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Haitianos no Brasil e a Sua Relação Com a Comunicação, o Consumo e o Trabalho - Cristóvão Domingos de Almeida

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SUMÁRIO
Capa
Rosto
1. INTRODUÇÃO
2. COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE DE CONSUMO
2.1. A comunicação e o consumo como fenômenos sociais
2.2. Consumo, migrações e os vínculos comunicacionais
2.3. Trabalho e migrações no Brasil
2.4. A força vital e as tentativas de ampliar o tempo do trabalho
2.5. Do trabalho informal ao processo de precarização
2.6. Migrações e a mediação social em torno do trabalho
2.7. A imigração sob a ótica do trabalho
3. Haiti: contexto histórico, político e fluxo migratório
4. Percurso e procedimentos metodológicos
4.1. São Paulo e a Missão Paz: o ponto de partida
4.2. São Paulo: acolhida, desafios e mobilizações migratórias
5. A relação dos haitianos com a comunicação, o consumo e o trabalho
5.1. Comunicação e consumo enquanto produção simbólica na rede migratória e
solidária
5.2. As dimensões do consumo simbólico
5.3. Haitianos e o direito ao trabalho
5.4. Do trabalho formal às condições de precarização
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Ficha Catalográfica
Notas
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1. INTRODUÇÃO
Este estudo tem como objetivo analisar e compreender um dos fenômenos recentes
nos processos migratórios: a vinda de haitianos para o Brasil, estabelecendo conexão
com o consumo de mídia como base informacional para o acesso ao mundo do
trabalho. A presença maciça de haitianos no Brasil configura uma nova realidade no
fluxo migratório, tanto no aspecto sociocultural, econômico e político quanto nas
dimensões das práticas comunicacionais e do consumo simbólico.
Em janeiro de 2010, um terremoto destruiu a capital do Haiti e algumas cidades
do entorno, deixando muitos mortos, feridos e desabrigados. Os sobreviventes
passaram a viver em barracas de acampamentos, sem infraestrutura, em meio à falta
de alimento e água potável. As péssimas condições de vida nos arredores da capital
Porto Príncipe provocaram um dos maiores fenômenos migratórios internos e
externos.
Diante desse cenário de instabilidade e vulnerabilidade, uma quantia considerável
da população haitiana iniciou o processo de travessia, com atenção aos países do Sul,
em função da restrição e do controle migratório de países do Norte. Saíram em busca
de novas oportunidades: trabalho, estudo, moradia e qualidade de vida. Os países que
ganharam atenção para o ingresso dos haitianos foram: República Dominicana, Cuba
e Brasil, uma vez que o acesso aos EUA, local de preferência dos haitianos, foi
limitado.
Diante de algumas posturas de acolhida que receberam dos militares brasileiros em
missão de paz no Haiti, mesmo que ainda hoje os ativistas populares os critiquem pela
ocupação, de certo modo, as tropas militares contribuíram com a construção do
imaginário de que no Brasil, por ser um país miscigenado, os haitianos teriam
facilidade de ingresso, ampla aceitação, oportunidades de trabalho e ausência de
discriminação étnico-racial.
O Brasil chamou a atenção dos haitianos por conta do desempenho econômico.
Também porque sediaria dois grandes eventos de repercussão internacional: Copa do
Mundo e Jogos Olímpicos. Esses dois cenários se uniram à narrativa do futebol, dos
enquadramentos das imagens divulgadas nas telenovelas, associados à alegria do povo
brasileiro, acolhedor, que reconhece o outro e aberto às interações sociais.
Essas narrativas contribuíram para que os haitianos olhassem o Brasil não como
um país de passagem, mas de possibilidades de convívio duradouro ou transitório
(SAYAD, 1998). Diante disso, é importante esclarecer que o fluxo migratório no
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Haiti ocupa um lugar de destaque na vida das pessoas, isso quer dizer que a diáspora
haitiana é uma realidade histórica (HANDERSON, 2015).
