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2 ÍNDICE Capa Rosto Cidade, cidades Morar/habitar: cidades inventadas As políticas do subterrâneo “Incêndio na favela”: deslocamento do medo e resistência midiática A cidade e o carnaval: os processos mediativos e interativos nos circuitos Dodô e Batatinha Possíveis Avenidas Paulistas: o olhar e a epistemologia da comunicação A imagem dos bairros multiétnicos Minhocão: entre o urbano e a cidade Mostrar e esconder: os tapumes das construções e a fotografia Vila Leopoldina: a vida comum de um bairro degenerado Glossário Referências Sobre os autores Ficha Catalográfica Notas 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg CIDADE, CIDADES Lucrécia D’Aléssio Ferrara 4 APRESENTAÇÃO Esse livro decorre de pesquisa coletiva desenvolvida pelo grupo ESPACC (Espaço- Visualidade/Comunicação-Cultura) e tem como meta o desenvolvimento de uma política que, partindo de grupos de pesquisa sedimentados, possa permitir pensar a real convergência entre pesquisas individuais e uma dinâmica coletiva de produção científica que supere o limitado horizonte do ensino universitário, dividido entre alternativas de ensino e pesquisa como metas excludentes. O grupo de pesquisa ESPACC apresenta como uma das suas linhas de indagação a análise de manifestações empíricas da cidade como espaço social e ambiental nas suas manifestações como suporte, mídia e mediação. Como suporte, opera com veículos gráficos ou projetivos, audiovisuais ou digitais. Como mídia, funciona em interface com os signos visual e/ou cinético, que caracterizam todas as manifestações de comunicação, sobretudo aquelas de massa. Como mediação, dá lugar a fluxos sociais e culturais, usos, crenças, valores, imagens e imaginários responsáveis pela mundialização da cultura e dinâmica das metrópoles e lugares da cidade nas duas últimas décadas do século XX e nos dias atuais. Parte-se da hipótese de que esse panorama inventa distintas dinâmicas espaciais, ao mesmo tempo em que celebra outra comunicação de ampla interface com complexos processos interativos. A pesquisa intitulada Mediação e interação: por uma arqueologia dos processos comunicativos, apoiada pelo CNPq, desenvolveu o levantamento empírico de processos mediativos e interativos que se apresentam na cidade, entendida como laboratório comunicativo original, onde podem ser encontradas manifestações inusitadas daqueles dois processos. Dessa maneira, procedeu-se ao levantamento e análise de manifestações mediativas e interativas que têm a cidade como cenário ou como ator. Considerando a cidade como território empírico adequado para teste de hipóteses, estuda-se a natureza das mediações e das interações, que levam a identificar o modo como se delineiam e escrevem distintas epistemologias da comunicação. Tais epistemologias manifestam-se, por exemplo, em interações face a face, ou aquelas mediadas por dispositivos eletrônicos, além de algumas essenciais características desenvolvidas pelas novas tecnologias e pela mundialização da cultura em escala global. A proposta de pesquisa procura contribuir para a construção de uma epistemologia política da comunicação desenhada pelas configurações semióticas que sustentam os processos mediativos e interativos, compreendidos enquanto matrizes de análise que se detectam em distintas manifestações urbanas. A fim de superar o caráter marcadamente funcional de práticas usuais e rotineiras, a partir das quais a cidade é entendida como instância a ser planejada, coordenada e dirigida por diversos recursos técnicos e públicos, procura-se apreender os vínculos comunicativos que permitem distinguir esferas que, frequentemente polarizadas, se apóiam, de um lado, na característica funcional imaginada pelos planos técnicos e, de outro lado, em dinâmicas cotidianas que transformam a cidade em meio de vida para o qual convergem subjetividades, socialidades, sensibilidades associadas pelo imaginário. Como decorrência dessa atividade empírica, o debate não está voltado para o 5 espaço urbano, mas para a cidade, entendidos como realidades distintas: se o espaço urbano está concentrado na sua natureza física, até sua construção e planejamento, a cidade, ao contrário, supõe a densidade vivida naquele espaço, entendido nos seus desdobramentos sociais e culturais que só se tornam incisivos quando comunicados. A distinção entre espaço urbano e cidade exigiu um instigante exercício metodológico que, se libertando da simples descrição ou descriminação fenomenológicas das realidades observadas, se debruçou sobre elas a fim de ir além e encontrar as bases que a assinalam configurando, em cada caso, rastros de um modo de ser cidade, entre as cidades do mundo. Nesse percurso fertilizaram-se reciprocamente a teoria e a prática, os conceitos e o método, o registro e o ver, sempre à procura de flagrar a cidade nos seus ajustes interativos e descompassos vividos, porém, nos dois casos, refratários à observação, pois não se deixam surpreender de modo espontâneo. Naquele rigor metodológico, colidem a fenomenologia e a filosofia arqueológica nas suas simultâneas e características dimensões de discriminação fenomenológica e procura de rastros arqueológicos. Entre os conceitos, atritam-se tecnosferas e psicosferas, o liso e o estriado, mediações e interações, a visualidade e a visibilidade, os espaços e as espacialidades, o tempo e o espaço, os territórios e as territorialidades. Nas frestas entre conceitos e método, esgueira-se a deriva como método sem metodologia estabelecida, a fim de desenvolver a atenção capaz de surpreender o objeto de estudo em um percurso emocional e sensível que constitui o melhor exercício para a apreensão de uma cidade que não se deixa concluir, porque está sempre recomeçando. Nesse constante reinício, a cidade apresenta densa complexidade que exige dos pesquisadores atenta atividade a operar sobre conceitos estabelecidos. A relação entre eles conduz à produção de híbridas densidades cognitivas que superam aplicações conceituais, para produzir inferências que nos ensinam a ver através dos conceitos e, sobretudo, além deles. Forma-se uma rede conceitual que, informando a pesquisa através de um glossário, também ensina a produzir conhecimento pelo deslocamento ou expansão que nos possibilita a rever aquilo que a simples aplicação conceitual afirma. Através da deriva atenta, surpreendem-se tempos e temporalidades, materialidades e objetos, sociedade e socialidades, o consumo e o consumismo, o medo e a coragem, os meios e as mediações mas, em todas as manifestações, irrompe a cidade sobre o urbano e sobre o poder que a planifica porque, dentro de uma ótica funcional, considera que a cidade é inerte, estanque e submissa a planos, organizações, deliberações e interesses. Entre a deriva e os conceitos que podem operacionalizá-la, forma-se um todo coerente feito de inter-relações entre a cidade vivida e o modo como se deixa surpreender, mas longe de uma suposta coerência entre vida, formas e manifestações, não se relativiza a heterogeneidade que faz da cidade um misto, um híbrido, uma complexa forma de conteúdos que se emaranham, embora dialoguem. Nessa polimorfa ressonância, encontram-se nove ensaios que, embora privilegiando a cidade de São Paulo, mas não só, deslocam-se para comparar e entender a dinâmica da cidade entre cidades. 6 MORAR/HABITAR: CIDADES INVENTADAS Adriana Gurgel 7 APROXIMAÇÃO A questão deste trabalho consiste em investigar o habitar que, como ato cultural, produz novos modos de vida ao se relacionar com o morar, ou seja, com o programa que busca direcionar as ações cotidianas de seus usuários. Entendida como meio comunicativo, a cidade é abordada a partir de duas instâncias de análise: o morar programado (q.v. [30]) e o habitar vivido (q.v. [19]), em suas manifestações de visualidade e visibilidade (q.v. [38]) flagradas entre espaços e espacialidades (q.v. [15]) mínimos, como as quitinetes do edifício Copan, em São Paulo. Tendo como horizonte teórico conceitos trabalhados no grupo de pesquisa ESPACC, busca-se surpreender apropriações imprevistasnos índices do habitar e, assim, (re)conhecer cidades cotidianamente inventadas. O edifício Copan, marcado pela multiplicidade de programas do morar (e portanto de modos planejados de viver) encontrada no projeto (em suas versões iniciais e final[1]) e na edificação situada no centro de São Paulo, consiste no objeto empírico deste trabalho. A ênfase se encontra nas unidades mínimas ou quitinetes, por sua área reduzida e necessária sobreposição de funções, além da relevância de seus prolongamentos (extensões do morar em espaços externos). O programa mínimo, ao mesmo tempo que limita o espaço privado, expande suas possibilidades de apropriação ao não compartimentar fisicamente funções domésticas como o repouso e o estar, e ao empurrar para fora (ao espaço semi público ou público) ações que, em outros programas do morar, são comumente realizadas no âmbito privado (como a alimentação, lavagem de roupas etc.). Os modos de uso destes espaços mínimos produzem lugares que comunicam interpretações do programa proposto pelo arquiteto e, deste modo, atualizam suas premissas, desconformando-as contingente e transitoriamente. 