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2 Sumário CAPA ROSTO DEDICATÓRIA INTRODUÇÃO - IDENTIDADE E COMUNICAÇÃO 1. IDENTIDADE, CONHECIMENTO E COMUNICAÇÃO 2. MÍDIA E IDENTIDADE 3. AS QUESTÕES NA ORIGEM DO TRABALHO 4. ALGUNS AGRADECIMENTOS PARTE I A invenção do eu 1. DESCONSTRUÇÃO E IDENTIDADE 2. OS TEXTOS DA IDENTIDADE Olhar, nomear, controlar 1. A INTENSIFICAÇÃO DO CENTRO 2. DISTRIBUIÇÃO DE SABERES E COMPOSIÇÕES DE PODER 3. A INSTITUIÇÃO E A AUTORIDADE DO DISCURSO 4. O QUE É UM NOME? O tempo/memória nas narrativas da mídia 1. DISCURSOS DE IDENTIDADE E CULTURA DA MÍDIA 2. “O PASSADO É UM PAÍS ESTRANGEIRO”: ESPAÇOS, OBJETOS, MEMÓRIA Mídia, consumo e identidade:um estudo de caso 1. A VISÃO DOS OUTROS 2. O DUPLO DISCURSO SOBRE TELEVISÃO E CONSUMO PARTE II O DNA da identidade nos discursos 1. FRANTZ FANON E O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO 2. EDWARD SAID E A NOÇÃO DE ORIENTALISMO 3. LITERATURA, COMUNICAÇÃO E IDENTIDADE: NGUGI WA THIONG’O 4. A CULTURA SEM TERRITÓRIO: HOMI K. BHABHA Nós e eles:representação e identidadena final da Copa do Mundo de 2002 1. A SELEÇÃO BRASILEIRA COMO METÁFORA: VALORES ATRIBUÍDOS AO BRASIL 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg 2. A EQUIPE ALEMÃ E A DEFINIÇÃO DOS ATRIBUTOS DO OUTRO 3. IDENTIDADE E DIFERENÇA ALÉM DO CAMPO O gênero neutro:a definição do outro/da outranos microdiscursos 1. O LUGAR DA ESCRITA: O QUARTO DE VIRGINIA WOOLF 2. GAYATRI CHAKRAVORTY SPIVAK E A DESCONSTRUÇÃO DAS OPOSIÇÕES BINÁRIAS 3. PROBLEMAS DE GÊNERO: JUDITH BUTLER ENCONTRA BRIDGET JONES 4. ARTICULAÇÕES INACABADAS NA VISÃO DE BELL HOOKS Páginas brancas, leitoras negras– gênero, etnia e discurso da mídia PARTE III Mente, cérebro e comunicação:a perspectiva da Neuro-história da Arte 1. A ESCRITA COMO FARMAKON DA MEMÓRIA 2. A EXPLOSÃO DE SIGNOS NA GALÁXIA DE GUTENBERG 3. A IMAGEM COMO CATEGORIA ANALÍTICA 4. NA TRILHA DO PÓS-HUMANO A identidade disseminada:a criação do “eu” nos blogs 1. A INTIMIDADE PÚBLICA 2. OS COMENTÁRIOS: O ESPAÇO DO OUTRO 3. COMUNIDADES VIRTUAIS 4. DA COMUNIDADE À GLOBALIZAÇÃO A identidade mediada:o que é ser alguém em um reality show? 1. A VIDA NORMAL, EXTRAORDINÁRIA 2. PERSONAGENS DE SI MESMOS: A DIFERENÇA PÚBLICO/PARTICULAR 3. A PRODUTIVIDADE DOS FÃS Ser/Estar em Comunicação.Considerações mínimas 1. “MAS O SER, HOJE, É A IMENSIDÃO SOMBRIA DA DÚVIDA” 2. “NÓS APRENDEMOS A IDENTIDADE LETRA POR LETRA” 3. “O SER DA LINGUAGEM COMPREENDE O SER DO HOMEM” 4. “NÃO SOU IDÊNTICA A MIM MESMA / SOU E NÃO SOU AO MESMO TEMPO, NO MESMO LUGAR E SOB O MESMO PONTO DE VISTA” 4 5. “AS COISAS QUE PROCURO / NÃO TÊM NOME” BIBLIOGRAFIA COLEÇÃO CRÉDITOS 5 Este livro é dedicado à cidade de Norwich, Inglaterra, pela melhor acolhida que um estrangeiro poderia ter. E às pessoas da cidade de São Paulo, Brasil, pelo melhor retorno proporcionado após a ausência. 6 Q INTRODUÇÃO IDENTIDADE E COMUNICAÇÃO uando alguém pergunta “quem é você?”, a resposta típica inclui dizer o próprio nome, eventualmente a idade, o que está fazendo naquele lugar. Se a questão vira diálogo, a definição de “quem é você” vai ficando complexa. Novos elementos são agregados o lugar onde nasceu, onde mora; mais para a frente, a conversa pode incluir gosto pessoal, time de futebol, o estilo de música, endereço do blog, nome no Twitter, histórias interessantes. Ou seja, quando alguém nos pergunta quem somos, imediatamente começamos a formar um discurso, uma narrativa sobre nós mesmos. Essas narrativas comunicam aquilo que somos. Ou, como veremos, comunicam uma representação de nós mesmos. A criação desses discursos de identidade depende de vários fatores, a começar pela memória sem ela não há tramas narrativas, não há discurso sobre o presente. As narrativas do passado, com a participação da memória, se relacionam com as possibilidades de comunicação do presente para formar um discurso. Mas nem tudo pode ser narrado. Escolhemos contar ao interlocutor alguns fatos e esconder outros conforme a situação. Valorizamos um episódio de nossa vida um momento de valentia, por exemplo enquanto discretamente eliminamos outros digamos, a falta de resistência diante de um chocolate. Às vezes o inconsciente nos trai e dizemos algo que não deveria ser dito. Seja como for, essas narrativas vão construindo nossa imagem na mente do interlocutor. Não só o que dizemos, mas também a maneira como isso é falado sem mencionar gestos, roupas e outros sinais que auxiliam a outra pessoa, literalmente, a nos construir. A identidade, nesse ponto, aparece como um problema de comunicação. Esse discurso sobre nós mesmos não foi constituído da noite para o dia. É o resultado de nossas experiências significativas transformadas em parte de nossa memória. Quando se diz “quem é” para alguém, está se tecendo um caminho possível entre os muitos fatos, acontecimentos e eventos passados e presentes em outras palavras, esse discurso é criado dentro de uma história. Não a “nossa” história no sentido de uma narrativa verdadeira, com todos os fatos de nossa vida, mas “nossa” no sentido de que é o discurso escolhido e montado por nós para representar um “eu” diante dos outros. Por isso a pergunta deste livro não é “Quem é você?”, mas “Quem você pensa que é?”, quais representações são feitas da identidade. A partir de quais discursos você se monta ao se apresentar para outras pessoas? E em quais discursos as pessoas, seus amigos, o governo, encaixam você? Existem inúmeras possibilidades, e, como veremos, nem todas estão disponíveis para a escolha. Isso não significa dizer que “quem é você?” é uma pergunta vazia. Claro que você sabe quem é. Todo mundo sabe quem é. Depois de anos de 7 convivência diária, é inevitável que se tenha alguma noção de quem se é. Você se reconhece ao se olhar no espelho, mesmo que a figura no vidro não seja a mesma que está em sua mente. Você sabe qual é sua melhor roupa, de quais músicas gosta, os lugares que frequenta. Tem um nome e um endereço. E não é necessário ir muito longe no jogo de dizer quem é você. Até eu sei alguma coisa sobre você. Você tem algum tipo de educação escolar, certa relação com o mundo universitário. Estudante, professor, pesquisadora. Fala português, é alfabetizado, talvez não seja rico mas certamente não é miserável. Obteve o livro porque alguém recomendou, porque achou o título interessante títulos são para isso, não? ou porque foi obrigado. Isso não só mostra alguma coisa sobre quem é você, mas também diz algo sobre seu espaço dentro da sociedade, seu lugar com os outros. Essas atitudes permitem que se adivinhe alguma coisa sobre você pelo simples fato de ler este livro. Finalmente, há um cartão verde com um número, uma foto e a impressão do seu polegar direito que, em última instância, diz quem você é. No sentido mais óbvio, é a garantia de que você é você e não é outro, o que nem sempre é bom como parece. Você tem o maior grau de conhecimento sobre si, e mesmo quando outra pessoa parece conhecê-lo melhor é porque você deu pistas para ela adivinhar. Ou seja, nesse ponto de vista, você sabe quem é. No entanto, este livro não é sobre quem se é, mas como a identidade que você chama de sua tem sido construída a partir de milhares de escolhas, acasos, problemas e soluções inventadas continuamente na vida cotidiana. Este livro é um panorama das ideias sobre como se constrói e se define uma “identidade” a partir da comunicação. Como lembra Craig Scott: Em muitos aspectos, identidade e identificação são questões fundamentalmente comunicativas. De fato, é através da comunicação com outros que expressamos nosso sentido de vínculo, pertencimento (ou falta dele) em relação às várias coletividades. É também pela comunicação que temos acesso à imagem dessas coletividades, que as identidades podem ser conhecidas por nós, e que as vantagens e desvantagens de se ter uma identidade são reveladas.1 A identidade de alguém é formada na intersecção de inúmeros fatores, às vezes paralelos, às vezes contrários, dentro de tempos de duração variável. É um processo contínuo no qual oportunidades de escolha se alternam com obrigações sociais ou determinaçõespsíquicas. A decisão individual e a pressão social nem sempre encontram fronteiras definidas aliás, decidir quem você é implica igualmente escolher quais serão suas fronteiras. Finalmente, você existe em uma história é o caso de saber por quanto tempo esse seu “eu” de hoje vai durar. Nem sempre se é a mesma pessoa. Quando, em algumas ocasiões, se faz algo pela primeira vez, se descobre capaz de algo novo, imediatamente seu conceito a respeito de si mesmo muda. Em um minuto sua identidade mudou, você é a pessoa do minuto passado somada às características adquiridas no instante presente, e, portanto, você é outra pessoa. Mas ainda é a mesma. Paradoxal. 1 SCOTT, C. “Communication and Social Identity”. Communication Studies, vol. 58, n. 2, Junho 2007. 