais cúlticos em seu louvor. Em vez disso, ele incentiva o agir dentro da história. Tais características são novas. Elas não correspondem às concepções tradicionalmente formuladas, nem naquela época e, muitas vezes, nem hoje. Em consequência, questionam todo um determinado sistema político-religioso, no tempo bíblico assim como no decorrer de toda a história até nos dias atuais. É óbvio que os sistemas respectivos, por sua vez, fizeram de tudo para calar tal Deus incômodo que assim se manifestou. Caso decretos e proibições não alcançassem o seu objetivo, aplicavam outra tática e começavam a domesticar Deus dentro do sistema, construindo Templos maravilhosos em seu nome e instaurando um culto que nunca antes se viu. Assim, o povo ficava de boca aberta diante de tanta ostentação; contudo, no fundo foi alienado, e a sua fé se fixou cada vez mais nas dimensões efêmeras de uma religiosidade sacralizante e alienante. Teremos que refletir mais sobre esse fenômeno, muito agradável a certos interesses e que, no fundo, se encontra também na raiz daquilo que hoje chamamos de crise institucional das Igrejas cristãs. Para começar a superar essa crise, parece-nos essencial realizar, de maneira sistemática, aquilo que começamos neste capítulo: recuperar, para a consciência religiosa, aquelas características do Deus da nossa fé, que, em determinados casos, até desapareceram do universo da fé de muitos cristãos e cristãs de hoje. À medida que elas forem reintegradas no coração da vivência religiosa, cada vez mais pessoas redescobrirão a atualidade viva e fascinante do Deus verdadeiro e também das Igrejas, nas quais esse Deus verdadeiro é anunciado. 1 Como exemplo, cf.: GRONEBERG, Brigitte. Die Götter des Zweistromlandes (Os deuses da Mesopotâmia). Dusseldorf: Patmos, 2004. “Os mitos (babilônicos) mostram, na sua totalidade, que a celebração de um Deus supremo era um ato político-religioso, realizado pelas elites para as elites […] Todas as fontes mostram que foi formado um Panteon,que tinha […] plenitude de poder e que sustentava o rei.” Ibid., p. 253. “Já nas inscrições sumérias dos reis das cidades da segunda metade do 3º milênio, se fala dos deuses como daqueles que sustentam o rei […]” (op. cit., p. 241). 2 Sobre a crítica profética de um culto vazio, como exemplo, cf.: Is 1,11-17; Jr 7,1-12; Am 5,21-24. Também: BLANK, Renold J. Deus na história. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 180-195; BLANK, Renold J. O Deus que desafia seu próprio culto. Revista de Cultura Teológica, 39 , X, p. 39-53, abr.-jun. 2002. 15 4. OS TEXTOS DA REVELAÇÃO APRESENTAM UM DEUS QUE, COM VIGOR, SE POSICIONA CONTRA TODA OPRESSÃO DE PESSOAS HUMANAS. COM ISSO, PORÉM, INCOMODA MUITO AQUELES QUE QUEREM DOMINAR Nos textos bíblicos, encontramos narrações interessantíssimas sobre o assim chamado “êxodo” de um grupo de escravos no fim do século XIII a.C. Eles veneravam o “Deus de Abraão”, do qual falávamos no capítulo anterior. Nele, que mais tarde foi chamado de Javé, reconheciam o Deus verdadeiro, o Deus dos seus ancestrais, de Abraão, Isaac e Jacó. Nos textos que falam de Deus, vem à tona outra característica dele que predominantemente foi esquecida. E se não foi esquecida, pelo menos não mais é reconhecida nas suas consequências inimagináveis. A razão para tal esquecimento encontramos provavelmente também no fato de a maioria dos poderosos, no decorrer de todos os séculos da história, em nada ter incentivado os fiéis a acentuarem certas características do Deus bíblico – por razões óbvias, como já veremos. Aquele Deus, que em seu nome um grupo de escravos conseguiu escapar do Império de Ramsés II no Egito, se fez conhecer a eles como um Deus oposto a todo e qualquer tipo de escravidão. Em vez disso, convoca os escravizados a se libertarem, a quebrarem os mecanismos da opressão e, quando realizam isso, declara que está junto deles. Assim ele é apresentado nos textos. Obviamente, tal Deus não correspondia àquilo que o faraó daquela época desejava. Tampouco corresponde à imagem a partir da qual os defensores da escravidão em todos os séculos da Era Cristã o apresentaram. E até na atualidade, esse Deus não corresponde à concepção preferida por todos aqueles que, de uma ou outra maneira, oprimem outras pessoas ou as exploram. É claro que atualmente, para tal exploração, não se recorre mais a correntes e chicotes. No lugar deles, usam-se os mais sofisticados métodos de manipulação: as ideologias da maximização do lucro a todo preço e todo um sistema de mercado globalizado com a sua indústria de consumo. O resultado, porém, é sempre o mesmo: em nome de algum sistema profano ou religioso, as pessoas são instrumentalizadas, tuteladas e submetidas a servirem como instrumentos de algum poder ou algum esquema de enriquecimento. Diante de todos esses mecanismos, há uma única resposta religiosa: Deus é contra! Deus é contra todas as tentativas de desumanizar e instrumentalizar a pessoa humana. Para que esse fato não fosse percebido pelos instrumentalizados, tentou-se em todos os séculos escondê-lo deles. Era muito mais fácil falar da onipotência de Deus e calar-se explicitamente diante de uma outra indagação: Contra que tipo de situação e 16 contra que atitudes ou estruturas esse Deus onipotente quer empregar a sua onipotência? A resposta a essa pergunta incomodava, no entanto, a onipotência de Deus em si não irritou nenhum daqueles que dominavam, muito pelo contrário. Recorrendo a ela, permitia-se justificar maravilhosamente o próprio poder. A ideologia dos assim denominados “governantes por delegação divina” dos séculos XVIII e XIX se apresenta como exemplo típico de tal instrumentalização de características de Deus por interesses próprios. Mas, observando a história, descobrimos que já muito antes se podia observar o fenômeno da acentuação unilateral de certas características de Deus em detrimento de outras. Quando, no século IV d.C., o cristianismo começa a ser integrado progressivamente na estrutura do Império Bizantino-Romano, desaparece dentro de poucas décadas o ícone do Bom Pastor. Era com essa imagem que a Igreja primitiva tinha primordialmente venerado o Deus encarnado em Jesus Cristo. É por meio desse ícone agraciante e profundamente bíblico que se tinha concentrado todo o imaginário