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Direitos do coração_ como reverdecer o deserto - LEONARDO BOFF

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2
Índice
Capa
Rosto
Introdução - Resgatar os direitos do coração
Primeira Parte - Os fundamentos
1. O resgate necessário da sensibilidade ecológico-social
2. O que somos enquanto humanos? Um nó de relações totais
3. O que nos fez humanos: o comer juntos
4. Só um Infinito sacia nossa sede infinita
5. A convivialidade e o futuro da humanidade
6. Aceitação e desapego: quanto mais perdemos, mais ganhamos
7. Uma busca incansável: a autorrealização
8. A mais longa viagem: rumo ao próprio coração
9. O arquétipo do caminho e a autorrealização
10. No deserto há também vida e flores
11. Tudo o que existe e vive merece respeito
12. Cuidado e sustentabilidade: pilastras de um novo mundo
13. O necessário resgate do sagrado
Segunda Parte - O pulsar do coração
1. O amor que move o céu, as estrelas e os nossos corações
2. Quer garantir o amor? Cultive a ternura
3. A carícia: essencial para o afeto e o amor
4. Cordialidade: a capacidade de auscultar o coração do outro
5. O cuidado com o alimento do amor e da amizade
6. Gentileza gera gentileza
7. A mais humana das virtudes: a com-paixão
8. Festejar: a vida tem sabor e sentido
9. Rito e Jogo: coisas muito sérias, mas esquecidas
10. O humor: termômetro da saúde psíquica e espiritual
Primeira Conclusão - A beleza salvará o mundo”:
Segunda Conclusão - Os direitos do coração
Ficha Catalográfica
3
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Introdução
RESGATAR OS DIREITOS DO CORAÇÃO
Seguramente, a crise ecológica global exige soluções técnicas que possam impedir
que o aquecimento global ultrapasse 2 graus Celsius, o que seria desastroso para toda
a biosfera. Se por irresponsabilidade humana nada fizermos e este subir a 4, 5 ou até
6 graus Celsius, as formas de vida conhecidas, inclusive a humana, estarão
gravemente ameaçadas. Mas a técnica não é tudo nem o principal. Parafraseando
Galileo Galilei, podemos dizer: “A ciência nos ensina como funciona o céu, mas não
nos ensina como se vai ao céu”.
Da mesma forma, a ciência nos indica como funcionam as coisas, mas não tem
condições de nos dizer se elas são benéficas ou maléficas à totalidade do sistema-vida
e do sistema-Terra. Para isso, temos que recorrer aos critérios éticos aos quais a
própria prática científica está submetida.
Até que ponto apenas soluções técnicas equilibram Gaia a ponto de ela continuar
a nos querer sobre si e ainda garantir os suprimentos vitais para os demais seres
vivos? Será que ela vai identificar, assimilar ou rejeitar as mais de mil substâncias
químicas sintéticas, os transgênicos e outros micro-organismos produzidos
artificialmente, para os quais seu estômago não foi preparado ao longo de milênios de
sua evolução? Nem a própria ciência tem condições de dar alguma resposta segura.
Por isso temos que acionar os princípios da prevenção, da precaução e do cuidado,
para que nossa saúde não seja afetada.
As intervenções técnicas são necessárias para atender às demandas humanas.
Mas elas têm de se adequar a um novo paradigma de produção, menos agressivo, de
distribuição mais equitativa, de consumo regido pela sobriedade compartida e de
absorção dos rejeitos para que não danifiquem os ecossistemas.
A Carta da Terra, um dos documentos nascidos com o apoio da UNESCO e da
ONU, resultado de uma consulta de oito anos (de 1992 a 2000) a praticamente todos
os povos, articulando valores e princípios que nos inspirem uma nova forma de
habitar o planeta, diz sabiamente:
Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo
começo [...] Isso requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo
4
sentido de interdependência global e de responsabilidade universal [...] Só assim
alcançaremos um modo de vida sustentável nos níveis local, nacional, regional e
global (n. 16, f).
O que se afirma é que devemos desenvolver uma nova leitura da realidade total
(mente) e uma nova sensibilidade (coração) junto ao sentido de pertença entre todos
os seres e a responsabilidade universal pelo destino comum, da Terra e da
humanidade.
A mente, vale dizer, a visão contemporânea do universo, da história da Terra, da
vida e da existência humana foram, em grande parte, codificadas num trabalho de
quase um século. Falta-nos urgentemente despertar o coração para que sinta, se
compadeça, se solidarize e ame a Terra, seus ecossistemas e todos os seres, nossos
companheiros nesta caminhada terrestre. Sozinha, a mente não dispõe de todos os
instrumentos para debelar a atual crise. Ela precisa do suporte do coração. É ele quem
nos move para a ação e busca os melhores caminhos para o nosso salvamento. Por
isso falamos dos direitos do coração, que devem ser proclamados e vividos em função
de nossa própria sobrevivência.
A dimensão do coração foi descurada pela modernidade. A razão analítica e
instrumental e a tecnociência buscavam, como método, o distanciamento mais severo
possível entre emoção e razão e entre o sujeito pensante e o objeto pensado.
Tudo que vinha do mundo das emoções, dos afetos, da sensibilidade, numa
palavra, do pathos, obscurecia o olhar analítico e “objetivo” sobre o objeto. Tais
dimensões deveriam ser postas sob suspeição, ser controladas e até recalcadas.
Ocorre que a própria ciência superou essa posição reducionista seja pela
mecânica quântica de Bohr/Heisenberg, seja pela biologia à la Maturana/Varela, seja,
por fim, pela tradição psicanalítica, reforçada pela filosofia da existência (Heidegger,
Sartre e outros). Essas correntes evidenciaram o envolvimento inevitável do sujeito
com o objeto. A objetividade total é uma ilusão. No conhecimento, há sempre
interesses do sujeito, há emoções e afetos, próprios do ser humano no mundo com os
outros. Mais ainda, nos convenceram de que a estrutura de base do ser humano não é
a razão, mas o afeto e a sensibilidade.
Daniel Goleman trouxe a prova empírica com seu texto Inteligência emocional.
Aí, ele afirma que a emoção precede à razão. A primeira reação perante qualquer
realidade é a emoção; somente alguns segundos depois a razão desperta. Michel
Maffesoli escreveu o Elogio da razão sensível; Patrick Viveret propôs Por uma
sobriedade feliz; fundada no acordo entre a razão mental e a inteligência do coração;
5
Adela Cortina escreveu A razão cordial; entre nós, Muniz Sodré, em várias de suas
obras.
Isso se torna mais compreensível se pensarmos que nós humanos não somos
simplesmente animais racionais, mas mamíferos racionais. Quando, há mais de
duzentos milhões de anos, surgiram os mamíferos, irrompeu o cérebro límbico,
responsável pelo afeto, pelo cuidado e pela amorização. A mãe concebe e carrega
dentro de si a cria e, depois de nascida, a cerca de cuidados e de afagos. Somente nos
últimos cinco a seis milhões de anos surgiu o cérebro neocortex, e há duzentos mil
anos, o tipo de cérebro que temos hoje, que se expressa pela razão abstrata, pelo
conceito e pela linguagem racional.
O grande desafio atual é conferir centralidade ao que é mais ancestral em nós, o
afeto e a sensibilidade, cuja expressão maior se encontra no coração. Enfatizando,
importa resgatar o coração e seus direitos, tão válidos quanto os direitos da razão, da
vontade, da inteligência e da libido.
Nele está o nosso centro, nossa capacidade de sentir em profundidade; nele se
encontram a sede do amor e o nicho dos valores.
Longe de nós desbancarmos a razão; precisamos dela, pois é imprescindível para
o discernimento e a priorização dos afetos, sem substituí-los. Hoje, se não
aprendermos a sentir a Terra como Gaia, não a amarmos como amamos nossa mãe e
não cuidarmos dela como cuidamos de nossos filhos e filhas, dificilmente a
salvaremos.
Sem a sensibilidade, a operação da tecnociência será insuficiente. Mas uma
ciência com consciência e com sentido ético pode encontrar saídas libertadoras para
nossa crise. Por isso importa reinventar o ser humano total que une cabeça e coração,
sentimento e razão, música e trabalho, poesia e técnica.
O objetivo de nosso texto é convidar as pessoas a aprender a sentir, a unir a
razão, geralmente fria e calculista, ao afeto, caloroso e irradiante.Desse amálgama
nascerá, diria espontaneamente, a nossa vontade de cuidar de tudo o que é vivo, frágil
e importante para a vida humana e a vida no planeta Terra.
O coração possui seus direitos e a sua lógica própria. Ele não vê tão claro quanto
a razão, mas vê mais profundamente e de forma certeira. Conhecemos melhor quando
amamos. E amamos mais intensamente quando nosso conhecimento é mais lúcido e
despido de preconceitos.
6
7
Primeira Parte
OS FUNDAMENTOS
8
9
10
O resgate necessário da sensibilidade ecológico-
social
11
Ao referirmos na introdução a importância da razão sensível e cordial, não podemos
deixar de valorizar a grande contribuição que o papa Francisco deu a esse tipo de
razão em sua encíclica Laudato si’ — Sobre o cuidado da Casa Comum (18 de julho
de 2015).
O papa Francisco analisa com detalhe, com espírito científico e crítico “o que
está acontecendo com a nossa Casa” (n. 17-61). Logo adverte que, numa perspectiva
da ecologia global, que é o tema fundamental de seu texto, essas categorias são
insuficientes (n. 11). Temos que nos abrir “à admiração e ao encanto… e falar a
linguagem da fraternidade e da beleza na nossa relação para com o mundo” (n. 11).
Portanto, não podemos nos restringir à ecologia ambiental, pois ela atende apenas à
relação do ser humano com a natureza, sem envolver o ser humano como parte desta,
o que constitui o vício do antropocentrismo, criticado claramente pelo papa (n. 115-
121). Ocorre que o ser humano possui dimensões sociais, políticas, culturais e
espirituais, sobre as quais há parca preocupação e fraca reflexão, o que dificulta
encontrar uma solução consistente para a grave crise da Casa Comum.