8 INTERSEÇÃO COMUNICATIVA: A CIDADE ENTRE VISUALIDADES PROGRAMADAS DO MORAR E VISIBILIDADES VIVIDAS DO HABITAR A cidade, entendida como um laboratório comunicativo onde se podem flagrar manifestações de processos mediativos e/ou interativos, é produzida por lugares que emergem a partir de usos cotidianos mais ou menos fragmentados, imprevistos em maior ou menor grau. Esta produção de espacialidades se dá pelos usuários que, dentre outras ações, habitam – ou seja, apropriam-se de espaços do morar e transformam/transtornam seus programas de acordo com suas necessidades, possibilidades, vontades. O uso proposto pelo programa, estruturado e definido hierárquica e burocraticamente, articula-se, assim, com o uso vivenciado pelo usuário. Neste processo, novas significações são continuamente produzidas e comunicadas de distintos modos, em diferentes meios; neste conjunto de ações, diferenças são (des)veladas e valores são (re)construídos, ou seja, cidades são (re)inventadas. O uso vivido transforma a cidade a partir de ininterruptos processos de mão dupla, e o usuário, aquele que habita, transforma-se em feitor de lugares, o inventor de cidades. Uso programado e uso vivido (q.v. [18]), morar e habitar são assim elementos presentes na cidade de modo interdependente e intercambiável que, deste modo, não poderiam ser definidos como polaridades. A distinção aqui efetivada entre estas instâncias inseparáveis decorre da necessidade moderna de organizar e classificar para adequadamente planejar e atingir objetivos estabelecidos a priori; a explicitação de cada um dos conceitos pretende, portanto, facilitar a aproximação aos processos fluidos e imprevistos, muitas vezes dificilmente verificáveis por serem ordinários. Separa-se para, distanciando-se dos ordenadores modernos, pretender, com a temporária fragmentação, construir distinções porosas, membranas permeáveis que possibilitem travessias mais ou menos sobressaltadas e provavelmente surpreendentes. O caminho tem como ponto de partida o espaço do morar programado, relacionado às premissas modernas e suas tentativas de direcionar e disciplinar modos de uso deste espaço, e a espacialidade vivida, entendida como o espaço do morar em sua dimensão comunicativa, ou seja, apropriado pelo uso cotidiano - que se aproxima ou se distancia do uso programado de distintos modos. O programa da casa é espacializado e, neste processo, comunica modos de vida que produzem a cidade. O morar programado articula-se, aqui, com experimentações modernas efetivadas em conjuntos de moradia emblemáticos, cujo plano pretendia gerar novos hábitos e novas significações sobre o morar. Neste contexto, verifica-se uma tendência universalizante na arquitetura moderna, marcada pela necessidade de racionalizar não apenas os processos construtivos, mas as relações efetivadas na casa. Configurava-se assim um caráter disciplinador que exigia do usuário o aprendizado dos novos modos de utilizar o espaço do morar, e um dos instrumentos de “ensino” era o programa. O programa pode ser apreendido a partir de projetos arquitetônicos em suas diferentes versões (croquis, desenhos, maquetes, memoriais descritivos, anotações etc.) e na própria materialidade da arquitetura enquanto construção física (suporte). 9 As características arquitetônicas dos edifícios (dos elementos de fachadas ao dimensionamento de ambientes, da localização de determinados cômodos à especificação de materiais e tipos de esquadrias etc.) são, portanto, entendidas como elementos de visualidade que possibilitam a leitura dos usos pretendidos, planejados, previstos pelo programa. A visualidade deixa marcas no espaço que, em sua comunicabilidade, configuram-se como ícones que possibilitam a apreensão de hábitos e valores atrelados às características programáticas do morar. O programa, no entanto, articula-se inevitavelmente com a instância diária e ordinária de utilização dos espaços. Apropriada pelo uso vivido, a definição a priori dos modos de morar é assim confrontada com os modos de habitar que emergem do cotidiano. O espaço do morar moderno, programado e marcado pela necessidade de ordenamento e disciplina, converte-se em espacialidade do habitar imprevista, singular e apreensível a partir de suas representações. A manifestação comunicativa do habitar consiste em sua visibilidade, ou seja, em índices ininterruptamente produzidos entre o programado e o vivido. Deste modo, (...) se a visualidade da cidade está nas formas que a constroem, a visibilidade está na possibilidade do sujeito debruçar-se sobre a cidade, seu objeto de conhecimento para, ao produzi-la cogntivamente, produzir-se e perceber-se como leitor e cidadão. Um cruzamento entre conhecimentos: enxergar para ver/ver-se: viver (FERRARA: 2002, p. 129). As características de visualidade e visibilidade de espaços e espacialidades podem ser metodologicamente flagradas a partir da análise de distintos signos - como o próprio projeto arquitetônico, sua materialização construtiva e sua comunicabilidade, bem como em deslocamentos feitos à deriva (q.v. [10]). Em relação à visualidade, portanto, interessa observar modos de morar sugeridos pelo programa e explicitados no projeto, na obra executada e nas imagens produzidas nestes meios comunicativos; a visibilidade, por sua vez, exige a inserção do pesquisador nos espaços do morar e a atenção à produção de espacialidades. Investiga-se assim, entre visualidades e visibilidades, em que medida programado e vivido se relacionam, questionando se (e como) o plano é atualizado pelo uso (ou se há criação de novos programas), e quais modos de viver (com seus valores, hábitos e comportamentos) são explicitados pelas articulações cotidianas entre os modos do morar sugeridos pelo programa e os modos de habitar efetivados pelo uso. Visualidade e visibilidade constituem-se, assim, como categorias de análise que se relacionam ao morar programado e ao habitar vivido. Dos ícones atenta-se aos índices e, da estabilidade dos fixos à dinâmica dos fluxos, faz-se a cidade como comunicação: (...) a tensão comunicativa entre visualidade e visibilidade (...) deve ser vista como um confronto entre elementos que permitem a inteligibilidade da cidade como complexa realidade cultural (FERRARA: 2002, p. 144). É a partir das relações produzidas entre visualidades icônicas do morar e 10 visibilidades indiciais do habitar, ou seja, no diálogo entre os diferentes modos de apropriação do espaço de casa, que se pretende, aqui, apreender a cidade como realidade cultural em constante movimento. 11 ÍCONES MÍNIMOS: A QUITINETE COMO PROGRAMA O programa é como um mapa: explicita uma situação contingente que se pretende universalizante e manifesta, de modo mais ou menos explícito, ideologias, posições políticas, hierarquias de valores. O programa não existe de modo independente ao uso (sugerido e/ou vivenciado), e a arquitetura não se faz demodo dissociado do usuário, ou seja, não encontra seu significado, se for abordada apenas como materialidade física (como simples suporte). Neste contexto, as unidades de moradia mínimas configuram-se como valiosos espaços de investigação de modos de vida e invenção de cidades: que significações o morar limitado pode produzir? Quais são os índices de permanência (aderências em relação ao programa) e contingência (atualização ou criação de novos programas) passíveis de leitura a partir das apropriações dos moradores? Para realizar esta travessia apresenta-se inicialmente o programa mínimo de moradia que se relaciona, por exemplo, com as discussões sobre o Existenzminimum (a célula básica de moradia pesquisada no CIAM II) e experimentações realizadas em conjuntos residenciais na Alemanha. A comparação entre as características programáticas do Existenzminimum e da quitinete brasileira, explicitada a seguir em uma breve arqueologia comunicativa do programa mínimo, não desconsidera a diferença dos contextos de desenvolvimento das duas tipologias, mas manifesta suas aproximações e dessemelhanças a fim de contribuir para a apreensão de suas significações. Relações entre mínimos alemães e brasileiros De acordo com o dicionário Houaiss, uma quitinete consiste em “cozinha muito reduzida ou adaptação de móvel ou parte dele como cozinha, muito usada em apartamentos conjugados”, cuja etimologia vem do inglês kitchenet ou kitchenette (1903), identificando uma “pequena cozinha ou alcova com instalações de cozinha”, derivada de kitchen (cozinha) + sufixo -et ou –ette (HOUAISS: 2009). A palavra quitinete relaciona-se assim diretamente ao espaço da casa que, com os modernos, passou por grande reformulação a fim de adequar-se aos novos modos de vida decorrentes da industrialização. O surgimento da quitinete como programa mínimo do morar relaciona-se à grande demanda por habitação decorrente do acelerado e desordenado crescimento das cidades e às características do mercado imobiliário nas primeiras décadas do século XX. Buscava-se, com a unidade mínima, equacionar de modo econômico e rentável a necessidade de espaços de moradia, o custo dos terrenos e o aproveitamento do solo, bem como as tecnologias, técnicas e materiais construtivos disponíveis. Nos Estados Unidos, proprietários passaram a subdividir habitações unifamiliares em unidades menores, capazes de abrigar maior quantidade de moradores e consequentemente elevar o lucro proveniente dos alugueis. Espaços com uso determinado para a atividade hoteleira também foram transformados em moradias mínimas. A principal característica da quitinete como programa consiste na sobreposição de funções domésticas (estar, repouso e alimentação), decorrente da redução de sua área ao mínimo considerado aceitável para uma moradia digna. A discussão sobre a 12 definição deste mínimo ocorrera ainda no século XIX, na França e Inglaterra (MUMFORD: 2002, p. 31). Na Alemanha das primeiras décadas do século XX, as realizações de Ernst May em Frankfurt (Das Neue Frankfurt, 1925 - 1930)[2] e as experimentações sobre diferentes tipologias de moradia no Weißenhofsiedlung (1927) [3], influenciaram as pesquisas efetivadas por ocasião do CIAM II (Die Wohnung für das Existenzminimum, 1929, Frankfurt). Neste encontro, arquitetos de distintas nacionalidades ministraram palestras (como as proferidas por Walter Gropius, Victor Bourgeois, Hans Schmidt e Le Corbusier) e discutiram sobre as necessidades básicas da família, a fim de definir o Existenzminimum (célula mínima de moradia). Buscava-se, neste contexto, a minimização do espaço da casa de maneira associada à satisfação das demandas dos moradores, a adequação daquele espaço às alterações verificadas no núcleo familiar (como a redução do número de membros e a atualização das atividades individuais exercidas) e ao modo moderno de construir, possibilitado pelas novas tecnologias e pela concepção da arquitetura como um produto racionalizado (padronizado e produzido