consolador de um Deus humilde, que sustenta o fraco, que recupera o decaído e que carrega nos seus próprios ombros aquele que perdeu a força. Essa imagem de Deus, porém, não correspondia às expectativas de um império mundial, cuja política se baseava no poder, na ampliação de esferas de influência e na conquista de cada vez mais autoridade. Consequentemente, mudou-se a imagem! Assim, conhecemos desde aquela época o Deus encarnado, em escala cada vez maior a partir de outro imaginário: o Pantocrátor, o Imperador do Cosmo, o Senhor do Universo, o Rei Supremo e o Cristo-Rei.1 Richard A. Horsley, em sua análise magistral sobre o cristianismo no novo contexto imperial, descreve as consequências dessa mudança de perspectiva em palavras muito claras: Cristo se tornou não o Senhor e Salvador anti-imperialista, mas o Rei Imperial que autorizava o imperador e a ordem imperial [...] Cristo serviu principalmente para autorizar o império e a ordem imperial.2 A teologia do Cristo-Rei contribui até hoje para que essa imagem se fixe. E mesmo quando nessa teologia se repete a informação de o reinado de Cristo não ser o mesmo que aquele dos reis do mundo, o imaginário arquetípico do rei não muda. Inconscientemente permanece ligado às noções de poder e de dominação, e tal fato já foi demonstrado pela psicologia analítica de Carl Gustav Jung. É verdade que, a partir da perspectiva teológica, não há objeção nenhuma contra o imaginário de Jesus Cristo como Imperador do cosmo. Sendo ele o Deus encarnado, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, não há a mínima dúvida de que ele possui também todos os atributos contidos no título de Pantocrátor. O problema não é a questão sobre se Jesus Cristo pode ser apresentado assim, como a imagem do Senhor do Universo o sugere – ele pode! Todavia, há outra indagação muito séria que se põe diante de todo o imaginário 17 aqui em discussão: Caso Deus tivesse interesse em ser conhecido e venerado em primeiro lugar como Imperador onipotente do cosmo, podemos supor que, em Jesus Cristo, ele teria se revelado primordialmente com esses atributos. Será que Deus se interessa realmente em ser conhecido e venerado primordialmente como Pantocrátor? A resposta a essa indagação é claramente “Não”! Caso ele tivesse interesse em ser conhecido em primeiro lugar assim, nesse caso, ele, na sua mais clara Revelação em Jesus Cristo, não teria se manifestado dessa maneira? Exatamente isso, porém, ele não fez! Caso Deus tivesse interesse em ser conhecido e venerado em primeiro lugar como Imperador onipotente do cosmo, podemos supor que, em Jesus Cristo, ele teria se revelado primordialmente com esses atributos. Fato é que a mais clara e mais plena Revelação que Deus dá de si mesmo acentua características totalmente diferentes daquelas do domínio e do poder. Se Deus, porém, se mostra assim, então por que seus seguidores não veem com seriedade tal fato? Constatamos que grande parte dos cristãos e das cristãs nunca se confrontou com esse questionamento. Diante dos fatos históricos da Revelação, é exatamente esta conscientização que precisa ser feita: A partir de quais dos seus infinitos atributos Deus quer ser conhecido? Há muitas pessoas atualmente que se afastam de Deus ou o rejeitam. O que na verdade rejeitam “não é o Deus verdadeiro”. Elas conhecem aspectos parciais dele, e em muitos casos até são características, pelos quais nem o próprio Deus parece estar muito interessado. As pessoas rejeitam esses aspectos parciais, e, por não conhecerem outras características, dizem que rejeitam Deus. Na realidade, rejeitam um Deus falso, uma imagem deturpada de Deus, que em muito não corresponde àquilo que ele é. Eles nem o sabem, porque de outra imagem nunca ouviram falar. O grande desafio diante dessasituação é este: redescobrir o Deus verdadeiro, reencontrar aquele Deus que se revelou em Jesus Cristo. Quanto mais se descobrem as características dele, tanto mais fascinante Deus se torna. As características visíveis em Jesus obviamente são importantes para o próprio Deus. Por causa disso, ele as assume quando em Jesus Cristo se revela em carne humana. Por causa disso, revela-as a nós, independentemente de corresponderem ou não aos interesses dos poderosos de qualquer época. 18 Algumas dessas muitas características reveladas em Jesus Cristo se mostram desde o início como dominantes. E elas permanecem essenciais do início até o fim da história humana. Mas a maioria das pessoas nem mais as conhece. Nem nas aulas de catequese elas foram informadas sobre tais características. Independentemente disso, é impossível de serem desmentidas, pois a verdade sobre Deus se encontra sempre em novas versões nos textos que chamamos de Revelação Divina. Caso sua mensagem tivesse sido entendida com seriedade, a história do mundo seria outra! As reflexões a seguir convidam-no a conscientizar-se de novo dessas características tão pouco presentes na consciência de muitas pessoas. 1 Cf. BARBAGOLLO, Salvatore. Iconografia liturgica del Pantokrator. Roma, 1996, p. 99ss. 2 HORSLEY, Richard A. Jesus e o império. São Paulo: Paulus, 2004, p. 139. 19 5. DEUS QUER QUE O SER HUMANO TENHA UMA VIDA AMPLA, PLENA E REPLETA DE FELICIDADE Todos aqueles que conhecem os textos lembrarão as sentenças programáticas de Jesus em Jo 10,10: Eu vim para que vocês tenham a vida e a tenham em abundância! A frase é conhecida. Ela deve ser compreendida como uma das ideias programáticas de Jesus, transmitidas pelo Evangelista João. Uma história milenar de espiritualização permitiu que esse programa radical perdesse a sua virulência e fosse cada vez mais compreendido numa dimensão desligada da vida concreta. A vida mencionada no texto foi interpretada como “vida espiritual” e, como tal, até transferida para um estado após a morte. Assim, perdeu todo o relacionamento com a vida concreta, cotidiana e banal do ser humano. Em vez disso, tornou-se pura projeção de um além abstrato e muito distante das situações concretas. O mundo aquém podia permanecer aquele “vale de lágrimas”, campo de ação para todos aqueles que, em nome de seu próprio bem-estar pessoal, ensinaram que esta vida terrena não teria valor. Em consequência disso, elogiaram o mérito do sofrimento, transformando a vida de muitos em experiência de progressiva