Considerando a amplitude dessas dimensões, devemos ir além de uma análise
meramente técnico-científica. Devemos, sim, utilizar a pesquisa científica,
imprescindível, mas importa “deixar-nos tocar por ela em profundidade” (n. 15).
Mais ainda, “devemos transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao
mundo” (n. 19).
O papa Francisco tem clara consciência de que, por detrás das estatísticas, há um
mar de sofrimento humano e muitas feridas no corpo da Mãe Terra. Como somos
parte da natureza e tudo está inter-relacionado (tema sempre recorrente na encíclica,
n. 70, 91, 117, 120, 138, 139 etc.) e nós nunca estamos fora da “trama das relações”
(n. 240) que a todos envolve, participamos das dores da crise ecológica. Ele adverte:
“as previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia… o estilo de
vida atual, por ser insustentável, só pode desembocar em catástrofes, como aliás estão
acontecendo periodicamente em várias regiões” (161).
Mas o papa não se deixa intimidar por esse cenário. Dá um voto de confiança ao
ser humano, em sua criatividade e em sua capacidade de regenerar-se e de regenerar a
Terra (n. 205), e muito mais: confia no Deus que, segundo as palavras da tradição
judeo-cristã, “é o soberano amante da vida” (Sb 11,24 e 26, n. 77 e 89). Ele não
permitirá que nos afundemos totalmente (n. 163). Ainda faremos “uma conversão
12
ecológica” (n. 217) e introduziremos “a cultura do cuidado que permeará toda a
sociedade” (n. 231).
Disso nascerá um novo estilo de vida (alternativa sempre de novo repetida pela
encíclica), fundado na cooperação, na solidariedade, na simplicidade voluntária, na
sobriedade compartilhada, que implicará um novo modo de produzir e de consumir,
e, por fim, nos dará “a consciência amorosa de não estarmos separados das outras
criaturas, mas que formamos com os outros seres do universo uma estupenda
comunhão universal” (n. 220).
Como se depreende, aqui não se fala mais somente de inteligência intelectual,
técnico-científica, mas da inteligência emocional a que nos referimos na introdução.
O papa, em suas palavras de afeto e carinho para com todos, especialmente para com
os pobres e os mais vulneráveis, dá claro exemplo do exercício desse tipo de
inteligência tão urgente e necessária para superarmos a profunda crise que recobre
todos os âmbitos da vida no planeta.
Em razão dessa inteligência emocional, ele afirma que devemos “ouvir tanto o
grito da Terra como o grito dos pobres” (49). As agressões sistemáticas, feitas nos
últimos dois séculos, “provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos
dos abandonados do mundo” (n. 53). Por isso, importa “cuidar da criação… e tratar
com desvelo os outros seres vivos” (n. 211), pois todos possuem um valor intrínseco,
independente do uso humano (n. 69), e, a seu modo, louvam o Criador (n. 33). Chega
a dizer que devemos “alimentar uma paixão pelo cuidado” por tudo o que existe e
vive.
Enfatiza o fato de que “nós, com todos os seres do universo, estamos unidos por
laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão
sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (n. 89).
Somente quem tem desenvolvido em alto grau a inteligência sensível ou cordial
poderia escrever: “tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos
juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor
que Deus tem a cada uma de suas criaturas e que nos une também, com terna afeição,
ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio e à Mãe Terra” (n. 92).
Semelhante à Carta da Terra, o papa entende que, “pelo fato de que tudo está
intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que leve em
conta todos os aspectos da crise mundial” (n. 137), impõe-se uma reflexão sobre a
ecologia integral, pois só ela dá conta dos problemas inter-retroconectados de ordem
econômica, política, cultural e espiritual. Nesse sentido, o tratamento dado pelo papa
13
a esses temas é extremamente inovador e um desafio para todos os que se ocupam e
preocupam com as questões ecológicas, vale dizer, com as condições físicas,
químicas e biológicas que sustentam a vida e garantem um futuro para a Casa
Comum e para a nossa civilização.
O tempo é urgente e corre contra nós. Por isso, a encíclica é dirigida a toda a
humanidade e a cada pessoa, para que cada um, em sua medida própria, ajude a
garantir a vitalidade da Terra e os bens e serviços essenciais para nós e para toda a
comunidade de vida.
Para esse desafio, todos os saberes, todos os valores, todas as tradições
espirituais e religiosas são convocados a despertar a consciência da humanidade para
a sua missão de ser a cuidadora dessa herança sagrada recebida do universo e do
Criador que é a Terra viva, a única Casa que temos para morar. Junto à inteligência
intelectual deve vir a inteligência sensível e cordial, e acima de tudo a inteligência
espiritual, pois é ela quem nos relaciona diretamente com o Criador e com o Cristo
ressuscitado, que estão dentro da criação, levando-a junto conosco para a sua
plenitude em Deus (n. 100, 243).
O papa cita o comovente final da Carta da Terra, que resume bem a esperança
que deposita em Deus e no empenho dos seres humanos: “Que nosso tempo seja
lembrado pelo despertar de uma nova reverência perante a vida, pelo compromisso
firme de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta pela justiça e pela paz
e pela alegre celebração da vida” (n. 207).
Outra importante contribuição nos vem do notável psicanalista Carl Gustav Jung,
que, em sua psicologia analítica, deu grande importância à sensibilidade e submeteu a
duras críticas o cientificismo moderno.
Entre os dias 19 e 23 de agosto de 2013 celebrou-se, na cidade de Copenhague, o
XIX Congresso Internacional da Psicologia Analítica de C. G. Jung. Havia cerca de
setecentos junguianos, vindos de todas as partes do mundo, até da Sibéria, da China e
da Coreia. A grande maioria analistas experimentados, muitos deles autores de livros
relevantes na área. Sendo um dos participantes, dei-me conta de uma tônica
predominante: a necessidade de a psicologia em geral e da analítica junguiana em
particular abrirem-se ao comunitário, ao social e ao ecológico.
Essa preocupação vem ao encontro do próprio pensamento de C. G. Jung. Para
ele, a psicologia não possuía fronteiras entre cosmose vida, entre biologia e espírito,
entre corpo e mente, entre consciente e inconsciente, entre individual e coletivo. A
psicologia tinha que ver com a vida em sua totalidade, em sua dimensão racional e
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irracional, simbólica e virtual, individual e social, terrena e cósmica, e em seus
aspectos sombrios e luminosos. Por isso, tudo lhe interessava: os fenômenos
esotéricos, a alquimia, a parapsicologia, o espiritismo, os discos voadores, a filosofia,
a teologia, a mística ocidental e oriental, os povos originários e as teorias científicas
mais avançadas.
Sabia articular esses saberes, descobrindo conexões ocultas que revelavam
dimensões surpreendentes da realidade. De tudo sabia tirar lições, hipóteses, e
enxergar possíveis janelas sobre a realidade. Em razão disso, não cabia em disciplina
alguma, motivo pelo qual muitos o ridicularizavam. Por isso, Jung tornou-se um
mestre que nos aponta caminhos sugestivos e viáveis, capazes de inspirar soluções
para a atual crise ecológica.
Precisamos tornar hegemônica essa visão holística e sistêmica, hoje, em nossa
leitura da realidade. Caso contrário, ficamos reféns de visões fragmentadas que
perdem o horizonte do todo. Nessa diligência, Jung é um interlocutor privilegiado
particularmente no resgate da razão cordial e da inteligência emocional.
Coube a ele o mérito de ter valorizado e tentado decifrar a mensagem escondida
dos mitos. Eles constituem a linguagem do inconsciente coletivo. Este possui relativa
autonomia. Ele nos possui mais a nós do que nós a ele. Cada um é mais pensado do
que propriamente pensa. O órgão que capta o significado dos mitos, dos símbolos e
dos grandes sonhos é a razão sensível, ou razão cordial. Esta foi, na modernidade,
colocada sob suspeita, pois poderia obscurecer a objetividade do pensamento. Jung
sempre foi crítico do uso exacerbado da razão instrumental-analítica, pois fechava
muitas janelas da alma.
Conhecido foi o diálogo em 1924-1925 que Jung manteve com um indígena da
tribo Pueblo, no Novo México, EUA. O indígena achava que os brancos eram loucos.
Jung perguntou-lhe por que os brancos seriam loucos, ao que o indígena respondeu:
“Eles dizem que pensam com a cabeça”. “Mas é claro que pensam com a cabeça”,
retrucou Jung. “Como vocês pensam?”, arrematou. E o indígena, surpreso,
respondeu: “Nós pensamos aqui”, e apontou para o coração (Memórias, sonhos,
reflexões, p. 233).
Esse fato transformou o pensamento de Jung. Entendeu que os europeus haviam
conquistado o mundo com a cabeça, mas perdido a capacidade de pensar e sentir com
o coração e de viver através da alma.
Logicamente, não se trata de abdicar da razão — o que seria uma perda para
todos —, mas de recusar o estreitamento de sua capacidade de compreender. É
15
preciso considerar o sensível e o cordial como elementos centrais no ato de
conhecimento. Eles permitem captar valores e sentidos presentes na profundidade do
senso comum. A mente é sempre incorporada, portanto sempre impregnada de
sensibilidade e não apenas cerebralizada.
Em suas Memórias, diz: “Há tantas coisas que me repletam: as plantas, os
animais, as nuvens, o dia, a noite e o eterno presente nos homens. Quanto mais me
sinto incerto sobre mim mesmo, mais cresce em mim o sentimento de meu parentesco
com o todo” (361).
O drama do homem atual é ter perdido a capacidade de viver um sentimento de
pertença, coisa que as religiões sempre garantiam. O que se opõe à religião não é o
ateísmo ou a negação da divindade. O que se opõe é a incapacidade de ligar-se e
religar-se com todas as coisas. Hoje as pessoas estão desenraizadas, desconectadas da
Terra e da anima, que é a expressão da sensibilidade e espiritualidade.