Nessa conjuntura, as autoridades brasileiras também tiveram alguns gestos de
acolhida. Em visita oficial ao país caribenho, em 2004, o presidente Lula demonstrou
solidariedade, fez o pedido à comunidade internacional que perdoasse a dívida externa
do Haiti e mostrou interesse em acolher os imigrantes. O gesto de compromisso
social foi emitido também pela presidenta Dilma com a publicação, em 2012, da
resolução do visto humanitário. Não eliminou a figura dos atravessadores por
completo, mas foi um passo importante para a conquista do visto mais humanizado.
Tanto é que os haitianos, até 2012, ingressaram no país pela região Norte: cidade de
Brasileia, no estado do Acre e cidade de Tabatinga, no estado do Amazonas. A partir
de 2013, passaram a chegar diretamente a São Paulo.
Neste estudo, centralizam-se esforços para compreender a relação dos haitianos,
em solo brasileiro, com a comunicação, o consumo e o trabalho. Compreendendo a
comunicação como um espaço de troca, partilha, compartilhamento das ações e
interações entre as pessoas. França (2001) afirma que a comunicação compreende a
presença de interlocutores que se envolvem nos processos de produção, interpretação e
socialização dos sentidos.
Wolton (2006) nos instiga a pensar a comunicação enquanto ser, fazer e agir. Esse
movimento se inicia com a comunicação humana, ou seja, comunicar é construir e
manter vínculos. Quem comunica partilha algo com alguém, num processo dialógico
e de reciprocidade. Afasta-se aqui a ideia de o emissor ser soberano e o receptor
passivo. Deve haver ação, trocas e compartilhamento das informações. Nesse sentido,
a comunicação se dá quando emissor e receptor se sentem parte do processo e estão no
mesmo patamar de igualdade, nem mais, nem menos. De modo que não há
comunicação sem o respeito e o compromisso com o outro.
Essa abordagem parte do entendimento de que a comunicação é condição
normativa e constitutiva da ação humana (WOLTON, 2006). Antes de ser
tecnológica, a comunicação face a face, e mesmo pública e coletiva, possibilita e
potencializa os avanços necessários à evolução da pessoa em todas as suas dimensões,
desde a ordem material até a simbólica.
Nesse sentido, mesmo reconhecendo a complexidade do encontro entre
comunicação e consumo, na sociedade contemporânea, era da comunicação e do
consumo, há íntima relação entre os conceitos, não na perspectiva de satisfazer as
necessidades biológicas, mas na capacidade de pensar criticamente a realidade e as
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experiências cotidianas dos sujeitos inseridos na sociedade em rede global
(CASTELLS, 2015), tendo à sua disposição os instrumentos e as plataformas de
mídia.
A comunicação e o consumo podem servir de espaço de mediação social, processo
colaborativo que ajuda a orientar as trocas, os encontros, a socialização e o
pertencimento. Ou seja, a proposta é contribuir com os sujeitos para serem capazes de
interpretar e ressignificar as informações, os conteúdos, os produtos e as mensagens.
Para isso, cabe aos sujeitos conhecerem, se conscientizarem e participarem ativamente
do processo. Caso contrário, entra-se na dimensão da comunicação e do consumo do
descarte, do transitório e do não durável.
Ao enfatizar a comunicação e o consumo enquanto base de sustentação das
relações sociais e espaço para viabilizar a divulgação de produtos, serviços e bens
materiais e simbólicos, eles se conectam, de igual modo, com o trabalho enquanto
atividade central na vida das pessoas. Para os imigrantes, por exemplo, a conquista do
espaço de trabalho e a geração de renda são as principais motivações para o
deslocamento. A força vital do trabalho gera inclusão social, possibilita usufruir de
conhecimentos, gerando aprendizado, satisfação pessoal e coletiva, mantendo, assim,
os contatos presenciais ou digitais.