humilhação. Para encontrar exemplos de tais situações, basta lançar um olhar na situação dos trabalhadores no início da Era Industrial – de escravidão e trabalhos forçados, presentes nos séculos anteriores, sem falar da vida das massas miseráveis de hoje, jogadas nas favelas das grandes metrópoles do terceiro mundo. Todas essas vidas não têm nada a ver com uma vida em plenitude. Deus, porém, declarou em Jesus Cristo que é exatamente isso que ele quer para todas as pessoas. Até hoje, os homens não o deixaram realizar o seu projeto. Independentemente disso, ele o apresenta desde o início da história da Revelação. No seu chamado, porém, não convoca as pessoas para fazerem exercícios espirituais. Em vez disso, incentiva-as a transformar todas as situações concretas, nas quais o espaço de vida foi coagido e restrito. De escravidão e opressão nem quer saber e, por causa disso, declara em alta voz que é um Deus que liberta os escravos e derruba os poderosos (cf. a história do Êxodo e também o Magnificat em Lc 1,47-53). O que, no século XIII a.C., começou com a fuga de um grupo de escravos em nome de seu Deus permanece a linha norteadora do agir de Deus em todas as épocas, e até hoje. Contudo, em todas essas épocas, também vieram à tona as mil maneiras pelas quais os poderosos sempre conseguiram deturpar tal vontade declarada por Deus. A sua voz incômoda foi suavizada e o seu chamado alterado, às vezes até de modo 20 contrário. Assim, perdeu-se o seu apelo transformador, quando podia ser entendido conforme a vontade daqueles que muitas vezes até se tinham declarado defensores da glória e da honra de Deus. Como exemplo típico desse processo, pode ser mencionado o texto que hoje conhecemos com o nome de Os Dez Mandamentos. Todo fiel indagado sobre o tema nos vai explicar esses mandamentos a partir de um enfoque moral e individual. Leis que devem ser observadas e que regulamentam a atitude moral do indivíduo. Assim os mandamentos são compreendidos até hoje pela maioria das pessoas. No entanto, na sua época, essa não era a intenção primordial do texto. Caso coloquemos o código em questão no contexto sociocultural da sua origem, descobrimos, nos dez mandamentos, um significado que ultrapassa em muito a esfera puramente individual. Descobrimos nos textos de Ex 20 um código para a construção e a manutenção de uma sociedade. Uma vez que fossem seguidos os postulados em questão, todo membro dessa sociedade de fato poderia viver uma vida plena e feliz, sem medo e sem ser ameaçado na sua integridade pessoal. Observando os fatos, porém, constatamos novamente que, no decorrer da história, o sentido original daqueles mandamentos de Deus se perdeu e se perde cada vez mais. O seu enfoque primordialmente social foi enfraquecido. A sua forte conotação em direção a uma organização social que garantisse justiça para todos foi esquecida e substituída por um legalismo individualista cada vez maior. Com isso, produziu-se em certos casos uma verdadeira inversão do sentido original do texto. Assim, deturpou-se também a imagem daquele Deus, que foi considerado o autor daqueles mandamentos. A sua intenção original de garantir aos seres humanos as amplas e plenas dimensões da vida se perdeu. Ela foi sufocada por interpretações legalistas e casuístas. E o próprio Deus, na visão de seus intérpretes, se tornou cada vez mais um policial implacável da observância das Leis, um Deus punidor que ameaçou com duras sanções todos aqueles que não seguiram suas Leis. Encontramos um exemplo muito eloquente para essa deturpação da intenção original de Deus na interpretação do assim chamado mandamento do sábado. Na sua forma sintética e mais conhecida, diz: “Lembra-te de santificar o dia do sábado” (Ex 20,8). Para os cristãos, essa fórmula se tornou a exigência de “santificar o domingo”. E todos eles, judeus e cristãos, compreenderam o texto como exigência, cujo elemento central era o dever de assistir às cerimônias prescritas e ordenadas no dia do Senhor. Um dever que, em muitos casos, se tornou fardo até pesado. Para os católicos, o “dever” de santificar o domingo tinha que ser cumprido sob ameaça de severas punições por parte de Deus. Falou-se de pecado mortal e até de Inferno. E o mesmo valia na época de Jesus, diante da observância de dezenas de regras e Leis, cuja observância exigia a santificação do sábado. Assim falavam os representantes do Templo. Um dever, um fardo, uma obrigação formulada pelo próprio Deus, e para muitos uma coerção que causava medo. Assim se apresentava esse mandamento para milhões de pessoas. 21 Caso voltemos ao sentido original daquele mandamento, não descobrimos nada disso, e muito menos um Deus que restringe as pessoas humanas com exigências de cerimônias cúlticas em seu louvor. O contrário é verdade! No mandamento para a santificação do sétimo dia da semana, encontramos de novo aquele Deus que se preocupa com as pessoas e o seu bem-estar. O mandamento, em nome de Deus, foi formulado numa época em que ninguém se preocupava se o trabalhador – fosse ele livre ou escravo – tinha algum dia de folga para se recuperar. Quem trabalhava, e, sobretudo, quem trabalhava no serviço de um outro, tinha que o fazer dia após dia, semana após semana, sem folga nenhuma, até finalmente morrer esgotado, exausto, desgastado. Como resposta a essa situação, e em oposição a ela, o Deus de quem aqui falamos formula uma Lei, na qual podemos ver uma das primeiras leis trabalhistas da história. Numa época em que ninguém se preocupava como direito a descanso e folga da população trabalhadora, esse Deus formulou uma Lei que deu a ela tal direito. Contra os interesses econômicos de todos aqueles que usaram a força de trabalho para criar a sua própria riqueza, Deus em pessoa cuida do direito à folga daquela força de trabalho. Numa época em que ninguém se preocupava com o direito a descanso e folga da população trabalhadora, Deus formulou uma lei que deu a ela tal direito. Com isso, o sábado se tornou um dia de alegria, uma festa no sentido verdadeiro da palavra. Deus pessoalmente cuidou do direito de cada um, de ter, depois de seis dias de trabalho, um dia livre. E esse direito valia para todos, para o filho, para o escravo e até para o jumento. A decretação dessa Lei foi um direito e uma ampliação feliz do