Para Jung, o grande problema atual é de natureza psicológica. Não da psicologia
entendida como disciplina ou apenas como dimensão da psique, mas psicologia no
sentido abrangente, como a totalidade da vida e do universo enquanto percebidos e
articulados com o ser humano. É nesse sentido que escreve: “É minha convicção mais
profunda de que, a partir de agora, até um futuro indeterminado, o verdadeiro
problema é de ordem psicológica. A alma é o pai e a mãe de todas as dificuldades não
resolvidas que lançamos na direção do céu” (Cartas III, 243).
Se não resgatarmos hoje a razão sensível que é uma dimensão essencial da alma,
dificilmente nos mobilizaremos para respeitar a alteridade dos seres, amar a Mãe
Terra com todos os seus ecossistemas e viver a compaixão com os sofredores da
natureza e da humanidade.
A mera razão analítico-instrumental, não acompanhada da inteligência
emocional, sensível e cordial, pode chegar à loucura da razão, como se manifestou na
Shoah, a solução final projetada pelo Estado nazista, aos judeus, ou os crimes da
degola perpretada do Estado Islâmico contra todos os que não se deixam converter à
sua compreensão do Alcorão.
O resgate da razão cordial não é apenas uma tarefa individual, mas coletiva; um
paradigma civilizacional que deve se amalgamar com a face positiva da
racionalidade, sem a qual não poderíamos organizar a complexidade do mundo.
Uma ciência com consciência, cuidadosa e sensível a tudo o que existe e vive, é
precondição para garantirmos a vitalidade do planeta Terra. Caso contrário, ele pode
continuar, mas sem nós.
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18
O que somos enquanto humanos? Um nó de
relações totais
19
Em 1845, Karl Marx escreveu suas famosas onze teses sobre Feuerbach, publicadas
somente em 1888 por Engels. Na sexta tese, Marx afirma algo verdadeiro, mas
reducionista: “A essência humana é o conjunto das relações sociais”. Efetivamente,
não se pode pensar a essência humana fora das relações sociais. Mas ela é muito mais
que isso, pois resulta do conjunto de suas relações totais.
Descritivamente, sem querer definir a essência humana, ela emerge como um nó
de relações voltadas para todas as direções: para baixo, para cima, para dentro e para
fora. É como um rizoma, aquele bulbo com raízes em todas as direções. O ser
humano se constrói à medida que ativa esse complexo de relações, não somente as
sociais.
Em outros termos, o ser humano se caracteriza por surgir como uma abertura
ilimitada: para si mesmo, para o mundo, para o outro e para a totalidade. Sente em si
uma pulsão infinita, embora encontre somente finitos. Daí a sua permanente
implenitude e insatisfação.
Não se trata de um problema psicológico que um psicanalista ou um psiquiatra
possa curar. É sua marca distintiva, ontológica, e não um defeito.
Mas, aceitando a indicação de Marx, boa parte da construção do humano se
realiza, efetivamente, na sociedade. Daí a importância de considerarmos qual seja a
formação social que melhor cria as condições para ele poder desabrochar mais
plenamente nas mais variadas relações.
Sem oferecer as devidas mediações e indo diretamente ao assunto, diria que a
melhor formação social é a democracia: comunitária, social, representativa,
participativa, de baixo para cima, que inclua todos, sem exceção. Na formulação do
conhecido sociólogo português Boaventura de Souza Santos, a democracia deve ser
sem fim.
Temos a ver com um projeto aberto, sempre em construção, que começa nas
relações dentro da família, da escola, da comunidade, das associações, dos
movimentos, das igrejas e culmina na organização do Estado.
Como numa mesa, vejo quatro pernas que sustentam uma democracia mínima e
verdadeira, como tanto acentuava em sua vida Herbert de Souza (o Betinho) e que
juntos em conferências e debates procurávamos difundir entre prefeitos e lideranças
populares.
A primeira perna reside na participação: o ser humano, inteligente e livre, não
20
quer ser apenas beneficiário de um processo, mas ator e participante. Não quer
receber apenas o pão, quer ajudar a fazê-lo. Só assim se faz sujeito e cidadão. Essa
participação deve vir de baixo para não excluir ninguém.
A segunda perna consiste na igualdade. Vivemos num mundo de desigualdades
de toda ordem. Cada um é singular e diferente. Mas a participação crescente em tudo
impede que a diferença se transforme em desigualdade e permiteà igualdade crescer.
É a igualdade de todos perante as leis sociais, no reconhecimento da dignidade de
cada pessoa e no respeito a seus direitos. É essa igualdade básica que sustenta a
justiça social. Junto à igualdade vem a equidade: a proporção adequada que cada um
recebe por sua participação na construção do todo social.
A terceira perna é a diferença. Ela é dada pela natureza. Cada ser, especialmente
o ser humano, homem e mulher, é diferente. Isso deve ser acolhido e respeitado como
manifestação das potencialidades próprias das pessoas, dos grupos e das culturas. São
as diferenças que nos revelam que podemos ser humanos de muitas formas, todas elas
humanas, e por isso merecedoras de respeito e acolhida. Podemos ser humanos na
forma africana, japonesa, chinesa, yanomami e brasileira. Todos diferentes, mas com
igual dignidade.
A quarta perna se dá na comunhão: o ser humano possui subjetividade,
capacidade de comunicação com sua interioridade e com a subjetividade dos outros; é
um portador de valores como solidariedade, compaixão, defesa dos mais vulneráveis
e de diálogo com a natureza e com a divindade. Aqui aparece a espiritualidade como
aquela dimensão da consciência que nos faz sentir parte de um todo e como aquele
conjunto de valores intangíveis que dão sentido à nossa vida pessoal e social e
também a todo o universo.
Essas quatro pernas vêm sempre juntas e equilibram a mesa, vale dizer,
sustentam uma democracia real. Ela nos educa a sermos coautores da construção do
bem comum; em nome dele aprendemos a limitar nossos desejos individuais por
amor à satisfação dos desejos coletivos.
Essa mesa de quatro pernas não existiria se não estivesse apoiada no chão e na
terra. Assim, a democracia não seria completa se não incluísse a natureza, que tudo
possibilita. Ela fornece a base físico-químico-ecológica que sustenta a vida e cada um
de nós.
Pelo fato de terem valor em si mesmos, independente do uso que fizermos deles,
todos os seres são portadores de direitos. Merecem continuar a existir, e a nós cabe
respeitá-los e entendê-los como concidadãos. Serão incluídos numa democracia
21
sociocósmica sem fim.
Esparramado em todas essas dimensões, o ser humano se realiza na história e na
vida concreta, num processo ilimitado e sem fim.
22
23
24
O que nos fez humanos: o comer juntos
25
É misteriosa e de difícil reconstituição histórica a nossa passagem de primatas
superiores a humanos. Mas há indícios de que, há sete milhões de anos, a partir de um
ancestral comum, teria começado a separação lenta e progressiva entre os símios
superiores e os humanos.
Etnobiólogos e arqueólogos acenam para um fato singular. Quando nossos
antepassados antropoides saíam a coletar frutos, sementes, caça e peixe, não comiam
individualmente. Tomavam os alimentos e os levavam ao grupo. E aí praticavam a
comensalidade, o que significa: distribuíam os alimentos entre si e comiam-nos
comunitariamente. Essa comensalidade permitiu o salto da animalidade em direção à
humanidade. Essa pequena diferença fez toda uma diferença.
O que ontem nos fez humanos continua ainda hoje a fazer-nos de novo humanos.
E se não estiver presente, nos fazemos desumanos, cruéis e sem piedade. Não é essa,
lamentavelmente, a situação da humanidade atual? Alguns com acesso ilimitado a
todo tipo de alimento ao lado de quase um bilhão de pessoas passando fome.
Um elemento produtor de humanidade, estreitamente ligado à comensalidade, é a
culinária, vale dizer, a preparação dos alimentos. Bem escreveu Claude Lévi-Strauss,
eminente antropólogo que trabalhou muitos anos no Brasil: “O domínio da cozinha
constitui uma forma de atividade humana verdadeiramente universal. Assim como
não existe sociedade sem linguagem, assim também não há sociedade alguma que
não cozinhe alguns de seus alimentos”.
Há quinhentos mil anos o ser humano aprendeu a fazer fogo e a domesticá-lo.
Com o fogo, começou a cozinhar os alimentos. O “fogo culinário” é o que diferencia
o ser humano de outros mamíferos complexos. A passagem do cru ao cozido é
considerada um dos fatores de passagem do animal ao ser humano civilizado. Com o
fogo surgiu a culinária própria de cada povo, de cada cultura e de cada região.
Não se trata nunca de apenas cozinhar os alimentos, mas de dar-lhes sabor. As
várias culinárias criam hábitos culturais, não raro vinculados, entre nós, a festas como
o Natal (o peru), a Páscoa (ovos de chocolate), primeiro dia do ano (carne suína), a
festa de São João (milho assado) e outras.
Nutrir-se nunca é uma mecânica biológica individual. Consumir comensalmente
é comungar com os outros que conosco comem. É comungar com as energias
cósmicas que subjazem aos alimentos, especialmente a fertilidade da terra, o sol, as
florestas, as águas e os ventos.
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Em razão desse caráter numinoso do comer/consumir/comungar, toda
comensalidade é, de certa forma, sacramental. Embelezamos os alimentos porque não
comemos só com a boca, mas também com os olhos.
O momento do comer é um dos mais esperados do dia e da noite. Há a
consciência instintiva e reflexa de que, sem o comer, não há vida nem sobrevida, nem
alegria de existir e coexistir.
Durante milhões de anos, os seres humanos foram tributários da natureza,
tiraram dela o que precisavam para sobreviver. Da apropriação dos frutos da natureza
evoluiu-se para a sua produção mediante a criação da agricultura, que supunha a
domesticação e o cultivo de sementes e plantas. Junto a ela veio a domesticação dos
animais, começando pelos galináceos e as cabras.
Por volta de dez a doze mil anos atrás ocorreu o que talvez tenha sido a maior
revolução da história humana: de nômades, os seres humanos se fizeram sedentários.
