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A face mais íntima de Deus - Renold Blank

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2
Índice
1. Redescobrir um Deus capaz de encher o vazio dos corações humanos
2. Somos chamados para voltar, a partir de novas perspectivas, às fontes que nos
falam de Deus
3. O Deus da Bíblia se distingue desde o início fundamentalmente de todas as outras
divindades das religiões da Mesopotâmia
3.1. Um Deus que tem poder, embora não se situe do lado dos poderosos
3.2. Um Deus que não se fixa por dentro de um Templo
3.3. Um Deus que não exige primordialmente cerimônias cúlticas em seu louvor
4. Os textos da Revelação apresentam um Deus que, com vigor, se posiciona contra
toda opressão de pessoas humanas. Com isso, porém, incomoda muito aqueles que
querem dominar
5. Deus quer que o ser humano tenha uma vida ampla, plena e repleta de felicidade
6. Se Deus defende os fracos, então todos os seus seguidores deveriam fazer o mesmo
7. Deus, desde o início, se faz conhecer como “go’el”, isto é, como defensor daqueles
que não têm mais nenhum defensor
8. O contexto religioso em que Jesus se move
8.1. Lei, pureza e sacrifícios que se tornaram opressivos para o povo
8.2. Jesus recupera o cerne libertador daquilo que é a intenção da Torá
8.3. A repreensão endereçada a uma instituição sacrossanta
9. A maneira pela qual os Evangelhos apresentam a atitude de Jesus em relação ao
Templo deve ser interpretada como Revelação teológica que vale para todas as
religiões
10. Críticas neotestamentárias do sistema religioso também têm significado universal
e se dirigem a toda e qualquer religião e Igreja
11. Em Jesus, Deus revela que uma ordem oposta a Deus até pode ser justificada
recorrendo a Deus
12. Vistos da perspectiva da Revelação, as atitudes e o agir de Jesus devem ser
compreendidos como atitudes e agir do próprio Deus
13. As opções fundamentais de Jesus são as opções fundamentais de Deus
13.1. Deus opta preferencialmente pelos pobres
13.1.1. Na sua opção pelos pobres, Deus assume a causa dos perdedores, e não a
dos vencedores
13.1.2. Na sua opção pelos pobres, Deus concretiza a sua opção pelos
injustiçados
13.2. Deus opta pela justiça e é contra toda opressão
13.3. Deus opta pela misericórdia e é contra todo legalismo
13.4. Deus opta pelo serviço e é contra o poder
13.5. Deus opta pela vida
14. Em Jesus, Deus se revela como defensor também daqueles que foram rejeitados
pelo sistema religioso
15. Jesus Cristo e a necessária mudança da nossa perspectiva antropológica
15.1. Redescobrir a Revelação como base para a reflexão antropológica
3
15.2. A Kenosis de Deus implica também a Kenosis do homem
15.3. Assumir a perspectiva de Deus
15.4. Recorrendo à imagem de um Deus todo-poderoso, é possível justificar toda
aspiração humana pelo poder
15.5. A imagem do Deus todo-poderoso não desafia muito o ser humano
16. Por que Deus, em Jesus Cristo, não se manifestou como cientista, general, ou pelo
menos como grande artista?
17. Natal, ou a Revelação de um Deus do qual ninguém precisa ter medo e que por
causa disso pode ser amado
17.1. No evento de Natal, Deus se manifesta a nós como ele realmente quer ser
conhecido
17.2. O Natal revela que Deus não se interessa pelos mecanismos de prestígio e
de poder
17.3. Deus quer ser amado em vez de temido!
17.4. Um Deus que se manifesta como criança pode ser amado, mas essa criança
também pode ser rejeitada e pisada
17.5. Deus, que se manifesta humildemente como criança, identifica-se de
maneira plena com as pessoas
18. Em Jesus, Deus nos revela a sua humildade
18.1. Um Deus humilde não corresponde à imagem habitual de Deus
18.2. Um Deus humilde corre o risco de ser crucificado
18.3. Um Deus humilde que opta preferencialmente pelos vencidos desafia todos
os nossos sistemas
18.4. Um Deus humilde que opta pelo servir questiona toda e qualquer estrutura
que se baseie em atitudes de poder
Deus se põe a serviço dos homens
19. Em Jesus, Deus chama também o sistema religioso à conversão
20. Um Deus que não se manifesta como vingador e juiz liberta as pessoas do medo e
dos complexos de culpa
21. A Revelação de Deus em Jesus Criston desmascara o agir de todos os
sacrificadores de todos os tempos como falso
21.1. Impulsos inconscientes de agressividade e sua projeção em Deus
21.2. O resultado de uma mentalidade sacrifical é a formação da imagem de um
Deus vingador
21.3. A imagem de um Deus que exige sacrifícios, outra consequência de
projeções humanas
21.4. O mecanismo de projeção possibilita esconder a raiz da violência
21.5. Como desvelar diante dos sacrificadores a verdade sobre o seu agir
violento?
22. O Deus que se revela nos textos bíblicos está do lado das vítimas e não dos
sacrificadores
22.1. Os sacrificadores não querem admitir que a sua perspectiva é falsa
22.2. Com a sua atitude na cruz e diante da cruz, Deus quebra o círculo vicioso
da violência e da vingança
23. Pela ressurreição de Jesus, Deus-Pai ratifica e confirma toda a vida e toda a
4
mensagem de Jesus
23.1. A cruz, sinal de vergonha e de derrota
23.2. Pela morte na cruz, a mensagem de Jesus perdeu, para os seus
contemporâneos ortodoxos, toda e qualquer credibilidade
23.3. Os textos bíblicos não falam de uma autorressurreição de Jesus, mas de um
agir de Deus-Pai no Jesus morto
23.4. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma que ele é como Jesus, seu filho, o
tinha descrito
24. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas
que geram morte
24.1. O imaginário cristão é marcado pela cruz
24.2. O fato de a cruz ter se tornado o signo central da religião cristã trouxe
profundas consequências para a autocompreensão daqueles que se chamam
cristãos e cristãs
24.3. A cruz, por si mesma, não é o fim último da mensagem cristã, ela deve ser
vista sempre relacionada à ressurreição
24.4. Ressuscitando Jesus, Deus revela que ele é contra a morte dos crucificados
24.5. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus rejeita os valores dos crucificadores e
confirma as opções do seu filho crucificado
24.6. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os
sistemas que geram morte
25. O significado escatológico da ressurreição de Jesus
25.1. A ressurreição de Jesus se torna sinal de esperança através de toda a
história humana
25.2. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus-Pai confirma que a sua fidelidade
continua para além da morte
25.3. Pela ressurreição de Jesus, Deus comprova diante de todos que ele de fato
é capaz de ressuscitar os mortos
25.4. A ressurreição de Jesus se torna prova e base para a fé em nossa própria
ressurreição
25.5. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma tudo aquilo que Jesus tinha dito e
feito; isso implica também a promessa de que Jesus nos vai ressuscitar
25.6. Ressuscitando Jesus, este está sendo comprovado como “Cristo” e “Filho
de Deus”. Com isso, porém, também é capaz de justificar os pecadores
25.7. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus comprova que chegou o fim do
mundo antigo e o começo do novo mundo, chamado de “Reino de Deus”
5
1.
REDESCOBRIR UM DEUS CAPAZ DE ENCHER O VAZIO DOS CORAÇÕES HUMANOS
Perguntando às pessoas na rua sobre como imaginariam Deus, geralmente ouvem-
se respostas como “Deus é onipotente; Deus é Senhor; Deus é eterno, infinito e maior
que tudo o que se pode imaginar”.
Os mais bem informados ainda lembram que Deus é criador, característica que por
sua vez tem muito a ver com o seu poder. E há outros que mencionam a onisciência e
às vezes até o amor. Com isso, chegamos, em geral, ao fim do repertório, e os poucos
que pensam saber ainda mais explicam que Deus é Pai e lembram que ele se revelou
em Jesus Cristo. Depois disso, normalmente, as pessoas se calam. Mas, no seu
silêncio, perdoura a indagação não expressa se atrás de tudo aquilo que foi dito talvez
não houvesse mais...
E, nas profundezas não vocalizadas de tantos olhos questionadores, sente-se o
anseio de que de fato pudesse ser mais.
Desejo inconsciente e instantaneamente reprimido pelos chavões interiorizados de
longa data, decorados e repetidos desde criança e ouvidos em tantas e tantas lições de
catequese.
Há de fato relativamente poucos fiéis que, além dos estereótiposcorrentes, ainda
conhecem outros conteúdos sobre como Deus é. Estes, em geral, mencionam como
fonte do seu saber a própria Bíblia, os livros de piedade e também as celebrações
litúrgicas.
Do Deus todo-poderoso se fala muito nas liturgias e também na formação dos
fiéis. Até o Credo da Igreja católica menciona tal característica em lugar
predominante. Sendo assim, os cristãos e as cristãs que baseiam a sua imagem de
Deus nesse fundamento com certeza não estão errados.
Constatamos, porém, que a maioria das pessoas se contenta com esse saber sobre
Deus. Assim vivem com a segurança de uma fé oficialmente sancionada; e o fato de
os seus corações ficarem vazios, apesar da onipotência de Deus, apresenta-se para
muitos como consequência inevitável da existência humana. Mesmo cientes da
onipotência de Deus, não preenchem os seus corações, e, por causa disso, há muitos
que deixam esse Deus todo-poderoso lá no céu dele. Eles se lembram de Deus
quando precisam da sua onipotência para resolver problemas, mas, além disso,
preferem buscar outras fontes para encher o vazio dos seus corações. Estão buscando
canções melhores, em lugares muito distantes, enquanto têm tão perto de si aquela
única melodia, capaz de satisfazer todos os anseios do seu coração entristecido. Mas
eles não o sabem.
Há outros, é verdade, que deveriam saber melhor, porque conhecem os textos
respectivos. Mas também no meio deles se fala demais de um Deus do poder, da sua
autoridade, da sua glória e de seu domínio. Parece que, no psiquismo de muitos,
religião e fascínio pelo poder ficam interligados por algumas afinidades secretas.
Os peritos em interpretação de textos canônicos, além disso, reagem perplexos
6
quando se chama a atenção deles para o fato de que a sua tradicional caracterização
de Deus como todo-poderoso não é muito diferente da maneira pela qual
praticamente todas as outras religiões também apresentam os seus deuses.
Portanto, as denominações de Deus como onipotente, onisciente, santo ou eterno
em nada são exclusivas da religião cristã. Pelo contrário, têm lugar na maioria das
religiões.