em série de modo econômico). A célula mínima de moradia deveria, portanto, possibilitar a realização das principais atividades domésticas em espaços funcionais e confortáveis, ou seja, adequadamente organizados para reduzir o tempo destinado a cada atividade e dotados, por exemplo, de iluminação e ventilação natural. No Existenzminimum, a redução de área (principalmente da cozinha), número de equipamentos e funções domésticas relaciona-se, assim, a outro modo de morar, sustentado por alterações não apenas no interior das casas, mas também em seu contexto de implantação. Deste modo, atividades que antes eram realizadas em espaços privados específicos (cozinhas, lavanderias) são transferidas para espaços públicos ou semi públicos desenhados para estes fins. Esta transferência de funções domésticas de dentro para fora possibilita, além da minimização da área de espaços específicos, a redução do tempo dispensado a cada atividade - viabilizando, por exemplo, a disponibilização da mulher como mão de obra na indústria. Nas discussões sobre o Existenzminimum realizadas no CIAM II, portanto, a implantação das células mínimas deveria ser pensada de modo a compensar a redução de área efetivada nas unidades de moradia. Seus agrupamentos (conjuntos) tiveram que ser concebidos de modo relacionado a espaços externos semi públicos dotados de equipamentos de serviço (como lavanderias e cozinhas) e de lazer (jardins, praças), bem como deveriam ser inseridos em sítios dotados de áreas verdes. Verifica-se, aqui, a interdependência (relação de necessidade, e não contingência) entre o espaço privado da casa e os seus prolongamentos (espaços voltados para atividades de lazer e serviços domésticos deslocados para o exterior). O programa da moradia mínima, portanto, expande-se para fora do núcleo privado e ganha significação quando entendido de modo relacionado às suas extensões, efetivadas no âmbito semi público. Neste contexto, a discussão sobre a moradia mínima não se encerra no CIAM II e continua relevante no encontro seguinte, realizado em Bruxelas (1930), onde foram abordadas as relações entre os espaços de moradia e sua implantação, ou seja, entre a arquitetura e o planejamento dos bairros residenciais. Na Alemanha, os conjuntos de moradia popular (que apresentavam tipologias 13 mínimas) eram de modo geral executados em terrenos periféricos (de menor custo), mas situados em áreas providas de infraestrutura urbana. A localização afastada do centro urbano não se configurava como elemento de distanciamento existencial dos moradores em relação à cidade. O programa da célula mínima de moradia digna estava, portanto, diretamente relacionado às características de implantação e à existência de prolongamentos (equipamentos de lazer e serviço) integrados aos conjuntos. Na República de Weimar se pretendia, com a construção de conjuntos financiados pelo poder público, atender à demanda habitacional principalmente dos setores menos privilegiados social e economicamente. Estes conjuntos associavam diferentes tipologias, dentre as quais as unidades mínimas. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, buscava-se atender o mercado imobiliário privado em expansão, oferecendo moradias econômicas também associadas a outras tipologias, mas localizadas principalmente nos centros das grandes cidades, em áreas dotadas de infraestrutura, equipamentos e serviços, e próximas dos locais de trabalho. O Existenzminimum e a quitinete brasileira aproximam-se, portanto, na busca pela definição do espaço mínimo de moradia; no entanto, a célula mínima alemã, concebida a partir de critérios de racionalização construtiva e manutenção da qualidade de vida, não necessariamente incluía a sobreposição de funções relacionada à escassez de área, uma das principais características definidoras da quitinete como programa. Ao surgir no mercado imobiliário brasileiro, a quitinete se relaciona com o acelerado crescimento das grandes cidades e a verticalização de suas áreas centrais. Volta-se principalmente para locação, atendendo osegmento formado em sua maioria por solteiros ou jovens casais, estudantes, trabalhadores em busca de ocupação ou início de carreira. No Brasil, a unidade mínima (também identificada como “apartamento conjugado”) possui um cômodo de maior área voltado para as atividades de estar, repouso e alimentação, uma pequena cozinha para preparo de alimentos (integrada ou separada do ambiente principal) e sanitário geralmente sem abertura para o exterior, com ventilação indireta (por dutos) e iluminação artificial. Esta tipologia apresenta entre 25 e 40m2 de área total (SILVA: 2013, p. 149), limitando excessos de quaisquer ordem - característica que, assim como no Existenzminimum, favorecia a execução de atividades domésticas de limpeza e manutenção, anteriormente realizadas por empregados. O surgimento e a aceitação de novos programas do morar, como o proposto pela quitinete, aconteciam portanto devido a fatores econômicos (interesse do mercado imobiliário em multiplicar as áreas voltadas para a moradia, minimizando investimentos e aumentando lucros), questões técnicas e tecnológicas (viabilização de novas possibilidades construtivas), bem como a aspectos sociais e culturais (criação de novas sociabilidades e modos de se relacionar com a cidade articulados com o processo de modernização). Em relação ao local de implantação das unidades mínimas, o contexto brasileiro distancia-se do alemão; no Brasil, a localização central era fator extremamente importante para o êxito da quitinete como produto imobiliário, pois a proximidade 14 dos espaços de comércio, lazer, serviço e trabalho viabilizava o morar mínimo. Estas condições estavam presentes na periferia de Stuttgart, por exemplo, mas não nos arredores de São Paulo. O contexto de implantação da quitinete brasileira era, assim, determinante para a aceitação do modo de morar onde o estar, o repouso e a alimentação se confundiam, pois eram realizados em um ambiente multifuncional. A maximização do mínimo no Copan Novos modos de morar surgiam concomitantemente às transformações nos parâmetros disciplinares arquitetônicos e urbanos, em curso desde o século XIX. Em São Paulo, uma alteração na legislação passou a permitir a comercialização legal da quitinete como produto imobiliário, ocorrida pela primeira vez no Copan[4]. O edifício se configura, assim, como o primeiro empreendimento paulistano a oferecer as unidades mínimas de moradia. Inseria-se oficialmente no mercado, deste modo, o programa do morar caracterizado pela área reduzida, sobreposição de funções domésticas, banheiros com ventilação e iluminação indiretas e localização privilegiada em relação à existência de infraestrutura urbana e possibilidades de trabalho. As quitinetes oferecidas no Copan configuravam-se, naquele momento, como o programa do morar adequado a migrantes recém chegados, jovens solteiros, estudantes e trabalhadores em busca de uma nova vida. O programa do Copan é marcado pela multiplicidade de usos e configurações das unidades de moradia. O edifício se desenvolve como um robusto embasamento que acompanha o desenho do terreno onde se insere e uma lâmina de trinta e dois pavimentos com planta em S. Abriga, em sua base, estabelecimentos comerciais e de serviços; na lâmina, encontram-se 1.160 unidades de moradia de diferentes áreas e configurações espaciais. Divididas em seis blocos independentes, aproximadamente 2.000 pessoas têm o emblemático edifício paulistano como espaço onde o morar se transforma, pelo uso cotidiano, em habitar. Inserido no contexto de comemorações do IV Centenário de São Paulo, o Copan faz parte das ações voltadas para a construção de uma imagem de cidade intrinsecamente relacionada ao progresso e à modernidade, identificados com a industrialização e a prosperidade econômica. Naquele momento, a arquitetura deveria, a partir de sua visualidade (programa funcional variado, grandes dimensões, verticalidade, forma livre em S, homogeneidade das fachadas, especificação de materiais), articular indicialmente o edifício e a cidade de modo relacionado à imagem que se pretendia construir de São Paulo. O Copan, a partir de sua arquitetura, deveria manifestar, em sua visibilidade, valores como poder, força e solidez, ou seja, deveria existir como parte de um impactante presente capaz de engendrar um futuro glorioso. O edifício executado no centro de São Paulo apresenta significativas diferenças em relação ao projeto elaborado por Oscar Niemeyer na década de 1950. Há duas versões publicadas em um mesmo número da revista L’Architecture d’Aujourd’hui (1952); em ambas o conjunto pensado para o Copan era composto por embasamento e dois edifícios independentes (hotel e residencial), volumetricamente diferentes e integrados ao terraço, reforçando a fluidez de deslocamentos entre os dois edifícios a partir de uma área de lazer compartilhada e facilitando a utilização dos equipamentos 15 tanto pelos moradores, como pelos hóspedes do hotel, além do público em geral[5]. PLANTA PAVIMENTO TIPO – VERSÃO INICIAL (L´ARCHITECTURE D´AUJOURD´HUI, 1952) PLANTA PAVIMENTO TIPO – VERSÃO FINAL (LEMOS: 2014, P. 132, 133) A versão final do projeto foi desenvolvida por Carlos Lemos; entre a primeira proposta apresentada na revista francesa e o edifício executado foram efetivadas inúmeras modificações[6]. Estas alterações, realizadas ao longo da obra, relacionam- se principalmente a questões financeiras e ao atendimento de expectativas do mercado imobiliário. Neste contexto, as modificações mais significativas ocorreram no programa das unidades de moradia, principalmente nos blocos E e F. Originalmente projetados para abrigar amplos apartamentos de quatro dormitórios (cada bloco), apresentam no edifício construído quitinetes e apartamentos de um dormitório[7]. Além dos blocos E e F, o bloco B também passou por relevante reformulação de seu programa e abriga o maior número de quitinetes do Copan (448). Na planta publicada em 1952 (primeira versão do projeto), as unidades correspondentes aos