espaço de vida para todos os trabalhadores. Que, no decorrer da história, esse direito libertador se tornou dever e fardo é mais um exemplo para a deturpação da imagem de Deus. Descobrir essas falsificações e revertê-las possibilita redescobrir o Deus verdadeiro na sua forma autêntica. É o modo pelo qual ele se mostra a nós, como um Deus que cuida do bem-estar dos seres humanos, da sua felicidade e da ampliação de tudo aquilo que chamamos de vida humana. Assim é Deus! E por esse Deus, de fato, é possível entusiasmar-se. 22 6. SE DEUS DEFENDE OS FRACOS, ENTÃO TODOS OS SEUS SEGUIDORES DEVERIAM FAZER O MESMO Se Deus se apresenta na história como aquele que assume a defesa dos oprimidos, dos fracos e de todos os prejudicados, como alguém que se refere a ele poderia agir de outra maneira? E como seria possível falar de uma sociedade cristã ou de uma Igreja cristã se nessas instituições a defesa e a recuperação dos pobres, dos humildes e dos excluídos não fossem a primeira prioridade? Caso não se falsifique Deus, mas o aceite realmente como ele é, isso traz consequências que em muito ultrapassam a piedade individual. Também esse fato foi muitas vezes esquecido no decorrer da história do cristianismo. Ele foi esquecido porque uma sofisticada ideologia dos poderosos fez de tudo para tanto. Não obstante todas essas manobras, Deus continua acentuando exatamente aquilo que tentaram fazer esquecer. Isso se torna cada vez mais óbvio no decorrer do que chamamos a história da “Autorrevelação de Deus”. Uma sociedade que se refere ao Deus JAVÉ não pode ter estruturas ou mecanismos que fazem com que as pessoas sejam rebaixadas, oprimidas, marginalizadas ou excluídas. Uma sociedade que se refere ao Deus JAVÉ não pode ter estruturas ou mecanismos que fazem com que as pessoas sejam rebaixadas, oprimidas, marginalizadas ou excluídas. Todos os mecanismos e todas as estruturas que produzem tais efeitos não correspondem à vontade de Deus. Isso vale não só para os escravos egípcios do século XIII a.C., como também para aqueles milhões de pessoas que pereceram nos navios, nas plantações e nas minas dos impérios coloniais cristãos. E a vontade de Deus permanece a mesma, até nos dias de hoje, em relação aos oprimidos de qualquer sistema político, assim como em relação às massas esquecidas e excluídas em nome de um mercado cujo lema principal é a maximização do lucro. Deus se situa do lado deles, e não do lado daqueles que oprimem, não obstante o número de igrejas douradas que construíram em sua honra. Embora numa religião se mantenha tal consciência, os seus integrantes não se podem calar diante de todas as formas de injustiça e humilhação, às quais os seres humanos estão submetidos. E quando a questão é a reta ordem social, deveria ficar evidente para qualquer seguidor de Deus que tal ordem só pode ser criada com base no respeito e na igualdade de todos. Tal fato se torna evidente quando analisamos a evolução da história do grupo de escravos que fugiu do Egito em nome de Javé. Depois de ter escapado, construíram um sistema social sem par, baseado na solidariedade e na igualdade de todos. Tiraram a motivação para esse 23 empreendimento das experiências da sua fuga e da imagem de Deus ali formada. Nela ficou evidente que a última força motriz por trás de todos os acontecimentos tinha sido aquele Deus que detesta toda forma de opressão. Na fé dos seus adeptos, ele já tinha dado provas de ser um Deus que não dava muita importância àquilo que era central nas outras religiões: cerimônias cúlticas, Templos, louvores e todo o aparato suntuoso com o qual geralmente foram venerados os deuses da época (cf. 2Sm 7,5-7; Is 1,10-17). Nas experiências bem-sucedidas da fuga da escravidão, os adeptos desse Deus tão diferente descobriram uma outra característica fundamental dele: ele é um Deus que ama a liberdade, a sua própria e também a dos humanos. Por essa razão, ele mesmo se engaja num processo histórico que deveria realizar tal liberdade: liberdade de todo tipo de opressão, liberdade da escravidão e liberdade de exploração. O Deus que se manifesta nos textos bíblicos protesta contra todos os sistemas que degradam a pessoa humana e que fazem dela um instrumento para o aumento da riqueza ou do poder de outros. Deus é contra a coisificação dos seres humanos como mercadoria e força de trabalho. E quando tal dependência é justificada em nome de algum parágrafo ou Lei religiosa, Deus não os sustenta, mesmo se fossem formulados em seu nome. Era esse o elemento-chave a partir do qual aquele grupo de escravos, do qual a Bíblia fala, conhecia o seu Deus. Eles confiavam na força libertadora de seu Deus e assim se tornaram capazes de quebrar as suas cangas. Uma vez tendo passado por tais experiências, era impensável que eles mesmos pudessem estabelecer um sistema social hierárquico, porque toda hierarquia contém o perigo de tornar-se opressora. Assim, construiu-se, em Israel, aquela forma de convivência igualitária, em que descobrimos, bem antes da pólis grega, os primeiros elementos de uma estrutura social democrática. Ela não durou muito, é verdade. Pressionados por interesses político-sociais, logo se estabelece, em Israel, um sistema hierárquico em torno de um rei, embora sob o protesto de um Deus que não queria hierarquias, isso é verdade; mas os interesses das elites sociais eram mais fortes.1 Nem o protesto de Deus conseguiu fazê-las mudar de opinião. Um pequeno reflexo daquele protesto, aliás, encontramos ainda hoje nos textos bíblicos (cf. 1Sm 8,6-8; 11-19). As intenções de Deus estavam sendo deturpadas pela classe dominante. O que começou no episódio mencionado culmina, na história de Israel, com Salomão e a construção do primeiro Templo (cf. 1Rs 5,15-7,51). Sobre a veracidade histórica daquilo que os textos bíblicos relatam do episódio, deixemos brigar os historiadores. Como advertência, porém, e como evocação à reavaliação do próprio agir, os textos têm caráter paradigmático até hoje. Na época de Salomão, toda uma ideologia do poder faz de tudo para desviar a atenção das fulminantes violações da vontade original daquele Deus, que, no Êxodo, tinha-se revelado como um Deus oposto a toda e qualquer forma de escravidão e de opressão. Agora, porém, se constrói para ele um Templo usando os mesmos