Os deuses supremos do Egito foram venerados a partir dessas características, da
mesma maneira como Marduk, o deus astral supremo da Babilônia, ou Zeus, da
antiga cultura grega. Todas essas divindades e muitas outras ainda foram
consideradas pelos seus adeptos como todo-poderosas. Nos tratados do filósofo grego
Aristóteles, encontramos, além disso, longas reflexões sobre a eternidade da
divindade. E que Deus é o Alfa e o Ômega não é em nada uma fórmula do
cristianismo primitivo, tal como muitos cristãos atualmente imaginam. Quem a usou
foi o filósofo pagão mencionado, e este, como se sabe, viveu no século IV a.C.
Ideias similares, aliás, encontramos também em Platão e no pensador romano
Sêneca. Elas aparecem na teologia de Zaratustra, na Pérsia, mais de seis séculos antes
de Cristo, e também na maioria das outras grandes religiões que se formaram fora do
espaço cultural euro-mesopotâmico.
Diante de tais fatos, aqueles que se chamam cristãos talvez estejam sendo
confrontados com um problema totalmente novo. Numa época de crescente diálogo
inter-religioso, eles são desafiados por indagações como: “Com que direito mantemos
a pretensão de achar que o nosso Deus é o Deus verdadeiro, enquanto o Deus dos não
cristãos deve ser considerado um deus falso?”. Os não cristãos, por sua vez, acham
exatamente que o Deus deles é verdadeiro e que os deuses dos outros são falsos.
Diante dessa situação, surge para os cristãos deste século, marcado por crescente
globalização cultural, uma nova e muito urgente indagação: Em que o seu Deus
Supremo, afinal, se distingue das divindades supremas de todas as outras religiões?
A informação de que ele é onipotente, onisciente e eterno não é mais prova
nenhuma da sua exclusividade. O mesmo dizem os representantes das outras religiões
a respeito das suas próprias divindades.
Numa época marcada pelo diálogo inter-religioso, tal fato se torna cada vez mais
consciente. Junto com essa conscientização, porém, cresce a exigência de definir, de
maneira clara e convincente, quais são os elementos específicos da própria imagem
de Deus.
A imagem de Deus presente na maioria dos cristãos e das cristãs:
Deus é:
- onipotente
- infinito
- santo
- eterno
- onisciente
Problema:
Deus realmente tem essas características!
7
Mas, para saber isso,
não é preciso necessariamente abrir a Bíblia.
Todas elas já foram mencionadas pelos filósofos pagãos
da antiga cultura grega,
além disso, encontramo-nas também
na maioria das religiões não cristãs.
Daí surge a indagação crítica:
Onde se encontra aquilo que é especificamente novo
na concepção bíblica e cristã de Deus?
As breves reflexões introdutórias mencionadas no quadro anterior já mostraram
que não basta – ou não basta mais – apresentar o Deus dos cristãos a partir dessas
fórmulas gerais.
Tais fórmulas hoje não convencem mais, independentemente de terem, durante
séculos, sido transmitidas pelas Igrejas e seus representantes.1 Aliás, transmitidas
com êxito, porque até hoje estão presentes, de maneira dominante, no imaginário
religioso dos cristãos e das cristãs.
Mas a onipotência e a existência eterna de um Deus se apresentam hoje para
muitos mais como elementos assustadores do que atraentes, e isso, sobretudo, diante
do pano de fundo do inimaginável abuso de poder, com o qual os homens estão
sempre sendo confrontados, seja olhando pela história do passado, seja observando as
suas manifestações na época presente.
O fato de, no decorrer da história, terem sido acentuados insistentemente o poder,
a grandiosidade e a glória de Deus tem razões que em muito ultrapassam a teologia.
Elas, além do desejo de ter tal aliado ao seu lado, também abrangem a vontade de
justificar o próprio poder. Além disso, elas têm a sua raiz também na vontade
específica de intimidar e de provocar medo.
A maioria dos adeptos da imagem cristã de Deus não tem mais a mínima
consciência de que tais mecanismos existiam e em parte até hoje existem. Os efeitos
deles atuam ainda de forma inconsciente nas pessoas, e as características assustadoras
de Deus são abrandadas em cerimônias cada vez mais suntuosas. Contudo, nem
desses mecanismos, em geral, as pessoas estão conscientes.
Assim, encontramo-nos, já no início de nossas reflexões, diante de uma situação
extremamente complexa. No seu centro, fica a indagação inquietante: “Como será
possível encontrar-se hoje e no futuro com aquele Deus do qual fala a religião cristã e
cujas primeiras manifestações foram descritas nos textos bíblicos do judaísmo?”
Será que ainda é possível acreditar naquele Deus poderoso, numa época cada vez
mais sensível diante dos mecanismos de poder, visíveis até nas próprias instituições
religiosas? A pretensão autoritária delas e a sua exigência de obediência
incondicional já foi rejeitada pela maioria dos integrantes das sociedades pós-
modernas e pós-industriais desde o fim do século XX. Será que agora, no século XXI,
devem até rejeitar o Deus tantas vezes apresentado por essas instituições como
garante ameaçador e onipotente daquela obediência requerida por elas? Há pessoas
demais que respondem afirmativamente a essa pergunta.
8
Aquele Deus das Leis e regras, assustador, que exige a observância rigorosa dos
seus mandamentos e pune com dureza intransigente aqueles que não o seguem – um
Deus que muitas pessoas da velha geração ainda interiorizaram –, hoje é rejeitado
cada vez mais por mulheres e homens.
Os jovens simplesmente vão embora, e os representantes ainda vivos da velha
geração permanecem sem resposta alguma nas suas igrejas cada vez mais vazias e
lamentam a maldade do mundo moderno. Ou, por outro lado, celebram com zelo
dobrado a onipotência do seu Deus, atitude que, na realidade, revela-se como
tentativa de disfarçar o seu próprio medo inconsciente ante esse Deus esmagador.
Diante disso, permanece o dilema de que se o Deus dos cristãos realmente seja
assim, tal como durante séculos predominantemente foi apresentado.O resultado
óbvio é que cada vez menos representantes da jovem geração se deixam convencer
por essa apresentação. De um lado, eles buscam desesperadamente a dimensão
espiritual, de outro, distanciam-se cada vez mais de um Deus que assusta. Em
consequência, eles se afastam também das instituições que dizem representar esse
Deus, isto é, das Igrejas institucionais.2
Tal distanciamento, porém, no fundo nada mais é do que a rejeição de uma
mensagem que perdeu o seu caráter de “Boa-nova”, em vez disso tornando-se
frustrante. O gelo dos seus corações não foi derretido, e o seu anseio por sentido e
amor permaneceu sem respostas, porque o poder, no máximo, consegue inspirar
respeito, nunca, porém, amor, que dá amparo. É esse amor que estão buscando, mas
as ofertas sempre mais frustrantes da indústria do consumo só aumentam o vazio dos
seus corações, que anseiam pelo infinito saber.
O poder, na melhor das hipóteses,
consegue despertar respeito, porém, muito mais o medo.
Nunca o poder desperta o amor!
1 Cf. Em termos de exemplificação atual da problemática: GRETCHA, Job. Comment témoigner du Christ dans un monde qui ne croit pas? Irénikon,
Revue des Moines de Chevetogne, n. 1, p. 33-52, 2009.
2 Cf. ABURDENE, Patricia. Megatrends 2010. Charlottesville: Hampton Roads Publishing Company, 2007; FERNANDES, Silvia Regina Alves (org.).
Mudança de religião no Brasil. Rio de Janeiro: Ceris, 2006; DUBACH, Alfred & FUCHS, Brigitte. Ein neues Modell von Religion. Zurique:
Theologischer Verlag, 2005; Dinâmica populacional e Igreja Católica no Brasil, Cadernos Ceris, ano II, n. 3, 2002; SOUZA, Luiz Alberto Gomez de &
FERNANDES, Silvia Regina Alves (org.). Desafios do catolicismo na cidade. São Paulo: Paulus, 2002; NAISBITT, John & ABURDENE, Patricia.
Megatrends 2000. São Paulo: Amana-Key, 1990, p. 317ss.
9
2.
SOMOS CHAMADOS PARA VOLTAR, A PARTIR DE NOVAS PERSPECTIVAS, ÀS FONTES QUE
NOS FALAM DE DEUS
Diante do anteriormente exposto, somos desafiados a voltar, de maneira crítica e
sincera, às fontes originais que nos informam sobre Deus. Elas, muitas vezes,
apresentam-no como um consolador. Mas, para um número cada vez maior de
pessoas, esse consolo prometido parece tornar-se inacessível. Tal fato, hoje, não pode
ser negado.
Ele, ao contrário, torna-se desafio para aprofundar a questão.
Será que Deus realmente não responde mais às necessidades das pessoas?
Qual a razão de tantas pessoas não mais se sentirem tocadas por ele?
Examinar essa indagação se torna cada vez mais urgente.
Ao pesquisar o assunto, descobre-se primeiro que as fontes de muitas religiões, ou
talvez da maioria delas, informam fundamentalmente que o seu Deus é todo-
poderoso, eterno e onisciente. As mesmas características de Deus aparecem também
nas fontes judaico-cristãs, as quais com certeza correspondem à verdade.
Constatamos, porém, que, no decorrer da história da religião cristã, essas
características foram acentuadas e ampliadas cada vez mais, de tal maneira que, hoje,
elas são, para muitos cristãos e cristãs, dominantes e as mais conhecidas de Deus.
Todavia, o que não se destacou e que consequentemente hoje quase foi esquecido
por muitos é o fato de que o próprio Deus parece ser muito pouco interessado em ser
venerado predominantemente a partir das suas características de autoridade e de
poder. De qualquer modo, durante séculos, essas características é que foram
primordialmente destacadas pelas instituições que pretendiam defender os interesses
de Deus na Terra.
Assim, perdeu-se muito o sentido dos textos bíblicos que insistem para que Deus
seja conhecido como poderoso, cujo motivo, em geral, é bem específico: a Bíblia
quer conscientizar-nos de que Deus não compreende a sua onipotência como
incentivo para ser venerado. Em vez disso, tal característica lhe abre a possibilidade
irrestrita para poder ajudar aqueles que ama.
A veracidade dessa afirmação se torna evidente a partir do momento em que
começamos a entrar mais na mensagem central dos textos bíblicos. Encontramos
neles de antemão características que distinguem desde o início o Deus da Bíblia da
grande maioria das divindades de todas as outras religiões: Deus põe o poder dele
primordialmente ao serviço da pessoa humana.