blocos A e B configuram-se como um único bloco, composto por quitinetes e apartamentos de um dormitório[8]. Em relação ao acesso às unidades de moradia 16 situadas nesta porção do edifício, havia uma torre única de circulação vertical (elevadores e escadas) que servia todo o pavimento tipo e era alcançada a partir do corredor central situado entre as unidades voltadas para a fachada principal e para a fachada secundária. O restante da lâmina (correspondente aos blocos C, D, E e F), além do acesso à torre de circulação vertical a partir do corredor contíguo à fachada secundária, contava com três pares de elevadores. No projeto executado, a torre de circulação vertical possibilita acesso apenas ao bloco B, tendo os demais blocos entradas independentes. As quitinetes abrangem assim, quase 50% da área do pavimento tipo do edifício executado[9] (GALVÃO: 2004, p. 31-35), e configuram-se como o programa de morar que identifica o bloco B. Além das quatorze quitinetes (com área aproximada de 32m2), compostas por um ambiente multifuncional, banheiro e cozinha, o bloco B conta com seis unidades de moradia compostas por sala, um dormitório, banheiro e cozinha, distribuídos em 48m2. Em cada pavimento, portanto, tem-se vinte unidades, totalizando 640 (448 quitinetes e 192 apartamentos de um dormitório) no bloco mais extenso do Copan. O acesso às unidades acontece a partir da torre de elevadores destacada do corpo do edifício, onde se encontram cinco elevadores, escada de emergência e depósito de lixo em cada pavimento. Os elevadores possuem a metade do número de paradas em relação ao número de pavimentos (32), de modo que o morador ou visitante sobe ou desce uma rampa para acessar o sinuoso corredor de dois metros de largura e chegar aos apartamentos do bloco B. BLOCO B – QUITINETE (ACIMA) E APARTAMENTO DE UM DORMITÓRIO (LEMOS: 2014, P. 144) Com largura variando entre 3 e 3,70m e aproximadamente 4,30m de comprimento no ambiente multifuncional, as quitinetes executadas no bloco B contam com banheiro e cozinhade área reduzida e sem aberturas para o exterior. A planta publicada na revista francesa traz duas sugestões de utilização dos espaços: na primeira, elaborada para a unidade situada na extremidade nordeste e voltada para a parte de trás do edifício, o layout mostra o ambiente multifuncional abrigando estar, repouso e alimentação (cozinha integrada), e banheiro de grande área em relação ao 17 total; há ainda um armário embutido que conforma o corredor de acesso. O outro layout corresponde a uma quitinete situada na parte da frente do edifício, de planta alongada, banheiro reduzido e com separação entre as áreas de repouso (contígua ao banheiro) e estar / alimentação (com abertura para a fachada principal). No projeto executado, a cozinha é delimitada e possui abertura para um fosso; na primeira versão não há conformação física da área de cozinha. A esquadria de vidro do piso ao teto (com superfície translúcida na faixa inferior) explicita, na fachada secundária do Copan, a extensão e heterogeneidade do bloco B, marcado ainda pela plasticidade da torre de circulação vertical. Nos demais blocos, adotou-se uma composição de elementos vazados (cobogós) e brises em trama retangular, associada às escadas helicoidais (acesso secundário aos blocos A, E e F) [10]. A solução de visualidade adotada nesta fachada difere bastante, portanto, dos brises horizontais da vista principal do edifício. 18 À DERIVA ENTRE ÍNDICES: TRANSGRESSÕES DO PROGRAMA MÍNIMO Transtornos de um plano ou significações em distintas escalas Verifica-se assim que há, no Copan, uma multiplicidade de programas (atualizações de um mesmo programa, programas “originais” desvelados ou novos programas?) entre as propostas publicadas em 1952, as plantas aprovadas pela Prefeitura de São Paulo em 1961 e o edifício executado e entregue aos moradores. Esta variedade se relaciona a adequações às contingências do empreendimento (de sua concepção à execução e operação), que fazem parte do desenvolvimento de qualquer projeto em arquitetura. O Copan, no entanto, tem força comunicativa continuamente explicitada em inúmeros suportes: alimenta pesquisas acadêmicas, experimentações artísticas, publicações em revistas especializadas, reportagens veiculadas na internet. Recebe visitantes do mundo inteiro, seus moradores são procurados para dar entrevistas. O edifício se constrói como ícone e índice de São Paulo, representando cidades imaginárias e imaginadas – desejadas ou rejeitadas, conhecidas, reconhecidas, desconhecidas. É seu múltiplo e extenso programa, explicitado por sua visualidade, que alimenta as distintas imagens do edifício e da cidade onde ele se insere. O que se investiga aqui são as relações entre as características de visualidade destes distintos programas que marcam a história comunicativa do Copan e, a partir de seus ícones, compreender imagens possíveis do habitar, produzindo um conhecimento sobre a cidade. Pode-se questionar, assim, o significa (ou pode significar) ter o Copan como casa: o que simultaneamente distancia e aproxima este morador de qualquer outro, e qual cidade se relaciona com este modo de habitar? Ou ainda o que significa morar no edifício, mas no bloco B, e qual cidade se inventa a partir deste habitar? Inúmeras representações distinguem, nesta escala macro, aqueles que vivenciam o Copan como espaço do morar (e produzem, imprevista e cotidianamente, o habitar), daqueles que “apenas” transitam pelo edifício - sejam frequentadores habituais ou acidentais de lojas e restaurantes, amigos de moradores, funcionários do Copan. Este traço de distinção relaciona-se com as características de visualidade do edifício (programa arquitetônico, volumetria, soluções de fachada, dimensões, materiais, localização etc.) e seus índices de visibilidade, produzidos pela instância vivida e constantemente atualizados de inúmeros modos. Neste contexto, morar/habitar o Copan pode significar fazer efetivamente parte de São Paulo (por conta da aproximação sígnica entre o edifício e a cidade) e ser “privilegiado” por usufruir de um modo de vida não facilmente verificado na capital paulista (devido às características programáticas do empreendimento, como sua localização, infraestrutura, oferta de comércio e serviços, além da ideia de segurança possibilitada pelos mecanismos de controle existentes no edifício); ou ainda vivenciar uma “obra de arte”, um edifício com assinatura (ressalta-se assim a força do nome do arquiteto, apesar de sua controversa relação com o projeto), de desenho exclusivo e relevante na história da arquitetura brasileira; viver o Copan pode significar exclusividade (ou seja, ter poder para se distinguir), pois habitar o edifício é para poucos (os que podem pagar, pois o metro quadrado no edifício é mais caro do que a média da região[11]; os que conseguiram e garantiram sua permanência, pois a demanda hoje é maior do que 19 a oferta de unidades), ainda que estes poucos sejam muitos. As significações sobre o morar (o habitar) são assim mutáveis, mais ou menos imprevistas, e consistem em um sem número de possibilidades. Os índices que produzem estas significações são apreensíveis na observação de diferentes relações que alimentam, além daquela distinção entre aqueles que habitam o Copan e os que não o fazem, um traço de diferenciação associado ao espaço ocupado no edifício e às suas espacialidades. A pergunta sobre o que significa viver no Copan pode, assim, transitar entre as ilimitadas escalas inerentes a qualquer questionamento e se entranhar para flagrar imagens em lugares nem sempre presentes nas representações citadas acima. Investiga-se, assim, distintas significações relacionadas, por exemplo, à posição da unidade de moradia no pavimento tipo, ou seja, seu pertencimento a determinado bloco; ou à sua localização em altura (pavimentos mais baixos ou mais altos); ou à quantidade metros quadrados disponíveis, limitados por qual tipo de esquadria. Para infinitas configurações de perguntas serão contingentes todas as respostas – e incomodamente legítimas em (apesar de) sua transitoriedade. O programa do edifício abriga diferentes usos (comércio, serviços e habitação) e abrange, em um mesmo pavimento, tipologias de moradia com características bastante diversificadas. Esta visualidade programada possibilita, por um lado, a leitura de ícones de multiplicidade e heterogeneidade integrada - neste contexto, o edifício seria o lugar da coexistência (não necessariamente pacífica ou harmoniosa) entre diferentes. No entanto, a premissa programada de diversidade (materializada na variação de plantas das unidades de moradia) atua também como força favorável à separação e distanciamento dos moradores, pois explicita, por exemplo na maior ou menor disponibilidade de área e de vistas, a produção de valores atrelados a uma hierarquia social e econômica. As distintas configurações de quitinetes e apartamentos de um, dois ou três dormitórios, que consistem em fortes elementos na construção da imagem de convivência entre diferentes, criam assim, ao mesmo tempo, fronteiras irreconciliáveis entre os moradores. Estes limites não são apenas simbólicos, mas efetivam-se materialmente no espaço. Algumas alterações programáticas realizadas no edifício executado comprometeram a fluidez e conexão entre os blocos, favorecida na primeira versão do projeto. A planta do pavimento tipo publicada na L’Architecture d’Aujourd’hui possibilitava a comunicação entre as diferentes porções do edifício (a área atualmente conformada como blocos A e B e a correspondente aos blocos C, D, E e F). Neste projeto, a área dos blocos A e B apresentava um corredor praticamente central que levava da torre de circulação vertical às unidades de moradia; o restante do pavimento tipo, embora apresentasse uma separação e elevadores inseridos no corpo do edifício, também tinha acesso à torre a partir de um corredor contíguo à fachada secundária. Era possível, assim, circular horizontalmente em todo o pavimento tipo. No projeto executado, os blocos foram concebidos