mecanismos de escravidão que tinham motivado o agir de Deus contra o faraó (Ex 14; 2Cr 8,5-6; 1Rs 7,1-12; 9,15).2 24 O que os textos mencionados relatam têm caráter atemporal. O mesmo pode acontecer e acontece através de todos os séculos da história. E o fato de tais experiências serem feitas até hoje é que leva muitas pessoas a perder a confiança naqueles que falam de Deus. As palavras deles não convencem diante da realidade vivida!3 Apresentar a todas essas pessoas o Deus verdadeiro significa mostrar, também, que a imagem dele pode ser deturpada, manipulada e falsificada, e que tais deturpações também podem ser disfarçadas por argumentos religiosos. Isso vale da época de Salomão até os dias de hoje. Quem se conscientizou, de maneira mais clara, desses mecanismos, desmascarando-os de maneira explícita, é aquele em quem fundamentamos toda a convicção cristã: Jesus Cristo. Redescobri-lo de forma não deturpada já se torna uma grande exigência paratodos aqueles que também no século XXI querem ser cristãos e cristãs. Ser cristão não como sonhador espiritual, mas, sim, como pessoa que, por causa de sua fé, quer agir neste mundo. A partir disso, a pessoa se torna capaz de transformar a sociedade. Movida por um coração ardente pelo amor em Jesus Cristo, ela vai engajar-se na formação de um mundo conforme Deus o imagina. Em tal mundo, a convivência humana se baseia na justiça, na fraternidade e na solidariedade. O que, porém, convencerá as pessoas a viver conforme tais critérios não são teorias abstratas ou prescrições doutrinais. É muito mais o contato vivo com um Deus que, desde o início da sua Revelação, se manifesta como defensor de todos aqueles que não mais encontram quem os defenda. Com essa afirmação, tocamos numa outra daquelas características de Deus que se tornaram ausentes da consciência religiosa da maioria dos cristãos e das cristãs de hoje. Redescobri-la pode se tornar uma viagem fascinante num mundo religioso totalmente novo. 1 Cf. 2Sm 7,5-7. 2 Cf. BLANK, Renold J., op. cit., p. 185-187. 3 Cf. VELASCO, Juan Martin. Hacia una fenomenología de la experiencia de Dios. Sinite, Revista de Pedagigia Religiosa, Madri, vol. L, n. 151, p. 213- 249, maio-ago. 2009. 25 7. DEUS, DESDE O INÍCIO, SE FAZ CONHECER COMO “GO’EL”, ISTO É, COMO DEFENSOR DAQUELES QUE NÃO TÊM MAIS NENHUM DEFENSOR A história daquele Deus no qual reconhecemos o único e verdadeiro apresenta, desde o seu primeiro aparecimento, um outro elemento que o distingue fundamentalmente de todos os outros deuses supremos daquela época. Ele se manifesta como “go’el”, como defensor daqueles que não têm mais ninguém que os defenda. Para compreender essa noção tão esquecida na história da religião cristã, devemos voltar ao elemento-chave com o qual a história do agir de Deus no mundo se faz conhecer: Ele estabeleceu com os homens uma aliança. Essa aliança, no decorrer da história bíblica, foi sempre renovada e reconfirmada. Um exemplo muito interessante dela encontramos no texto de Gn 15,6-11.17-18. Nele se descreve a aliança entre Deus e Abraão através de um arcaico ritual conhecido no Oriente Médio. Animais são cortados ao meio e ambas as metades são dispostas uma diante da outra. Os parceiros da aliança, em seguida, passam entre as metades dos animais, e assim, através de um ritual muito expressivo, os dois comprometem-se mutuamente. Uma aliança assim celebrada não mais pode ser dissolvida ou cancelada. Ela compromete os parceiros para sempre, no sentido de um parentesco de sangue. Cada um assume deveres e direitos. O texto mencionado acentua, de maneira muito expressiva, o aspecto do mútuo comprometimento, descrevendo no versículo 17 que também Deus passa entre as partes. Com isso, também ele assume os seus direitos e deveres. Ele se torna, por assim dizer, parente de sangue dos homens. Um dos compromissos desse parente de sangue, porém, é o dever de agir como “go’el”, isto é, de assumir a defesa do parente indefeso, caso este não tenha a possibilidade de se defender. Deus assim assume o dever de defender o seu povo, ele se compromete para ser o “go’el” dele. E o povo, por sua vez, tem o direito de dirigir- se a Deus como a um “go’el”, um parente de sangue, para que este o defenda. São 32 vezes em que Deus, no Antigo Testamento, é chamado assim1 (cf. sobretudo Is 40- 55). A aliança que faz de Deus um parente de sangue do povo é celebrada outra vez no grande evento do Sinai. Dessa vez, os textos do Deuteronômio, nos quais a aliança é relatada, recorrem à “forma dos contratos formulados entre o império neoassírico e os seus vassalos”2 para expressar como elemento central dessa aliança que Israel é 26 vassalo de Deus e que também Deus é o aliado de Israel, e os dois assumiram os seus deveres e os seus direitos. Em Jesus Cristo, finalmente, essa aliança chega ao seu cume. Nele, o “como se fosse” do parentesco de sangue se torna realidade concreta e verdadeira, porque, em Jesus, o Deus que se comprometeu na aliança agora também se tornou homem. O pacto, selado tantas vezes no decorrer da história do Antigo Testamento, é reconfirmado, revalidado e ampliado para toda a humanidade. Deus, agora, de fato é parente de sangue dos homens e permanece para toda a eternidade. Com isso, permanece também para toda a história o defensor deles, o seu “go’el”. É ele que assume a defesa das pessoas humanas, assim como Paulo o formula em Rm 8,31: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”. É essa a grande maravilhosa verdade, contida no fato de que Deus, em Jesus, assumiu e reconfirmou o compromisso de ser o “go’el” dos seres humanos. A partir desse fato, torna-se evidente que o interesse de Deus se dirige de maneira preferencial a todos os excluídos, sejam eles pobres, sejam injustiçados, sejam pecadores. É o próprio Deus que assume a defesa deles, contra todos aqueles que os rejeitam, marginalizam ou, em nome de alguma ideologia, declaram excluídos e fora do grupo dos socialmente aceitos. Deus em pessoa defende aqueles que não mais gozam de prestígio algum aos olhos do mundo, ou talvez até da religião sancionada. Como “go’el”, ele assume a defesa de todos aqueles que se encontram subjugados, que são considerados “a ralé” e que por causa disso não têm mais esperança nenhuma. Em Jesus, o próprio Deus demonstra que