8 1. IDENTIDADE, CONHECIMENTO E COMUNICAÇÃO Quais os critérios de conhecimento usados por uma pessoa para identificar a si mesma e às outras? De onde vieram esses critérios, como foi montado o quadro mental a partir do qual uma pessoa compreende as outras? O problema da identidade está vinculado à questão do conhecimento e, por esse viés, a uma questão de comunicação. Na opinião de James David e Oliver Gandy: Identidade pode ser entendida a partir de uma perspectiva cognitiva. O conhecimento que temos do mundo social nos oferece um quadro completo de referências a partir das quais vemos a nós mesmos e conferimos sentido ao mundo social.2 Neste livro, a ideia é pensar a identidade como questão de comunicação, resultado da interação de mensagens entre pessoas e culturas. Identidade é algo que se produz, transformando-se em uma mensagem, reelaborada por outra pessoa. As etapas de produção dessa mensagem são os momentos de construção da identidade, e isso já implica a maneira como vamos decodificar as outras mensagens que chegaram até nós. Nesse sentido, Maria do Rosário Gregolin fala das relações entre identidade e linguagem como um tema que atravessa várias disciplinas acadêmicas: O conceito de identidade é complexo, multifacetado e, por isso, pode ser pensado a partir de vários ângulos e tem sido objeto de reflexões em vários campos de estudos, como, por exemplo, na Antropologia, na Psicologia Social, na Sociologia, na Filosofia, na Psicanálise etc. A questão que coloco no centro dos meus trabalhos é: pode-se pensar a identidade como efeito de sentido produzido pela e na linguagem?3 O olhar que teremos sobre uma imagem, uma pessoa ou um objeto está ligado à nossa cultura, isto é, em termos simples, ao conjunto de conhecimentos anteriores que temos para identificar a pessoa ou o objeto quando olhamos para ele. Portanto, a atribuição da identidade está ligada à cultura de cada indivíduo. Essa cultura permite- lhe construir uma identidade, isto é, montar uma mensagem dizendo “este sou eu” para as outras pessoas, e, ao mesmo tempo, ler as outras pessoas, decodificar as mensagens que elas enviam em termos de identidade. O conhecimento transformado em relações de comunicação parece ser o início e o fim do longo trabalho de construção da identidade. Daí que as relações de identidade estão ligadas ao estudo da Comunicação. Isso se relaciona com uma premissa teórica e metodológica. O ponto de partida teórico, neste livro, entende a comunicação como um elemento central na articulação das relações sociais. Autores de várias áreas e origens procuram sublinhar o aspecto comunicacional das ações humanas; para citar apenas alguns, valeria mencionar, no campo da comunicação, pesquisadores diferentes como Niklas Luhmann e Jürgen Habermas. E, no entanto, talvez uma definição venha do campo da educação, com Paulo Freire: Sem a relação comunicativa entre os sujeitos cognoscentes em torno do objeto cognoscível, desapareceria o ato cognoscitivo (…) O mundo humano é, desta forma, um mundo de comunicação.4 Ou, em outra modalidade, da literatura de Paulo Leminski: 9 Dizer é fazer. Linguagem é trabalho. Há, hoje, toda uma linhagem na linguística moderna tendendo a incluir a economia, a produção e a circulação de bens como um momento da comunicação. (…) A atividade humana básica, fundamental, essencial, é comunicar, manter e curtir a coesão social.5 2 DAVIS, J. e GANDY, O. “Racial Identity and Media Orientation”. Journal of Black Studies, vol. 29, n. 3 (jan., 1999), pp. 367-397. 3 GREGOLIN, M. “Identidade: objeto ainda não identificado?”. Estudos da Língua(gem), vol. 6, n. 1, 2008. 4 FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? 10ª Ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 5 LEMINSKI, P. “Sem eu, sem tu, nem ele”. Ensaios e Anseios Crípticos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997, p. 74. 10 2. MÍDIA E IDENTIDADE Há um outro motivo para vincular identidade e comunicação. Em uma sociedade articulada com a mídia, a construção da identidade passa pela relação entre as pessoas e os meios de comunicação, em diversos graus de articulação entre eles. Como explica John B. Thompson, no novo mundo da visibilidade mediada, tornar-se visível é mais do que uma decisão da vontade.6 As identidades contemporâneas passam pela mídia, se articulam com as pessoas e se transformam em novos modelos de compreensão. A ideia, aqui, é mesmo de articulação como um processo de mão dupla, uma dialética entre o poder dos meios de comunicação em contraste com as possibilidades de resistência dos indivíduos, dos grupos e das comunidades, não apenas recebendo as mensagens da mídia e articulando-as em seu universo social, mas também produzindo sua própria comunicação, em qualquer esfera. Na explicação de Thomas Fitzgerald, mais e mais pessoas de diferentes situações culturais e sociais dividem uma cultura abrangente, mediada pela comunicação. Ao mesmo tempo, há uma forte tendência de vários grupos em insistir em suas diferenças, ao menos simbólicas.7 Nesse sentido, lembra Raymond Williams, “Comunicação” reforça o sentido da comunidade as duas palavras vêm da mesma raiz latina, communio e, por tabela, da identidade.8 Afinal, parte da identidade se constrói nos vínculos de grupo, e a comunidade de recepção de um programa de tv, por exemplo, é uma maneira de pensar a identidade os encontros de fãs de uma série de tv, por exemplo, ou o festival AnimeFriends, que reúne em São Paulo fãs de desenhos animados japoneses, sugerem que a mídia tem se tornado um elemento dos vínculos de identidade. O caso da música forneceria outros dados semelhantes sobre a construção de representações a partir da mídia. Simon Frith, por exemplo, mostra como o rock é um elemento constitutivo das identidades não só juvenis, mas de pelo menos duas gerações.9 John Street, um dos maiores especialistas no assunto, discute em vários trabalhos como as identidades construídas a partir da cultura da mídia chegam a influenciar diretamente o comportamento político dos eleitores: se identificar com o rock’n’roll, por exemplo, não é apenas manifestar uma preferência estética, mas também definir pontos de vista políticos e um olhar específico para o mundo.10 Fazer parte de uma tribo urbana, ser gótico, punk ou nerd, por exemplo, também em alguma medida é estar ligado a um circuito de consumo, leitura no sentido amplo do termo, articulação e produção de representações no qual a mídia, em algum momento, está inserida. Se ter uma identidade é também reconhecer as fronteiras dos grupos nos quais se está inserido, é possível notar que esse “fazer parte” significa, no cotidiano, gostar desta ou daquela roupa, ouvir um ou outro tipo de música, ler alguns livros e não outros. Daí volta a pergunta do livro, não “Quem é você?”, mas “Quem você pensa que é?”, ou seja, como foi que, a partir de inúmeros fatores, escolhas, critérios mais ou menos inconscientes, crises e decisões diversas, você aprendeu que você é você, aprendeu a reconhecer a si mesmo e aos outros, soube quais são os critérios mais válidos para se identificar; e isso foi aprendido na relação de comunicação com os outros. 11 Você se construiu, mas nem sempre teve consciência disso. Aliás, é bem provável que, nos momentos em que você percebeu, tenha entrado no que se chama de“crise”. Há um eco do que Marx afirma em O Dezoito Brumário, escrito em 1859: “os homens fazem sua própria história, mas não têm consciência disso”.11 A sua história pessoal, a partir da qual você encontra elementos para dizer quem é você, também nem sempre é consciente. E o resultado dessa dialética entre escolha e acaso, determinação e liberdade, comunidade e meios de comunicação, é uma entidade singular e paradoxal. Um Eu, um Você. Essa é uma das premissas que orienta este livro. A outra foi uma situação prática. 6 THOMPSON, J. B. “The new visibility”. Theory, Culture and Society. 22(6), 2005, p. 31. 7 FITZGERALD, T. “My culture made me do it: Media, identity and the politics of recognition”.International Journal of Cultural Policy, 6:1,69 – 90, 1999. 8 WILLIAMS, R. Keywords. Nova York: Fontana, 2001, p. 74. 9 FRITH, S. “Rock and politics of memory”. Social text, 9/10, Verão, 1984. 10 STREET, J. “Rock, pop and politics”. In: FRITH, S. The Cambridge Companion to Pop & Rock. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 243; Id. Politics and Popular Culture. Philadelphia: Temple, 1997; Id. Mass media, politics and democracy. Londres: Palgrave, 2001. 11 MARX, K. O Dezoito Brumário. São Paulo: Centauro, 2003. 12 3. AS QUESTÕES NA ORIGEM DO TRABALHO A introdução ou o prefácio é talvez o lugar no qual se pode dizer algo sobre a história do livro. A escrita tem várias motivações, e, no caso deste texto, o ponto inicial se refletiu na maneira como o livro foi organizado, na divisão dos capítulos e na escolha dos temas que seriam trabalhados dentro de “comunicação e identidade”. De certa maneira, este livro teve origem em um descentramento, um deslocamento de identidade. (Lamento ter de usar o “eu” nos próximos parágrafos. Mas seria estranho negar a existência de um autor. Também não será usada a terceira pessoa “o autor deste livro é...” porque não posso ser ele quando tenho dificuldade suficiente em ser eu). No ano de 2008, por conta de uma simpática bolsa de estudos, fui pesquisador na Universidade de East Anglia, em Norwich, leste da Inglaterra. Algumas intermitências da identidade vieram à tona subitamente durante um diálogo com um dos professores. Durante um café aliás, um chá no restaurante da universidade, ele apontou para um detalhe em um texto que eu tinha entregue dias antes: “Acho que você deveria rever esta afirmação”, disse. “Qual?” Ele mostrou a frase: “a televisão brasileira é uma das maiores produtoras de ficção do Ocidente”. Argumentei que a produção de telenovelas era imensa. “Não”, disse ele, “isso está correto. É que o Brasil não fica no Ocidente”. “Como assim?” “O Brasil fica no Sul”. Mais do que suas palavras, suas atitudes posteriores mostraram que ele não tinha dito isso com maldade nenhuma. No entanto, o diálogo foi suficiente para dar início a uma série de reflexões a respeito da questão. Várias ideias sólidas e estruturadas começaram a ser questionadas de uma maneira viva, próxima. Durante anos entendi que o Brasil ficava a leste de Greenwich, portanto no Ocidente. E o Ocidente incluía o Norte e o Sul. Num instante, vi que para ele um divertido e simpático descendente de irlandeses, por sinal “Ocidente” não era um conceito geográfico, mas político. Incluía a União Europeia e os Estados Unidos. O Brasil, geograficamente no Ocidente, ficava politicamente no Sul. Isso permitiu também ver, na prática, alguns dos seus critérios de compreensão da realidade. Determinar uma identidade está ligada à maneira como se explica o mundo, aos critérios que cada pessoa usa para definir as situações e as pessoas, isto é, às narrativas que se constrói a respeito da realidade. Essas narrativas transitam por vários territórios disciplinares dentro da Filosofia e das Ciências Humanas, alcançando os espaços da História, da Sociologia, da Antropologia e da Filosofia. E, por se tratar de uma narrativa, certamente os domínios dos estudos de comunicação. Outros acontecimentos envolvendo questões relativas à identidade se sucederam nos meses seguintes, despertando outros questionamentos e buscas por respostas. Ter amigos e colegas de vários lugares do mundo ajuda a desestabilizar relações de identidade, estereótipos e considerações a respeito não só de quem é você, mas também de quem você acha que são os outros. A convivência desmonta estereótipos; em outras palavras, estruturas de reconhecimento imediato que nós criamos a partir de uma informação, geralmente acentuada de maneira unilateral. 