Fundaram as primeiras vilas (12.000 a.C.), inventaram a agricultura (9.000 a.C.) e
começaram a domesticar e a criar animais (8.500 a.C.). Criou-se um processo
civilizatório extremamente complexo com sucessivas revoluções posteriores: a
industrial, a nuclear, a cibernética, a da nanotecnologia, da informação até alcançar o
nosso tempo.
Primeiramente, se domesticaram vegetais e cereais selvagens, provavelmente,
por mulheres mais observadoras dos ritmos da natureza. Tudo parece ter se iniciado
no Oriente Médio, entre os rios Tigre e Eufrates, e no vale do Indo, na Índia. Ali se
domesticaram o trigo, a cevada, a lentilha, a fava e a ervilha. Na América Latina,
foram o milho, o abacate, o tomate, a mandioca e o feijão. No Oriente foram o arroz e
o milhete. Na África, o milho e o sorgo.
Em seguida, por volta de 8.500 a.C., domesticaram-se espécies animais, a
começar pelas cabras, carneiros, depois o boi e o porco. Tudo foi facilitado com a
invenção da roda, da enxada, do arado e de outros utensílios de metal por volta de
4.000 a.C.
Esses poucos dados hoje são levantados cientificamente por arqueólogos e
etnobiólogos, usando as mais modernas tecnologias do carbono radioativo, do
microscópio eletrônico e da análise química de sedimentos, de cinzas, de pólens, de
ossos e carvões de madeira. Os resultados permitem reconstituir como era a ecologia
local e como se operava a utilização econômica por parte das populações humanas.
Ao plantar e colher trigo ou arroz, elas podiam criar reservas, organizar a
alimentação dos grupos, fazer crescer a família e assim a população. Teve que ganhar
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a vida com o suor do seu rosto. E o fez com furor. O avanço da agricultura e da
criação de animais fez desaparecer lentamente a décima parte de toda a vegetação
selvagem e de animais. Não havia ainda a preocupação com a gestão responsável do
meio ambiente. E é também difícil de imaginá-la, devido à riqueza dos bens e
serviços naturais e a capacidade de regeneração dos ecossistemas.
De todas as formas, o neolítico pôs em marcha um processo que nos alcança até
os dias de hoje. A segurança alimentar e o grande banquete que a revolução agrícola
poderia ter preparado para toda a humanidade, no qual todos seriam igualmente
comensais, não pôde ser ainda celebrado. Quase um bilhão de seres humanos estão ao
pé da mesa, esperando quecaia alguma migalha para poderem matar a fome.
A Cúpula Mundial da Alimentação, celebrada em Roma, em 1996, que se propôs
a erradicar a fome até 2015, diz que:
A seguridade alimentar existe quando todos os seres humanos têm, a todo momento,
um acesso físico e econômico a uma alimentação suficiente, sã e nutritiva,
permitindo-lhes satisfazer suas necessidades energéticas e suas preferências
alimentares a fim de levar uma vida sã e ativa.
Esse propósito foi assumido pelas Metas do Milênio da ONU. Lamentavelmente,
a própria FAO comunicou em 1998 e em 2014 à ONU que esses propósitos não serão
alcançados a menos que se supere o fosso demasiadamente grande das desigualdades
sociais.
Enquanto não dermos esse salto, fruto da solidariedade, não teremos completado
ainda nossa humanidade. Esse é o grande desafio do século XXI, o de sermos
plenamente humanos, todos com direito de sentar à mesa e atender decentemente à
nossa seguridade alimentar.
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Só um Infinito sacia nossa sede infinita
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O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que põe em marcha toda a vida
psíquica. É um princípio traduzido pelo filósofo Ernst Bloch por princípio esperança.
Por sua natureza, não conhece limites, como já foi visto por Aristóteles e Freud.
A psique não deseja apenas isto ou aquilo. Ela deseja a totalidade. Não deseja a
plenitude do homem, procura o super-homem, aquilo que ultrapassa infinitamente o
humano, como afirmava Nietzsche. O desejo se apresenta infinito e confere o caráter
de infinito ao projeto humano.
O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando
realizado, gera uma felicidade sem igual. Estamos sempre buscando o objeto
adequado ao nosso desejo infinito. E não o encontramos no campo da experiência
cotidiana. Aqui somente encontramos finitos.
Produz-se grave desilusão quando alguém identifica uma realidade finita como
sendo o objeto infinito buscado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre
ansiada, a casa dos sonhos. Chega um momento — geralmente, não tarda muito —
em que se percebe uma insatisfação de base e sente-se desejo por algo maior.
Como sair deste impasse provocado pelo desejo infinito? Borboletear de um
objeto a outro, sem nunca encontrar repouso? Temos que nos colocar seriamente na
busca do verdadeiro objeto de nosso desejo.
Encurtando um longo caminho, vou logo respondendo: este é o Ser e não o ente,
é o Todo e não a parte, é o Infinito e não o finito. Depois de muito peregrinar, o ser
humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum (coração inquieto) de Santo
Agostinho: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Tarde te amei. Meu
coração inquieto não descansará enquanto não repousar em Ti”.
Só o Infinito Ser se adequa ao desejo infinito do ser humano e lhe permite
descansar.
O desejo envolve energias vulcânicas poderosas. Como lidar com elas? Antes de
mais nada, trata-se de acolher, sem moralizar, essa condição desejante. As paixões
puxam o ser humano para todos os lados. Algumas o atiram para a generosidade;
outras, para o egocentrismo. Integrar sem recalcar tais energias exige cuidado e não
poucas renúncias.
A psique é convocada a construir uma síntese pessoal que é a busca do equilíbrio
de todas as energias interiores. Nem fazer-se vítima da obsessão por determinada
pulsão, como, por exemplo, a sexualidade, nem recalcá-la como se fosse possível
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diminuir-lhe o vigor.
O que importa é integrá-la como expressão de afeto, de amor e de estética e
mantê-la sob vigilância, pois temos a ver com uma energia vital não totalmente
controlável pela razão, mas por vias simbólicas de sublimação e por outros propósitos
humanísticos. Cada um deve aprender a renunciar no sentido de uma ascese que
liberta de dependências e cria a liberdade interior, um dom dos mais apreciáveis.
Outra forma de lidar com o desejo infinito é pela precaução: devemos nos
previnir das ciladas da própria vulnerabilidade humana. Não somos onipotentes, nem
deuses, inatingíveis ao fracasso. Podemos nos iludir na identificação daquilo que nos
parece ser o objeto que nos vai saciar. Mas podemos nos precaver contra tais
situações que nos poderão fazer cair e perder o Centro.
Talvez uma chave inspiradora nos seja oferecida por C. G. Jung, com sua
proposta de construir, ao largo da vida, um processo de individuação. Este possui
uma dimensão holística: assume com destemor e humildade o consciente e o
insconsciente, pessoal e coletivo, todas as pulsões, as imagens, os arquétipos, as luzes
e as sombras.
Ouve o rugir das feras que nos habitam, mas também o canto do sabiá que nos
encanta. Como criar uma unidade interior cujo efeito seja o equilíbrio dos contrários,
dos desejos antagônicos à vivência da liberdade e da alegria de viver?
C. G. Jung sugere que cada um procure criar um Centro forte, um Self unificador
que tenha a função que o sol possui no sistema solar. Ele atrai ao seu redor e
“sateliza” todos os planetas. Algo semelhante deve ocorrer com a psique: alimentar
um Centro pessoal que tudo integre, com reflexão e com interiorização. E não em
último lugar, com o cultivo do Sagrado e do Espiritual.
A religião, como instituição, não raro cerceia a vida espiritual por excesso de
doutrinas e de normas morais demasiado rígidas. Mas a religião, como
espiritualidade, desempenha uma função fundamental no processo de individuação.
Cabe a ela ligar e re-ligar a pessoa com seu Centro, com todas as coisas, com o
universo, com a Fonte originária de todo ser, dando-lhe um sentimento de pertença.
A falta da integração da energia do desejo se manifesta pela dilaceração das
relações sociais, pela violência assassina praticada em escolas ou nas matanças de
pessoas negras, pobres e homoafetivas.
Lidar com os impulsos do desejo implica, pois, uma preocupação com a sanidade
social. Não se poderá passar ao lado da educação humanística, ética e cidadã que
eduque o desejo. O grande obstáculo reside na própria lógica do sistema imperante
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que exaspera o desejo de ter, descuidando do ser e dos valores civilizatórios, da
gentileza, do bom trato e do respeito a cada pessoa.
Ao contrário, os meios de comunicação de massa exaltam o desejo individual e a
violência para resolver os conflitos humanos.
A globalização como fenômeno humano e nova fase da Terra, nos obrigará a
moderar os desejos pessoais em favor dos coletivos e assim tornar mais equilibrada e
amigável a coexistência humana com suas diferentes culturas e tradições.
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A convivialidade e o futuro da humanidade
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A convivialidade, como conceito, foi posta em circulação por Ivan Illich (1926-
2002), um dos grandes pensadores proféticos do século XX. Nascido em Viena,
trabalhou com os latinos nos EUA e mais tarde em Petrópolis e no México. Tornou-
se famoso por questionar o paradigma da medicina e da escola convencional. Através
da convivialidade, tentou responder a duas crises: a do processo industrialista e a da
ecologia.
O processo industrialista fez com que o domínio do ser humano sobre o
instrumento se tornasse o domínio do instrumento sobre o ser humano. Criado para
substituir o escravo, o instrumento tecnológico acabou por escravizar o ser humano
ao visar a produção e o consumo em massa.
Fez surgir uma sociedade cheia de aparatos, mas sem alma. A produção
industrial vigente não se combina com a fantasia e a criatividade dos trabalhadores.
Ela não os ama. Deles só quer utilizar a força de trabalho, muscular ou intelectual.
Quando incentiva a criatividade, é em vista da qualidade total do produto para
beneficiar mais ainda a empresa.
Entretanto, muitos empresários tomaram consciência dessa distorção e
perceberam o grau de desumanização da sociedade industrial. Começam a colocar na
agenda da empresa sua responsabilidade socioambiental, a importância da
subjetividade e o cultivo de valores não materiais (a solidariedade, o respeito, a
amizade). As relações de cooperação entre todos, empresários e trabalhadores,
começaram a prevalecer sobre a pura concorrência e acumulação.