assumiu a perspectiva deles e, em Jesus, até vive ele mesmo aquela perspectiva. Deus é experimentado pelos marginalizados, pelos excluídos, pelos fracassados como seu último recurso, o seu defensor, o seu apoio. As experiências históricas do povo de Deus confirmam sempre, em novas situações, essa grande verdade, tão enraizada em toda a história da Revelação e que os cristãos conseguiram esquecer na sua quase totalidade, pois nem no Credo da religião cristã entrou.3 Deus se posiciona do lado dos excluídos provavelmente pela grande irritação de todos aqueles que prefeririam um Deus sentado num trono dourado, modelo para todos os poderosos e seu melhor aliado. Mas exatamente isso ele não é nem quer ser. Que não deseja ser assim, aliás, ele mesmo demonstrou de maneira absolutamente clara naquele evento que as Igrejas cristãs dizem que é a mais clara Revelação que Deus deu de si mesmo: Jesus Cristo. Num contexto religioso, marcado por uma acentuada dicotomia entre aqueles que foram considerados justos, e outros, pecadores, Jesus age de maneira bem determinada, escandalosa para os representantes do sistema religioso da época. Ele se situa do lado daqueles que esse sistema rejeitou porque os considerou pecadores. Como pecadores, porém, foram declarados mortos aos olhos de Deus e, além disso, obstáculos à vinda do tão esperado Reino de Deus. Por causa disso, o sistema religioso os designou excluídos e malditos pelo próprio Deus.4 Uma vez excluídos pela religião e sendo essa exclusão justificada em nome do próprio Deus, não havia de fato quem defendesse os assim chamados pecadores, nem o sistema religioso nem 27 o sistema político-social, pois ambos eram totalmente interligados. Além disso, os assim estigmatizados foram considerados impuros, massa supérflua, párias que só atrapalhavam. Conforme as pesquisas sociológicas, na época de Jesus, fizeram parte desse estrato em torno de 60% da população:5 os pobres, os mendigos, os leprosos, os doentes, as muitas prostitutas, que, em geral, se prostituíam por causa da sua necessidade financeira, e por último a grande massa dos camponeses. Além desses, também os endividados e aqueles que não conseguiam pagar os impostos exigidos pelo Templo em nome de Deus e que podiam somar até 70% da renda anual. E finalmente eram considerados excluídos genericamente todos aqueles que, de uma ou de outra maneira, não mais seguiam as exigências do sistema religioso-social da época. De todos eles, esse sistema declara que teriam desagradado a Deus. Com isso, eram considerados sem valor, ralé impura e morta aos olhos de Deus.6 Sendo assim, não havia mais ninguém que os defendesse. É diante desse cenário que devemos compreender o agir de JesusCristo, que de antemão não se situava do lado daqueles que a religião considerava justos e puros, mas do lado dos outros, dos excluídos, pecadores e impuros.7 Numa situação em que ninguém assume a defesa daqueles excluídos, o próprio Deus se manifesta como o defensor deles. Convivendo com os pobres e com todos aqueles que o sistema tinha rejeitado, o próprio Deus mostra, em Jesus Cristo, que esse sistema não tem razão, que os pobres e pecadores não são excluídos da graça dele e não estão mortos aos seus olhos, mas são dignos de atenção e de amor muito especial.8 Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que são doentes. (Lc 5,31) Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! (Lc 6,20) Assim, Deus age em Jesus Cristo de novo como “go’el”, como defensor daqueles que não têm mais quem os defenda. Com isso, retoma uma das grandes revelações que já marcaram o seu agir durante toda a história do Antigo Testamento. Agindo assim, “põe-se em contradição total com todo o sistema religioso da sua época. Oposição que, em última análise, produz a situação paradoxal e absurda de que o Deus encarnado está sendo combatido, rejeitado e finalmente assassinado pela própria instituição religiosa”.9 Para compreender melhor esse paradoxo e o escândalo que o agir de Jesus produziu aos olhos dos representantes do sistema, tentaremos, a seguir, descrever de maneira mais detalhada o contexto religioso no qual o Deus encarnado em Jesus Cristo se manifestou. 1 Cf. também: ARDUINI, Juvenal. Horizonte da esperança. São Paulo: Paulus, 1986, p. 57-95. 2 BLANK, Renold J., op. cit., p. 99-100. 3 Ibid., p. 140. 4 Cf. Jo 7,49: “Este povo que não conhece a lei são uns malditos!”. 5 Cf. CLÉVENOT, Michel. Enfoques materialistas da Bíblia. São Paulo: Paz e Terra, 1979; MORIN, Emile. Jesus e as estruturas de seu tempo. São Paulo: Paulus, 1981; HOORNAERT, Eduardo. O movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1994; KIPPENBERG, Hans G. Religião e formação de classes 28 na antiga Judeia. São Paulo: Paulus, 1988. 6 Cf. PALLARES, José C. Um pobre chamado Jesus. São Paulo: Paulus, 1988, p. 42. 7 Agir e palavra de Jesus retomam aquilo que em termos de exemplo já encontramos em: Jr 5,27; Ez 22,6.12.27.29; Am 2,6-7; 5,11-12; 6,12; Mq 2,2; 3,3; 7,2. 8 Como exemplo, cf.: Mt 9,10-11; 11,19; Mc 2,16; Lc 5,30; 15,1. 9 BLANK, Renold J., op. cit., 2005, p. 161. 29 8. O CONTEXTO RELIGIOSO EM QUE JESUS SE MOVE 8.1. LEI, PUREZA E SACRIFÍCIOS QUE SE TORNARAM OPRESSIVOS PARA O POVO Jesus vive numa época marcada por uma compreensão totalmente retributiva do relacionamento entre Deus e os seres humanos. Na sua forma concreta, isso significa que riqueza, longa vida e sucesso são compreendidos como a recompensa de Deus para uma vida conduzida em consonância com as Leis da instituição religiosa. Pobreza, doença e desgraças, de outro lado, são interpretadas como punição divina para aqueles que transgrediam essas Leis (cf. Dt 30,15-16). Como representante e guardião de todo esse sistema se apresenta o Templo. Ele, “juntamente com seu sumo sacerdócio, constituía o coração político-econômico e também religioso da sociedade judaica em geral e era uma instituição essencial na ordem imperial [...]”