de modoindependente (como seis edifícios), e não se comunicam no pavimento tipo. No térreo, cada um possui seu conjunto de circulação vertical composto por escadas e elevadores e marcado pela portaria de acesso controlado. Verifica-se, assim, a ambivalência do programa em relação aos índices que são produzidos em sua apropriação pelo uso cotidiano (pois o mesmo 20 desenho favorece tanto a coexistência como a separação, dilui e ao mesmo tempo ressalta a diferença), e a multiplicidade de significações passíveis de atualização em relação ao programa ambivalente. Tem-se existência simultânea e convivência, fragmentação e união, (des)harmonia e distanciamento, todos mais ou menos explícitos ou velados, urgentes ou acomodados, dependendo do modo como são abordados. Ao se considerar o emblemático bloco B (identificado como o “bloco das quitinetes” ou o “bloco do povão”), verifica-se que suas características programáticas foram relevantes na construção de representações que manifestavam um modo de vida não desejável e relacionavam o edifício a um “cortiço vertical”. Entre 1970 e o início da década de 90, período de “decadência” do empreendimento, a distinção entre moradores e não moradores do Copan não era tão “positiva” como atualmente e as quitinetes do bloco B tinham grande influência na “má fama” do Copan. De acordo com Lemos, as unidades mínimas tornaram-se rapidamente objeto de especulação imobiliária: Ocorre que muitos capitalistas e acionistas compraram de per si diversos apartamentos mínimos do bloco B destinados à renda (...) e seus inquilinos nunca sofreram triagem conveniente e apta a impedir que aquele bloco se tornasse – em dado momento – terra de ninguém acolhendo em profusão prostitutas, travestis, além de traficantes e drogados. A má fama do bloco B estendeu-se ao edifício e o nosso Copan foi em seus primeiros vinte anos malvisto e, descuidado, passou a apresentar, cada vez mais, apartamentos vazios (LEMOS: 2014, p. 47; grifo nosso). A área reduzida e a sobreposição de funções, bem como a localização das unidades no pavimento tipo, e os índices produzidos por este modo de morar (situação financeira precária, inferioridade social etc.) foram decisivos para a imagem de descuido, abandono e inadequação do edifício durante este período. O Copan, coerente com o contexto do centro da grande metrópole onde estava inserido (também uma “terra de ninguém”), abrigava todos os que não deveriam estar ali. A transformação desta imagem exigiu ampla intervenção, com ações administrativas de diversas ordens efetivadas a partir de 1993 por Affonso Prazeres, morador e desde então síndico do edifício. Caracterizadas pela inserção de mecanismos de controle, disciplinamento e monitoramento, a administração conseguiu, para Lemos, “recuperar” o edifício[12] e atualizar as significações acerca do viver no Copan. O programa do bloco B, portanto, possibilitou a produção de significações “negativas” com a disponibilização das áreas mínimas de moradia. Ainda que o próprio programa promovesse a separação dos moradores das quitinetes dos demais a partir da segmentação física dos seis blocos, a diferença escapou ao modo de vida sugerido pelo plano e espalhou-se pela instância vivida, “contaminando” e comprometendo a convivência programada. Não suportada, a diferenciação foi controlada onde pôde, expulsa onde não se conformou, domesticada onde não pôde mais resistir. Há ainda outro traço de distinção que pode ser explorado. Se o programa é decisivo 21 quanto às diferentes imagens produzidas em relação aos que moram no Copan e os demais, e dos que moram no Copan entre si, suas características também influenciam a distinção entre aqueles que moram no mesmo bloco, especialmente B, E e F (onde se encontram as quase 700 quitinetes do Copan). O bloco B, apesar de contar com apartamentos de um dormitório, é reconhecido, conforme citado anteriormente, como o bloco das quitinetes (já que abriga 448 delas). Para ilustrar a força comunicativa desta imagem, há alguns anos foi veiculado, em distintas páginas da internet, um texto e fotografias de uma “quitinete” no Copan, cujo modo de vida era ressaltado por suas características de organização espacial, escolha de cores e mobiliário, objetos decorativos e pela relação do morador com o edifício e com o centro de São Paulo[13]. A unidade de moradia, no entanto, consiste em um dos apartamentos de um dormitório do bloco B, situado na parte da frente do edifício e com vista para o prédio do Bradesco. Com 48m2 e separação entre as funções de repouso e estar, a unidade não se configura como uma quitinete, mas aparece (é nomeada) como tal – o que destaca ainda mais as soluções do habitar frente a um programa do morar limitador. Entre os apartamentos de um dormitório com maior área e vista para a avenida Ipiranga e as quitinetes que se abrem para trás e compõem a fachada menos emblemática do Copan, distinguem-se assim os que vivem à esquerda ou à direita do corredor sinuoso de acesso às unidades do bloco B. As quitinetes, distribuídas em aproximadamente 100m de extensão e voltadas para a avenida da Consolação, sofrem permanentemente com o vento frio e úmido e a insolação insuficiente inerentes à sua orientação (LEMOS: 2014, p. 83). Não bastasse esta configuração programática desfavorável, há duas colunas de quitinetes que se situam atrás da torre de elevadores e escadas, ou seja, a esquadria de piso a teto composta de vidros transparentes e translúcidos detém-se cotidiana e inevitavelmente no volume cilíndrico de circulação vertical. Em cada pavimento, dentre as duas unidades com estas características, a mais próxima da passarela que liga a torre ao corpo do edifício pode ainda ter parte de seu ambiente funcional avistada a partir da janela na lateral da passarela. Sem vista, sem privacidade. O programa impõe aos moradores das unidades mínimas do Copan limitações que são apropriadas, portanto, de distintas e moventes maneiras pelo usuário, produzindo múltiplas e transitórias significações sobre o morar/habitar o Copan. Entre a posição no pavimento (horizontal) ou no edifício (vertical), a disponibilidade de área, aberturas e fechamentos, vistas ou pontos cegos, ou seja, em um mesmo programa, em uma semelhante unidade de moradia (como a quitinete), o programa não é fixo, ainda que tente fixar; não define, ainda que busque estabelecer; não amarra, ainda que, por definição, precise direcionar. A instância vivida do habitar sempre surpreende o morar programado, atualizando-o ou inventando novos programas, aproximando-se ou distanciando-se de suas premissas pretensamente definidoras. A casa só é casa porque é viva, só significa quando habitada, só produz conhecimento sobre a cidade quando pulsa – seja pairando sobre São Paulo, seja com o olhar ordinariamente capturado por pequenas pastilhas de vidro cinza. Transformações de um programa ou conformações pelo nome As quitinetes do Copan são comercializadas como quitinetes, ou seja, reconhecem 22 o nome que identifica esta tipologia de moradia desde os anos 1950 no Brasil. A palavra está associada a um modo de vida que inclui baixo custo (compra ou aluguel do imóvel), facilidade de manutenção por suas dimensões (área e número pequeno de ambientes e esquadrias) e permanência mínima em casa, muitas vezes apenas para dormir. Produzem-se também significações acerca da eficiência na organização dos espaços (multiplicação da funcionalidade de ambientes e peças de mobiliário), das estratégias de humanização e criação de vínculos com o espaço reduzido. Especula-se sobre a solidão[14] e o desprendimento de seus moradores. Este mesmo programa foi, no entanto, renomeado a fim de possibilitar a produção de novas significações acerca do morar mínimo e a criação de distintos índices do habitar. Como produto imobiliário, a quitinete passou a ser oferecida como studio ou estúdio, em referência ao studio apartment americano ou ao studio flat inglês, ou como compacto de luxo e apartamento smart. Volta-se não mais para inquilinos de baixa renda, mas a proprietáriose inquilinos de confortável situação financeira, solteiros ou casais jovens, divorciados, executivos com residência em outros estados ou países, investidores (interessados no mercado de aluguel de imóveis). A estratégia inclui a criação e legitimação do nome não apenas da unidade de moradia, mas também de suas necessárias extensões, ou seja, áreas de serviço e lazer de uso coletivo (lavanderias, cozinhas, salões de beleza, escritórios coletivos, espaços de convivência etc.) – que passam a ser identificadas como cozinha gourmet, espaço mulher, wellness center etc., e oferecem serviços pay-per-use. Busca-se, a partir do nome e descrição dos espaços, atrelar valor às características de um “novo” programa mínimo, que deve se distanciar de sua representação inferior (a quitinete) e possibilitar a produção de índices de um modo de vida atual, elegante, desprovido de excessos, funcional e coerente com a rapidez, praticidade e conectividade do mundo atual. Executado com materiais nobres e apoiado em extensa valorização comunicativa efetivada em distintos meios, o studio localiza-se, em São Paulo, geralmente em áreas nobres ou próximo a estações de metrô, onde há demanda por moradia e o custo dos terrenos é elevado. O metro quadrado deste tipo de unidade de moradia é vendido pelo dobro da média verificada na capital paulistana[15], e há exemplares oferecidos por mais de um milhão de reais[16]. Existem incorporadoras especializadas em unidades “ultracompactas” – uma delas vendeu todas as unidades de 19m2 localizadas no Itaim Bibi e colocadas à venda por 266.000 reais (14.700 reais o metro quadrado), com entrega prevista para 2016[17]. Manifesta-se, mais uma vez, a força comunicativa da assinatura: renomados arquitetos e designers são contratados para desenvolver os projetos e legitimar o modo de vida possível e desejado do “viver mais por menos”, produzido a partir da eficácia (conforto e funcionalidade) da organização espacial e do desenho do mobiliário. Esta maneira de morar é, assim como para os modernos, associada ao futuro, ou seja, a uma capacidade de antecipar (planejar) um modo de satisfazer necessidades (futuras mas ao mesmo tempo já presentes) de maneira inteligente e diferenciada – e aqui exclusiva pelo seu custo. A aceitação deste tipo de programa relaciona-se não apenas com a mudança no 23 nome, mas com transformações nos modos de vida (como a relevância de se morar perto do trabalho em grandes e congestionadas cidades, as alterações nas configurações familiares - ausência de filhos, divórcios etc.). Com a restrição ainda maior de área verificada nos studios em relação às quitinetes, faz-se necessário construir novos ícones para produzir novos índices e assim tornar palatável – e desejável – o viver mínimo. 