Quese entende por convivialidade? Por convivialidade (não consta no Aurélio)
se entende a capacidade de fazer conviver as dimensões de produção e de cuidado; de
efetividade e de compaixão; de modelagem dos produtos e de criatividade; de
liberdade e de fantasia; de equilíbrio multidimensional e de complexidade social:
tudo para reforçar o sentido de pertença universal.
O valor técnico da produção material deve caminhar junto com o valor ético da
produção social e espiritual. Depois de termos construído a economia dos bens
materiais, importa desenvolver, urgentemente, a economia dos bens humanos. O
grande capital, infinito e inesgotável, não é porventura o ser humano, o capital
espiritual, já que ele comparece como um projeto infinito?
Os valores humanos do amor, da sensibilidade, do cuidado, da comensalidade e
da veneração podem impôr limites à voracidade do poder-dominação e à exploração-
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produção-acumulação.
A convivialidade pretende também ser uma resposta adequada à crise ecológica,
produzida pelo processo industrialista dos últimos quatro séculos. O processo de
depredação dos bens e serviços naturais pode provocar uma dramática devastação do
sistema-Terra e de todas as organizações que o gerenciam, um real crush planetário.
Esse cenário não é improvável. Ele ocorreu antes, com a derrocada da bolsa de
Wall Street em 1929. Naquela ocasião, era apenas uma crise parcial do sistema
capitalista e não tocava os limites físicos do planeta. Agora, a crise é do sistema
global.
Seguramente, num contexto de ruptura generalizada, a primeira reação do
sistema imperante será aumentar o controle planetário e usar de violência massiva
para assegurar a manutenção da ordem vigente, econômica, financeira e militar. Tal
diligência, em vez de aliviar a crise, vai radicalizá-la por causa do crescimento do
desemprego tecnológico e da ineficácia dos ajustes fiscais. É o que estamos vendo na
crise dos países centrais, com reflexo em todas as economias nacionais.
Alguns têm aventado a hipótese de uma catástrofe de dimensões apocalípticas.
Mas isso não é fatal. Importa deixar em aberto a chance de um uso convivial dos
intrumentos tecnológicos a serviço da preservação da vida, do bem viver da
humanidade e da salvaguarda de nossa civilização.
Esse novo patamar possivelmente conhecerá uma Sexta-feira Santa sinistra que
precipitará no abismo a ditadura do modo-de-ser-trabalho-produção-material para
permitir um Domingo de Ressurreição: a reconstrução da sociedade mundial sobre a
base do cuidado e da real sustentabilidade.
O primeiro parágrafo do novo pacto social entre os povos será o sagrado
princípio da autolimitação e da justa medida; em seguida, o cuidado essencial por
tudo o que existe e vive, a gentileza para com os humanos e a veneração para com a
Mãe Terra.
Então o ser humano terá aprendido a usar os instrumentos tecnológicos como
meios, e não como fins; terá aprendido a con-viver com todas as coisas, sabendo
tratá-las com reverência e respeito.
Não seria a verdadeira inauguração do novo milênio tão ansiada e ainda por vir?
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Aceitação e desapego: quanto mais perdemos, mais
ganhamos
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Por maiores que sejam os problemas universais na fase nova da Terra e da
humanidade, que é a globalização, não devemos descurar dos problemas cotidianos,
da construção continuada de nossa identidade e da moldagem de nosso sentido de ser.
É uma tarefa nunca terminada.
Entre muitas, duas provocações estão sempre presentes e temos que dar conta
delas: a aceitação dos próprios limites e a capacidade de desapegar-se.
Todos vivemos dentro de um arranjo existencial que, por sua própria natureza, é
limitado em possibilidades e nos impõe barreiras de toda ordem, de lugar, de
profissão, de inteligência, de saúde, de economia, de tempo. Há sempre um
descompasso entre o desejo e sua realização. E às vezes nos sentimos impotentes
perante dados que não podemos mudar, como a presença de um bipolar, com seus
altos e baixos, ou um doente terminal.
Temos que nos resignar perante essa limitação intransferível. Nem por isso
precisamos viver tristes ou impedidos de crescer. Precisamos ser criativamente
resignados. Ao invés de crescer para fora, podemos crescer para dentro, à medida que
criamos um centro no qual as coisas se unificam, e descobrimos como podemos
aprender de tudo.
Bem dizia a sabedoria oriental: “Se alguém sente profundamente o outro, este o
perceberá mesmo que esteja a milhares de quilômetros de distância”. Se te
modificares em teu centro, nascerá em ti uma fonte de luz que irradiará para todos os
recantos da Terra.
A outra tarefa da autorrealização é a capacidade de desapegar-se. O zen-budismo
coloca como teste de maturidade pessoal e de liberdade interior a capacidade de
desapegar-se e de despedir-se.
Se observarmos bem, o desapego pertence à lógica da vida: despedimo-nos do
ventre materno, em seguida, da meninice, da juventude, da escola, da casa paterna, de
parentes e, às vezes, da pessoa amada.
Na idade adulta, despedimo-nos de trabalhos, de profissões, do vigor do corpo e
da lucidez da mente, que irrefragavelmente vão se desgastando até despedirmo-nos da
própria vida. Nessas despedidas, deixamos um pouco de nós mesmos para trás.
Qual é o sentido desse lento despedir-se do mundo? Mera fatalidade irreformável
da lei universal da entropia? Essa dimensão é irrefreável. Mas será que ela não guarda
um sentido existencial a ser buscado pelo espírito?
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Se, fenomenologicamente, somos um projeto infinito e um vazio abissal que
clama por plenitude, será que esse desapegar-se não significa criar as condições para
que um Maior nos venha preencher? Não seria o Supremo Ser, feito de amor e
bondade, que nos vai tirando tudo para que possamos ganhar tudo, para além desse
tipo de vida, quando nossa busca finalmente cessará?
Ao perder, ganhamos, e ao esvaziarmo-nos, ficamos plenos. Dizem por aí que
essa foi a trajetória de Jesus, de Buda, de Francisco de Assis, de Gandhi, de Madre
Teresa e de outros.
Talvez a história dos mestres espirituais antigos nos esclareça o sentido da perda
que produz ganho.
Era uma vez um boneco de sal. Após peregrinar por terras áridas, chegou a
descobrir o mar que nunca vira antes e por isso não conseguia comprendê-lo.
Perguntou o boneco de sal: “Quem és tu?”. E o mar respondeu: “Eu sou o mar”.
Tornou o boneco de sal: “Mas que é o mar?”. E o mar respondeu: “Sou eu”.
“Não entendo”, disse o boneco de sal. “Mas gostaria muito de te compreender; como
faço?”.
O mar simplesmente respondeu: “Toca-me”. Então o boneco de sal,
timidamente, tocou o mar com a ponta dos dedos do pé. Percebeu que aquilo o fazia
comprender algo.
Mas logo se deu conta de que haviam desaparecido as pontas dos pés. “Ó mar,
veja o que fizeste comigo”.
E o mar respondeu: “Tu deste alguma coisa de ti e eu te dei compreensão; tens
que te dar todo para me compreender todo”.
E o boneco de sal começou a entrar lentamente mar adentro, devagar e solene,
como quem vai fazer a coisa mais importante de sua vida. E à medida que ia
entrando, ia também se diluindo e compreendendo cada vez mais o mar. E o boneco
continuava perguntando: “Que é o mar?”. Até que uma onda o cobriu totalmente.
Pôde ainda dizer, no último momento, antes de diluir-se no mar: “Sou eu”.
Desapegou-se de tudo e ganhou tudo: o verdadeiro eu.
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Uma busca incansável: a autorrealização
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Hoje vigora vastamente uma erosão de valores éticos que normalmente eram
vividos e transmitidos pela família e depois pela escola e pela sociedade. Essa erosão
fez com que as estrelas-guia do céu da ética ficassem encobertas por nuvens de
interesses, geralmente materiais ou ligados ao status, danosos para a sociedade e para
o futuro da vida e do equilíbrio da Terra.
Não obstante essa obscuridade, importa reconhecer também a emergência de
novos valores ligados à solidariedade internacional, ao cuidado para com a natureza,
à transparência nas relações sociais e à rejeição de formas de violência política
repressiva e de transgressão dos direitoshumanos.
Mas nem por isso diminuiu a crise de valores, especialmente no campo da
economia de mercado e das finanças especulativas que são as instâncias que definem
os rumos do mundo e o dia a dia dos assalariados, vivendo sob permanente ameaça de
desemprego.
As crises dos últimos anos denunciaram máfias de especuladores instalados nas
bolsas e nos grandes bancos cujo volume de rapinagem de dinheiros alheios quase
levou à derrocada todo o sistema financeiro mundial. Ao invés de estarem na cadeia,
depois de pequenos rearranjos, tais velhacos voltaram ao antigo vício da especulação
e do jogo de apropriação indébita dos “commons”, dos bens comuns da humanidade
(água, sementes, solos, energia etc.). Buscam o dinheiro pelo dinheiro, o dinheiro sem
o trabalho.
Essa atmosfera de anomia e vale-tudo que se espraia também na política faz com
que o sentido ético fique embotado e as pessoas diante da geral corrupção se sintam
impotentes e condenadas à amargura ácida e à resignação humilhante.
Nesse contexto, muitos buscam sentido na literatura de autoajuda, feita de cacos
de psicologia, de sabedoria oriental, de espiritualidade com receitas para a felicidade
completa, ilusória, porque não se sustenta nem se apoia num sentido realista e
contraditório da realidade.
Outros procuram psicólogos e psicanalistas e recebem dicas mais bem fundadas.
Mas, no fundo, tudo termina com os seguintes conselhos:
Dada a falência das instâncias criadoras de sentido como as religiões e as filosofias,
devido à confusão de visões de mundo, da relativização de valores e do vazio de
sentido existencial, procure você mesmo seu caminho, trabalhe seu Eu profundo,
estabeleça você mesmo referências éticas que orientam sua vida e busque sua
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autorrealização.