13 A oportunidade de passar por algumas dessas situações é instrutiva, especialmente quando se está em uma cidade no interior da Inglaterra há pouco mais de um mês, como na época em que aconteceu esse diálogo, ponto de partida para este texto. A necessidade de entender essa e outras situações levou à busca de conceitos e teorias para explicar o que estava acontecendo. Na procura por ideias para entender essas relações, apareceu a perspectiva de se escrever um texto apresentando algumas das principais teorias em circulação que permitam pensar a identidade desde a comunicação, voltado para um público de estudantes e professores de Comunicação, Filosofia e Ciências Sociais, mas também a qualquer pessoa que se debruce na pergunta simples e complexa do título – quem você pensa que é? Essa escolha de certo modo também mostrou os parâmetros da escrita do livro: a linguagem procura evitar o acadêmico tendo em vista um público de iniciantes no tema, utilizando exemplos do cotidiano e da mídia para ilustrar os conceitos e propor situações concretas de análise sem pretensão, exceto apresentar caminhos para se aprofundar no assunto. As questões de que este livro trata foram colocadas tanto pela leitura quanto pela vida cotidiana; respostas eram obtidas a partir de outras leituras, diálogos e vivências, que por sua vez levavam a outros questionamentos. À medida que as leituras prosseguiam, a realidade parecia um pouco mais transparente. Leituras e experiências cotidianas complementavam-se mutuamente, em um diálogo que lembrava um movimento em espiral: os acontecimentos interrogavam as teorias e, por sua vez, as leituras permitiam compreender um pouco melhor os fatos. Este livro, de certa maneira, é um inventário dessas leituras na medida em que elas evidentemente não se aplicam apenas a um caso singular, talvez possam servir para delinear algumas questões plurais de identidade. Aos capítulos iniciais, escritos em Norwich, foram acrescentados estudos de caso que dessem uma dimensão mais prática ao trabalho. Os capítulos prontos tiravam seus exemplos de livros, filmes, histórias em quadrinhos e programas de televisão, mas era necessário, nos novos capítulos de pesquisa aplicada, fechar o foco em uma análise mais centrada digamos, “acadêmica” de produtos da mídia. Como resultado, cada uma das partes alterna discussões teóricas ilustradas com exemplos da mídia, complementados por uma pesquisa de caráter mais empírico. Vale lembrar que os exemplos tirados do cinema, da televisão e da literatura são usados apenas para ilustrar os conceitos expostos; não existe a pretensão de uma análise. Trechos de livros, citações de filmes e programas de televisão aparecem como exemplos, não como objeto de pesquisa. Alguns dos exemplos, baseados em situações cotidianas, foram extraídos de uma espécie de “diário de campo” mantido durante a estadia em Norwich. Na época de sua escrita, era um registro das situações de estranhamento e das novidades, e aos poucos foi tomando a forma de uma escrita na medida em que o espaço desconhecido foi se tornando cotidiano, e o “outro” tornou-se “próprio”. Não existe aqui a pretensão de originalidade. Ao contrário, buscou-se apresentar ideias, teorias e conceitos sobre identidade a partir de situações concretas, usando para compreendê-las o pensamento de vários autores que já dedicaram esforço e inteligência à questão e, quando necessário, algum exemplo da mídia ou da literatura. 14 Isso explica também a intersecção de áreas existente no livro. A palavra é “apresentar”, não “discutir”ou “interpretar”. Isso demandaria trabalhos específicos sobre cada tema. Nesse aspecto, o estudo da Comunicação parece levar à implosão das fronteiras disciplinares, um trânsito pelos diversos territórios do saber, sem necessariamente se fixar em nenhum deles, mas usando-os como formas de interrogar um objeto múltiplo. Não se trata da pretensão de dominar um amplo repertório de conhecimentos teóricos, mas ver, em vários autores e escolas, o que eles têm a dizer sobre o tema como lembra Judith Butler, olhar a questão com “múltiplas lentes”, e mesmo assim não seria possível ver tudo.12 Nesse sentido, em termos formais, este livro apresenta-se mais como um ensaio do que como tese. A ideia é agregar de acordo com a necessidade de compreensão e clareza do objeto – com os cuidados necessários e sem outra pretensão além de esclarecer a pergunta do livro. A gama de assuntos deste livro é despretensiosamente limitada. Ao longo da escrita, muitos temas foram necessariamente deixados de lado seria possível escrever um livro sobre cada capítulo. Portanto, aqui são apresentadas ideias, ilustradas por exemplos da mídia e da vida cotidiana, para compreender algumas intersecções entre comunicação e identidade. Trechos do livro, em versões substancialmente diferentes, foram divulgados nas revistas Famecos, História, PSI Papers, Comunicação & Sociedade e Comunicação & Política, além de apresentações em seminários e aulas na Cásper Líbero, na PUC/SP, Fapcom e na Universidade de East Anglia. O livro é dividido em três partes. Na primeira, são apresentadas algumas questões genéricas sobre a construção da identidade na comunicação. Em seguida, na parte II, é questionado o que significa “construir” uma identidade, e como a formação de identidades é ligada à política, a partir da relação entre culturas e de etnias, gênero e faixas etárias. A parte III volta o foco para o indivíduo diante das mídias, passando pela cibercultura, até o esboço de uma neuro-história das relações com a mídia. 12 BUTLER, J. Gender trouble. Londres: Routledge, 2005. 15 4. ALGUNS AGRADECIMENTOS Nos caminhos desta escrita, o percurso foi pontuado por diálogos com professores, amigos, alunos e colegas, distantes no tempo e no espaço. Daí o tamanho da lista de agradecimentos. Se, como diz Max Scheler,13 o conhecimento é do Ser em relação, é possível intuir que essa relação não é apenas com livros e pesquisas, mas também e sobretudo com pessoas. Aos colegas da Cásper Líbero, PUC, Cantareira, Faap e Unesp. Citá-los nominalmente poderia levar a omissões, e, diante do risco de ser injusto com alguém, melhor dizer a mesma palavra: obrigado. Ainda na trajetória acadêmica, a quem dirigiu momentos importantes: Clóvis de Barros Filho, pela presença decisiva em caminhos pessoais e profissionais ao longo de mais de uma década; Beatriz Muniz de Souza, orientadora e incentivadora no mestrado e doutorado, que indicou a rota com rigor e dedicação; e a Luiz Eduardo W. Wanderley, orientador fundamental nas etapas finais do doutorado. Na Universidade de East Anglia, vale um agradecimento especial a todos os que, mesmo sem saber, ajudaram na criação deste livro. Aos professores John Street, Lee Marsden, supervisores de estudo, pelo incentivo em todas as etapas de pesquisa; John Greenaway, diretor de pesquisa, pela ajuda em momentos decisivos; Sanna Inthorn, por várias conversas sobre política, mídia, estudos culturais e a Baviera; Heather Savigny, Anna Magyar, Anna Grant e Nicola Pratt, pela acolhida acadêmica e pelo diálogo. Aos amigos Salman Karim, Ratnaria Wahid, Vanessa Buth e Nick Wright, pelos agradáveis momentos de diálogo nos corredores, e ainda mais agradáveis no pub da Universidade. Ao padre John Shannon, da pastoral católica universitária, e seu braço- direito, professora Marion Houssart, e ao sempre disposto pessoal da catedral de St John; aos reverendos Neil Walker, da Igreja Batista na simpática comunidade de Foulsham, e Darren Thorton, da Igreja Anglicana e da acolhedora comunidade de St Gilles on the Hill, pelas lições de compreensão e respeito à diferença. E pelos chás com biscoitos nos intervalos da escrita, porque ninguém é de ferro. Em Norwich, ao professor Peter Ward, pelas lições gratuitas de arquitetura e história in loco na cidade. A Rosamunde Woods, administradora do St. Gregory Pottergate Centre for the Arts, onde mantém livros e instrumentos musicais de uso gratuito, incluindo piano e um órgão de tubos. A George Taylor, da barraca George Spud’s, e a Tony e Ellen Osbourne, da Tony Burgers, pela excelente comida no mercado da cidade, acessível para estudantes bolsistas. Aos nossos vizinhos William e Glauci Serafim, que tornaram a estadia lá ainda mais agradável. Thanks to you all! Aos alunos, ex-alunos e amigos, pelos diálogos, ideias e projetos, compartilhados em reuniões formais, cafés, pizzas, e qualquer lugar onde foi possível conversar sobre comunicação, mídia e identidade. Esse livro, como os outros, é deles, para eles. Questões sobre vida, universo e tudo o mais vêm sendo debatidas com os professores Ricardo Senise (sobre música e ensino superior), Renata de Albuquerque (literatura) e Fábio Camarneiro (cinema), além dos jornalistas Daniel Barembein (política), Thaís Arantes (política) e Giuliana Bastos (gastronomia e educação infantil). Aos meus pais, Antonio Carlos e Vera Lúcia, pelo apoio logístico lá e aqui. E a Anna Carolina Fagundes Martino, pela leitura, ideias e comentários ao 16 manuscrito. Este é um texto em trânsito. Iniciado em maio de 2008 em Norwich, na Inglaterra, complementado em São Paulo no início de 2009, quase por acaso concluído na biblioteca central de Norwich um ano depois, corrigido no litoral paulista, revisado na capital, retocado em Monte Alegre do Sul. Um texto descentrado, no qual margem e centro trocam de lugar até se dissolverem na tentativa de delinear algo além dessa oposição, na perspectiva de compreender as situações. Norwich, São Paulo 2008 / 2009 / 2010 13 SCHELER, M. Visão filosófica do mundo. São Paulo: Perspectiva, 1993. 