Em uma perspectiva histórica, pode-se dizer que o sentido, o valor e a importância
do trabalho nem sempre foram os mesmos ao longo da tradição ocidental. Em
específico, identificam-se três momentos que ajudam a explicar sua situação na
atualidade:
Num primeiro momento, houve um período em que o trabalho não possuía uma
grande relevância na construção da subjetividade. Isso ocorreu pelo menos ao longo da
Antiguidade, passando pela Idade Média até o Renascimento. Nesse período, o
trabalho não desfrutava de um status prestigiado em si mesmo. Ele estava à margem
em relação a valores sociais consideradoscentrais.
Num segundo momento, na sociedade industrial, o sentido e o valor do trabalho
são redefinidos. O trabalho se apresenta como fonte de valor econômico. Isso fez com
que, durante esse período, a atividade laboral ganhasse status de valores socioculturais
e políticos.
Num terceiro momento, o trabalho é criticado como única fonte do valor
econômico, uma vez que os trabalhadores são controlados de outras formas e em
outros espaços, não apenas pelas empresas. Dessa forma, o trabalho ainda é uma das
principais vias de acesso à renda e de organização de rotinas produtivas, mas também
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os trabalhadores, nos dias atuais, vivem constante insegurança no mundo do trabalho,
exercendo as atividades em condição de precariado (STANDING, 2015) e na
precarização (ANTUNES, 2013). Na expressão de Baitello Junior (2014), quanto
mais se trabalha, menos vale o próprio trabalho.
Na construção desta pesquisa, realizamos entrevistas com dezenove haitianos e
observação in loco na cidade de São Paulo, na Missão Paz, durante o segundo semestre
de 2016 e o primeiro semestre de 2017. Trata-se de entrevistas semidirigidas para
compreender a relação dos haitianos com a comunicação, o consumo e o trabalho,
enquanto oportunidade de recomeço da situação de vida em solo brasileiro.
Evidenciamos que os haitianos utilizam a comunicação e o consumo para fortalecer a
rede migratória e solidária. Entende-se que os usos, mais especificamente do celular e
das plataformas digitais, são espaços de valorização da informação (FLUSSER, 1985),
que revelam as potencialidades e se articulam em forma de resistências.
Por fim, a proposta de compreender o fluxo migratório dos haitianos se mostra útil
por oferecer abertura conceitual e analítica de forma ampla e articulada. Por isso, a
reflexão está dividida em duas partes: a primeira está centrada no desafio de realizar a
conexão entre comunicação, consumo e trabalho, que, no fundo, implica estabelecer
as articulações em busca de ações que incluam, transformem e gerem vínculos e não
usem os sujeitos como descartes. Na segunda parte, contextualiza-se o fenômeno
migratório haitiano, as travessias e seus desafios, e são trazidos à tona os relatos dos
sujeitos, suas lutas, reconhecendo a força da rede migratória e solidária, a partir do
informacional e do comunicacional, bem como o compromisso do imigrante com o
viver e a vida de quem está perto ou longe, mostrando que, no processo migratório, as
distâncias também são aproximadas através da resistência e do afeto.
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2. COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE DE CONSUMO
A comunicação[1] é conceituada por diversos autores, entre eles Thompson (١٩٩٨),
Bordenave (٢٠٠٦), Freire (١٩٩٧) e Duarte (٢٠٠٣), como sendo uma das
necessidades básicas nas relações humanas. Para Thompson (١٩٩٨, p. ٣٦), a
comunicação “[...] serve para que as pessoas se relacionem entre si, transformando-se
mutuamente”. Estabelecer relações a partir da comunicação é estar ciente da
importância da prática comunicacional na construção do sujeito na sociedade. Nessa
perspectiva, a comunicação pode ser compreendida como um processo que expande as
trocas de experiências e que promove o consumo de objetos, bens e informações
(SILVERSTONE, 2011).
Desse modo, a comunicação se relaciona com as grandes transformações que
experimentamos na contemporaneidade. Para Baccega (2015), a inter-relação entre
comunicação e a sociedade de consumo é vetor central da atualidade. Ariztía (2016, p.