Esse fato, por sua vez, abre caminho para enxergar o Deus bíblico por um ângulo
bem diferente daquele de costume. É possível vê-lo com outros olhos.
Tal mudança de perspectiva é necessária numa época na qual a crítica à Igreja se
espalha em todo lugar, enquanto, ao mesmo tempo, cresce o anseio por conhecer
Deus.
10
A análise da história da Revelação mostra que Deus,
no fundo, fica muito pouco interessado
em ser venerado como Deus onipotente.
O que lhe interessa é muito mais isso:
Conscientizar-nos de que não considera o seu poder
o motivo primordial para ser venerado.
Em vez disso, mostra que a sua onipotência,
para ele, em primeiro lugar,
torna possível ajudar aqueles que ama.
Estes somos nós.
11
3.
O DEUS DA BÍBLIA SE DISTINGUE DESDE O INÍCIO FUNDAMENTALMENTE DE TODAS AS
OUTRAS DIVINDADES DAS RELIGIÕES DA MESOPOTÂMIA
3.1. UM DEUS QUE TEM PODER, EMBORA NÃO SE SITUE DO LADO DOS PODEROSOS
Em toda a Mesopotâmia e em praticamente todas as outras grandes religiões do
mundo, constatamos que uma das características primordiais da divindade suprema é
a sua pretensão ao poder. Em geral, o deus supremo, como Poder Espiritual Supremo,
está aliado ao poder político supremo.1 Nessa aliança, o poder político legitima os
seus interesses mundanos, enquanto a divindade, por sua vez, garante e protege com a
sua onipotência o poder dos dirigentes políticos. Assim, o sistema funcionou desde há
muito no Império de Assur, até as monarquias absolutistas da história europeia.
O poder político sustenta o religioso, e este, por sua vez, legitima e garante o
político. Um sistema fechado em si mesmo, com a ajuda do qual podiam ser fixadas e
justificadas todas as estruturas de dominação e era possível exigir obediência.
No momento, porém, que voltamos às primeiras fontes da fé daquele Deus cuja
imagem se formou no contexto judaico-cristão, constatamos que aqui esse sistema
descrito não funciona.
Não funciona porque o Deus apresentado nesses textos, que, mais tarde, será
chamado de “Javé”, resiste desde o início a tal instrumentalização.
É verdade que nem sempre tinha sucesso com essa sua atitude, como bem mostra
a história. Mas a cronologia da sua Revelação começa, sem dúvida alguma, com uma
experiência absolutamente nova:
Esse Deus, apesar de ter poder absoluto, não se situa do lado do poder reinante.
A história dos assim chamados Patriarcas (cf. Ex 12ss) apresenta um Deus que faz
aliança com um pequeno grupo de seminômades, despojados de todo poder, sem
influência alguma e desprovidos de qualquer peso na política de dominação dos
grandes. Apesar de ter poder, o Deus verdadeiro não se aliou com os poderosos da
sua época, mas com aquele grupo sem poder algum.
Tal fato é absolutamente novo!
Para os adeptos que fizeram referência a esse Deus, essa novidade e as suas
consequências se tornaram a prova mais convincente de que o Deus venerado era o
Deus verdadeiro, enquanto os deuses das outras religiões se mostraram falsos. Até
nos textos bíblicos que hoje temos em mãos, e nos quais devemos reconhecer o
resultado de uma história redacional de séculos, o elemento surpreendente desse fato
ainda vem sendo expresso sempre com novas variações (cf. Gn. 12-50).
3.2. UM DEUS QUE NÃO SE FIXA POR DENTRO DE UM TEMPLO
Além da característica mencionada, aparece ainda outra característica nos textos
sobre as primeiras experiências com o Deus denominado “de Abraão”. Também nela,
12
esse Deus se distingue diametralmente dos outros deuses da época. Para se ter uma
noção mais clara dessa diferença, é necessário lembrar as atitudes dos deuses da
Mesopotâmia. Estes normalmente eram venerados num lugar determinado. Poderia
ser numa montanha, numa árvore, numa nascente ou em algum outro lugar com
características especiais. Em estágios evolutivos mais avançados da religião, o lugar
especialse tornou Templo, cuja grandiosidade e beleza refletiam explicitamente o
poder do deus que habitava nele. Além disso, o Templo também demonstrava o poder
e a glória do sistema político que reconhecia o deus como o deus dele, enquanto este,
em recompensa, por sua vez sustentava o sistema. Caso algum dos seguidores desse
deus quisesse apresentar uma súplica ou um pedido, era óbvio que ele tinha que se
deslocar para o lugar em que a divindade se encontrava. Esta, em geral, reinava muito
longe dos problemas e das preocupações das pessoas humanas ordinárias.
É assim que a absoluta maioria das religiões da Antiguidade apresentava as suas
divindades supremas. Tal concepção, porém, foi superada pela nova maneira pela
qual os textos bíblicos apresentam o Deus dos Patriarcas:
Um Deus eterno e todo-poderoso, mas ao mesmo tempo “um Deus-conosco”, um Deus itinerante que se
desloca para o lugar no qual os seus adeptos se encontram e cujo poder nunca esmaga o ser humano.
Assim apresentou-se desde as suas primeiras manifestações o Deus bíblico. E essa
sua caraterística de um “Deus no caminho” permaneceu “espinha na carne” do
sistema religioso de Israel a partir daquele momento, em que também na sua história
se estabelece um processo progressivo de distanciamento da imagem transformadora
do Deus de Abraão, rumo à institucionalização de um “Deus cúltico do Templo”.
Pequeno exemplo da resistência contra tal tendência já se encontra na primeira
ocasião na qual tal movimento se torna dominante: é diante do projeto de construir
um Templo, assim como todos os outros povos o tinham. Apesar de esse projeto
finalmente se impor, os textos bíblicos mantêm até hoje o vestígio de uma oposição,
formulada em nome do próprio Deus:
Vai dizer ao meu servo Davi: Assim fala o Senhor: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu
morar? Pois eu nunca morei numa casa, desde que tirei do Egito filhos de Israel até hoje, mas tenho
andado em tenda e abrigo. Por todos os lugares onde andei com os filhos de Israel porventura disse a
algum dos juízes de Israel que encarreguei de apascentar o meu povo: Por que não me edificastes uma
casa de cedro?”[...] (2Sm 7,5-7; 1Cr 17,4-6)
Independentemente do fato de esse Deus não querer um Templo, foi-lhe
construído um ao preço de suor e sofrimento do povo (cf. 1Rs 5,17; 9,20-22).
A problemática por trás daquilo que os textos bíblicos relatam não desapareceu até
hoje. Também durante toda a história da religião cristã, encontramos, no coração de
muitos cristãos e de muitas cristãs, os elementos do imaginário arcaico de um Deus
onipotente e esmagador, de um Deus que deve ser acalmado por cerimônias e
louvores e cuja honra exige gestos suntuosos e até dolorosos. E para muitos, até hoje,
Deus fica fixado nos lugares específicos das Igrejas, separadas e claramente distintas
do mundo chamado de “profano”.
A imagem, porém, que se mostra de Deus nas tradições bíblicas mais antigas é
13
bem diferente. Recuperá-la para os dias de hoje é um dos desafios urgentes.
3.3. UM DEUS QUE NÃO EXIGE PRIMORDIALMENTE CERIMÔNIAS CÚLTICAS EM SEU LOUVOR
Finalmente, detecta-se na imagem bíblica de Deus ainda a oposição a um terceiro
elemento que pode ser encontrado em praticamente todas as outras religiões da
Mesopotâmia: as divindades delas exigiam veneração por meio de um culto
sacralizado, complexo e em geral até muito custoso. As despesas desses cultos tinham
que ser assumidas pelos seguidores, através de sacrifícios, tributos e doações, cujo
peso em muitos casos esmagava o povo. Independentemente disso, valia como regra
geral a relação estabelecida ao poder do deus venerado, o qual se expressava de
acordo com a pompa das cerimônias em seu louvor. Quanto mais suntuosas tais
cerimônias fossem, tanto maior aparecia o poder da divindade.
A partir dessa relação, podia-se estabelecer até uma reviravolta da relação entre a
divindade e os seus adeptos: em vez de as cerimônias e os sacrifícios refletirem o
poder e a influência do deus venerado, o prestígio dele diminuía ou crescia em função
dos sacrifícios realizados pelos seus seguidores.
Caso os seguidores não realizassem um culto conforme o deus pensou merecer,
este, por sua vez, tinha a possibilidade de, através de mandamentos e ameaças, dar
mais peso às suas exigências. E uma vez que o deus em geral não falava, havia em
torno dele toda uma bem estruturada casta sacerdotal, que vigiava o cumprimento das
exigências por ela mesma formuladas.
Eram esses os elementos-chave estruturais de praticamente todas as religiões da
Mesopotâmia, muito embora não só ali.
Em tal contexto agora se forma, num grupo determinado e dentro de uma
constelação histórico-social bem específica, a convicção de que o Deus verdadeiro
não pode ser assim. Através de um longo processo de amadurecimento da
cosmovisão religiosa, fixa-se como terceiro elemento novo a ideia de
um Deus que não exige em primeiro lugar a realização de rituais e cerimônias cúlticas em seu louvor, em
vez disso, incentiva o agir dentro da história.
A partir dessa nova perspectiva, abre-se a possibilidade de compreender o culto
religioso como aquilo que ele é: uma necessidade humana, mas em nada uma
exigência pesada por parte de Deus.2 Da novidade absoluta, escondida nessa
descoberta, a maioria dos adeptos atuais daquele Deus tem muito pouca consciência.
Recuperá-la é mais uma das precondições para que se possa redescobrir o fascínio
daquilo que Deus na realidade é.
Para responder a esse desafio, os textos bíblicos mencionam a figura de um
homem, Abraão, e descrevem, em narrações variadas e em parte até fantasiosas, o
devir de uma nova concepção em relação ao Deus verdadeiro.
Ela pode ser resumida pelos três enfoques-chave a seguir:
14
• O Deus verdadeiro é poderoso, mas ele não se situa ao lado daqueles que têm poder.
• O Deus verdadeiro não está fixado num lugar ou num Templo, mas é um Deus que acompanha os seus
seguidores como “Deus-conosco”.
• O Deus verdadeiro não está interessado primordialmente e em primeiro lugar em cerimônias e rituais
cúlticos em seu louvor. Em vez disso, ele incentiva o agir dentro da história.