Autorrealização: eis uma palavra mágica, carregada de promessas.
Aprofundemos um pouco o que ela pretende.
A autorrealização é a proposta do livro de minha autoria A águia e a galinha:
uma metáfora da condição humana (Vozes, 1999), livro que estimula as pessoas a
encontrar em si mesmas as razões de uma autorrealização bem-sucedida.
Esta resulta da sábia combinação da dimensão de águia e da de galinha. Quando
devo ser galinha, quer dizer, concreto, atento aos desafios do cotidiano, e quando
devo ser águia, que busca voar alto para, em liberdade, realizar potencialidades
escondidas ou sonhos sempre alimentados. Ao articular tais dimensões, cria-se a
possibilidade de uma autorrealização bem-sucedida.
Penso que a essa autorrealização só conseguem se incorporar seriamente três
outras dimensões.
A primeira é a dimensão de sombra. Cada um possui seu lado autocentrado,
egoísta e arrogante, bem como outras limitações que não nos enobrecem. Essa
dimensão não é defeito, mas marca de nossa condição humana, feita da união dos
contrários. Acolher tal sombra, ficar atento a que seus efeitos maléficos não atinjam
os outros nos faz humildes, compreensivos das sombras alheias e nos permite uma
experiência humana mais completa e integrada.
A segunda dimensão é a relação com os outros, aberta, sincera, transparente e
feita de trocas enriquecedoras. Somos seres de relação. Não há nenhuma
autorrealização cortando os laços com os demais.
A terceira dimensão é alimentar certo nível de espiritualidade. Com isso não se
pretende que a pessoa deva se inscrever em alguma confissão religiosa. Pode até
ocorrer, mas não é imprescindível. O importante é abrir-se ao capital
humano/espiritual, que, ao contrário do capital material, é ilimitado e feito de valores
como a verdade, a justiça, a solidariedade e o amor. Ele não é monopólio das
religiões, embora encontre nelas vasto campo de realização. Temos a ver com um
dado antropológico, presente em todos os seres humanos.
É nessa dimensão que emerge a questão impostergável: Que sentido tem, afinal,
minha passagem por este pequeno e esplêndido planeta e o inteiro universo? Que
posso esperar? A volta ao pó cósmico ou ao abrigo num Útero divino que me acolhe
assim como sou?
Se essa última for a resposta, a autorrealização traz uma tranquila serenidade e
uma serena tranquilidade, por fim, uma felicidade íntima que ninguém nos pode
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roubar. Ela é adequada ao impulso interior que busca o infinito, como as águas que se
orientam pelo sol e pelo vasto horizonte da paisagem. No seu termo, encontramos,
finalmente, a realidade de Deus, mais sentida pelo coração do que pensada pela razão.
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A mais longa viagem: rumo ao próprio coração
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Observava o grande conhecedor dos meandros da psique humana C. G. Jung: a
viagem rumo ao próprio Centro, ao coração, pode ser mais perigosa e longa do que a
viagem à lua. No interior humano habitam anjos e demônios, tendências que podem
levar à loucura e à morte, e energias que conduzem ao êxtase e à comunhão com o
Todo.
Há uma questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é
a estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o caso
de sumariá-las.
Indo diretamente ao assunto, diria que não é a razão como comumente se afirma.
Esta não irrompe como primeira. Ela remete a dimensões mais primitivas de nossa
psique humana das quais se alimenta e que a perpassam em todas as suas expressões.
A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção, de
paixão e de interesse. Conhecer é sempre entrar em comunhão interessada e afetiva
com o objeto do conhecimento.
Mais que ideias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências
seminais que nos movem e nos põem em marcha. Eles nos levantam, nos fazem
arrostar perigos e até arriscar a própria vida.
O primeiro parece ser a inteligência cordial, sensível e emocional. Suas bases
biológicas são as mais ancestrais, ligadas ao surgimento da vida, há 3,8 bilhões de
anos, quando as primeiras bactérias irromperam no cenário da evolução e começaram
a dialogar quimicamente com o meio para poder sobreviver.
Esse processo se aprofundou a partir do momento em que surgiu primeiramente
o cérebro reptiliano, há trezentos milhões de anos, que responde por nossas reações
instintivas e os movimentos autônomos de nosso corpo (pulsar do coração,
movimento das pálpebras e as reações inconscientes perante o risco, como a freada do
carro prestes a bater noutro); sobre ele se construiu, há mais de duzentos milhões de
anos, o cérebro límbico dos mamíferos, cérebro portador de cuidado, enternecimento,
carinho e amor pela cria, gestada no seio dessa espécie nova de animais, à qual nós
humanos também pertencemos. Em nós ele alcançou o patamar autoconsciente e
inteligente. Todos nós estamos vinculados a essa tradição primeva. Só tardiamente
emergiu o cérebro intelectual, o neocortex, por volta de cinco a sete milhões de anos,
e a plena autoconsciência com o Homo sapiens, há duzentos mil anos.
O pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, centrou-se no cérebro
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intelectual. Colocou o cérebro sensível ou cordial, sede do afeto e de todos os
sentimentos, sob suspeita, com o pretexto de prejudicar a objetividade do
conhecimento. Houve um excesso, o racionalismo, que chegou a produzir em alguns
setores da cultura uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma completa
insensibilidade perante o sofrimento humano e dos demais seres e da própria Mãe
Terra. O papa Francisco, em Lampedusa, perante os imigrados africanos, criticou a
globalização da insensibilidade, incapaz de se compadecer e chorar.
Mas podemos dizer que, a partir do romantismo europeu (com Herder, Goethe e
outros), começou a se resgatar a inteligência sensível. O romantismo é mais que uma
escola literária. É um sentimento do mundo, de pertença à natureza e da integração
dos seres humanos na grande cadeia da vida (Löwy e Sayre, Revolta e melancolia,
28-50).
Modernamente, o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) ganharam centralidade.
Esse passo é hoje imperativo, pois somente com a razão (logos), não damos conta das
graves crises por que passa a vida, a humanidade e a Terra. A razão intelectual
precisa integrar a inteligência emocional,sem o que não construiremos uma realidade
social integrada e de rosto humano. Não se chega ao coração do coração sem passar
pelo afeto e pelo amor. Importa ainda reconhecer como fato de realidade a
inteligência espiritual, que nos faz perceber, nos fatos, valores, e nas coisas,
mensagens, e que nos dá acesso a uma experiência de totalidade e de sentido
universal.
Um dado, entretanto, cabe ressaltar, entre outros importantes, por sua relevância
e pela alta tradição de que goza: é a estrutura do desejo que marca a psique humana.
Partindo de Aristóteles, passando por Santo Agostinho e por medievais como São
Boaventura (chama a São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), por
Schleiermacher, Max Scheler, nos tempos modernos, e culminando em Sigmund
Freud, Ernst Bloch e René Girard, nos tempos mais recentes, todos afirmam a
centralidade da estrutura do desejo.
O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que dinamiza e põe em
marcha toda a vida psíquica. Ele funciona como um princípio, traduzido também pelo
filósofo Ernst Bloch por princípio esperança. Por sua natureza, o desejo é infinito e
confere o caráter infinito ao projeto humano.
O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando
realizado, gera uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão
quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito
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desejado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma propriedade,
uma viagem pelo mundo ou uma nova marca de celular.
Não passa muito tempo e aquelas realidades desejadas lhe parecem ilusórias e
apenas fazem aumentar o vazio interior, grande, do tamanho de Deus. Como sair
desse impasse tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda
realidade? Vagar de um objeto a outro sem nunca encontrar repouso? O ser humano
tem que se colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto de seu
desejo? Ouso responder: esse é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o Infinito
e não o finito.
Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor
inquietum de Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o infatigável
peregrino do Infinito. Em sua autobiografia, As confissões testemunham com
comovido sentimento:
Tarde te amei,
ó Beleza tão antiga e tão nova.
Tarde de te amei.
Estavas dentro de mim, e eu estava fora,
Estavas comigo, e eu não estava contigo,
Tu me chamaste,
gritaste e venceste minha surdez.
Tu mostraste tua Luz, e tua claridade expulsou minha cegueira.
Tu espalhaste o teu perfume, e eu o respirei.
Eu suspiro por Ti, eu te saboreio,
tenho fome e sede de Ti.
Tu me tocaste e eu queimo de desejo de tua paz.
Meu coração inquieto não descansa enquanto não repousar em Ti.
(Santo Agostinho, Confissões, livro X.)
Aqui temos descrito o percurso do desejo que busca e encontra o seu obscuro
objeto sempre desejado, no sono e na vigília. Só o Infinito se adéqua ao desejo
infinito do ser humano. Só então termina a viagem rumo ao coração e começa o
sábado do descanso humano e divino.
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O arquétipo do caminho e a autorrealização
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Os caminhos sempre fascinam, especialmente caminhos de roça, que sobem
penosamente a montanha e desaparecem na curva da mata. Ou caminhos cobertos de
folhas de outono, multicores e em tardes mortiças, como é comum nos países
nórdicos.
É que os caminhos estão dentro de nós. E há que se perguntar aos caminhos o
porquê das distâncias, por que, por vezes, são tortuosos, cansativos e difíceis de
percorrer. Eles guardam os segredos dos pés dos caminhantes, o peso de sua tristeza,
a leveza de sua alegria ao encontrar a pessoa amada.
O caminho constitui um dos arquétipos mais ancestrais da psique humana. O ser
humano guarda a memória de todo o caminho perseguido pelos 13,7 bilhões de anos
do processo de evolução. Especialmente, guarda a memória de quando nossos
antepassados emergiram, há milhões de anos: o ramo dos vertebrados, a classe dos
mamíferos, a ordem dos primatas, a família dos hominídeos, o gênero Homo, a
espécie sapiens/demens atual.
Por causa dessa incomensurável memória, o caminho humano apresenta-se tão
complexo e, por vezes, indecifrável. No caminho de cada pessoa trabalham sempre
milhões e milhões de experiências de caminhos passados e andados por infindáveis
gerações.