24 SOBRE A INFINITUDE DO LIMITADO OU AQUILO QUE NÃO (SE) CONTÉM (N)O TEXTO Não há como negar o programa, por mais que sejamos capazes de transtorná-lo. A vida na quitinete do bloco B do Copan é outra se comparada ao apartamento de três dormitórios do bloco D – como também são diferentes as vidas de pessoas que dividem o mesmo espaço, ou seja, compartilham as mesmas características programáticas. Assume-se assim, por pressuposto, que as apropriações do programa pelo uso sempre serão distintas. Independente, portanto, do programa investigado, o morar programado e o habitar vivido, apreendidos a partir de características de visualidade e visibilidade, articulam- se como atos culturais que, em sua comunicabilidade, explicitam e dissimulam hábitos e valores. Estas imagens, índices frouxos e mutantes de distintos modos de viver, representam as cidades que habitamos. Vivemos assim em sistemas abertos, errantes e conflituosos, ainda que cotidianamente sob a tentativa de controle e determinação, de encerramento em diferentes limites e de ordenamento pretensamente apaziguador. A cidade é o lugar da contaminação, da influência pelo contato e da transformação contínua e inevitável. Não se pode escapar do encontro nem evitar a ambivalência; ainda que o programa seja mínimo, a dinâmica pode ser máxima e o desdobramento de possibilidades se estende ao infinito. A partir de algo definido a priori e por outrem, de acordo com um contexto de limitações e possibilidades, ocupamos, utilizamos, apropriamo-nos e assim transformamos. Desestabilizamos o limite ao esgarçar suas fronteiras, e amolecer sua rigidez, e escancarar sua (mal) dissimulada porosidade. Habitamos, pois, nossas cidades inventadas. 25 AS POLÍTICAS DO SUBTERRÂNEO Adriana Vaz 26 UNDERGROUND Estar dentro de um carro e atravessar, a qualquer hora do dia, as autopistas dos subterrâneos da Praça Franklin Roosevelt, na região central de São Paulo, provoca um forte estranhamento. De repente, um cenário semelhante ao de uma festa ou ao de uma balada noturna surge inesperadamente à frente do passante. Ilustrações feitas em tintas fluorescentes, apresentam nomes em grafias diversas, que compõem com a iluminação de LED azul[1] ali presente, um arranjo inusitado no contraste com as paredes cobertas pela fuligem escura dos carros. Tal uma cenografia, esses grafites destacam-se na luz negra e elaboram um design da aparência[2] local que produz uma espacialização tão soturna quanto incomum. Tem-se a impressão de que aquele espaço de passagem dos carros, bastante inóspito ao convívio social, onde é difícil supor que exista qualquer comunicação face a face, está recebendo uma preparação para um evento cultural. A velocidade imposta ao automóvel para transitar na via expressa agrava ainda mais o estranhamento. Tão rápido quanto um frame de um vídeo clip, a bizarra ambiência subterrânea logo escapa à visão do passante, que não tem tempo para maiores experiências cognitivas ou sensíveis. Deixando para trás os subterrâneos da Roosevelt, poucos quilômetros à frente nessa via expressa, há o entroncamento com a Avenida 23 de Maio. Todo esse trajeto possui muros altos, viadutos, empenas de edifícios e muitas paredes rebocadas de casas e prédios partidos ao meio que revelam o corte abrupto feito para a construção da ligação Leste/Oeste que provocou a reconfiguração da cidade. Toneladas de cimento foram utilizadas para “cicatrizar” tal incisão, gerando muitos espaços vazios bastante cobiçados pelos ilustradores urbanos, dada a enorme exponibilidade que possuem nessa via. Por essa razão, a grande maioria desses muros é revestida por grafites, em diversas formas. Na altura da alça de acesso para a 23 de Maio, no entroncamento mencionado, em ambos os sentidos (ZL/ZO ou ZO/ZL) existem há algum tempo grandes grafites e tags[3]. De um lado, estão os grafites coloridos e bem desenhados, executados por artistas reconhecidos até mesmo internacionalmente, como os Gêmeos e Nunca, por exemplo. Parte de seus trabalhos estão protegidos por grades, o que atesta terem sido encomendados pelo poder público. De outro lado, vê-se as tags. Enormes letras que formam nomes, assinaturas quase ininteligíveis. Feitas com gigantescas manchas de tinta, as tags são bombs (bombardeios), peças de grafite que estão longe de agradar o gosto popular e, em geral, são vistas como vandalismo. Ao contrário dos desenhos mais figurativos, feitos em tintas coloridas, as tags quase sempre são monocromáticas e o fato de apresentarem grafias de difícil leitura agrava a fama de que apenas enfeiam a cidade e não a “decoram” ou embelezam como os grafites. Todos os dias, milhares de pessoas utilizam a ligação Leste/ Oeste, vindos de diversos pontos da cidade, para irem de suas casas ao trabalho ou vice-versa, pois essa via une vários bairros da periferia ao centro de São Paulo. Essa ligação também possui acessos a demais regiões da cidade, como os bairros da Liberdade, do Glicério, Vila Mariana, e a entrada para a ligação Norte/ Sul, que é o próprio entroncamento 27 com a Avenida 23 de Maio. Sabe-se que a Zona Leste e outras regiões periféricas abrigam uma enorme quantidade de trabalhadores que representam boa parte da mão de obra que sustenta o projeto da cidade imaginada pelo poderhegemônico, realidade que torna a ligação estudada uma artéria de extrema importância para o tipo de mobilidade e deslocamento que é exercido em São Paulo: eminentemente transporte viário. O diálogo entre essa árida via expressa e os diferentes grafites feitos nesse trecho, nos muros de extrema visibilidade ali existentes, revela a existência de outras formas de ocupação desse espaço e trazem à tona algumas camadas de distintos processos comunicativos capazes de produzir novos significados decorrentes de simples desenhos e assinaturas rabiscadas nas paredes da cidade. Essa complexidade talvez escape ao olhar fugaz de quem, dentro de um carro, por ali transita. Esse trecho, que se estende dos subterrâneos da Praça Roosevelt à alça de acesso para a Avenida 23 de Maio, pode ser tomado como uma amostra daquelas intervenções urbanas e permitem estudar como são compreendidas pelos habitantes de São Paulo e por seus criadores, assim como também é um emblema da relação cambiante e ambígua que o poder público tem com os grafites, em diferentes administrações, oscilando entre a proibição e o incentivo. A Praça Franklin Roosevelt é um ponto especialmente interessante por constituir um marco de várias expressões de resistência na e da cidade. A Praça guarda em sua história períodos alternados de degradação e revitalização, cujos processos em que se deram revelam o interesse por esse lugar em São Paulo. Desde sua fundação em 1970, a Roosevelt, como é conhecida, é tanto um ponto de fomento às artes, evidenciando-se a música e o teatro gerados nos estabelecimentos do entorno, como lugar de encontro de diferentes movimentos culturais. Na atualidade, a superfície e os subterrâneos da Praça Roosevelt têm sido o palco predileto para as manifestações de toda e qualquer expressão de diversidade cultural. Por essas razões esse trecho foi escolhido como objeto empírico de pesquisa do presente artigo que busca observar as muitas articulações existentes entre as manobras do poder público e os processos que originam as estratégias dos grafiteiros para pintarem a região. O fluxo contínuo de carros e a quase volatilidade de alguns grafites feitos nos muros do trecho demarcado, dificultaram a pesquisa e impuseram uma tática peculiar de trabalho. Para fotografar e observar as ilustrações, incontáveis viagens automotivas foram feitas no espaço estudado. Pesquisas constantes na mídia, tanto impressa quanto digital, trouxeram muitos dados ao trabalho, assim como entrevistas com grafiteiros foram importantes para aprofundar e esclarecer as diferentes dinâmicas ali presentes. Se o trajeto percorrido para colher o material de pesquisa era sempre o mesmo, o olhar da pesquisadora realizava, a cada volta, uma espécie de deriva para encontrar, no breve espaço de tempo desse circuito, novas intervenções capazes de revelar vestígios dos processos geradores da ocupação daqueles muros que sugerem atividades interativas (q.v. [26]) diversas que chamam a atenção por contrastarem com a ambiência inóspita do concreto das autopistas. 