17 PARTE I A COMUNICAÇÃO E AS NARRATIVAS DE IDENTIDADE 18 E Muito do que sabemos, ou do que achamos que sabemos, nós nunca experimentamos pessoalmente. Nós vivemos em um mundo construído por narrativas (stories). As narrativas nos socializam nos papéis de gênero, idade, vocação e estilo de vida, oferecem modelos de conformidade ou alvos para rebelião. Elas tecem a rede sem linhas do nosso ambiente cultural. No passado, nossas narrativas costumavam ser criadas de maneira artesanal, nas famílias, inspiradas nas comunidades. Atualmente elas são produzidas em massa, orientadas politicamente, resultados de um complexo processo de criação e divulgação que conhecemos como meios de comunicação.1 ssa longa citação de Geoger Gerbner, quase uma epígrafe para abrir o livro, foi uma escolha porque revela dois problemas que, de alguma maneira, delineiam esta primeira parte: pensar a identidade a partir da comunicação significa, de um lado, pensar como são construídas as narrativas de identidade e, em seguida, como essas narrativas são trabalhadas nos meios de comunicação. O objetivo desta primeira parte é explorar as relações entre identidade e comunicação. A ideia principal é a de que a identidade de alguém, de um grupo ou mesmo de um povo passam por relações de comunicação estabelecidas interna e externamente, a partir das quais são criados e disseminados as narrativas e discursos que permitem às pessoas se reconhecerem como parte de alguma coisa, como “iguais” a determinado grupo e “diferente” de outros. Nesta primeira parte, a ideia de “comunicação” será tratada em sentido amplo, como a interação cultural existente entre seres humanos, uma interação ligada diretamente a mas não necessariamente determinada por condições sociais, políticas e econômicas nas quais ela acontece. Dessa maneira, o lugar central da comunicação nesta análise não deixa de lado sua vinculação direta com a sociedade. A autonomia é, no máximo, relativa. Para encerrar comoutra citação, agora de Keith Jenkins: o mundo ou o passado nos chegam sempre como narrativa e não podemos sair dessas narrativas para verificar se correspondem ao mundo ou ao passado reais, pois elas constituem a “realidade”.2 1 GERBNER, G. “The stories we tell”. Peace Review, 11:1, 9-15, 1999. 2 JENKINS, K. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2007, p. 13. 19 O 1. A INVENÇÃO DO EU que é uma pessoa? A pergunta não é despropositada como parece. Ao contrário, sob várias formas, reaparece de maneira mais ou menos aberta na Filosofia e nas Ciências Humanas, atraindo a atenção de variados pensadores. A rigor, a ideia de “pessoa", em seu sentido moderno, tem uns sessenta anos. Apenas a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela ONU em 1948, o conceito de indivíduo como um ser livre, pleno, com direitos e deveres passou a valer. Ao menos em teoria. A concepção de pessoa é um dos polos em torno do qual gira o conceito de identidade. A maneira como se entende os outros seres humanos é um elemento crucial para se definir a própria identidade, bem como a dos demais. A noção de que todas as pessoas são iguais, por exemplo, é decorrente da Declaração de 1948, e mesmo assim, na prática, há incontáveis diferenças. No entanto, em várias épocas e sociedades, essa ideia de “igualdade” pareceria absurda.1 Até um passado recente, e a data seria incerta, indivíduos eram oficialmente desiguais, o poder se legitimando sobre a crença de que algumas pessoas eram melhores dos que outras por direito de nascimento ou, em alguns poucos casos, adquirido. A sociedade de castas, na Índia, é um exemplo: as castas eram estratos da sociedade designados para funções específicas a casta dos mercadores, dos camponeses, dos sacerdotes, dos governantes e não havia mobilidade. O nascimento indicava a casta onde o indivíduo deveria viver, e a desigualdade entre elas era entendida como algo natural. As sociedades escravocratas, desde a Antiguidade, se fundavam no princípio de que existiam pelo menos dois tipos de indivíduos, os “homens livres” e os “escravos". (Ninguém perguntou a respeito da noção de “mulheres livres”.) Geralmente prisioneiro de guerra, o escravo era transformado em coisa, mercadoria com preço e função definida. Mesmo a Grécia antiga, responsável por alguns dos monumentos do pensamento humano, não considerava os seres humanos iguais. Da mesma maneira, a noção de um “direito divino” dos reis esteve presente no imaginário ocidental durante séculos de certo modo, apenas a Revolução Francesa colocou um fim a essa ideia. A questão “O que é uma pessoa?", lembra Max Scheler, teve várias respostas conforme a época e o lugar.2 De certa maneira, a estrutura das relações sociais e os parâmetros da identidade decorrem da maneira como se responde a essa pergunta. Desde o início da Filosofia, a questão a respeito do ser humano preocupou os pensadores, e praticamente cada sistema filosófico importante criou sua própria 20 concepção de humanidade ao redor da qual desenvolveu alguns de seus conceitos. Diz uma história, provavelmente apócrifa, que Platão, ao buscar uma explicação, definiu o homem como um “bípede implume”, o que fez Diógenes, o Cínico, procurar um galo depenado e apresentá-lo a Platão dizendo “eis seu homem” (ele não se chamava Diógenes, o Cínico, à toa). Mais complexa, e de certa maneira mais influente, foi a definição de Aristóteles. Ele procurou definir o ser humano a partir de sua semelhança geral com os outros seres e sua diferença específica. Dessa maneira, não havia nada fisicamente diferente entre o ser humano e os outros animais, exceto pela capacidade de autorreflexão do Ser, inexistente nos outros. Assim, embora a humanidade compartilhe as características plásticas e mecânicas com a maior parte dos outros seres, dispõe de um elemento que a distingue, a capacidade de organizar pensamentos e lidar com símbolos. Aristóteles conclui que a única diferença entre o homem e os outros animais é a capacidade da razão logos, em grego que permite estruturar pensamentos para além da simples sensação física, estabelecendo relações entre os dados dos sentidos e estruturando sua própria visão de mundo a partir daí o homem é um animal racional. Ao lado dessa concepção filosófica grega, a tradição judaico-cristã apresenta outro conceito de ser humano como o resultado de uma criação divina, esculpida à imagem e semelhança de Deus. A justaposição desses dois conceitos de ser humano, como animal racional e como criatura, permite notar algumas diferenças mais evidentes. Enquanto a fórmula aristotélica define a identidade a partir da lógica de uma estrutura cognitiva, a faculdade de conhecer, a concepção judaico-cristã oferece uma formulação narrativa. Não é o caso aqui de discutir essas definições, mas mostrar que o que se entende por “ser humano” é um ponto de partida para se compreender quem se é um passado, portanto. Não por acaso, em várias culturas a identidade do povo é construída sobre mitos de origem. 1 HUNT, L. A invenção dos duetos humanos. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. 2 SCHELER, M. Visão filosófica do mundo. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 73-99. 21 1. DESCONSTRUÇÃO E IDENTIDADE A questão sobre identidade é, ao mesmo tempo, reflexiva e autorreflexiva: as pessoas se definem em relação a si mesmas, mas também em relação aos outros, aos grupos com quem convivem, às situações políticas, sociais e econômicas nas quais se vive. A oscilação entre liberdade e contingência é uma das questões principais ligadas à identidade. Como, diante de uma situação contingente, é possível encontrar uma identidade? De que maneira há espaço para a construção de uma identidade quando se pensa nos limites sociais criados por questões de local, gênero e etnia? Invertendo a questão, como esses fatores estão ligados à formação da identidade do ponto de vista psicológico a mente em relação consigo mesma e com a realidade ao seu redor? Finalmente, se é possível perguntar depois de seis mil palavras, o que é identidade? Nos limites deste livro, é possível usar algumas definições de identidade que sublinhem a questão da representação e da narrativa. Na definição inicial de Lee Marsden, por exemplo, identidade é parcialmente um produto de como as pessoas se veem, tanto em seu país quanto no exterior, em oposição a um “outro” socialmente construído, que se transforma conforme o tempo e as circunstâncias. Ideias e identidades se reforçam mutuamente: aquilo que se “é” é influenciado pelo que se “pensa que é” realidade e representação se misturam parcialmente no espaço dos discursos.3 Ou, como resumem Nicholas Abercrombie e Brian Longhurst, a identidade é “o sentido de si-mesmo e o processo de definição desse sentido”.4 E vale lembrar a advertência de Zilá Bernd: A busca da identidade deve ser vista como processo, em permanente movimento de deslocamento, como travessia, como uma formação descontínua que se constrói em sucessivos processos de desterritorialização e reterritorialização.5 Ou, ainda, a perspectiva de Manuel Castells, quando trata do “processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado”.6 Como os problemas de identidade na vida diária não são sempre claros, a questão é torná-los evidentes, mostrar os caminhos de construção da identidade, suas variações e modalidades, indicando os critérios, condições históricas, movimentos e contradições responsáveis por definir as relações identidade/alteridade ao longo do tempo. Esse movimento de trazer para o centro o que estava na margem é tanto mais importante quando se passa a notar que: margem/centro, identidade/alteridade, dentro/fora são em geral oposições construídas que não dizem nada quando interrogadas diretamente ou, mais ainda, desmontadas para se mostrar como esses sentidos são construídos. Esse movimento, chamado de “desconstrução", foi proposto ainda nos anos 1960 pelo filósofo francêsJacques Derrida e levado