Tais características são novas. Elas não correspondem às concepções
tradicionalmente formuladas, nem naquela época e, muitas vezes, nem hoje. Em
consequência, questionam todo um determinado sistema político-religioso, no tempo
bíblico assim como no decorrer de toda a história até nos dias atuais.
É óbvio que os sistemas respectivos, por sua vez, fizeram de tudo para calar tal
Deus incômodo que assim se manifestou. Caso decretos e proibições não alcançassem
o seu objetivo, aplicavam outra tática e começavam a domesticar Deus dentro do
sistema, construindo Templos maravilhosos em seu nome e instaurando um culto que
nunca antes se viu. Assim, o povo ficava de boca aberta diante de tanta ostentação;
contudo, no fundo foi alienado, e a sua fé se fixou cada vez mais nas dimensões
efêmeras de uma religiosidade sacralizante e alienante.
Teremos que refletir mais sobre esse fenômeno, muito agradável a certos
interesses e que, no fundo, se encontra também na raiz daquilo que hoje chamamos de
crise institucional das Igrejas cristãs.
Para começar a superar essa crise, parece-nos essencial realizar, de maneira
sistemática, aquilo que começamos neste capítulo: recuperar, para a consciência
religiosa, aquelas características do Deus da nossa fé, que, em determinados casos,
até desapareceram do universo da fé de muitos cristãos e cristãs de hoje. À medida
que elas forem reintegradas no coração da vivência religiosa, cada vez mais pessoas
redescobrirão a atualidade viva e fascinante do Deus verdadeiro e também das
Igrejas, nas quais esse Deus verdadeiro é anunciado.
1 Como exemplo, cf.: GRONEBERG, Brigitte. Die Götter des Zweistromlandes (Os deuses da Mesopotâmia). Dusseldorf: Patmos, 2004. “Os mitos
(babilônicos) mostram, na sua totalidade, que a celebração de um Deus supremo era um ato político-religioso, realizado pelas elites para as elites […]
Todas as fontes mostram que foi formado um Panteon,que tinha […] plenitude de poder e que sustentava o rei.” Ibid., p. 253. “Já nas inscrições sumérias
dos reis das cidades da segunda metade do 3º milênio, se fala dos deuses como daqueles que sustentam o rei […]” (op. cit., p. 241).
2 Sobre a crítica profética de um culto vazio, como exemplo, cf.: Is 1,11-17; Jr 7,1-12; Am 5,21-24. Também: BLANK, Renold J. Deus na história. São
Paulo: Paulinas, 2005, p. 180-195; BLANK, Renold J. O Deus que desafia seu próprio culto. Revista de Cultura Teológica, 39 , X, p. 39-53, abr.-jun.
2002.
15
4.
OS TEXTOS DA REVELAÇÃO APRESENTAM UM DEUS QUE, COM VIGOR, SE POSICIONA
CONTRA TODA OPRESSÃO DE PESSOAS HUMANAS. COM ISSO, PORÉM, INCOMODA MUITO
AQUELES QUE QUEREM DOMINAR
Nos textos bíblicos, encontramos narrações interessantíssimas sobre o assim
chamado “êxodo” de um grupo de escravos no fim do século XIII a.C. Eles
veneravam o “Deus de Abraão”, do qual falávamos no capítulo anterior. Nele, que
mais tarde foi chamado de Javé, reconheciam o Deus verdadeiro, o Deus dos seus
ancestrais, de Abraão, Isaac e Jacó. Nos textos que falam de Deus, vem à tona outra
característica dele que predominantemente foi esquecida. E se não foi esquecida, pelo
menos não mais é reconhecida nas suas consequências inimagináveis.
A razão para tal esquecimento encontramos provavelmente também no fato de a
maioria dos poderosos, no decorrer de todos os séculos da história, em nada ter
incentivado os fiéis a acentuarem certas características do Deus bíblico – por razões
óbvias, como já veremos.
Aquele Deus, que em seu nome um grupo de escravos conseguiu escapar do
Império de Ramsés II no Egito, se fez conhecer a eles como um Deus oposto a todo e
qualquer tipo de escravidão. Em vez disso, convoca os escravizados a se libertarem, a
quebrarem os mecanismos da opressão e, quando realizam isso, declara que está junto
deles. Assim ele é apresentado nos textos.
Obviamente, tal Deus não correspondia àquilo que o faraó daquela época
desejava. Tampouco corresponde à imagem a partir da qual os defensores da
escravidão em todos os séculos da Era Cristã o apresentaram.
E até na atualidade, esse Deus não corresponde à concepção preferida por todos
aqueles que, de uma ou outra maneira, oprimem outras pessoas ou as exploram. É
claro que atualmente, para tal exploração, não se recorre mais a correntes e chicotes.
No lugar deles, usam-se os mais sofisticados métodos de manipulação: as ideologias
da maximização do lucro a todo preço e todo um sistema de mercado globalizado
com a sua indústria de consumo. O resultado, porém, é sempre o mesmo: em nome de
algum sistema profano ou religioso, as pessoas são instrumentalizadas, tuteladas e
submetidas a servirem como instrumentos de algum poder ou algum esquema de
enriquecimento.
Diante de todos esses mecanismos, há uma única resposta religiosa: Deus é
contra!
Deus é contra todas as tentativas de desumanizar
e instrumentalizar a pessoa humana.
Para que esse fato não fosse percebido pelos instrumentalizados, tentou-se em
todos os séculos escondê-lo deles. Era muito mais fácil falar da onipotência de Deus e
calar-se explicitamente diante de uma outra indagação: Contra que tipo de situação e
16
contra que atitudes ou estruturas esse Deus onipotente quer empregar a sua
onipotência?
A resposta a essa pergunta incomodava, no entanto, a onipotência de Deus em si
não irritou nenhum daqueles que dominavam, muito pelo contrário.
Recorrendo a ela, permitia-se justificar maravilhosamente o próprio poder. A
ideologia dos assim denominados “governantes por delegação divina” dos séculos
XVIII e XIX se apresenta como exemplo típico de tal instrumentalização de
características de Deus por interesses próprios.
Mas, observando a história, descobrimos que já muito antes se podia observar o
fenômeno da acentuação unilateral de certas características de Deus em detrimento de
outras.
Quando, no século IV d.C., o cristianismo começa a ser integrado
progressivamente na estrutura do Império Bizantino-Romano, desaparece dentro de
poucas décadas o ícone do Bom Pastor. Era com essa imagem que a Igreja primitiva
tinha primordialmente venerado o Deus encarnado em Jesus Cristo. É por meio desse
ícone agraciante e profundamente bíblico que se tinha concentrado todo o imaginário
consolador de um Deus humilde, que sustenta o fraco, que recupera o decaído e que
carrega nos seus próprios ombros aquele que perdeu a força.
Essa imagem de Deus, porém, não correspondia às expectativas de um império
mundial, cuja política se baseava no poder, na ampliação de esferas de influência e na
conquista de cada vez mais autoridade. Consequentemente, mudou-se a imagem!
Assim, conhecemos desde aquela época o Deus encarnado, em escala cada vez
maior a partir de outro imaginário: o Pantocrátor, o Imperador do Cosmo, o Senhor
do Universo, o Rei Supremo e o Cristo-Rei.1
Richard A. Horsley, em sua análise magistral sobre o cristianismo no novo
contexto imperial, descreve as consequências dessa mudança de perspectiva em
palavras muito claras:
Cristo se tornou não o Senhor e Salvador anti-imperialista, mas o Rei Imperial que autorizava o imperador
e a ordem imperial [...] Cristo serviu principalmente para autorizar o império e a ordem imperial.2
A teologia do Cristo-Rei contribui até hoje para que essa imagem se fixe. E
mesmo quando nessa teologia se repete a informação de o reinado de Cristo não ser o
mesmo que aquele dos reis do mundo, o imaginário arquetípico do rei não muda.
Inconscientemente permanece ligado às noções de poder e de dominação, e tal fato já
foi demonstrado pela psicologia analítica de Carl Gustav Jung.
É verdade que, a partir da perspectiva teológica, não há objeção nenhuma contra o
imaginário de Jesus Cristo como Imperador do cosmo. Sendo ele o Deus encarnado,
verdadeiro homem e verdadeiro Deus, não há a mínima dúvida de que ele possui
também todos os atributos contidos no título de Pantocrátor.
O problema não é a questão sobre se Jesus Cristo pode ser apresentado assim,
como a imagem do Senhor do Universo o sugere – ele pode!
Todavia, há outra indagação muito séria que se põe diante de todo o imaginário
17
aqui em discussão:
Caso Deus tivesse interesse em ser conhecido e venerado em primeiro lugar como
Imperador onipotente do cosmo, podemos supor que, em Jesus Cristo, ele teria se
revelado primordialmente com esses atributos.
Será que Deus se interessa realmente em ser conhecido e venerado primordialmente como Pantocrátor?
A resposta a essa indagação é claramente “Não”!
Caso ele tivesse interesse em ser conhecido em primeiro lugar assim, nesse caso,
ele, na sua mais clara Revelação em Jesus Cristo, não teria se manifestado dessa
maneira?
Exatamente isso, porém, ele não fez!
Caso Deus tivesse interesse em ser conhecido e venerado
em primeiro lugar como Imperador onipotente do cosmo,
podemos supor que, em Jesus Cristo,
ele teria se revelado primordialmente com esses atributos.
Fato é que a mais clara e mais plena Revelação que Deus dá de si mesmo acentua
características totalmente diferentes daquelas do domínio e do poder.
Se Deus, porém, se mostra assim, então por que seus seguidores não veem com
seriedade tal fato?
Constatamos que grande parte dos cristãos e das cristãs nunca se confrontou com
esse questionamento.
Diante dos fatos históricos da Revelação, é exatamente esta conscientização que
precisa ser feita:
A partir de quais dos seus infinitos atributos Deus quer ser conhecido?
Há muitas pessoas atualmente que se afastam de Deus ou o rejeitam. O que na
verdade rejeitam “não é o Deus verdadeiro”. Elas conhecem aspectos parciais dele, e
em muitos casos até são características, pelos quais nem o próprio Deus parece estar
muito interessado. As pessoas rejeitam esses aspectos parciais, e, por não conhecerem
outras características, dizem que rejeitam Deus. Na realidade, rejeitam um Deus falso,
uma imagem deturpada de Deus, que em muito não corresponde àquilo que ele é.
Eles nem o sabem, porque de outra imagem nunca ouviram falar.