17) complementa essa ideia ao afirmar que “a expansão do consumo mostra-se
geralmente como o principal indicador da expansão dos mercados na vida social”.
É nesse espaço de interações, escolhas e diálogo que pode ser compreendido o
argumento de Thompson (1998, p. 36):
[...] sem a comunicação, cada pessoa seria um mundo fechado a si mesmo.
Pela comunicação as pessoas compartilham experiências, ideias e sentimentos.
Ao se relacionarem como seres interdependentes, influenciam-se mutuamente
e, juntas, modificam a realidade onde estão inseridas.
É importante superar a noção de uma comunicação determinista e passiva, ela não
pode ser compreendida apenas como transferência de informações, de dados, de
experiências e de práticas comunicacionais entre os sujeitos. Ou seja, a comunicação
não deve ser mecânica nem instrumental, mas deve estar envolvida na própria
dinâmica das relações humanas, no cotidiano dos sujeitos e nas escolhas e decisões nos
espaços de consumo. Por isso, Baccega (2013) denomina a contemporaneidade como
a era da comunicação e do consumo, considerando as duas dimensões como
formadoras de um todo indivisível e interdependente.
Nessa perspectiva, Baccega (2015, p. 21) reconhece a complexidade do encontro
entre comunicação e consumo, mesmo que esses conceitos sejam intrínsecos, “os
sentidos se ressignificam e a capacidade de pensar criticamente a realidade obriga a ter
competência para selecionar informações e inter-relacioná-las, produzindo
conhecimentos”.
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O conhecimento produzido é indispensável para favorecer a criticidade dos
sujeitos. Gomes (2007, p. 13) afirma que na comunicação “[...] há sempre alguém
tentando entrar em contato com alguém”, por diversas razões e motivos. Bordenave
(2006, p. 19) reforça essa ideia ao afirmar que a comunicação se confunde com a nossa
própria existência, pois “[...] temos tanta consciência de que comunicamos quanto de
que respiramos ou andamos”, e, nessa lógica, podemos acrescentar o consumo de bens
materiais e culturais enquanto pertencimento à sociedade.
Ao fortalecer a ideia de que a comunicação é um dos pilares na sociedade de
consumo, estamos afirmando que ela é essencial na vida humana, concordamos que o
conviver implica coparticipação dos sujeitos, tornando comuns as experiências
concretas e, ao mesmo tempo, pertencendo ao mundo do outro, pois, como destaca
Freire (1997, p. 66), o universo humano “é um mundo de comunicação”.
O mundo de comunicação pensado por Freire (1997) pode ser atualizado em
nossos dias, segundo Baccega (2013) e Rocha e Rocha (2007), como sociedade da
informação, de consumo. Ou seja, esse mundo de comunicação em que o sujeito está
inserido implica a reciprocidade (FREIRE, 1997), os compartilhamentos de
informações que podem gerar vínculos ou não. O que dá sustentação para a
reciprocidade, socialização e compartilhamentos entre as pessoas é o diálogo, mesmo
que ocorra através das técnicas e das tecnologias da informação. Sem o diálogo não há
comunicação, pois, de acordo com Freire (1997, p. 67), o que “[...] caracteriza a
comunicação enquanto este ‘comunicar comunicando-se’ é que ela é diálogo, assim
como o diálogo é comunicativo”.
É no processo dialógico que as pessoas têm a possibilidade de compartilhar
desejos, decisões, satisfações; socializar informações, produtos e serviços e tornar
disponíveis os bens materiais e simbólicos aos sujeitos. Desse modo, a comunicação e
o consumo podem ser entendidos como um processo colaborativo entre os sujeitos e
também remetem à ideia de trocas, socialização e pertencimento. Para Duarte (2003),
o pertencimento dos sujeitos aos lugares sociais abarca todas as dimensões da
comunicação, pois
[...] para que algo seja comum a um grupo, para que haja comunhão, para
tornar um pensamento comum, os envolvidos inevitavelmente têm de estar
em relação. Estar em relação implica a emergência de uma superfície comum
de troca, ou uma zona de encontro de percepções dos emissores e receptores
(DUARTE, 2003, p. 46).