a cabo por críticos e pesquisadores ligados ao que se convencionou chamar de “pós-estruturalismo". A atividade de desconstrução não é simplesmente uma forma de análise, mas se delineia a partir da “desnaturalização” das questões tomadas como “naturais”, sobretudo na medida em que estão ligadas à linguagem, ao discurso e à escrita, como mostra Derrida em várias 22 de suas obras, em particular na Gramatologia, em Margens. Da filosofia e em Posições, mas também em um documentário sobre ele, Derrida (EUA, 2002), dirigido por Kirby Dick e Amy Kofman.7 Questionar faz parte da desconstrução, mas isso implica também desconstruir a própria pergunta em busca de um sentido mesmo tendo consciência de que esse sentido é fluido, como foi visto até agora a respeito da identidade. Em termos lógicos, a categoria “identidade” se liga diretamente a outra, responsável por estabelecer suas fronteiras e limites: a diferença. Só é possível estabelecer relações de identidade a partir de um jogo formal entre o igual e o diferente. Os elementos iguais, responsáveis por constituir uma definição, são contrastados o tempo todo com os diferentes; isso não quer dizer que a diferença também não constitua uma definição. No entanto, é uma definição negativa, explicando o que não se é. Os agrupamentos humanos, as comunidades e mesmo os indivíduos parecem se definir em um movimento constante entre identidade e diferença: os aspectos iguais, compartilhados pelas pessoas de uma comunidade, criam laços, estabelecem a identidade do conjunto nos interesses, gostos, ideias, características biológicas ou culturais presentes em todos os indivíduos os iguais, nesse aspecto. Ao contrário, quem não divide essas características, mesmo provido de outras tão boas quanto, é o “diferente”. Na dinâmica das relações humanas, explica Erwin Goffman, o “igual” e o “diferente” são relações contextuais: conforme o lugar e o grupo de pessoas, um aspecto comum a todos é ressaltado como o critério para separar o “igual” do “diferente”; em outros lugares, isso certamente não se aplicaria.8 Esse raciocínio se liga à aplicação de uma lógica da identidade no cotidiano. Seres humanos são entidades complexas que nem sempre podem ser definidas por um único aspecto; ao contrário, sua complexidade reside também em seus paradoxos e contradições. Um indíviduo x pode ser corintiano, protestante e de direita; seu vizinho y pode ser um católico palmeirense de esquerda. Cada uma dessas preferências está ligada a uma categoria religião, esporte, política que é contraditória internamente mas não nas relações umas com as outras. Para o padre ou o pastor, geralmente não importa se a pessoa é corintiana ou palmeirense. Na final de um campeonato, corintianos protestantes de esquerda e corintianos católicos de direita podem celebrar ou lamentar o resultado do jogo. Os discursos de identidade, em geral, também são discursos de diferença, estabelecendo dentro de seus critérios o que é igual e o que é estranho. Essa definição, aparentemente simples, pode ter consequências graves quando levada a extremos, momentos em que a definição da diferença dá lugar à classificação do diferente como negativo. As fronteiras da identidade estão em permanente mudança, às vezes de tal maneira complexas que nem sempre elas são vistas como “mudanças” a consciência de si mesmo não é fácil de ser alcançada. De acordo com alguns pensadores, é impossível. Mudanças e transformações, por outro lado, estão ligadas a continuidades e permanências. “Identificações culturais no contexto de interação multicultural são ambíguas e variadas, enquadrando em si questões de diferença, vínculos, e certa tensão no meio”, explica Henry De Korne.9 Você deve ser hoje muito diferente do que era dez anos atrás, mas, ao mesmo 23 tempo, algumas de suas características são as mesmas. Não existe imagem para definir essa dialética complexa entre mudança e resistência, entre história e atualidade, que define o ser humano. Não é possível gramaticalmente encontrar uma forma verbal que explique essa ligação de tempo entre passado e futuro sem destruir a língua portuguesa, mas a identidade não se define pelo que você é, ou por como se está, mas com “você sendo”. A identidade se configura como uma estrutura dinâmica, relacionando-se dialeticamente com o cotidiano no sentido paradoxal de se mantê-la em plena transformação. Parte de nossa natureza, a identidade se apresenta como perfeitamente óbvia e exata a ilusão da identidade, de que somos alguma coisa estática, se dissipa quando confrontada com situações onde essa identidade é desestruturada por algum elemento externo que a transforma. “Estamos, o tempo todo, submetidos a movimentos de interpretação/reinterpretação que constituem discursivamente as identidades”, explica Gregolin.10 A figura, nesse caso, pode ser a de uma dupla espiral: o fluxo contínuo da transformação, representando o relacionamento entre alguém que se torna e o mundo que igualmente se transforma. Na dupla mudança, a identidade tenta se articular como um ponto fixo em um elemento líquido de transformação. Kath Woodward, em seu livro Understanding Identity, propõe um quadro para se pensar a identidade a partir de vários pontos de vista. A ideia é mostrar a pluralidade de elementos vinculados à questão da identidade:11 • Identidades criam laços entre o pessoal e o social, o “eu” e a sociedade, o psíquico e o social. • Identidade é relacional, sendo construída através de relações de diferença, como “nós” e “eles”. • Identidade também tem de acomodar e lidar com diferenças. • A formação e o estabelecimento da identidade envolvem tanto estabelecer quanto ultrapassar fronteiras; há uma constante tentativa de estabelecer fronteiras que serão impossíveis de se manter. • Identidade é historicamente específica: pode ser vista como algo fluido, contingente e que se transforma no tempo. • Incertezas sobre identidade podem levar as pessoas a se voltarem para “verdades eternas” em busca de segurança e estabilidade. • Envolve identificação, e assim o exercício de alguma atitude da parte de quem pretende se identificar com uma posição específica. • Identidades são marcadas simbolicamente e são reproduzidas através de sistemas de representação. • Tem bases materiais, sociais, econômicas e políticas, bem como aquelas ligadas ao corpo. Os problemas relativos à identidade geralmente vêm à tona em momentos de crise, quando as certezas a respeito de quem se é são questionadas ou alteradas. Em alguns casos extremos, são completamente suprimidas e esse é um ponto alto da tradição 24 cultural do ocidente, da literatura ao cinema. Os deslocamentos da identidade, de um ponto fixo e seguro, para uma condição intermitente, ambígua e incerta, estão presentes em grande parte da tradição literária, seja no sentido de personagens que buscam saber quem são ou em histórias que mostram a construção de uma identidade ou várias combinações das duas. No primeiro caso é possível citar vários exemplos. A tragédia de Édipo em Édipo Rei, de Sófocles, é descobrir quem é. Em Antígona, do mesmo autor, a identidade da protagonista é controlada pelo Estado, representado pelo tirano Creonte. A rebelião de Antígona é também uma afirmação de si mesma. Em O Conde de Monte-Cristo, de Dumas, ou em Os Miseráveis, de Victor Hugo, o ocultamento da identidade dos protagonistas é parte fundamental da trama. Finalmente, mudando de mídia, no cinema não faltam personagens em busca de quem são para citar apenas um filme entre dezenas, a trilogia iniciada com Identidade Bourne (Eua, 2005) é um exemplo blockbuster dessa busca. Mas não faltam narrativas nas quais a personagem central igualmente desenvolve sua personalidade durante a história. Em Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, ou mesmo O vermelho e o negro, de Stendhal, os protagonistas vão crescendo e se definindo no decorrer da trama. Para mencionar novamente o cinema, a hexalogia Star Wars (EUA, 1977/2006) permite acompanhar as várias fasesdo desenvolvimento de Anakin Skywalker, passando por sua queda como Darth Vader e a redenção nos minutos finais do último filme. A imensa produção referente aos problemas da identidade colocam sobre a mesa uma questão principal: nem sempre as pessoas sabem quem são. Muitos livros e filmes sobre a personalidade começam justamente a partir da desconstrução das certezas até então sólidas: a personagem vive em seu mundo de segurança até saber/descobrir/ser informada de que tudo não passa de uma ilusão, e na verdade ela é outra pessoa. E então é necessário construir outra vez, muitas vezes do zero, quem se é. 3 MARSDEN, L. “For God’s Sake: civil religion and US Foreing Policy”. Conferência de abertura do I Encontro Internacional do Núcleo de Estudos Religião e Sociedade. São Paulo: PUC-SP, 11 a 13 de novembro de 2009. 4 LONGHURST, B. & ABERCROMBIE, N. “Identity”. Dictionary of Media Studies. Londres: Penguin, 2007, p. 177. 5 BERND, Z. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003, p. 12. 6 CASTELLS, M. O poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 22. 7 DERRIDA, J. La voix et le phenomenon. Paris: PUF, 1967; Id. De la Grammatologie. Paris: PUF, 1967; Id. Positions. Paris: PUF, 1967; Id. Marges. De la philosophie. Paris: PUF, 1972. 8 GOFFMAN, E. The presentation of self in everyday life. Londres: Penguin, 1998. 9 De KORNE et alii. “Familiarising the Stranger: Immigrant Perceptions of Cross-cultural Interaction and Bicultural Identity”. Journal of multilingual and multicultural development, vol. 28, n. 4, 2007. 10 GREGOLIN, M. “Identidade: objeto ainda não identificado?”. Estudos da Língua(gem), vol. 6, n. 1, 2008. 