O grande desafio diante dessasituação é este: redescobrir o Deus verdadeiro,
reencontrar aquele Deus que se revelou em Jesus Cristo. Quanto mais se descobrem
as características dele, tanto mais fascinante Deus se torna.
As características visíveis em Jesus obviamente são importantes para o próprio
Deus. Por causa disso, ele as assume quando em Jesus Cristo se revela em carne
humana. Por causa disso, revela-as a nós, independentemente de corresponderem ou
não aos interesses dos poderosos de qualquer época.
18
Algumas dessas muitas características reveladas em Jesus Cristo se mostram desde
o início como dominantes. E elas permanecem essenciais do início até o fim da
história humana. Mas a maioria das pessoas nem mais as conhece. Nem nas aulas de
catequese elas foram informadas sobre tais características.
Independentemente disso, é impossível de serem desmentidas, pois a verdade
sobre Deus se encontra sempre em novas versões nos textos que chamamos de
Revelação Divina. Caso sua mensagem tivesse sido entendida com seriedade, a
história do mundo seria outra!
As reflexões a seguir convidam-no a conscientizar-se de novo dessas
características tão pouco presentes na consciência de muitas pessoas.
1 Cf. BARBAGOLLO, Salvatore. Iconografia liturgica del Pantokrator. Roma, 1996, p. 99ss.
2 HORSLEY, Richard A. Jesus e o império. São Paulo: Paulus, 2004, p. 139.
19
5.
DEUS QUER QUE O SER HUMANO TENHA UMA VIDA AMPLA, PLENA E REPLETA DE
FELICIDADE
Todos aqueles que conhecem os textos lembrarão as sentenças programáticas de
Jesus em Jo 10,10:
Eu vim para que vocês tenham a vida e a tenham em abundância!
A frase é conhecida. Ela deve ser compreendida como uma das ideias
programáticas de Jesus, transmitidas pelo Evangelista João.
Uma história milenar de espiritualização permitiu que esse programa radical
perdesse a sua virulência e fosse cada vez mais compreendido numa dimensão
desligada da vida concreta.
A vida mencionada no texto foi interpretada como “vida espiritual” e, como tal,
até transferida para um estado após a morte. Assim, perdeu todo o relacionamento
com a vida concreta, cotidiana e banal do ser humano. Em vez disso, tornou-se pura
projeção de um além abstrato e muito distante das situações concretas. O mundo
aquém podia permanecer aquele “vale de lágrimas”, campo de ação para todos
aqueles que, em nome de seu próprio bem-estar pessoal, ensinaram que esta vida
terrena não teria valor. Em consequência disso, elogiaram o mérito do sofrimento,
transformando a vida de muitos em experiência de progressiva humilhação. Para
encontrar exemplos de tais situações, basta lançar um olhar na situação dos
trabalhadores no início da Era Industrial – de escravidão e trabalhos forçados,
presentes nos séculos anteriores, sem falar da vida das massas miseráveis de hoje,
jogadas nas favelas das grandes metrópoles do terceiro mundo.
Todas essas vidas não têm nada a ver com uma vida em plenitude. Deus, porém,
declarou em Jesus Cristo que é exatamente isso que ele quer para todas as pessoas.
Até hoje, os homens não o deixaram realizar o seu projeto. Independentemente
disso, ele o apresenta desde o início da história da Revelação. No seu chamado,
porém, não convoca as pessoas para fazerem exercícios espirituais. Em vez disso,
incentiva-as a transformar todas as situações concretas, nas quais o espaço de vida foi
coagido e restrito. De escravidão e opressão nem quer saber e, por causa disso,
declara em alta voz que é um Deus que liberta os escravos e derruba os poderosos (cf.
a história do Êxodo e também o Magnificat em Lc 1,47-53).
O que, no século XIII a.C., começou com a fuga de um grupo de escravos em
nome de seu Deus permanece a linha norteadora do agir de Deus em todas as épocas,
e até hoje.
Contudo, em todas essas épocas, também vieram à tona as mil maneiras pelas
quais os poderosos sempre conseguiram deturpar tal vontade declarada por Deus. A
sua voz incômoda foi suavizada e o seu chamado alterado, às vezes até de modo
20
contrário. Assim, perdeu-se o seu apelo transformador, quando podia ser entendido
conforme a vontade daqueles que muitas vezes até se tinham declarado defensores da
glória e da honra de Deus.
Como exemplo típico desse processo, pode ser mencionado o texto que hoje
conhecemos com o nome de Os Dez Mandamentos. Todo fiel indagado sobre o tema
nos vai explicar esses mandamentos a partir de um enfoque moral e individual. Leis
que devem ser observadas e que regulamentam a atitude moral do indivíduo. Assim
os mandamentos são compreendidos até hoje pela maioria das pessoas. No entanto,
na sua época, essa não era a intenção primordial do texto.
Caso coloquemos o código em questão no contexto sociocultural da sua origem,
descobrimos, nos dez mandamentos, um significado que ultrapassa em muito a esfera
puramente individual. Descobrimos nos textos de Ex 20 um código para a construção
e a manutenção de uma sociedade. Uma vez que fossem seguidos os postulados em
questão, todo membro dessa sociedade de fato poderia viver uma vida plena e feliz,
sem medo e sem ser ameaçado na sua integridade pessoal.
Observando os fatos, porém, constatamos novamente que, no decorrer da história,
o sentido original daqueles mandamentos de Deus se perdeu e se perde cada vez
mais. O seu enfoque primordialmente social foi enfraquecido. A sua forte conotação
em direção a uma organização social que garantisse justiça para todos foi esquecida e
substituída por um legalismo individualista cada vez maior. Com isso, produziu-se
em certos casos uma verdadeira inversão do sentido original do texto.
Assim, deturpou-se também a imagem daquele Deus, que foi considerado o autor
daqueles mandamentos. A sua intenção original de garantir aos seres humanos as
amplas e plenas dimensões da vida se perdeu. Ela foi sufocada por interpretações
legalistas e casuístas. E o próprio Deus, na visão de seus intérpretes, se tornou cada
vez mais um policial implacável da observância das Leis, um Deus punidor que
ameaçou com duras sanções todos aqueles que não seguiram suas Leis.
Encontramos um exemplo muito eloquente para essa deturpação da intenção
original de Deus na interpretação do assim chamado mandamento do sábado. Na sua
forma sintética e mais conhecida, diz: “Lembra-te de santificar o dia do sábado” (Ex
20,8).
Para os cristãos, essa fórmula se tornou a exigência de “santificar o domingo”.
E todos eles, judeus e cristãos, compreenderam o texto como exigência, cujo
elemento central era o dever de assistir às cerimônias prescritas e ordenadas no dia do
Senhor. Um dever que, em muitos casos, se tornou fardo até pesado. Para os
católicos, o “dever” de santificar o domingo tinha que ser cumprido sob ameaça de
severas punições por parte de Deus. Falou-se de pecado mortal e até de Inferno. E o
mesmo valia na época de Jesus, diante da observância de dezenas de regras e Leis,
cuja observância exigia a santificação do sábado. Assim falavam os representantes do
Templo.
Um dever, um fardo, uma obrigação formulada pelo próprio Deus, e para muitos
uma coerção que causava medo. Assim se apresentava esse mandamento para
milhões de pessoas.
21
Caso voltemos ao sentido original daquele mandamento, não descobrimos nada
disso, e muito menos um Deus que restringe as pessoas humanas com exigências de
cerimônias cúlticas em seu louvor. O contrário é verdade!
No mandamento para a santificação do sétimo dia da semana, encontramos de
novo aquele Deus que se preocupa com as pessoas e o seu bem-estar. O mandamento,
em nome de Deus, foi formulado numa época em que ninguém se preocupava se o
trabalhador – fosse ele livre ou escravo – tinha algum dia de folga para se recuperar.
Quem trabalhava, e, sobretudo, quem trabalhava no serviço de um outro, tinha que o
fazer dia após dia, semana após semana, sem folga nenhuma, até finalmente morrer
esgotado, exausto, desgastado.
Como resposta a essa situação, e em oposição a ela, o Deus de quem aqui falamos
formula uma Lei, na qual podemos ver uma das primeiras leis trabalhistas da história.
Numa época em que ninguém se preocupava como direito a descanso e folga da
população trabalhadora, esse Deus formulou uma Lei que deu a ela tal direito. Contra
os interesses econômicos de todos aqueles que usaram a força de trabalho para criar a
sua própria riqueza, Deus em pessoa cuida do direito à folga daquela força de
trabalho.
Numa época em que ninguém se preocupava
com o direito a descanso e folga da população trabalhadora,
Deus formulou uma lei que deu a ela tal direito.
Com isso, o sábado se tornou um dia de alegria, uma festa no sentido verdadeiro
da palavra. Deus pessoalmente cuidou do direito de cada um, de ter, depois de seis
dias de trabalho, um dia livre. E esse direito valia para todos, para o filho, para o
escravo e até para o jumento.
A decretação dessa Lei foi um direito e uma ampliação feliz do espaço de vida
para todos os trabalhadores. Que, no decorrer da história, esse direito libertador se
tornou dever e fardo é mais um exemplo para a deturpação da imagem de Deus.
Descobrir essas falsificações e revertê-las possibilita redescobrir o Deus
verdadeiro na sua forma autêntica. É o modo pelo qual ele se mostra a nós, como um
Deus que cuida do bem-estar dos seres humanos, da sua felicidade e da ampliação de
tudo aquilo que chamamos de vida humana. Assim é Deus! E por esse Deus, de fato,
é possível entusiasmar-se.
22
6.
SE DEUS DEFENDE OS FRACOS, ENTÃO TODOS OS SEUS SEGUIDORES DEVERIAM FAZER
O MESMO
Se Deus se apresenta na história como aquele que assume a defesa dos oprimidos,
dos fracos e de todos os prejudicados, como alguém que se refere a ele poderia agir
de outra maneira? E como seria possível falar de uma sociedade cristã ou de uma
Igreja cristã se nessas instituições a defesa e a recuperação dos pobres, dos humildes
e dos excluídos não fossem a primeira prioridade?
Caso não se falsifique Deus, mas o aceite realmente como ele é, isso traz
consequências que em muito ultrapassam a piedade individual. Também esse fato foi
muitas vezes esquecido no decorrer da história do cristianismo. Ele foi esquecido
porque uma sofisticada ideologia dos poderosos fez de tudo para tanto.
Não obstante todas essas manobras, Deus continua acentuando exatamente aquilo
que tentaram fazer esquecer. Isso se torna cada vez mais óbvio no decorrer do que
chamamos a história da “Autorrevelação de Deus”.