.1 Para compreender o significado das atitudes de Jesus, é indispensável ter pelo menos uma noção geral do sistema religioso em que ele vivia. Esse sistema era marcado por uma concepção explicitamente legalista. No seu centro, encontramos os três pilares-chave: a Lei, a ideologia da pureza e o culto. Dos dois grupos mais influentes da época, saduceus e fariseus, sabemos que “os saduceus não podiam imaginar uma religião de Israel fora do Templo de Jerusalém, fora do culto sacrifical e sem sacerdócio”.2 Além disso, “os fariseus, por sua vez, se tornaram os grandes defensores da observância escrupulosa da Lei e da autoridade religiosa”.3 Todavia, nunca se pode esquecer de que, entre eles “e entre seus sucessores rabínicos, havia significativas diferenças de interpretação”.4 Tais diferenças, aliás, encontramos também hoje na descrição e na caracterização que se dá dos grupos mencionados. Halvor Moxnes escreve que “os fariseus [...] afirmavam ter a interpretação abalisada da Torá, e portanto o controle sobre a salvação”.5 Além disso, declara que a descrição dos saduceus e dos fariseus, assim como a encontramos no evangelista Lucas, difere muito da maneira pela qual eles são vistos pelos pesquisadores de hoje. Isenberg, por sua vez, declara que “os fariseus eram uma força democrática, tentando acabar com o sistema de acesso ao poder com base no nascimento e na riqueza”.6 O evangelista Lucas, por outro lado, “não mostra os fariseus usando sua influência baseada na interpretação da Torá contra o poder baseado na riqueza e no nascimento. Pelo contrário, ele os acusa de se aliarem ao poder da riqueza e do privilégio”.7 Sem entrar no mérito dessas interpretações variadas, pode-se encontrar uma base comum para as duas facções em questão e a sua instituição religiosa comum: é o assim chamado “códex de uma vida conforme a vontade de Deus” (cf. Lv 17-26, 30 assim como: Dt 14,3-21; Ex 23,19; 34,22). Nele, acentua-se que somente o seguimento escrupuloso do código garante uma vida que agrada a Deus. Quem observa as Leis é justo; quem não as observa é pecador. Conforme a interpretação de muitos representantes do sistema religioso da época, porém, Deus não se interessa mais pelos pecadores. A partir desses pressupostos, o códex se torna instrumento de exclusão e de marginalização. Lance Flitter formula tal fato com a prudência do judeu crente, com as seguintes palavras: “o judaísmo está repleto desse gênero de Leis [...] Essas Leis tendem a ter um impacto divisor [...] no meio dos próprios judeus [...]. Além das Leis da pureza ritual, há Leis que estabelecem o que é essencialmente um sistema de classes [...]”.8 O efeito excludente aqui mencionado é reforçado ainda pela ideologia das Leis cúlticas da pureza (Lv 11-16). Ela faz clara distinção entre pessoas puras e pessoas impuras. Os “impuros” são considerados “pecadores” e, como tais, estão duplamente excluídos da graça de Deus. Este, conforme dizem representantes da teologia oficial, não se interessa mais por eles.9 Além de pecadores e impuros, estão excluídos da vida social, porque quem toca num impuro, por sua vez, se torna impuro. Impuros são os doentes, os pobres, os analfabetos, os representantes de muitas profissões,10 os estrangeiros, as mulheres que menstruam e, além disso, simplesmente todos aqueles que por, uma razão qualquer, não podem observar uma ou algumas das inúmeras Leis da pureza. Todos eles são excluídos, declarados “fora da graça de Deus” e até “malditos” (cf. Jo 7,49). O único caminho para reverter a situação da impureza cúltica adquirida passou pela apresentação do sacrifício prescrito para tal caso. Esse sacrifício, contudo, em nada estava gratuitamente à disposição. Tinha que ser comprado pelo impuro no lugar e pelo preço indicado pelo Templo; e uma vez pago, devia ser devolvido de graça ao Templo. Quem tirou proveito desse sistema foi em primeiro lugar a instituição do Templo e todos os seus representantes, funcionários, sacerdotes e levitas, isso porque a maioria dos sacrifícios servia para o sustento deles e de toda a sua família.11 Os perdedores desse sistema eram todos aqueles que não mais conseguiam pagar os sacrifícios prescritos, porque nem possuíam ou não possuíam mais o dinheiro necessário. Fizeram parte dessa categoria os empobrecidos por causa dos impostos excessivos, os doentes, os mendigos, as viúvas, os órfãos e também aqueles que não tinham emprego, porque as Leis da pureza os tinham excluído da vida social – em uma palavra, porque eram pobres (cf. Lv 14,4.10.21). Assim, a pobreza era mais uma categoria social do que uma categoria econômica propriamente dita. Implicava falta não apenas de recursos mas de status social, e a incapacidade de cumprir com as exigências sociais. Os camponeses postos abaixo do nível de subsistência podiam também ser incapazesde cumprir as Leis da pureza, e por isso eram postos numa posição de vergonha e desonra. Nesse caso, as Leis da pureza constituíam parte da pressão exercida sobre os pobres, trabalhando em conjunto com a forte pressão econômica para baixo.12 31 A todos que de uma ou outra maneira eram pobres – e, na época de Jesus, essa categoria se estendeu a mais ou menos 60% da população –13 o sistema religioso explicava que eram pecadores porque não seguiam a Lei. Tal categorização em nada levou em consideração que a população pobre simplesmente não tinha condição financeira para observar todos os 613 mandamentos e proibições em vigor. Em vez disso, declarava-se também os pobres transgressores da Lei, e desse modo também fizeram parte dos excluídos da graça de Deus, não por serem pobres, mas por não responderem às exigências legalistas do sistema. A sua pobreza, em seguida, foi explicada como a consequência inevitável da perda da graça de Deus. Assim, produziu-se passo a passo um sistema religioso que depositava fardos pesados nos ombros das pessoas (cf. Lc 11,46 e, como alternativa e contraste, Mt 11,30). Em última análise, esse sistema se tornou opressor, justificado em nome de Deus. Dessa situação, até Lewis D. Salomon declara que “muitas regras e práticas judaicas legalistas tradicionais [...] sufocavam não só o Sabbath como também a vida em geral”.14 Assim, a excessiva interpretação casuística e legalista da vida na época de Jesus transformava, em muitos casos, a intenção original da Torá no seu contrário. Desse direito casuístico diz o Papa Bento XVI, seguindo O. Artus, “que está na Torá, mas que praticamente se tornou injusto e que em situações econômicas concretas não serve à defesa dos pobres, das viúvas e dos órfãos [...]”