11 WOODWARD, K. Understanding identity. Londres: Arnold, 2007, p. xii. 25 2. OS TEXTOS DA IDENTIDADE A narrativa é uma das principais atividades humanas. O tempo todo, das maneiras mais diversas, estamos reconstruindo a realidade como um discurso. Essa realidade do discurso, isto é, o real transplantado para um outro nível de apropriação cognitiva, é compartilhada pela comunidade de um tempo e um espaço constituindo o tecido narrativo, simbólico e imaginário de um grupo. Ao contar um incidente ocorrido em uma viagem de ônibus, por exemplo, uso o universo simbólico de narrativas anteriores para o estabelecimento de uma comunicação. A capacidade cognitiva é utilizada para compor uma nova textura a partir das linhas presentes no tecido social de maneira a procurar uma adequação o mais próxima possível do real entre o que foi dito e o significado. Zila Bernd, nesse sentido, explica que “a construção da identidade é indissociável da narrativa”.12 No entanto, esse procedimento só é eficiente até certo ponto. Os limites da narrativa estão vinculados, de saída, às possibilidades do narrador de compreender o mundo ao seu redor para transformá-lo em um conjunto de textos um discurso adequado. Nas palavras de Benedito Nunes, em um ensaio sobre Clarice Lispector, o ser humano se configura na linguagem.13 Nenhuma narrativa é total afinal, é impossível a um elemento finito, a narrativa, dar conta de uma realidade infinita. Compreendendo o “texto” em seu sentido original, de “tecido”, a metáfora é ainda mais evidente. Nesse particular, Luiz Costa Lima recorda que estruturas de representação estão ligadas a sistemas de classificação.14 As linhas de acontecimentos responsáveis pela formação de uma textura na narração são limitadas. Narrar também é classificar, definir os espaços de cada agente. Uma narrativa, nesse sentido, não apenas representa a realidade, mas também a coloca dentro de algum tipo de lógica, organizando os fatos, pessoas e acontecimentos dentro de uma narrativa dentro da qual o sentido pode acontecer. Os limites começam na linguagem e na sociedade, passando pela psicologia do narrador e pelas condições históricas de produção do discurso a respeito de qualquer coisa. A narrativa está vinculada a um tempo. Pode superar as barreiras do tempo, mas não pode superar algumas determinações da época em que nasceu. Uma narrativa pode ser imortal, mas não é eterna. O jogo de forças que enquadra os limites de uma narrativa geralmente se constitui a partir de elementos externos à história em si. As narrativas nacionais, políticas, identitárias de uma maneira geral, constituídas na literatura, nas tradições em uma palavra, na cultura, estão diretamente ligadas aos espaços de onde elas provêm. Como nota Mayra Rodrigues Gomes: Em nossas identificações portamos, com orgulho, nossos mitos, nossas identidades sempre imaginadas, nossas representações sempre construídas discursivamente e, às vezes, agimos segundo elas na confirmação, como realidade, daquilo que é simples fabulação.15 No entanto, essas narrativas são construídas segundo vínculos político-sociais e se moldam como tal. A questão da identidade, nos próximos capítulos, leva em conta autores que se propuseram a torná-la evidente em sua obra a partir de alguns pontos de vista que se poderiam chamar de “marginal”, em uma perspectiva binária (“centro/margem”), mas que se esforçam exatamente para desconstruir essa noção e mostrar a existência de problemas de identidade em várias esferas da realidade 26 cotidiana. A partir das oposições binárias para desconstruí-las, é possível trabalhar diferentes aspectos que as pesquisas sobre identidade têm percorrido. É o tema que veremos a seguir. 12 BERND, Z. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003, p. 19. 13 NUNES, B. O drama da linguagem. São Paulo: Ática, 1998, p. 53. 14 LIMA, L. C. Mímesis e modernidade. São Paulo: Graal, 1993, p. 123. 15 GOMES, M. R. Comunicação e Identificação. Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2008, p. 177. 27 E 2. OLHAR, NOMEAR, CONTROLAR ste capítulo começa com duas cenas. No andar térreo do Museu do Louvre, em meados de 2008, um rapaz moreno, de chapéu redondo sem abas e mochila nas costas, parou em um ângulo da parede, perto da loja que vendia lembranças do lugar especialmente reproduções da Mona Lisa em cadernos, lápis, camisetas e outros objetos. Sem se preocupar com a multidão, ele abriu a mochila, tirou um tapete retangular, estendeu-o no chão e, ajoelhado, começou a rezar voltado para Meca. Orando para Alá em um dos espaços sagrados da cultura ocidental. Quem anda por Londres procurando ingleses de olhos claros, pele rosada e cabelos loiros – isto é, o estereótipo britânico provavelmente se surpreende com o que se vê. Pelas ruas, pessoas das mais variadas cores, formatos e tamanhos. Loiros falando idiomas da Europa oriental, especialmente da Polônia e da Eslováquia; homens com turbantes indianos; mulás islâmicos com túnica, barba e chapéu, mulheres de véus, lenços na cabeça e mesmo burcas, túnica longa que deixa apenas os olhos de fora, afro-britânicos vestindo roupas largas e coloridas, com belíssimas estampas. Como eles não correspondem ao estereótipo do inglês, à primeira vista pode-se imaginar que são estrangeiros. De fato, alguns são. No entanto, parte já é a segunda geração de imigrantes. Nasceram em solo britânico, são britânicos – falam inglês como primeiro idioma, vão a escolas inglesas. Têm um duplo vínculo: de um lado, a cultura dos pais e dos avós, vindos de um país distante do qual eles apenas ouvem falar; do outro, a cultura britânica que vivem no cotidiano, com os colegas, na escola, no trabalho. Sua pronúncia do inglês é melhor do que a dos seus pais e não há dificuldades de comunicação. Suas roupas, no entanto, às vezes ainda são ligadas a práticas religiosas ou sociais do país de origem da família. Ao mesmo tempo, ingleses e estrangeiros. Extensão humana de um mundo no qual fluxos culturais e econômicos se diluem a cada instante, essa geração é uma das expressões culturais do que se convencionou chamar de Globalização: eles são uma cultura híbrida. 28 1. A INTENSIFICAÇÃO DO CENTRO O próprio termo Globalização é questionado desde que começou a ser usado, no início dos anos 1970. O meio acadêmico francês, por exemplo, não abre mão de usar “mondialisation”, mundialização, em contrastecom o inglês “globalization”, e é possível de fato discutir se os dois conceitos se referem ao mesmo processo. Há ainda uma questão de origem: a globalização pode ser entendida como um fenômeno novo, decorrente do uso de tecnologias de comunicação que permitem o contato imediato entre pontos distantes do planeta.1 Mas há quem identifique globalização no final da Idade Média as navegações europeias do século 15 teriam sido o primeiro momento “global” ou ainda mais antigamente, entendendo como “globalização” o momento em que a espécie humana tomou conta de todas as regiões do planeta.2 Nas questões culturais e de identidade, foco deste livro, globalização significa que a identidade não é mais definida apenas pelo espaço local, pelas práticas da comunidade imediata, nem mesmo pelo contorno das fronteiras nacionais que definiriam partes comuns do caráter de um agrupamento de pessoas; trata-se de uma identidade global, na qual elementos de várias origens diferentes se aglutinam, se influenciam mutuamente, se definem e redefinem conforme o uso; na globalização, a cultura é desterritorializada na sua produção e recepção, as expressões culturais são retiradas de seu contexto original e reapropriadas de maneira diferente em cada lugar; os significados da cultura são disseminados de forma desigual, ao mesmo tempo em que as apropriações são altamente contextuais.3 Dessa maneira, a globalização atinge diretamente as noções de identidade ao questionar a ideia de “origem”, elemento fundamental para a afirmação de quem se é. Em um mundo globalizado, a origem se torna difusa, híbrida, desterritorializada. Em alguns casos, inexistente ao menos em aparência. Acompanhando os fluxos globais de capital, os circuitos de interação cultural igualmente se tornam mundiais – fenômeno que começou logo após a 1ª Guerra, com Hollywood exportando sua produção, e se consolidou a partir dos anos 1960, quando as tecnologias de comunicação permitiram pela primeira vez interligar o planeta inteiro diante de uma tela a apresentação dos Beatles na televisão tocando “All you need is love”, em 1967, foi transmitida para dezenas de países, e calcula-se que um bilhão de pessoas tenha visto a banda. Essa circulação de ideias e práticas “textos” ou “discursos”, no sentido da produção cultural afeta culturas locais, misturando práticas, valores e percepções de várias partes do mundo, conectando-as em uma rede de sentidos e referências comuns, mas, ao mesmo tempo, colocando em questão a própria existência de elementos “originais” a identidade é construída a partir da intersecção do fluxo global de imagens, em um movimento híbrido de apropriação de significados, articulação de ideias e modos de agir; o local e o global se articulam no nível individual/grupal da apropriação particular de práticas e valores. 1 STEGER, M. Globalization. Oxford: Oxford University Press, 2007. 2 DESFARGES, P. La mondialisation. Paris: PUF, 2006. 3 NORRIS, P. “Global communication and cultural identities”. The International Journal of Press/Politics, 4, 1, 1999. 