Uma sociedade que se refere ao Deus JAVÉ não pode ter estruturas ou
mecanismos que fazem com que as pessoas sejam rebaixadas, oprimidas,
marginalizadas ou excluídas.
Uma sociedade que se refere ao Deus JAVÉ
não pode ter estruturas ou mecanismos
que fazem com que as pessoas
sejam rebaixadas, oprimidas, marginalizadas ou excluídas.
Todos os mecanismos e todas as estruturas que produzem tais efeitos não
correspondem à vontade de Deus. Isso vale não só para os escravos egípcios do
século XIII a.C., como também para aqueles milhões de pessoas que pereceram nos
navios, nas plantações e nas minas dos impérios coloniais cristãos. E a vontade de
Deus permanece a mesma, até nos dias de hoje, em relação aos oprimidos de qualquer
sistema político, assim como em relação às massas esquecidas e excluídas em nome
de um mercado cujo lema principal é a maximização do lucro.
Deus se situa do lado deles, e não do lado daqueles que oprimem, não obstante o
número de igrejas douradas que construíram em sua honra. Embora numa religião se
mantenha tal consciência, os seus integrantes não se podem calar diante de todas as
formas de injustiça e humilhação, às quais os seres humanos estão submetidos.
E quando a questão é a reta ordem social, deveria ficar evidente para qualquer
seguidor de Deus que tal ordem só pode ser criada com base no respeito e na
igualdade de todos. Tal fato se torna evidente quando analisamos a evolução da
história do grupo de escravos que fugiu do Egito em nome de Javé.
Depois de ter escapado, construíram um sistema social sem par, baseado na
solidariedade e na igualdade de todos. Tiraram a motivação para esse
23
empreendimento das experiências da sua fuga e da imagem de Deus ali formada. Nela
ficou evidente que a última força motriz por trás de todos os acontecimentos tinha
sido aquele Deus que detesta toda forma de opressão. Na fé dos seus adeptos, ele já
tinha dado provas de ser um Deus que não dava muita importância àquilo que era
central nas outras religiões: cerimônias cúlticas, Templos, louvores e todo o aparato
suntuoso com o qual geralmente foram venerados os deuses da época (cf. 2Sm 7,5-7;
Is 1,10-17).
Nas experiências bem-sucedidas da fuga da escravidão, os adeptos desse Deus tão
diferente descobriram uma outra característica fundamental dele: ele é um Deus que
ama a liberdade, a sua própria e também a dos humanos.
Por essa razão, ele mesmo se engaja num processo histórico que deveria realizar
tal liberdade: liberdade de todo tipo de opressão, liberdade da escravidão e liberdade
de exploração.
O Deus que se manifesta nos textos bíblicos protesta contra todos os sistemas que
degradam a pessoa humana e que fazem dela um instrumento para o aumento da
riqueza ou do poder de outros.
Deus é contra a coisificação dos seres humanos como mercadoria e força de
trabalho. E quando tal dependência é justificada em nome de algum parágrafo ou Lei
religiosa, Deus não os sustenta, mesmo se fossem formulados em seu nome.
Era esse o elemento-chave a partir do qual aquele grupo de escravos, do qual a
Bíblia fala, conhecia o seu Deus. Eles confiavam na força libertadora de seu Deus e
assim se tornaram capazes de quebrar as suas cangas. Uma vez tendo passado por tais
experiências, era impensável que eles mesmos pudessem estabelecer um sistema
social hierárquico, porque toda hierarquia contém o perigo de tornar-se opressora.
Assim, construiu-se, em Israel, aquela forma de convivência igualitária, em que
descobrimos, bem antes da pólis grega, os primeiros elementos de uma estrutura
social democrática. Ela não durou muito, é verdade.
Pressionados por interesses político-sociais, logo se estabelece, em Israel, um
sistema hierárquico em torno de um rei, embora sob o protesto de um Deus que não
queria hierarquias, isso é verdade; mas os interesses das elites sociais eram mais
fortes.1 Nem o protesto de Deus conseguiu fazê-las mudar de opinião. Um pequeno
reflexo daquele protesto, aliás, encontramos ainda hoje nos textos bíblicos (cf. 1Sm
8,6-8; 11-19). As intenções de Deus estavam sendo deturpadas pela classe dominante.
O que começou no episódio mencionado culmina, na história de Israel, com Salomão
e a construção do primeiro Templo (cf. 1Rs 5,15-7,51).
Sobre a veracidade histórica daquilo que os textos bíblicos relatam do episódio,
deixemos brigar os historiadores. Como advertência, porém, e como evocação à
reavaliação do próprio agir, os textos têm caráter paradigmático até hoje.
Na época de Salomão, toda uma ideologia do poder faz de tudo para desviar a atenção das fulminantes
violações da vontade original daquele Deus, que, no Êxodo, tinha-se revelado como um Deus oposto a
toda e qualquer forma de escravidão e de opressão. Agora, porém, se constrói para ele um Templo usando
os mesmos mecanismos de escravidão que tinham motivado o agir de Deus contra o faraó (Ex 14; 2Cr
8,5-6; 1Rs 7,1-12; 9,15).2
24
O que os textos mencionados relatam têm caráter atemporal. O mesmo pode
acontecer e acontece através de todos os séculos da história.
E o fato de tais experiências serem feitas até hoje é que leva muitas pessoas a
perder a confiança naqueles que falam de Deus. As palavras deles não convencem
diante da realidade vivida!3
Apresentar a todas essas pessoas o Deus verdadeiro significa mostrar, também,
que a imagem dele pode ser deturpada, manipulada e falsificada, e que tais
deturpações também podem ser disfarçadas por argumentos religiosos. Isso vale da
época de Salomão até os dias de hoje.
Quem se conscientizou, de maneira mais clara, desses mecanismos,
desmascarando-os de maneira explícita, é aquele em quem fundamentamos toda a
convicção cristã: Jesus Cristo.
Redescobri-lo de forma não deturpada já se torna uma grande exigência paratodos
aqueles que também no século XXI querem ser cristãos e cristãs. Ser cristão não
como sonhador espiritual, mas, sim, como pessoa que, por causa de sua fé, quer agir
neste mundo. A partir disso, a pessoa se torna capaz de transformar a sociedade.
Movida por um coração ardente pelo amor em Jesus Cristo, ela vai engajar-se na
formação de um mundo conforme Deus o imagina. Em tal mundo, a convivência
humana se baseia na justiça, na fraternidade e na solidariedade.
O que, porém, convencerá as pessoas a viver conforme tais critérios não são
teorias abstratas ou prescrições doutrinais. É muito mais o contato vivo com um Deus
que, desde o início da sua Revelação, se manifesta como defensor de todos aqueles
que não mais encontram quem os defenda.
Com essa afirmação, tocamos numa outra daquelas características de Deus que se
tornaram ausentes da consciência religiosa da maioria dos cristãos e das cristãs de
hoje. Redescobri-la pode se tornar uma viagem fascinante num mundo religioso
totalmente novo.
1 Cf. 2Sm 7,5-7.
2 Cf. BLANK, Renold J., op. cit., p. 185-187.
3 Cf. VELASCO, Juan Martin. Hacia una fenomenología de la experiencia de Dios. Sinite, Revista de Pedagigia Religiosa, Madri, vol. L, n. 151, p. 213-
249, maio-ago. 2009.
25
7.
DEUS, DESDE O INÍCIO, SE FAZ CONHECER COMO “GO’EL”, ISTO É, COMO DEFENSOR
DAQUELES QUE NÃO TÊM MAIS NENHUM DEFENSOR
A história daquele Deus no qual reconhecemos o único e verdadeiro apresenta,
desde o seu primeiro aparecimento, um outro elemento que o distingue
fundamentalmente de todos os outros deuses supremos daquela época.
Ele se manifesta como “go’el”, como defensor daqueles que não têm mais
ninguém que os defenda.
Para compreender essa noção tão esquecida na história da religião cristã, devemos
voltar ao elemento-chave com o qual a história do agir de Deus no mundo se faz
conhecer:
Ele estabeleceu com os homens uma aliança.
Essa aliança, no decorrer da história bíblica, foi sempre renovada e reconfirmada.
Um exemplo muito interessante dela encontramos no texto de Gn 15,6-11.17-18.
Nele se descreve a aliança entre Deus e Abraão através de um arcaico ritual
conhecido no Oriente Médio.
Animais são cortados ao meio e ambas as metades são dispostas uma diante da
outra. Os parceiros da aliança, em seguida, passam entre as metades dos animais, e
assim, através de um ritual muito expressivo, os dois comprometem-se mutuamente.
Uma aliança assim celebrada não mais pode ser dissolvida ou cancelada. Ela
compromete os parceiros para sempre, no sentido de um parentesco de sangue. Cada
um assume deveres e direitos.
O texto mencionado acentua, de maneira muito expressiva, o aspecto do mútuo
comprometimento, descrevendo no versículo 17 que também Deus passa entre as
partes. Com isso, também ele assume os seus direitos e deveres. Ele se torna, por
assim dizer, parente de sangue dos homens.
Um dos compromissos desse parente de sangue, porém, é o dever de agir como
“go’el”, isto é, de assumir a defesa do parente indefeso, caso este não tenha a
possibilidade de se defender. Deus assim assume o dever de defender o seu povo, ele
se compromete para ser o “go’el” dele. E o povo, por sua vez, tem o direito de dirigir-
se a Deus como a um “go’el”, um parente de sangue, para que este o defenda. São 32
vezes em que Deus, no Antigo Testamento, é chamado assim1 (cf. sobretudo Is 40-
55).
A aliança que faz de Deus um parente de sangue do povo é celebrada outra vez no
grande evento do Sinai. Dessa vez, os textos do Deuteronômio, nos quais a aliança é
relatada, recorrem à “forma dos contratos formulados entre o império neoassírico e os
seus vassalos”2 para expressar como elemento central dessa aliança que Israel é
26
vassalo de Deus e que também Deus é o aliado de Israel, e os dois assumiram os seus
deveres e os seus direitos.
Em Jesus Cristo, finalmente, essa aliança chega ao seu cume. Nele, o “como se
fosse” do parentesco de sangue se torna realidade concreta e verdadeira, porque, em
Jesus, o Deus que se comprometeu na aliança agora também se tornou homem. O
pacto, selado tantas vezes no decorrer da história do Antigo Testamento, é
reconfirmado, revalidado e ampliado para toda a humanidade. Deus, agora, de fato é
parente de sangue dos homens e permanece para toda a eternidade. Com isso,
permanece também para toda a história o defensor deles, o seu “go’el”.