.15 Fez-se, desse modo, do Deus que cuidava da ampliação do espaço de vida das pessoas um Deus legalista, para o qual a observância escrupulosa de centenas de Leis e regras parecia interessar muito mais do que o bem-estar das pessoas. Em vez de encontrar um pai misericordioso, essas pessoas encontravam um tirano que inspirou medo e ameaçou com condenação eterna. A consequência psicorreligiosa dessa deturpação é caracterizada por R. de Vaux da seguinte maneira: O que inicialmente tinha servido para expressar a santidade de Deus e de seu povo tornou-se um formalismo estreito e um jugo insuportável, o que era uma proteção tornou-se um tipo de coleira.16 Toda a superestrutura teológico-ideológica aqui descrita genericamente nada mais é do que a cimentação religiosa de um sistema de dominação, descrito por Richard A. Horsley com as seguintes palavras: Os romanos instalaram os seus próprios governantes dependentes, os reis herodianos e os sumos sacerdotes de Jerusalém que controlavam a área [...] A ordem imperial [...] significava camadas múltiplas de governantes e exigências de tributos e impostos [...] Economicamente, isso deve ter exaurido o povo galileu ainda mais [...] É também bastante plausível que os sumos sacerdotes e os seus servidores escribas em Jerusalém ainda tentassem manter um fluxo de dízimos e ofertas da Galileia para o Templo e para o sumo sacerdócio [...].17 A comparação com a teologia original da aliança, assim como nós a encontramos no Deuteronômio (vgl. Dt 5, 12-15), mostra, de maneira clara, a imensa discrepância 32 entre esse sistema político-econômico-religioso e os princípios daquela teologia deuteronômica. Na sua época, já o profeta Jeremias, assim como Isaías, Oseias, Amos e Miqueias, havia criticado tal sistema (cf. Jr 7; 26; 22,13-19). Jesus agiu dentro do mesmo esquema e radicalizou mais ainda a crítica daqueles profetas.18 A sua atitude profética culmina naquilo que, seguindo Richard A. Horsley, poderia ser chamado de demonstração profética contra o Templo e os sumos sacerdotes.19 Pelo menos é assim que é apresentado no texto de Marcos (cf. Mc 11,15-17; 11,12- 24; 11,27-13,2). Interpretando essa demonstração, R. A. Horsley deixa bem claro que o seu enfoque principal não é o conflito entre judaísmo e cristianismo nem entre diferentes concepções religiosas. Conforme Horsley, o problema que se manifesta ali é muito mais a oposição fundamental entre aqueles que estão no poder e os que são governados por esse poder.20 Conforme Horsley, trata-se de uma “nova condenação profética não apenas da construção, mas do sistema do Templo, por causa da sua opressão do povo”.21 Essa condenação torna evidente a atitude de Jesus perante o sistema em vigor. Jesus “destrói a influência do Templo”22 e com isso aniquila toda a base do sistema socioeconômico-religioso que se tornou um peso opressivo para o povo. Se hoje se tenta recuperar essa dimensão da atitude de Jesus, é essencial ter bem claro que nisso em nada podemos ver uma volta a uma mentalidade antijudaica. Em vez disso, trata- se da clara conscientização de que Jesus, na sua época, realmente provocava um conflito, o qual, segundo Horsley, “está entre governantes e governados, não entre ‘judaísmo’ e ‘cristianismo’”.23 Hans Kung descreve esse mesmo fato com as seguintes palavras: [...] contra a doutrina e a práxis em vigor, que eram a doutrina e a práxis dos dominantes, esse Jesus assumiu conforme os Evangelhos uma autoridade que faz os doutores da Lei perguntarem: “Como este homem pode falar assim? Ele é blasfêmico” (Mc 2,7).24 8.2. JESUS RECUPERA O CERNE LIBERTADOR DAQUILO QUE É A INTENÇÃO DA TORÁ Queremos de antemão invalidar qualquer eventual suspeita de que a comparação com a religião judaica da época de Jesus signifique uma recaída daquelas atitudes antijudaicas que infelizmente marcaram muitas épocas do passado. Por isso, citamos, a seguir, aquilo que alguns bem conhecidos representantes judaicos responderam à indagação sobre a atitude de Jesus perante os sistemas sociorreligiosos da sua época. Os textos se encontram na seleção de comentários de autores judaicos, citados por Beatrice Bruteau no seu livro muito interessante Jesus segundo o Judaísmo.25 Nele, podemos encontrar, entre muitas outras, as seguintes opiniões: Herbert Bronstein: “Jesus atribuiu a si a autoridade para ensinar fora do âmbito da estrutura da autoridade 33 farisaica”.26 Andrew Vogel Ettin: Jesus “[...] não está propondo uma teologia sistemática, mas interpretando casuisticamente a Lei [...] muitas vezes crítico dos fariseus, mas cuja perspectiva muito se assemelha à deles. [...] Um arrogante ofensor autoconfiante das pessoas em posição de autoridade”.27 Daniel Matt: “Jesus foi um hasid galileu, alguém intensamente apaixonado por Deus [...] anticonvencional e extremo em sua devoção a Deus e ao seu semelhante [...] É inevitável que surjam tensões entre o hasid e a ordem religiosa estabelecida [...] Jesus é um dos que buscam a essência da Torá [...] Ele se associava aos pecadores [...] Jesus condenou a hipocrisia e a injustiça entre seu próprio povo”.28 Howard Avruhm Addison: “Seu exemplo e sua mensagem levam o amor de Deus aos oprimidos [...] Ele condena escribas, que oferecem longas orações e depois exploram os pobres [...] Ele está certo em desvelar o comportamento daqueles cujo casuísmo legal subverte o espírito da Torá”.29 Lance Flitter: “Jesus, como muitos judeus antes e depois dele, tinha um conjunto de prioridades religiosas [...] Esse Jesus rompeu barreiras sociais tradicionais e deu destaque a Leis e ideais judaicos vinculados com o amor, a gentileza e o respeito acima ou mesmo com a exclusão das Leis ligadas ao ritual [...] A parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37) demonstra tanto uma abertura social como uma condenação de ideias de pureza ritual”.30 Lewis D. Solomon: “Jesus foi um astuto comentarista de assuntos socioeconômicos. Ele desejava que derrubássemos paredes divisórias [...] Jesus ofereceu uma exacerbada crítica às normas de pureza religiosa judaicas tradicionais que delineavam [...] as fronteiras entre o sagrado e o profano [...] Jesus, do mesmo modo, situou as necessidades humanas acima da observância de cerimônias religiosas, por exemplo, a observância do Sabbath [...] Para Jesus, as necessidades
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