A tarefa de cada um é prolongar esse caminho e fazer o seu caminho de tal forma
que melhore e aprofunde o caminho recebido, endireite o torto e legue, aos futuros
caminhantes, um caminho enriquecido com sua pisada.
Mas não pise, preguiçosamente, na pisada dos outros. Deixe a sua pisada, mesmo
que seja sobre espinhos e abrolhos. Ela será só sua e deixará uma marca da
caminhada humana por esse pequeno planeta azul e branco.
Sempre o caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a
meta e, simultaneamente, é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos
sentimos perdidos, interior e exteriormente. Mergulhamos na escuridão e na
confusão. Como hoje, a humanidade sem rumo e num voo cego, sem bússola e
estrelas a orientar as noites ameaçadoras.
Cada ser humano é Homo viator, é um caminhante pelas estradas da vida. Como
diz o poeta cantante indígena argentino Atahulpa Yupanki: “O ser humano é a Terra
que caminha”. Não recebemos a existência pronta. Devemos construí-la. E para isso
importa rasgar caminho, para além dos caminhos andados que nos antecederam.
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Mesmo assim, o nosso caminho pessoal e particular nunca é dado uma vez por todas.
Tem que ser construído com criatividade e destemor. Como diz o poeta espanhol
António Machado: “Caminhante, não há caminho, se faz caminho caminhando”.
Efetivamente, estamos sempre a caminho de nós mesmos. Fundamentalmente,
nele nos realizamos ou nos perdemos. Por isso, há basicamente dois caminhos, como
diz o primeiro salmo da Bíblia: o caminho do justo e o caminho do ímpio, o caminho
da luz e o caminho das trevas, o caminho do egoísmo e o caminho da solidariedade, o
caminho do amor e o caminho da indiferença, o caminho da paz e o caminho do
conflito. Numa palavra: o caminho que leva a um fim bom e o caminho que leva a um
abismo.
Mas prestemos atenção: a condição humana concreta é sempre a coexistência
dos dois caminhos e seu entrecruzamento. No bom caminho se esconde também o
mau. No mau, o bom. Ambos atravessam nosso coração. Esse é o nosso drama, que
pode se transformar em crise e até em tragédia.
Como é difícil separar totalmente o joio do trigo, o bom do mau caminho, somos
obrigados a fazer uma opção fundamental por um deles: pelo bom caminho, embora
nos custe renúncias e até nos traga desvantagens; mas pelo menos nos dá a paz da
consciência e a percepção de fazer o certo.
E há os que optam pelo caminho do mal: este é mais fácil, não impõe
constrangimento algum, pois vale tudo, contanto que traga vantagens. Mas cobra um
preço: a acusação da consciência, os riscos de punições e até de eliminação.
Mas a opção fundamental confere a qualidade ética ao caminho humano. Se
optarmos pelo bom caminho, não serão pequenos passos equivocados ou tropeços que
irão destruir o caminho e seu rumo. O que conta realmente para a consciência e diante
daquele que a todos julga com justiça é esta opção fundamental pelo reto caminho.
Por essa razão, a tendência dominante na teologia moral cristã é substituir a
linguagem de pecado venial ou mortal por uma mais adequada à unidade do caminho
humano: fidelidade ou infidelidade à opção fundamental, ao caminho do bem
escolhido como projeto de vida.
Não se há de isolar atos e julgá-los desconectados da opção fundamental. Trata-
se de captar a atitude básica e o projeto de fundo que se traduz em atos e que unifica a
direção da vida. Se esta opta pelo bem, com constância e fidelidade, será ela que
conferirá maior ou menor bondade aos atos, não obstante os altos e baixos que
sempre ocorrem, mas que não chegam a destruir o caminho do bem. Este vive no
estado de graça.
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Mas há também os que optaram pelo caminho do mal. No ocasoda vida,
certamente passarão pela severa clínica de Deus, que os purificará até perceberem,
humildemente, a misericórdia divina sobre suas maldades.
Não há escapatória: temos que escolher que caminho construir e como seguir por
ele, sabendo que “viver é perigoso”, como dizia Guimarães Rosa. Mas nunca
andamos sós. Multidões caminham conosco, solidárias no mesmo destino,
acompanhadas por alguém chamado “Emanuel, Deus-conosco”. Estamos sempre na
palma de sua mão bondosa.
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No deserto há também vida e flores
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O deserto é uma realidade misteriosa e uma metáfora fecunda do percurso
contraditório da vida humana.
Atualmente 40% da superfície terrestre estão em processo avançado de
desertificação. Os desertos crescem na proporção de 60 mil km2 por ano, o que
equivale a 12 hectares por minuto. No Brasil há 1 milhão de km2 em processo de
desertificação. Só no Nordeste e em Minas Gerais são 180 mil km2. Esse fenômeno
ameaçador para as colheitas, para a fome e a emigração de populações inteiras se
deve ao desflorestamento, ao mau uso do solo, às mudanças climáticas e aos ventos.
Lembremos o maior deserto do mundo, o Saara, que possui uma superfície maior
que a do Brasil (9.065.000 km2). Há dez mil anos, era coberto por densas florestas
tropicais, contendo fósseis de dinossauros e sinais arqueológicos de antigas
civilizações, pois outrora o rio Nilo desaguava no Atlântico. Nessa época, porém,
ocorreu uma drástica mudança climática que o transformou numa imensa savana e
depois num deserto árido e extremamente seco. Não é uma advertência para a
Amazônia?
Mas a vida se mostra sempre mais forte. Ela resiste, se adapta e acaba
triunfando. Ainda hoje nos desertos viceja vida: mais de oitocentas espécies de
vegetais e minúsculos insetos e animais. Mas basta soprar um vento mais úmido ou
caírem algumas gotas de água para a vida invisível irromper soberbamente.
Em oito dias, a semente germina, floresce, madura, dá fruto que cai ao solo. Ela
se recolhe. Espera mais de um ano, sob a calícula do sol e o vergastar do vento, até
que possa de novo germinar e continuar o ciclo ininterrupto e triunfante da vida.
Outros arbustos se enrolam sobre si mesmos, se contorcem para escapar dos ventos e
sobreviver. No cerrado brasileiro, as plantas parecem arbustos retorcidos, baixas e
sem beleza. Mas nelas ocorre um fenômeno raro: elas formam uma Amazônia
invertida; crescem para baixo, três, cinco, até sete ou mais metros. Alcançam o lençol
freático e irrigam os solos e alimentam os rios. O cerrado do Brasil central é a grande
caixa d’água onde nasce grande parte dos rios brasieiros.
A tragédia consiste nisso: o agronegócio, não podendo mais desmatar a
Amazônia, se refugiou no cerrado central. Começou-se a derrubar essas árvores
retorcidas. Plantaram soja e girassol. Eles possuem raízes de poucos centímetros.
Eliminadas as plantas originais, faltam as raízes que alcançam o lençol freático que
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alimenta os rios. A consequência é que os rios estão diminuindo, como o rio São
Francisco, o Paraná e outros, afetando todo o clima do Brasil central. Como essas
terras são das mais velhas do planeta, não são mais recuperáveis. O destino do
Cerrado é transformar-se numa savana e lentamente num deserto.
Voltando ao tema do deserto: nele pequenos animais se alimentam de insetos,
borboletas, libélulas e sementes trazidas pelo vento.
Mas quando há um oásis, a natureza parece se vingar: o verde é mais verde, os
frutos, mais coloridos, e a atmosfera, mais ridente. Tudo proclama a vitória da vida.
Com sua tecnologia, o ser humano rasga os desertos, traça estradas luzidias,
devolve o deserto à civilização, como ocorre nos EUA, na China e no Chile. Essa é a
realidade da ecologia exterior do deserto.
Mas há desertos interiores, da ecologia profunda. Cada pessoa humana tem o seu
deserto para atravessar em busca de uma “terra prometida”. É um percurso penoso e
cheio de miragens. Mas o espera sempre um oásis para refazer as forças.
Há desertos e desertos: deserto dos sentidos, do espírito, da fé. O deserto dos
sentidos ocorre especialmente nas relações interpessoais. Depois de alguns anos, a
relação de um casal conhece o deserto da monotomia do dia a dia e a diminuição do
mútuo encantamento. Se não houver criatividade e aceitação dos limites de cada um,
pode acabar a relação. Se a travessia não for feita, permanece o deserto desalentador.
Bem dizia o poeta: “Povo da capital: um recado vim trazer / vou falar da maior
seca / que a todos faz padecer. / A seca mudou da caatinga / E foi morar em você”
(Ivo Tato, Corações secos). E emendava o filósofo Nietzsche: “O deserto cresce; ai
de quem guarda dentro de si desertos” (Ditirambos de Dionísio).
Há ainda o deserto do espírito. No século IV, quando o cristianismo começou a
aburguesar-se, leigos cristãos se propuseram a manter vivo o sonho de Jesus. Foram
ao deserto para encontrar uma terra prometida em sua própria alma e encontrar o
Deus nu e vivo. E o encontraram. Trata-se de uma travessia perigosa do deserto. São
João da Cruz fala da noite do espírito “terrível e amedrontadora”. Mas o resultado é
uma integração radical. Então, da aridez nasce o paraíso perdido. O deserto floresce.
Ele se constitui como uma metáfora dessa busca e desse encontro com o profundo de
si mesmo.
Por fim há o deserto da fé. Até o advento do papa Francisco, que significou uma
primavera da Igreja, porque trouxe novos ares e novos hábitos à velha e cansada
cristandade europeia, vivia-se na Igreja católica um árido deserto. Procurou-se
esvaziar o espírito de renovação do Concílio Vaticano II, criando um inverno severo
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no quadro de uma volta à antiga disciplina e a estilos de piedade e de pensamento
mais ligados ao mundo medieval que aos tempos modernos que, queiramos ou não,
são também tempos de Deus.