É ele que assume a defesa das pessoas humanas, assim como Paulo o formula em
Rm 8,31: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”.
É essa a grande maravilhosa verdade, contida no fato de que Deus, em Jesus,
assumiu e reconfirmou o compromisso de ser o “go’el” dos seres humanos.
A partir desse fato, torna-se evidente que o interesse de Deus se dirige de maneira
preferencial a todos os excluídos, sejam eles pobres, sejam injustiçados, sejam
pecadores. É o próprio Deus que assume a defesa deles, contra todos aqueles que os
rejeitam, marginalizam ou, em nome de alguma ideologia, declaram excluídos e fora
do grupo dos socialmente aceitos. Deus em pessoa defende aqueles que não mais
gozam de prestígio algum aos olhos do mundo, ou talvez até da religião sancionada.
Como “go’el”, ele assume a defesa de todos aqueles que se encontram subjugados,
que são considerados “a ralé” e que por causa disso não têm mais esperança
nenhuma. Em Jesus, o próprio Deus demonstra que assumiu a perspectiva deles e, em
Jesus, até vive ele mesmo aquela perspectiva.
Deus é experimentado pelos marginalizados, pelos excluídos, pelos fracassados
como seu último recurso, o seu defensor, o seu apoio. As experiências históricas do
povo de Deus confirmam sempre, em novas situações, essa grande verdade, tão
enraizada em toda a história da Revelação e que os cristãos conseguiram esquecer na
sua quase totalidade, pois nem no Credo da religião cristã entrou.3
Deus se posiciona do lado dos excluídos provavelmente pela grande irritação de
todos aqueles que prefeririam um Deus sentado num trono dourado, modelo para
todos os poderosos e seu melhor aliado. Mas exatamente isso ele não é nem quer ser.
Que não deseja ser assim, aliás, ele mesmo demonstrou de maneira absolutamente
clara naquele evento que as Igrejas cristãs dizem que é a mais clara Revelação que
Deus deu de si mesmo: Jesus Cristo.
Num contexto religioso, marcado por uma acentuada dicotomia entre aqueles que
foram considerados justos, e outros, pecadores, Jesus age de maneira bem
determinada, escandalosa para os representantes do sistema religioso da época. Ele se
situa do lado daqueles que esse sistema rejeitou porque os considerou pecadores.
Como pecadores, porém, foram declarados mortos aos olhos de Deus e, além disso,
obstáculos à vinda do tão esperado Reino de Deus. Por causa disso, o sistema
religioso os designou excluídos e malditos pelo próprio Deus.4 Uma vez excluídos
pela religião e sendo essa exclusão justificada em nome do próprio Deus, não havia
de fato quem defendesse os assim chamados pecadores, nem o sistema religioso nem
27
o sistema político-social, pois ambos eram totalmente interligados. Além disso, os
assim estigmatizados foram considerados impuros, massa supérflua, párias que só
atrapalhavam. Conforme as pesquisas sociológicas, na época de Jesus, fizeram parte
desse estrato em torno de 60% da população:5 os pobres, os mendigos, os leprosos,
os doentes, as muitas prostitutas, que, em geral, se prostituíam por causa da sua
necessidade financeira, e por último a grande massa dos camponeses. Além desses,
também os endividados e aqueles que não conseguiam pagar os impostos exigidos
pelo Templo em nome de Deus e que podiam somar até 70% da renda anual. E
finalmente eram considerados excluídos genericamente todos aqueles que, de uma ou
de outra maneira, não mais seguiam as exigências do sistema religioso-social da
época. De todos eles, esse sistema declara que teriam desagradado a Deus. Com isso,
eram considerados sem valor, ralé impura e morta aos olhos de Deus.6 Sendo assim,
não havia mais ninguém que os defendesse.
É diante desse cenário que devemos compreender o agir de JesusCristo, que de
antemão não se situava do lado daqueles que a religião considerava justos e puros,
mas do lado dos outros, dos excluídos, pecadores e impuros.7 Numa situação em que
ninguém assume a defesa daqueles excluídos, o próprio Deus se manifesta como o
defensor deles. Convivendo com os pobres e com todos aqueles que o sistema tinha
rejeitado, o próprio Deus mostra, em Jesus Cristo, que esse sistema não tem razão,
que os pobres e pecadores não são excluídos da graça dele e não estão mortos aos
seus olhos, mas são dignos de atenção e de amor muito especial.8
Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que são doentes. (Lc 5,31)
Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! (Lc 6,20)
Assim, Deus age em Jesus Cristo de novo como “go’el”, como defensor daqueles
que não têm mais quem os defenda. Com isso, retoma uma das grandes revelações
que já marcaram o seu agir durante toda a história do Antigo Testamento. Agindo
assim, “põe-se em contradição total com todo o sistema religioso da sua época.
Oposição que, em última análise, produz a situação paradoxal e absurda de que o
Deus encarnado está sendo combatido, rejeitado e finalmente assassinado pela
própria instituição religiosa”.9
Para compreender melhor esse paradoxo e o escândalo que o agir de Jesus
produziu aos olhos dos representantes do sistema, tentaremos, a seguir, descrever de
maneira mais detalhada o contexto religioso no qual o Deus encarnado em Jesus
Cristo se manifestou.
1 Cf. também: ARDUINI, Juvenal. Horizonte da esperança. São Paulo: Paulus, 1986, p. 57-95.
2 BLANK, Renold J., op. cit., p. 99-100.
3 Ibid., p. 140.
4 Cf. Jo 7,49: “Este povo que não conhece a lei são uns malditos!”.
5 Cf. CLÉVENOT, Michel. Enfoques materialistas da Bíblia. São Paulo: Paz e Terra, 1979; MORIN, Emile. Jesus e as estruturas de seu tempo. São
Paulo: Paulus, 1981; HOORNAERT, Eduardo. O movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1994; KIPPENBERG, Hans G. Religião e formação de classes
28
na antiga Judeia. São Paulo: Paulus, 1988.
6 Cf. PALLARES, José C. Um pobre chamado Jesus. São Paulo: Paulus, 1988, p. 42.
7 Agir e palavra de Jesus retomam aquilo que em termos de exemplo já encontramos em: Jr 5,27; Ez 22,6.12.27.29; Am 2,6-7; 5,11-12; 6,12; Mq 2,2; 3,3;
7,2.
8 Como exemplo, cf.: Mt 9,10-11; 11,19; Mc 2,16; Lc 5,30; 15,1.
9 BLANK, Renold J., op. cit., 2005, p. 161.
29
8.
O CONTEXTO RELIGIOSO EM QUE JESUS SE MOVE
8.1. LEI, PUREZA E SACRIFÍCIOS QUE SE TORNARAM OPRESSIVOS PARA O POVO
Jesus vive numa época marcada por uma compreensão totalmente retributiva do
relacionamento entre Deus e os seres humanos. Na sua forma concreta, isso significa
que riqueza, longa vida e sucesso são compreendidos como a recompensa de Deus
para uma vida conduzida em consonância com as Leis da instituição religiosa.
Pobreza, doença e desgraças, de outro lado, são interpretadas como punição divina
para aqueles que transgrediam essas Leis (cf. Dt 30,15-16). Como representante e
guardião de todo esse sistema se apresenta o Templo. Ele, “juntamente com seu sumo
sacerdócio, constituía o coração político-econômico e também religioso da sociedade
judaica em geral e era uma instituição essencial na ordem imperial [...]”.1
Para compreender o significado das atitudes de Jesus, é indispensável ter pelo
menos uma noção geral do sistema religioso em que ele vivia. Esse sistema era
marcado por uma concepção explicitamente legalista. No seu centro, encontramos os
três pilares-chave: a Lei, a ideologia da pureza e o culto. Dos dois grupos mais
influentes da época, saduceus e fariseus, sabemos que “os saduceus não podiam
imaginar uma religião de Israel fora do Templo de Jerusalém, fora do culto sacrifical
e sem sacerdócio”.2
Além disso, “os fariseus, por sua vez, se tornaram os grandes defensores da
observância escrupulosa da Lei e da autoridade religiosa”.3 Todavia, nunca se pode
esquecer de que, entre eles “e entre seus sucessores rabínicos, havia significativas
diferenças de interpretação”.4
Tais diferenças, aliás, encontramos também hoje na descrição e na caracterização
que se dá dos grupos mencionados.
Halvor Moxnes escreve que “os fariseus [...] afirmavam ter a interpretação
abalisada da Torá, e portanto o controle sobre a salvação”.5 Além disso, declara que a
descrição dos saduceus e dos fariseus, assim como a encontramos no evangelista
Lucas, difere muito da maneira pela qual eles são vistos pelos pesquisadores de hoje.
Isenberg, por sua vez, declara que “os fariseus eram uma força democrática,
tentando acabar com o sistema de acesso ao poder com base no nascimento e na
riqueza”.6
O evangelista Lucas, por outro lado, “não mostra os fariseus usando sua influência
baseada na interpretação da Torá contra o poder baseado na riqueza e no nascimento.
Pelo contrário, ele os acusa de se aliarem ao poder da riqueza e do privilégio”.7
Sem entrar no mérito dessas interpretações variadas, pode-se encontrar uma base
comum para as duas facções em questão e a sua instituição religiosa comum: é o
assim chamado “códex de uma vida conforme a vontade de Deus” (cf. Lv 17-26,
30
assim como: Dt 14,3-21; Ex 23,19; 34,22). Nele, acentua-se que somente o
seguimento escrupuloso do código garante uma vida que agrada a Deus. Quem
observa as Leis é justo; quem não as observa é pecador. Conforme a interpretação de
muitos representantes do sistema religioso da época, porém, Deus não se interessa
mais pelos pecadores. A partir desses pressupostos, o códex se torna instrumento de
exclusão e de marginalização.
Lance Flitter formula tal fato com a prudência do judeu crente, com as seguintes
palavras: “o judaísmo está repleto desse gênero de Leis [...] Essas Leis tendem a ter
um impacto divisor [...] no meio dos próprios judeus [...]. Além das Leis da pureza
ritual, há Leis que estabelecem o que é essencialmente um sistema de classes [...]”.8
O efeito excludente aqui mencionado é reforçado ainda pela ideologia das Leis
cúlticas da pureza (Lv 11-16). Ela faz clara distinção entre pessoas puras e pessoas
impuras. Os “impuros” são considerados “pecadores” e, como tais, estão duplamente
excluídos da graça de Deus. Este, conforme dizem representantes da teologia oficial,
não se interessa mais por eles.9 Além de pecadores e impuros, estão excluídos da
vida social, porque quem toca num impuro, por sua vez, se torna impuro.