28 Transitar pelo circuito descrito é constatar a transformação contemporânea do flâneur que hoje se desloca no fluxo de “uma única paisagem vivenciada enquanto se move” (PERULLI, 2012, pp. 86, 87). Em nossos dias, a imagem do labirinto que os povos da Antiguidade cultivavam de forma mítica como viagem de iniciação espiritual e que Walter Benjamin[4] consagrou na figura do flâneur modernista, nas megalópoles da atualidade, segundo o pesquisador italiano Paolo Perulli, resulta da “visão em movimento” em velocidade, em busca das mutações constantes da cidade e das múltiplas possibilidades de interferências de seus habitantes[5]. As formas circulares do labirinto retornam na atualidade, nas fotografias do tráfego: A mobilidade e a circulação parecem ter chegado a um resultado que é a perda de toda referência, simples fluxo. As novas visões do labirinto são semelhantes às fotografias do tráfego, tiradas à noite... (PERULLI p. p. 88) Mas com Bruno Latour[6] entendemos que a mobilidade e a velocidade não são suficientes para caracterizar a mudança do moderno para o contemporâneo. Talvez a perda de referência de que fala Perulli seja fruto da patente indefinição entre emissor e receptor que caracteriza os processos comunicativos de nossos dias. Hoje, as relações de sociabilidade não são mais puramente face a face, como no passado. É preciso levar em consideração o digital que permeia todas as relações da atualidade on line, e produz o aparente anonimato dos interlocutores. Muito mais expressivos do que as borradas “fotografias do trânsito tiradas à noite”, os grafites feitos nos muros da cidade, figuram[7] também na rede digital e carregam mais dados sobre seus autores do que se pode supor. Por esta razão, a deriva automotiva feita em busca dos grafites no trecho demarcado, incluíram também derivas virtuais, algo como “surfadas” na rede, a fim de flagrar outros indícios que possam contribuir para entender os processos que produzem o grafite e seus desdobramentos. Para quem passar pela via expressa e quiser se aventurar nessa deriva automotiva do olhar, com a intenção de conhecer um pouco mais do que está por trás dessa forma de expressão urbana praticada em São Paulo, será preciso abrir os olhos e a mente e procurar enxergar além das tintas, dos desenhos e daquilo que o senso comum denomina sujeira. 29 CIDADE LIMPA Apesar de ser considerada a capital mundial do grafite[8], pintar os muros de São Paulo, durante a administração do Prefeito Gilberto Kassab (de 2006 a 2012), era algo difícil. Naquele período, os funcionários da Prefeitura costumavam cobrir os grafites e as demais ilustrações urbanas com um verniz cinza, preparado especialmente para repelir a tinta automotiva dos sprays de futuras pinturas. Munidos de um enorme spray de tinta cinza, tais funcionários, transformados em paradoxais pixadores às avessas, decidiam o que deveria ou não ser apagado dos muros de São Paulo. Era um trabalho de higienização dos muros da cidade, alinhado com o desejo de limpeza urbana do Prefeito, que também determinou a retirada de placas e cartazes desautorizados dos estabelecimentos comerciais. Para apoiar seu intento, Kassab criou a chamada Lei Cidade Limpa[9], a fim de ordenar a paisagem do município de São Paulo, através da proibição e regulamentação de outdoors, letreiros e demais formas de propaganda, consideradas elementos poluidores da paisagem urbana. Um ambiente dessa natureza só contribuiu para reforçar o pensamento polarizado, corrente entre o senso comum. De um lado, os grafites constituem arte e, de outro lado, as demais formas de ilustração urbanas são lixo e depredação do patrimônio público. Como qualquer simplificação, essa polarização maniqueísta impede que se compreenda a complexidade e os desdobramentos dessa importante forma de expressão originada nos EUA, mais exatamente nos subúrbios de Los Angeles e nos subterrâneos do metrô de Nova Iorque, atualmente praticada em todas as grandes cidades do mundo, sendo São Paulo um expoente entre elas. Entretanto, ao longo da pesquisa realizada no sentido de buscar desvendar as características específicas da cena paulistana do grafite, foi possível perceber que a polaridade mencionada não parte apenas do biopoder (q.v. [06]), mas que ela existe também entre os artistas, grafiteiros e pixadores. 30 PALAVRA GRAFITE Apesar de o termo “grafite” ser genérico e englobar diferentes configurações dessa manifestação urbana, é oportuno apresentar parte da nomenclatura cunhada pelos artistas, assim como aquelas que serão utilizadas nesse texto, a fim de esclarecer as colocações feitas. Graffiti é o plural da palavra italiana graffito[10] que significa incisão, sulco, arranhura, utilizada primeiramente no século XIX, por arqueólogos para se referirem aos desenhos e às demais inscrições feitas em muralhas, paredes e monumentos das antigas cidades por eles estudadas. Segundo o pesquisador Pedro Paulo Funari (1986) [11], foram encontradas, na extinta cidade de Pompéia,na Itália, milhares de inscrições feitas em latim vulgar. Ficou constatado que tais intervenções foram executadas por mulheres e escravos, as classes de cidadãos que não tinham acesso à cultura elevada. Mas foi a forma plural da palavra, graffiti, que se difundiu tanto nos EUA, como na Europa e também no Brasil[12], para designar todas as ilustrações urbanas feitas com tintas. Na origem desse fenômeno, estão as inscrições demarcatórias dos territórios entre as gangues de jovens de origem mexicana, os “chicanos”, dos subúrbios de Los Angeles e, mais tarde, em Nova Iorque, o subway graffiti, praticado por jovens dos guetos da cidade que sistematicamente cobriam com pinturas os trens do metrô e as áreas do centro econômico da cidade. Estas são duas vertentes do grafite, surgidas nos anos 1960 e 1970 respectivamente, tidas pelos estudiosos como responsáveis pelo grafite que conhecemos hoje, presentes em todas as grandes cidades ao redor do mundo[13]. Se a origem da palavra remonta ao italiano, é na língua inglesa que foram cunhados os demais termos do universo dos grafites, utilizados igualmente pelos artistas de todos os continentes. A palavra tag é também um termo genérico para designar as assinaturas, as rubricas, os pseudônimos dos artistas e constituem grande parte dos grafites que se faz ao redor do mundo. Porém existem diferentes estilos de tags, como, por exemplo, os trow-up caracterizados por serem feitos rapidamente, como um jato de vômito. Em geral, são letras volumosas, em uma só cor e depois contornadas com outra tinta para se obter efeito tridimensional. Uma tag pode também ser feita em wild style, estilo norte-americano com letras trabalhadas de maneira mais elaborada. Bomb é o termo que designa todos os grafites que são ilegais, como um bombardeio. A inclinação à marginalidade sempre esteve presente desde a origem dessa forma de expressão, como se pode depreender do forte teor pejorativo que acompanha os significados de “graffiare”[14], outro termo italiano também relacionado aos graffiti e que, em português, é traduzido por “ofender”, “magoar”, “espicaçar” e “roubar”[15]. Mais do que uma mera tradução entre idiomas, observa-se um deslocamento semântico do sentido da palavra. A ação de inscrever em um muro carrega, por parte de quem a exerce, a consciência de uma intervenção que rompe alguma ordenação derivada de uma hierarquia de poder em que se estabelece aqueles que estão no 31 centro e os que estão à margem deste. Desde os tempos da antiga Pompéia a ambivalência (q.v. [03]) de sentido caracteriza a prática de riscar muros e nesta, a transgressão é sempre foi um componente tão presente quanto a repressão. 32 GRAFITE OCUPAÇÃO URBANA A questão da ocupação urbana parece ser um dos principais motivadores dos movimentos de grafite de todos os tempos. É possível inferir que as inscrições de Pompéia, as dos chicanos de Los Angeles, assim como as pinturas realizadas pelos habitantes dos longínquos e esquecidos bairros periféricos nova-iorquinos são trabalhos que produziram outras formas de expressão e de relacionamento com o meio urbano, criadas por esferas marginalizadas pela sociedade. São “... indícios do uso coletivo do espaço urbano e do caráter público de demandas sociais diversas” (PENNACHIN, 2012, p. 53). Mesmo em épocas distintas e em contextos sociais diferenciados entre si, os grafites mencionados sugerem modos de expressão de indivíduos pertencentes a setores da sociedade cujas vozes, em geral, são silenciadas pelo poder hegemônico que, por sua vez, costuma receber muito mal tais intervenções nas cidades, classificando-as como sujeira, vandalismo e depredação do patrimônio público. Apesar de possuir particularidades próprias, a cena paulistana do grafite possui características semelhantes. Na forma escrita, materializada em incalculáveis grafias e em diferentes estilos de letras, ou em pinturas feitas com tintas spray (inventadas apenas em 1945), rolos ou marcadores, o hábito de ocupar as cidades com ilustrações desautorizadas foi difundido pelos quatro cantos do mundo, quase sempre relacionado a outros movimentos urbanos que impulsionaram o grafite, tais como o hip-hop, o breaking dance, o punk rock, e o skatingboard, para citar alguns. A internacionalização dos movimentos mencionados, assim como a difusão do grafite, aponta para o despertar da consciência social e política e para a noção de coletividade crescente entre os jovens dos grandes centros urbanos. Tal fenômeno ultrapassa fronteiras geográficas e deixa transparecer a procura para escapar do poder econômico estabelecido através das brechas que permitem criar novas formas de expressão e outros modos extraoficiais de relacionamento com as cidades. Muitos autores identificam nas atividades desses coletivos urbanos uma alternativa criativa e menos radical do que a violência praticada pelas gangues de rua[16]. Presente em diversos países com características semelhantes, a dinâmica desses coletivos gera outras fronteiras que não se confundem com limites territoriais, mas estabelecem entre si uma esfera abstrata e fluida de trocas simbólicas, espaço semiótico onde se dão o encontro e as trocas entre diferenças, denominado fronteira (q.v. [17]), conforme Yuri Lotman[17]. As manifestações dos grupos urbanos mencionados ocorrem em diferentes regiões mas, de modo sincrônico, expõem arranjos semelhantes. Essas representações sugerem a existência de uma memória extrafísica, invocada por grupos de pessoas de diferentes regiões, mas com características sociais semelhantes que, em nossos dias, é bastante impulsionada pelas redes sociais. A íntima relação do grafite com o movimento hip-hop é um bom exemplo da força de coesão que atua entre os jovens urbanos contemporâneos. A pesquisadora do tema Andréia Moassab explica as origens estadunidenses do hi-hop e aponta o contexto no 33 qual surgiu o movimento, na década de 1970. Segundo a autora, o marcante viés identitário de afirmação e auto estima que caracteriza essa forma de expressão é derivado da enorme discriminação sofrida