A Igreja se comportava como uma fortaleza sitiada e fechada aos apelos dos
povos, de seus lamentos e esperanças. Com o papa Francisco, a Igreja se entende
como uma casa aberta para todos, um hospital de campanha que atende a todos os
feridos, independentemente de seu credo ou raça. Ela quer trazer a alegria do
evangelho (o título de sua primeira exortação apostólica Evangelii Gaudium) e não o
ar fúnebre de quem vai ao próprio enterro, para usar uma das expressões fortes do
papa Francisco.
Os crimes de pedofilia de muitos religiosos e os escândalos financeiros do banco
do Vaticano fizeram com que muitos fiéis conhecessem o deserto: emigraram da
instituição religiosa, embora mantendo o sonho de Jesus e a fidelidade aos
evangelhos. Mas eis que, com um papa que “veio do fim do mundo, da Argentina”,
pudemos vislumbrar um oásis florido. O cristianismo resgatou o frescor dos tempos
originários quando era vivido como boa-nova para todo o povo e agora como
bandeira de esperança para toda a humanidade, carente de referências e de líderes
carismáticos que nos rasgam novos horizontes e que podem alimentar insuspeitadas
energias para enfrentar e superar a crise de civilização pela qual passa a humanidade.
Agora, com essa verdadeira primavera eclesial, percebemos que, no fim do
caminho, não há um abismo, mas uma ponte para um ansiado mundo novo. O deserto
reviveu e deu vida e flores.
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Tudo o que existe e vive merece respeito
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A cultura moderna, desde os seus albores no século XVI, está assentada sobre uma
brutal falta de respeito, primeiro, para com a natureza, tratada como um torturador
trata a sua vítima com o propósito de arrancar-lhe todos os segredos (Francis Bacon).
Depois, para com as populações originárias da América Latina, em grande parte
exterminadas.
Em sua “Brevíssima Relação da Destruição das Índias” (1562), conta Bartolomé
de las Casas, como testemunho ocular, que os espanhóis “em apenas 48 anos
ocuparam uma extensão maior que o comprimento e a largura de toda a Europa, e
uma parte da Ásia, roubando e usurpando tudo com crueldade, injustiça e tirania,
havendo sido mortas e destruídas vinte milhões de almas de um país que tínhamos
visto cheio de gente e de gentetão humana” (Décima Réplica). Em seguida,
escravizou milhões de africanos trazidos para as Américas, negociados como “peças”
no mercado e consumidos como carvão na produção.
Seria longa a ladainha dos desrespeitos de nossa cultura, culminando nos campos
de extermínio nazista de milhões de judeus, de ciganos e de outros, considerados
inferiores, e desde 2014 a violência assassina do Estado Islâmico na Síria e no Iraque.
Sabemos que uma sociedade só se constrói e dá um salto para relações
minimamente humanas quando instaura a comensalidade, a solidariedade e o respeito
de uns para com os outros.
O respeito, como o mostrou bem o psicanalista inglês Winnicott, nasce no seio
da família, especialmente a partir da figura dos pais, responsável pela passagem do
mundo do eu para o mundo dos outros. Com estes emerge o primeiro limite a ser
respeitado. Um dos critérios de uma cultura é o grau de respeito e de autolimitação
que seus membros se impõem e observam. Surge, então, a justa medida, sinônimo de
justiça. Rompidos os limites, vigora o desrespeito, a imposição sobre os demais e a
violência. Respeito supõe reconhecer o outro como outro e seu valor intrínseco, sejam
pessoas ou qualquer outro ser.
A Carta da Terra, um dos documentos mais importantes dos inícios do século
XXI, que propõe princípios e valores para salvar a vida no planeta Terra, estabelece
como primeiro e fundamental princípio “respeitar e cuidar da comunidade de vida...;
reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor,
independentemente de sua utilidade para os seres humanos” (I, 1).
Entre as muitas crises atuais, a falta generalizada de respeito é seguramente uma
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das mais graves. O desrespeito campeia em todas as instâncias da vida individual,
familiar, escolar, social e internacional. Por essa razão, o pensador búlgaro-francês
Tzvetan Todorov, em seu recente livro O medo dos bárbaros (Vozes, 2010) adverte
que, se não superarmos o medo e o ressentimento e não assumirmos a
responsabilidade coletiva e o respeito universal, não teremos como proteger nosso
frágil planeta e a vida na Terra, já ameaçada.
O tema do respeito nos remete a Albert Schweitzer (1875-1965), prêmio Nobel
da Paz de 1952. Nascido na Alsácia, era um dos mais exímios concertistas de Bach e
simultaneamente um dos mais eminentes teólogos de seu tempo. Seu livro A história
da pesquisa sobre a vida de Jesus é um clássico por mostrar que não se pode escrever
cientificamente uma biografia de Jesus. Os evangelhos contêm história, mas não são
livros históricos. São teologias que usam fatos históricos e narrativas com o objetivo
de mostrar a significação de Jesus para a salvação do mundo. Por isso, sabemos
pouco do verdadeiro Jesus de Nazaré.
Schweitzer comprendeu: histórico mesmo é o Sermão da Montanha, e importa
vivê-lo. Abandonou a cátedra de teologia, deixou de dar concertos de Bach e se
inscreveu na faculdade de medicina. Formado, foi a Lambarene, no Gabão, África,
para fundar um hospital e servir a hansenianos (leprosos). E ali trabalhou, dentro das
maiores limitações, pelo resto de sua vida.
Confessa explicitamente: “O que precisamos não é enviar para lá missionários
que queiram converter os africanos, mas pessoas que se disponham a fazer para os
pobres o que deve ser feito, caso o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus
possuam algum sentido. O que importa mesmo é tornar-se um simples ser humano
que, no espírito de Jesus, faz alguma coisa, por pequena que seja”.
No meio de seus afazares de médico, encontrou tempo para escrever. Seu
principal livro é Respeito diante da vida, que ele colocou como o eixo articulador de
toda ética. “O bem”, diz ele, “consiste em respeitar, conservar e elevar a vida até o
seu máximo valor; o mal consiste em desrespeitar, destruir e impedir a vida de se
desenvolver”. E conclui: “Quando o ser humano aprender a respeitar até o menor ser
da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu
semelhante; a grande tragédia da vida é o que morre dentro do homem enquanto ele
vive”.
Como é urgente ouvir e viver essa mensagem nos dias sombrios que a
humanidade está atravessando, com povos inteiros sendo desprezados por sua religião
ou hábitos e a própria Mãe Terra sofrendo intermináveis agressões.
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Cuidado e sustentabilidade: pilastras de um novo
mundo
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Hoje o desenvolvimento promovido por quase todos os países sequestrou a
categoria da sustentabilidade. Por todos os modos procura-se um desenvolvimento
que seja sustentável. Entretanto, a sustentabilidade não pode ser reduzida ao campo
da economia. Representam duas lógicas diferentes e até opostas. Uma é linear; a
outra, circular. Diria até que o tipo de desenvolvimento realmente existente é tudo,
menos sustentável. Daí que devemos liberar a categoria sustentabilidade do
desenvolvimento. Analisá-la em si mesma e em seguida considerar que tipo de
desenvolvimento pode ser considerado sustentável.
Retomando o tema: a sustentabilidade em sentido econômico se rege pela
linearidade, pelo crescimento ilimitado que implica exploração da natureza e criação
de profundas desigualdades.
O conceito de sustentabilidade, porém, provém de outra área, da biologia e da
lógica da vida. Esta é circular, envolve a todos os seres com relações de
interdependência e de inclusão, de sorte que todos podem e devem conviver e
coevoluir.
Assim, sustentável é uma realidade que consegue se manter, se reproduzir,
conservar-se à altura dos desafios do ambiente e estar sempre bem. E isso resulta do
conjunto das relações de interdependência entre todos os seres e fatores, com seus
respectivos hábitats. A sustentabilidade funda um paradigma que deve se realizar em
todos os âmbitos do real.
Para que a sustentabilidade realmente ocorra, especialmente quando entra o fator
humano, capaz de intervir nos processos naturais, não basta o funcionamento
mecânico dos processos de interdependência e inclusão. Faz-se mister uma outra
realidade a se compor com a sustentabilidade: o cuidado. Este constitui uma relação
amorosa, não agressiva e protetora dos processos vitais. Ele também funda um novo
paradigma.
Antes de mais nada, o cuidado constitui uma constante cosmológica. Se as
energias originárias e os elementos primeiros não fossem regidos por um sutilíssimo
cuidado para que tudo mantivesse a sua devida proporção, o universo não teria
surgido e nós não estaríamos aqui escrevendo sobre o cuidado.
Nós mesmos somos filhos e filhas do cuidado. Se nossas mães não nos tivessem
acolhido com infinito cuidado, não teríamos como descer do berço e ir buscar o nosso
alimento. O cuidado é aquela condição prévia que permite um ser vir à existência. É o
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orientador antecipado de nossas ações para que sejam construtivas e não destrutivas.
Em tudo o que fazemos entra o cuidado. Cuidamos do que amamos. Amamos
aquilo de que cuidamos. Hoje, pelos conhecimentos que possuímos acerca dos riscos
que pesam sobre a Terra e a vida, se não cuidarmos, surge a ameaça de nosso
desaparecimento como espécie, enquanto a Terra, empobrecida, seguirá, pelos
séculos afora, seu curso pelo cosmos, mas sem nós. Até quem sabe surja outro ser
dotado de alta complexidade e cuidado, capaz de suportar o espírito e a consciência.
A categoria cuidado possui uma longa história que vem da mais alta antiguidade,
dos gregos, dos romanos, passando por Santo Agostinho e culminando em Martin
Heidegger, que veem no cuidado a essência mesma do ser humano, no mundo, junto
com os outros e voltado ao futuro. Identificamos quatro grandes sentidos, todos
mutuamente implicados.
Primeiro: cuidado é uma atitude de relação amorosa, suave, amigável,
harmoniosa e protetora para com a realidade pessoal, social e ambiental.
Metaforicamente, podemos dizer que o cuidado é a mão aberta que se estende
para a carícia essencial, para o aperto das mãos, com os dedos que se entrelaçam com
outros dedos para formar uma aliança de cooperação e a união de forças. Ele se opõe
à mão fechada e ao punho cerrado para submeter e dominar

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