Impuros são os doentes, os pobres, os analfabetos, os representantes de muitas
profissões,10 os estrangeiros, as mulheres que menstruam e, além disso,
simplesmente todos aqueles que por, uma razão qualquer, não podem observar uma
ou algumas das inúmeras Leis da pureza. Todos eles são excluídos, declarados “fora
da graça de Deus” e até “malditos” (cf. Jo 7,49).
O único caminho para reverter a situação da impureza cúltica adquirida passou
pela apresentação do sacrifício prescrito para tal caso. Esse sacrifício, contudo, em
nada estava gratuitamente à disposição. Tinha que ser comprado pelo impuro no lugar
e pelo preço indicado pelo Templo; e uma vez pago, devia ser devolvido de graça ao
Templo.
Quem tirou proveito desse sistema foi em primeiro lugar a instituição do Templo e
todos os seus representantes, funcionários, sacerdotes e levitas, isso porque a maioria
dos sacrifícios servia para o sustento deles e de toda a sua família.11
Os perdedores desse sistema eram todos aqueles que não mais conseguiam pagar
os sacrifícios prescritos, porque nem possuíam ou não possuíam mais o dinheiro
necessário. Fizeram parte dessa categoria os empobrecidos por causa dos impostos
excessivos, os doentes, os mendigos, as viúvas, os órfãos e também aqueles que não
tinham emprego, porque as Leis da pureza os tinham excluído da vida social – em
uma palavra, porque eram pobres (cf. Lv 14,4.10.21). Assim,
a pobreza era mais uma categoria social do que uma categoria econômica propriamente dita. Implicava
falta não apenas de recursos mas de status social, e a incapacidade de cumprir com as exigências sociais.
Os camponeses postos abaixo do nível de subsistência podiam também ser incapazesde cumprir as Leis
da pureza, e por isso eram postos numa posição de vergonha e desonra. Nesse caso, as Leis da pureza
constituíam parte da pressão exercida sobre os pobres, trabalhando em conjunto com a forte pressão
econômica para baixo.12
31
A todos que de uma ou outra maneira eram pobres – e, na época de Jesus, essa
categoria se estendeu a mais ou menos 60% da população –13 o sistema religioso
explicava que eram pecadores porque não seguiam a Lei. Tal categorização em nada
levou em consideração que a população pobre simplesmente não tinha condição
financeira para observar todos os 613 mandamentos e proibições em vigor. Em vez
disso, declarava-se também os pobres transgressores da Lei, e desse modo também
fizeram parte dos excluídos da graça de Deus, não por serem pobres, mas por não
responderem às exigências legalistas do sistema.
A sua pobreza, em seguida, foi explicada como a consequência inevitável da perda
da graça de Deus. Assim, produziu-se passo a passo um sistema religioso que
depositava fardos pesados nos ombros das pessoas (cf. Lc 11,46 e, como alternativa e
contraste, Mt 11,30). Em última análise, esse sistema se tornou opressor, justificado
em nome de Deus. Dessa situação, até Lewis D. Salomon declara que “muitas regras
e práticas judaicas legalistas tradicionais [...] sufocavam não só o Sabbath como
também a vida em geral”.14
Assim, a excessiva interpretação casuística e legalista da vida na época de Jesus
transformava, em muitos casos, a intenção original da Torá no seu contrário. Desse
direito casuístico diz o Papa Bento XVI, seguindo O. Artus, “que está na Torá, mas
que praticamente se tornou injusto e que em situações econômicas concretas não
serve à defesa dos pobres, das viúvas e dos órfãos [...]”.15
Fez-se, desse modo, do Deus que cuidava da ampliação do espaço de vida das
pessoas um Deus legalista, para o qual a observância escrupulosa de centenas de Leis
e regras parecia interessar muito mais do que o bem-estar das pessoas. Em vez de
encontrar um pai misericordioso, essas pessoas encontravam um tirano que inspirou
medo e ameaçou com condenação eterna. A consequência psicorreligiosa dessa
deturpação é caracterizada por R. de Vaux da seguinte maneira:
O que inicialmente tinha servido para expressar a santidade de Deus e de seu povo tornou-se um
formalismo estreito e um jugo insuportável, o que era uma proteção tornou-se um tipo de coleira.16
Toda a superestrutura teológico-ideológica aqui descrita genericamente nada mais
é do que a cimentação religiosa de um sistema de dominação, descrito por Richard A.
Horsley com as seguintes palavras:
Os romanos instalaram os seus próprios governantes dependentes, os reis herodianos e os sumos
sacerdotes de Jerusalém que controlavam a área [...] A ordem imperial [...] significava camadas múltiplas
de governantes e exigências de tributos e impostos [...]
Economicamente, isso deve ter exaurido o povo galileu ainda mais [...] É também bastante plausível que
os sumos sacerdotes e os seus servidores escribas em Jerusalém ainda tentassem manter um fluxo de
dízimos e ofertas da Galileia para o Templo e para o sumo sacerdócio [...].17
A comparação com a teologia original da aliança, assim como nós a encontramos
no Deuteronômio (vgl. Dt 5, 12-15), mostra, de maneira clara, a imensa discrepância
32
entre esse sistema político-econômico-religioso e os princípios daquela teologia
deuteronômica.
Na sua época, já o profeta Jeremias, assim como Isaías, Oseias, Amos e Miqueias,
havia criticado tal sistema (cf. Jr 7; 26; 22,13-19). Jesus agiu dentro do mesmo
esquema e radicalizou mais ainda a crítica daqueles profetas.18
A sua atitude profética culmina naquilo que, seguindo Richard A. Horsley, poderia
ser chamado de demonstração profética contra o Templo e os sumos sacerdotes.19
Pelo menos é assim que é apresentado no texto de Marcos (cf. Mc 11,15-17; 11,12-
24; 11,27-13,2). Interpretando essa demonstração, R. A. Horsley deixa bem claro que
o seu enfoque principal não é o conflito entre judaísmo e cristianismo nem entre
diferentes concepções religiosas. Conforme Horsley, o problema que se manifesta ali
é muito mais a oposição fundamental entre aqueles que estão no poder e os que são
governados por esse poder.20
Conforme Horsley, trata-se de uma “nova condenação profética não apenas da
construção, mas do sistema do Templo, por causa da sua opressão do povo”.21 Essa
condenação torna evidente a atitude de Jesus perante o sistema em vigor. Jesus
“destrói a influência do Templo”22 e com isso aniquila toda a base do sistema
socioeconômico-religioso que se tornou um peso opressivo para o povo. Se hoje se
tenta recuperar essa dimensão da atitude de Jesus, é essencial ter bem claro que nisso
em nada podemos ver uma volta a uma mentalidade antijudaica. Em vez disso, trata-
se da clara conscientização de que Jesus, na sua época, realmente provocava um
conflito, o qual, segundo Horsley, “está entre governantes e governados, não entre
‘judaísmo’ e ‘cristianismo’”.23 Hans Kung descreve esse mesmo fato com as
seguintes palavras:
[...] contra a doutrina e a práxis em vigor, que eram a doutrina e a práxis dos dominantes, esse Jesus
assumiu conforme os Evangelhos uma autoridade que faz os doutores da Lei perguntarem: “Como este
homem pode falar assim? Ele é blasfêmico” (Mc 2,7).24
8.2. JESUS RECUPERA O CERNE LIBERTADOR DAQUILO QUE É A INTENÇÃO DA TORÁ
Queremos de antemão invalidar qualquer eventual suspeita de que a comparação
com a religião judaica da época de Jesus signifique uma recaída daquelas atitudes
antijudaicas que infelizmente marcaram muitas épocas do passado. Por isso, citamos,
a seguir, aquilo que alguns bem conhecidos representantes judaicos responderam à
indagação sobre a atitude de Jesus perante os sistemas sociorreligiosos da sua época.
Os textos se encontram na seleção de comentários de autores judaicos, citados por
Beatrice Bruteau no seu livro muito interessante Jesus segundo o Judaísmo.25 Nele,
podemos encontrar, entre muitas outras, as seguintes opiniões:
Herbert Bronstein: “Jesus atribuiu a si a autoridade para ensinar fora do âmbito da estrutura da autoridade
33
farisaica”.26
Andrew Vogel Ettin: Jesus “[...] não está propondo uma teologia sistemática, mas interpretando
casuisticamente a Lei [...] muitas vezes crítico dos fariseus, mas cuja perspectiva muito se assemelha à
deles. [...] Um arrogante ofensor autoconfiante das pessoas em posição de autoridade”.27
Daniel Matt: “Jesus foi um hasid galileu, alguém intensamente apaixonado por Deus [...] anticonvencional
e extremo em sua devoção a Deus e ao seu semelhante [...] É inevitável que surjam tensões entre o hasid e
a ordem religiosa estabelecida [...] Jesus é um dos que buscam a essência da Torá [...] Ele se associava aos
pecadores [...] Jesus condenou a hipocrisia e a injustiça entre seu próprio povo”.28
Howard Avruhm Addison: “Seu exemplo e sua mensagem levam o amor de Deus aos oprimidos [...] Ele
condena escribas, que oferecem longas orações e depois exploram os pobres [...] Ele está certo em
desvelar o comportamento daqueles cujo casuísmo legal subverte o espírito da Torá”.29
Lance Flitter: “Jesus, como muitos judeus antes e depois dele, tinha um conjunto de prioridades religiosas
[...] Esse Jesus rompeu barreiras sociais tradicionais e deu destaque a Leis e ideais judaicos vinculados
com o amor, a gentileza e o respeito acima ou mesmo com a exclusão das Leis ligadas ao ritual [...] A
parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37) demonstra tanto uma abertura social como uma condenação
de ideias de pureza ritual”.30
Lewis D. Solomon: “Jesus foi um astuto comentarista de assuntos socioeconômicos. Ele desejava que
derrubássemos paredes divisórias [...] Jesus ofereceu uma exacerbada crítica às normas de pureza religiosa
judaicas tradicionais que delineavam [...] as fronteiras entre o sagrado e o profano [...] Jesus, do mesmo
modo, situou as necessidades humanas acima da observância de cerimônias religiosas, por exemplo, a
observância do Sabbath [...] Para Jesus, as necessidades

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