29 2. DISTRIBUIÇÃO DE SABERES E COMPOSIÇÕES DE PODER O problema não é novo: identidade sempre foi uma questão política. Desde a Roma antiga, e antes até, dizer quem se é depende de vários fatores, nem sempre ligados à vontade individual em alguns casos, não se pode dizer quem você é, mas quem eles deixaram você ser. O problema sempre atraiu a atenção de filósofos e pesquisadores nas várias áreas das ciências humanas preocupados em definir o que é o ser humano como ele chega a ser quem é. Entre outros méritos, esses estudos apontaram no sentido de mostrar que a identidade, sólida, única, na verdade é um agrupamento fragmentado de ideias, noções, práticas e ações específicas, resultado de condições sociais ou psicológicas específicas. Ao mesmo tempo, os acontecimentos do século 20 geraram vários questionamentos sobre identidade. Durante os trezentos anos anteriores, a Europa governou mais de dois terços do mundo em regimes coloniais de diferentes tipos, modelos e tamanhos. E, de repente, a partir do final da Segunda Guerra, esses impérios começaram a se fragmentar. Mas seria possível restaurar uma ordem pré-colonial? E os cidadãos das colônias e ex- colônias? E os milhares de refugiados e exilados de regimes autoritários? Como lidar com as pessoas em trânsito, que não pertencem mais a um país nem a outro? Quem eles podem dizer que são? Finalmente, mesmo dentro de uma sociedade democrática, há seus deslocados e exilados mesmo deixando de lado a questão de classes, a estrutura psicológica de cada pessoa varia ao infinito. Um problema, no entanto, era a maneira como se entendia a identidade das colônias. A visão corrente tinha um centro, a Europa, e uma periferia, o resto do globo, diferente. O diferente era também o dominado, e a associação diferente- dominado prevaleceu mesmo após a dissolução dos impérios coloniais europeus; a ideia de ver o diferente como inferior a ser “educado”, na melhor das hipóteses (“destruído”, na pior), se manteve durante muito tempo e ainda está presente no imaginário e nas práticas cotidianas. A questão vai mais longe. Nas situações de dominação, geralmente há uma justificativa ideológica do dominador, que lhe permite explicar para si mesmo o que acontece e garantir seu sono tranquilo. É previsível que ele aceite essa explicação não só correta, mas também como a única certa. As outras não são “alternativas”, são “erradas”. Que o dominante faça isso é uma rotina do poder. O problema é quando o dominado é levado a crer nas mesmas justificativas do dominante e aceitar, de maneiras diversas, sua condição. A mente de ambos, dominante e dominado, passa a ter a mesma frequência, trabalhar na mesma rotação, e o mundo lhes parece normal. Os dois estruturam a realidade a partir das mesmas noções, e a justificativa de ação do dominante é tacitamente aceita como correta pelo dominado. Nenhum dos dois tem consciência desse processo, que lhes parece absolutamente natural e inevitável. Esse poder de impor uma representação comum do mundo é o que Pierre Bourdieu denomina “poder simbólico", exercido pelo dominante com a cumplicidade inconsciente do dominado.4 4 BOURDIEU, P. Le sens pratique. Paris: Minuit, 1980. 30 3. A INSTITUIÇÃO E A AUTORIDADE DO DISCURSO O poder simbólico está ligado, para Michael Foucault, diretamente à produção dos conhecimentos dentro de uma sociedade, à produção de “discursos”.5 Segundo Catherine Balsey, o discurso pode ser definido como o: domínio do uso da linguagem, um modo particular de dizer (e escrever e pensar). O discurso pressupõe a existência de alguns pressupostos comuns que aparecem nas formulações que o caracterizam.6 O discurso pode também ser definido como o agrupamento de conhecimentos, em suas várias manifestações, a respeito de determinado assunto. O discurso sobre identidade se orientava no sentido de construir um conhecimento no qual o direito de um povo sobre outro era justificado. O discurso colonial, por exemplo, sublinhava a necessidade de a Europa, como centro, levar a civilização para as margens. A ligação entre “diferente” e “dominado” é igualmente fruto de um discurso sobre a identidade. Dizer algo sobre alguém é também definir esse alguém, explica Roland Barthes.7 Quando se fala sobre alguma coisa, as palavras atribuem sentidos, vinculam significados às coisas e enquadram essas coisas em um conjunto de significados, palavras, expressões que se organizam como uma espécie de nuvem ao redor do assunto o discurso. A associação entre o diferente e o dominado, por exemplo, tornou-se uma espécie de modelo de conhecimento um discurso a partir do qual o Ocidente (ou o “Sul”?) entendeu a espécie humana por certo tempo. Há uma ilusão cotidiana referente à igualdade de condições para o exercício da comunicação. Ela é concedida socialmente quando se estabelece uma fronteira simbólica entre os detentores de um conhecimento e quem não o tem. Como explica Jürgen Habermas, “o que torna a razão comunicativa possível é o medium linguístico,através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam”.8 As palavras, portanto, são revestidas de um valor específico, adquirindo uma autoridade pelo simples fato de serem provenientes de alguém investido da legitimidade para falar. Em outros termos, falar é sobretudo um ato de troca simbólica, um jogo no qual os participantes estão sempre em desigualdade de condições para jogar. Seria como chamar, para um jogo de futebol, um time de primeira divisão e um de segunda. Há um desnível permanente. Isso significa, entre outras coisas, que existem diferentes valores atribuídos a cada falante, a cada elemento comunicador. Essa diferença se revela na autoridade do discurso de cada parte e da obediência tácita existente entre eles. O direito a falar, da mesma maneira, está desigualmente distribuído na sociedade. Estamos o tempo todo cercados pelos chamados “discursos legítimos”, isto é, pela expressão das pessoas autorizadas a falar. Não é aqui o lugar para expor uma teoria do discurso, mas algumas considerações são necessárias para a compreensão da ideia do texto. Se a linguagem pode ser entendida também como um conjunto de hábitos, o observador atento pode encontrar uma série de revelações em uma conversa cotidiana.9 Da mesma maneira, há uma origem social denunciada pela linguagem que pode ser utilizada como peça importante no jogo simbólico em uma conversa. A origem do hábito imediatamente posiciona o autor de uma frase em um espaço social 31 particular, podendo ser reconhecido pelos seus interlocutores. A origem da desigualdade linguística entre pessoas com autoridades diferentes fica estabelecida mesmo quando essa origem não está explícita. Essa desigualdade manifesta-se também na dinâmica interna do grupo, nas relações entre as pessoas. A primeira e mais simples forma de relação profissional baseia-se na troca imediata de informações dentre elas, a formalidade de identificação inter pares daqueles que estão ou não no jogo. O estabelecimento de diferenças é um estabelecimento de fronteiras e limites de poder. Nesse sentido, John Fiske afirma que: A sociedade é estruturada em torno de uma complexa matriz de eixos de diferença (classe, gênero, raça, idade e assim por diante), cada uma delas com sua dimensão de poder. Não existe diferença social sem diferença de poder.10 Uma das primeiras formas de relação entre discurso, comunicação e identidade pode ser observada no terreno do que pode haver de mais óbvio: seu nome. 5 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1997; Id. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 6 BALSEY, C. Critical practice. Londres: Metuen, 1993, p. 5. 7 BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 2003. 8 HABERMAS, J. Direito e Democracia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2001, p. 20. 9 BARTHES, R. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 10 FISKE, J. Understanding popular culture. Londres: Routledge, 1990, p. 30. 32 4. O QUE É UM NOME? Um dos aspectos elementares do início de qualquer comunicação é dizer o próprio nome. No entanto, o que significa ter um nome? É um dos primeiros elementos sociais de sua identidade: alguém escolheu seu nome oficial, que representa você perante a sociedade e o Estado. O nome é uma intrincada rede de significações, trama de poderes e saberes derivados do ato de nomear. Como várias questões de identidade, o nome esconde várias linhas de força sob uma aparente obviedade do senso comum. Uma parte dessas questões é tratada por James Scott em Seeing like a State, estudo sobre como, ao longo da História, os Estados nacionais obtiveram um progressivo controle sobre seus povos e territórios tornando-os “visíveis”, isto é, identificando-os de acordo com padrões, modelos, normas e estruturas jurídico-administrativas que permitiram ao Estado moderno, figurativamente, “ver” qualquer lugar. E, ao estabelecer esses critérios de identificação, igualmente impor seu controle sobre espaços, comunidades e indivíduos.11 Scott mostra que, para o Estado, conhecer pessoas e territórios é a maneira de torná- los sujeitos às leis. Tornar alguém ou algum lugar “visível” significa igualmente criar as condições de sua administração. Para isso, é necessário tomar várias iniciativas que podem ser interpretadas como tendo uma natureza comunicacional na medida em que, ao identificar, escreve-se também implicitamente um discurso sobre algo. O estabelecimento de nomes próprios é apenas mais uma dessas iniciativas.12 O nome completo permanente, por exemplo, é uma necessidade das sociedades modernas. Scott contrasta, como exemplo, as pequenas vilas rurais da Idade Média com os complexos urbanos contemporâneos. Na vila, a quantidade de pessoas é relativamente pequena, assim como a taxa de repetição de nomes. Na cidade, ao contrário, o número de pessoas faz com que a identificação por uma única palavra seja insuficiente para dar conta da questão. Na vila, por exemplo, não havia dúvidas a respeito de qual “João” ou “Pedro” era o “João” ou o Pedro. No máximo, em caso de repetição, poderia ser aglutinado um segundo nome, com um vínculo de família ou profissão o “José da Maria” ou o “Antenor do Mercado”. Um coletor de impostos, representação oficial do poder do Estado, não teria dificuldades em encontrar alguém: o nome bastava para torná-los visíveis aos olhos do Estado, identificáveis pela administração. Imagine, ao contrário, o problema do mesmo coletor de impostos em uma cidade com milhares de habitantes. Como, em geral, a quantidade de nomes próprios usados está restrita a limites culturais e históricos, as repetições são inevitáveis. Essa dificuldade de observação as torna opacas para o Estado, e portanto fora de seu alcance. É a partir dessa necessidade que os sobrenomes familiares começam a ser estabelecidos. Antes dessa época, excetuando-se o período romano, no qual os nomes representavam a linhagem da pessoa, ter mais de um nome era uma questão de privilégio e indicava o espaço social no qual a pessoa havia nascido. O fenômeno ao qual Scott se refere é a imposição, por