pelos negros, assim como da fragmentação urbana das cidades norte americanas daquele período, ingredientes que fizeram nascer uma forte luta pelos direitos civis[18]. O hip-hop é uma forma de expressão artística e cultural que não utiliza apenas a música para se comunicar e está presente em outras manifestações: 1. no break, dança dos b-boys e b-girls; 2. nas pinturas urbanas do graffiti; 3. no canto falado do rap (rytm and poetry), entoado pelos MCs, mestres de cerimônia; 4. na prática, o cantor ou o responsável pelo comando da festa, com base nas batidas ritimadas fornecidas pelos DJs; e 5. a chamada “consciência” ou “atitude”, que é o modo pelo qual os integrantes do hip-hop se posicionam diante do grupo e perante a sociedade, isto é, o seu comprometimento social. Sem esses cinco pilares em conjunto não se pode falar em hip-hop. (MOASSAB, 2011, p. 54) Articulado em São Paulo, apenas na década de 1980, em reuniões na estação São Beto do metrô e na Praça Roosevelt, o movimento urbano hip-hop, melhor classificado como um estilo de vida, possui regras e rituais próprios. Observa-se que apesar de ser um movimento de jovens, suas produções trabalham temáticas que se expandem para reflexões a respeito do modelo brasileiro de desigualdade e exclusão sociais que dizem respeito a todas as idades[19]. O grafite pertence a esse contexto social e diferentes autores esclarecem a relação de sociabilidade existente entre eles. Entretanto, apesar de ser parte constituinte do hip-hop, o grafite não se restringe a ele e pode ser praticado por pessoas que não pertencem a este movimento. Debora Pennachin, autora de uma das mais completas pesquisas sobre os grafites[20], coloca que a máxima “faça você mesmo” do movimento inglês punk rock[21] era o modus operandi desses coletivos urbanos underground[22] que uniam jovens marginalizados e empobrecidos de diferentes continentes a compartilhar uma mesma estética, marcada pela improvisação, pela bricolagem e peloamor à liberdade de expressão.[23] O “faça você mesmo” foi uma atitude que impulsionou as bandas de punk rock a criarem suas próprias capas de discos, os panfletos para divulgar seus trabalhos e os fanzines: revistas artesanais não pertencentes ao mercado editorial, meios por onde circulavam as propostas dos movimentos. O fluxo de influência estética entre esses coletivos urbanos era contínuo e de dupla mão: o estilo das letras do grafite influenciava o design dessas criações, assim como a escrita dos grafites foi influenciada pelas letras usadas nas capas dos discos das bandas de punk rock. Esse posicionamento de agir de modo autônomo, longe da esfera do mainstream[24] artístico e comercial foi disseminado entre todos os movimentos urbanos. A força presente em tais movimentos é a de uma ação política coletiva que permite a esses grupos atuarem como classe social. Karl Marx, como lembrado por Hardt & Negri, ao discorrer a respeito do proletariado urbano e do campesinato francês do 34 século XIX, já havia chamado atenção para o poder que os coletivos têm de se representarem a si mesmos. Segundo Marx[25], o fato de os proletários estarem juntos e os camponeses dispersos, permitiu aos primeiros maior poder de representação do que aos segundos. E Hardt & Negri concordam, sublinhando: A classe e as bases da ação política são formadas não por meio da circulação das informações ou até mesmo da ideias, mas sim mediante a construção dos afetos políticos, o que requer a proximidade física. (HARDT & NEGRI, 2014, p. 31) E dessa proximidade física e de afetos políticos comuns surge o que tais autores denominam experiência do comum (q.v. [31]), algo que extrapola a materialidade das coisas e passa a constituir a potência intangível que perpassa todos os integrantes coletivos e, dessa maneira, estabelece o vigor e a pujança dos movimentos populares. 35 PIXO SP Quando se busca entender o mundo dos grafites, seja por meio de conversas com artistas ou pesquisando as extensas bibliografia e filmografia existentes sobre o assunto, uma das primeiras informações que se obtém é a de que não existe em nenhum outro país a diferenciação entre grafites e pixos, da maneira como se coloca no Brasil. Fora daqui, qualquer inscrição feita no espaço urbano recebe a denominação de graffiti, pois não existe, na língua inglesa, outro termo apropriado para diferenciar tais espécies de intervenção. As palavras de Deborah Pennachin, nos mostram um pouco desse complexo universo: É essencial ressaltarmos aqui que a distinção entre graffiti e pixação nunca existiu fora do Brasil. Nos primeiros anos do graffiti nova-iorquino, a cultura das tags, assinaturas rudimentares que apresentavam uma indiscutível semelhança com aquilo que no Brasil se convencionou denominar pixação, era o que predominava na cidade. Com o passar dos anos e a intensificação da disputa por visibilidade entre os escritores do graffiti, essas assinaturas foram evoluindo em termos de sofisticação estética...(...). Assim, a partir do momento em que os escritores do graffiti começaram a utilizar mais cores e criar pieces cada vez mais elaboradas, abria-se o caminho para a aceitação de sua linguagem pelo circuito oficial da arte e também pela mídia e pelo mercado. As tags, no entanto, não são consideradas como algo distinto do tipo de inscrição que se desenvolveu a partir delas, sendo igualmente compreendidas como graffitis. (2012, p. 200) A autora pontua que o isolamento do Brasil com relação aos EUA e à Europa no início do movimento na década de 1970 e a falta de informação de época anterior à era digital, ensejou um modo de fazer grafite eminentemente brasileiro. Marcado pela falta de recursos econômicos para obtenção de tintas, o grafite brasileiro é, segundo a autora, “...fruto de um processo antropofágico de assimilação do graffiti norte- americano, baseado na improvisação, na superação de limites e na quebra de regras” (PENNACHIN, 2012, p. 199). Trazendo, em sua gênese, o questionamento político, o movimento grafite brasileiro viu nascer, na década de 1980, o pixo, “uma das manifestações mais originais da cultura urbana brasileira, em especial na cidade de São Paulo”[26], que mantém viva, em sua prática, os sentidos de resistência e consciência social que caracterizou os movimentos norte-americanos. Entretanto, tal espécie de grafite brasileiro, o pixo, apenas começou a ser notado como uma forma de expressão, por meio das inscrições de frases de protesto contra a ditadura militar, “abaixo a ditadura”, exaustivamente pintadas nos muros das cidades, na década de 1960/70. Também devem ser mencionadas como uma das origens das pixações, as frases poéticas escritas nos muros de São Paulo por alguns artistas multimídia da época, como, por exemplo, Tadeu Jungle[27], Walter Silveira e também 36 os stencils[28] de Alex Vallauri[29]. É interessante ressaltar que às raízes mencionadas acima, soma-se o caso da frase “Cão fila km 26” como influente antecedente do movimento pixo paulistano. Pulverizada pela cidade, esta frase foi mais tarde detectada como uma bem sucedida estratégia de marketing de um canil, situado em uma rodovia, no quilômetro 26. A percepção de que os espaços urbanos poderiam ser utilizados como suporte de meio comunicativo (q.v. [29]), de forma livre e espontânea e fora dos esquemas oficiais do poder público, passou a ser visto por jovens moradores das periferias de São Paulo como uma forma de saírem da obscuridade de suas vidas e começarem e escrever seus nomes pelos muros da cidade, atitude que gerou entre eles, uma forte disputa. Deborah Pennachin explica: Os pixadores perceberam que o espaço urbano poderia ser utilizado como uma forma de mídia, e começaram a fazer propaganda de si mesmos, processo este que resultou em uma competição cada vez mais acirrada na qual a busca por visibilidade fez surgir uma cultura específica, com códigos, valores e critérios de avaliação particulares. (PENNACHIN, 2012, p. 237) Essa plataforma do movimento pixo caracteriza a atividade como uma forma de comunicação eminentemente interativa. Ao partirem para a ação direta sobre os espaços públicos, originalmente pertencentes aos usos estabelecidos pelas práticas sociais mantenedoras do biopoder que instituem o que é legítimo, esses jovens das periferias propõem uma ruptura no conjunto dos significados oficiais vigente na cidade. João Batista Martins y Irineu Jun Yabushita em um artigo sobre o tema, colocam: Eles expressam a necessidade da criação de um outro espaço-tempo, que rompe com o que está posto – reivindicam o exercício do direito à diferença– e instituem, a partir de encontros e desencontros, situações que lhes permitem uma apropriação diferenciada dos lugares, espaço-tempo este impedido pelas vicissitudes que circunscrevem as experiências de urbanidade – espera-se dos cidadãos que sigam um conjunto de formalidades e procedimentos, que demonstrem boas maneiras no trato com a cidade, ou seja, a prática da pichação está na ordem do impensado! (MARTINS, J.B. & YABUSHITA, 2006, p. 42) [30] 37 PIXO X GRAFITE No Brasil, o grafite e o pixo traçaram caminhos distintos entre si e ocasionaram a formação de movimentos próprios, apesar de terem tido as mesmas origens: o questionamento político e o desafio às leis por meio da consciente ocupação desautorizada de espaços urbanos. Sem trabalhar qualquer tipo de desenho e ainda dispensar as tintas coloridas, o pixo distingue-se esteticamente do grafite por ser uma inscrição monocromática que apresenta assinaturas de seus autores, em letras grafadas de forma cifrada, ilegíveis para os não pertencentes ao movimento. Ao contrário das frases políticas contra a ditadura militar que precisavam ser lidas e compreendidas por todos, o pixo cria, com seu alfabeto, uma escrita exclusiva para iniciados, que desestabiliza a percepção estética da arquitetura urbana pelo deslocamento de sua presença. Como em uma espécie de disputa entre seus iguais, o pixador busca espalhar seu nome pela cidade, demonstrando sua presença
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