parte dos Estados, de identidades nominais fixas para seus cidadãos. O sobrenome, nesse caso, deixa de ser uma identificação flutuante, válida apenas para uma geração por exemplo, o filho do “João da Venda” poderia ser o “José da Farmácia” sem maiores problemas, e torna-se 33 uma espécie de etiqueta a partir da qual o indivíduo, agrupado em uma comunidade maior, sua família, pode ser visto, identificado e isolado pelo Estado. Ao se perpetuar por séculos, essas referências acabam perdidas. Nem todos da família “Ferreira” têm vocação para a forja, e certamente nem todo mundo de sobrenome “Montes” vive em montanhas, mas o uso cumpre sua tarefa: torna a sociedade mais transparente aos olhos do Estado. O ato de nomear e identificar, para o Estado, não é apenas uma questão de controle sobre os indivíduos, mas também sobre os territórios. Vale lembrar, nesse ponto, que a divisão dos acidentes geográficos e das formações naturais tem muito de arbitrário, e nem sempre os critérios são claros. Mesmo quando o são, é possível questionar quem os criou e qual a utilidade disso daí novamente a questão da comunicação ligada à identidade: a maneira pela qual se comunica determinado espaço também faz ver esse espaço a partir de certa representação.13 Essa representação, é preciso lembrar, apenas tem validade dentro de convenções culturais, sociais e históricas. As diferenças entre um riacho e um rio, ou entre um monte e uma montanha, mesmo obedecendo a critérios geográficos bem delimitados, não deixam de ser criações humanas para a identificação de um lugar. E, nessa atribuição de sentido, há elementos das linhas de força políticas que orientam os discursos. No filme O inglês que subiu a montanha e desceu o monte, de Christopher Mongan (Inglaterra, 1995), essa situação é representada a partir de um problema turístico: no filme, em uma pequena cidade no País de Gales, uma das atrações é uma formação natural, a Montanha Ffynonn. No entanto, porum decreto, estipula-se que, de acordo com os novos critérios de medição, Ffynonn não é mais uma montanha, mas uma colina. Essa alteração tira o encanto do lugar e os moradores se organizam para ter sua montanha de volta. O filme serve como representação da posição do Estado em relação aos espaços e territórios, bem como no que toca aos cidadãos. O nome que consta na carteira de identidade de uma pessoa é apenas uma das várias identificações sonoras que se têm. Esse é o nome oficial, escrito com uma grafia específica em alguns casos, dotado de um número. Foi escolhido na maioria das vezes pelo pai ou pela mãe e provavelmente tem algum significado importante para eles. Ou seja, já nascemos investidos de uma representação: o nome próprio é uma demonstração da importância dada pelos pais ou por quem escolheu ao nome de outra pessoa, a ponto de nomear o próprio filho da mesma maneira. Cria-se, dessa maneira, uma relação entre o indivíduo singular que somos e um outro, detentor anterior do mesmo nome, com o qual se passa a ter um vínculo intertextual. No entanto, ao longo da vida esse nome é modificado, acrescido, transformado, substituído. Na infância pode ganhar um diminutivo, enquanto aos olhos dos amigos pode ser reduzido a uma sílaba como apelido. Isso quando não é totalmente substituído por outro, um apelido nome que, aos olhos dos outros, parece ser mais compatível com as características físicas/ psicológicas de alguém. Para Jane Finch: A ideia de que a mudança de nome é um dado simbólico em um contexto de mudança na narrativa pessoal pode ser interpretada de várias maneiras, nem todas positivas. A mudança no nome da mulher após o casamento, por exemplo, foi vista com desconfiança e crítica por várias vertentes do feminismo, como um símbolo da opressão feminina. Em contraste, há circunstâncias nas quais uma mudança de nome é parte de uma narrativa positiva de mudança pessoal, que rejeita a opressão 34 associada a um nome anterior.14 Ela menciona como exemplo o boxeador Muhammad Ali. Batizado Cassius Clay, nome de seu pai, a alteração foi feita em um momento dramático de redefinição de sua própria identidade, agora como muçulmano. Exemplos semelhantes poderiam ser encontrados em músicos, líderes políticos e artistas. O tratamento em relação ao nome também é um dos elementos vinculados à definição da identidade. Chamar alguém de “você” ou “senhora” é a demonstração de uma representação identitária atribuída pela presunção de determinada distância social – no “você” essa distância é eliminada, enquanto no “senhor” ou “senhora” é mais destacada. A distinção em outras línguas é ainda mais forte: os franceses e os alemães só deixam o “vós” pelo “você” depois de alcançado certo grau de intimidade. (Dizem, por exemplo, que o filósofo alemão Immanuel Kant nunca chegou a tratar seus irmãos por “você”.) Finalmente, no mundo virtual, a escolha de nomes para avatares, contas de e-mail e perfis em sites de relacionamento permitem ao indivíduo algo até então interditado, a montagem de uma própria identificação pelo nome.15 É possível compreender o nome como uma estrutura compartilhada de representação comunicacional usada pelos indivíduos em suas interações cotidianas. E, assim como as pessoas não são as mesmas o tempo todo e em todos os ambientes, também o nome usado serve para identificar o falante em cada narrativa, bem como o agente das ações em cada situação. Nesse sentido, como explica Scott, talvez a melhor resposta quando alguém pergunta seu nome seja “depende”. Um paradoxo, certamente, mas próximo de dar conta das inúmeras situações nas quais a pergunta “quem é você” não pode ser entendida como um simples nome. 11 SCOTT, J. Seeing Like a State. New Haven: Yale University Press, 1998. 12 SCOTT, J. et alii. “The Production of Legal Identities Proper to States: The Case of the Permanent Family Surname”. Comparative Studies in Society and History, vol. 44, n. 1 (jan., 2002), pp. 4-44. 13 STIMSON, S. “Review: Rethinking the State: Perspectives on the Legibility and Reproduction of Political Societies”. Political Theory, vol. 28, n. 6 (dez., 2000), pp. 822-834. 14 FINCH, J. “Naming names: kinship, individuality, and personal names”. Sociology, 2008; 42; 709. 15 BALSEY, C. Critical Practice. Londres: Methuen, 1980, p. 43. 35 A 3. O TEMPO/MEMÓRIA NAS NARRATIVAS DA MÍDIA identidade, como visto, é algo que se desenvolve a partir dos discursos que definem as fronteiras simbólicas de quem se é a partir de um passado e um presente, responsáveis, igualmente, por ensaiar um projeto de futuro. Identidades são características compreendidas a partir de discursos fundadores, responsáveis por definir as narrativas de um passado tornado presente, que o justifica e legitima. Conforme Gayatry Chakravorty Spivak, é possível “reescrever ‘identidade cultural’ como ‘validação das origens nacionais’”.1 A composição das relações de identidade se desenvolvem, entre outros fatores, a partir dessas características, produzidas a partir de documentos e fatos históricos, nem sempre reais, mas que servem para explicar o presente e dizer, a partir de um passado, quem se é agora. A construção do passado é uma maneira de propor um projeto para a atualidade, vinculando-se a raízes e origens não por acaso, vários projetos nacionais são, por excelência, “radicais”, isto é, buscam as raízes de uma narrativa mítica para legitimar seu projeto imediato de nação. A narrativa, lembra o historiador Hayden White, é um “metacódigo”, no qual mensagens a respeito de uma realidade compartilhada podem ser transmitidas.2 O passado é construído no presente, pode justificar e explicar esse presente; daí as narrativas sobre o passado, a História, estarem diretamente ligadas à época em que são criadas. Um filme sobre o “velho oeste” Americano, sobre a Independência do Brasil ou sobre a Revolução Russa me diz muito mais sobre a época em que o filme é feito do que propriamente sobre o período histórico, digamos, retratado na tela. Na perspectiva de Keith Jenkins: Nenhum relato consegue recuperar o passado tal como ele era, porque o passado são acontecimentos, situações, e não um relato. Já que o passado passou, relatos só poderão ser confrontados com outros relatos sobre o passado.3 Neste capítulo, dividido em duas partes, veremos, em primeiro lugar (A), algumas relações entre identidade e a construção das representações narrativas; em seguida (B), momentos pontuais na definição de ser quem a partir da memória dos objetos. 1 SPIVAK, G. C. “Teaching for the Times”. The Journal of the Midwest Modern Language Association, vol. 25, n. 1 (primavera, 1992), pp. 3-22. 2 WHITE, H. “The value of narrativity in the representation of reality”. Critical Inquiry. 7 (1) outono 1980, pp. 5-29. 3 JENKINS, K. Repensando a história. São Paulo: Contexto, 2006, p. 32. 36 1. DISCURSOS DE IDENTIDADE E CULTURA DA MÍDIA As imagens feitas do passado, sobretudo no campo da História, mostram de fato um passado, construído a partir dos discursos existentes no momento em que acontece essa construção. A apropriação do passado depende em grande parte das condições e possibilidades do presente no qual a narrativa histórica é criada, e, nesse sentido, como em qualquer narrativa, o caráter de invenção se torna patente tanto quanto em uma notícia no jornal ou na internet seja no micronível das relações cotidianas, seja no macronível da construção das identidades nacionais. Nas palavras de Keith Jenkins: O passado é sempre percebido por meio das categorias sedimentares de interpretações anteriores e por meio dos hábitos e categorias de “leitura” desenvolvidos pelos discursos interpretativos anteriores e/ou atuais.4 Sob esse ponto de vista, na comunicação se desenvolvem noções principais de identidade a definição comunicativa do indivíduo, do grupo e da nação acontece na possibilidade de se compartilhar um discurso, trama responsável por indicar quem é você e, por contraste e complemento, quem não é você. John Arnold, David Lowenthal e Keith Jenkins, trabalhando em
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