Percebe-se que emissores e receptores não podem ser considerados seres isolados.
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São seres de relações que pertencem aos espaços socioculturais construídos na
sociedade. Nessa dimensão, entende-se o consumo como uma construção social. Para
Mundel (2016, p. 30), “o consumo traduz as relações sociais e produz sentido sobre
cada indivíduo e sua posição social”.
Nessa linha de pensamento, Abujamra (2016, p. 184) diz que o consumo “ao
longo da humanidade sempre esteve atrelado não só à satisfação das necessidades
biológicas, mas em todos os sentidos, às representações dos desejos e aspiraçõeshumanas no plano do simbólico”. É importante perceber que os bens que
proporcionam satisfações biológicas e simbólicas servem para enviar e receber
mensagens.
Isso demonstra, como indica Abujamra (2016, p. 185), que o “cerne da noção de
consumo não converge na materialidade dos objetos consumidos, mas, sobretudo, na
produção de sentidos que o consumo desses objetos expressa e representa ao gerar
significados”.
A produção de sentido pressupõe estabelecer relações, ou seja, as pessoas não estão
solitárias na sociedade de consumo. Apesar de que, na sociedade de consumo, como
afirma Baccega (2013, p. 18), a duração “é substituída pela transitoriedade, o durável
pela permanente novidade, o estar em movimento é mais importante que adquirir e
possuir bens”.
Nessa dimensão, o pressuposto da sociedade de consumo “não é levar os sujeitos ao
consumo de modo a satisfazer suas necessidades, reais ou imaginárias, mas sim
transformar o próprio consumidor em mercadoria, um produto consumível”
(BACCEGA, 2013, p. 18).
Essa transformação do sujeito em um “produto consumível” nos faz recordar uma
característica bastante difundida da sociedade de consumo: o descarte, a eliminação
dos produtos, o lixo, a substituição, a constante troca de produtos pelo mais novo e
moderno. Como destaca Baccega (2013, p. 19), “a durabilidade parece não ter mais
lugar”, isto é, na sociedade de consumo, os bens, os produtos e as informações devem
ser consumidos rapidamente, dando lugar a novos produtos e conteúdos.
O ciclo da rapidez, das novidades, das trocas, das socializações e dos
compartilhamentos também necessita de filtros. Por isso, Baccega (2013) propõe ligar
o consumo com a noção de cidadania: cidadãos capazes de interpretar e ressignificar
as mensagens, modificando-as ou não. Para Baccega, (2011) existem três passos
indispensáveis na articulação da noção de consumo e cidadania:
[...] 1) o sujeito ter consciência de que é sujeito de direitos; 2) ter
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conhecimento de seus direitos, ou seja, serem dadas a ele condições de acesso
a esse conhecimento; 3) serem adjudicadas ao sujeito as garantias de que ele
exerce ou exercerá seus direitos sempre que lhe convier (BACCEGA, 2011,
p. 27).
Entre os direitos reconhecidos formalmente e aqueles ligados às práticas sociais
está, evidentemente, o direito de consumir bens materiais e simbólicos. É importante
destacar aqui que a noção de consumo carrega consigo visões estereotipadas e, como
afirma Baccega (2011, p. 26), “pode-se dizer que ainda hoje esses olhares superficiais
têm predominância”, muito em razão do que se destaca uma das fases do processo do
consumo: o consumismo.
O consumo se liga à cidadania através da criticidade. Os sujeitos enquanto seres de
relações, que buscam criar vínculos através do processo comunicativo. Essa dinâmica
comunicacional é manifestada e construída nas trocas de sentido e nos sentidos
produzidos desde as conversas face a face, até as mediadas pelas redes sociais digitais e
pelos aplicativos, como é o caso do WhatsApp, demonstrando que, em todas as etapas
da comunicação, é possível reconhecer e caracterizar a presença do consumo, “seja no
formato da divulgação dos bens, seja como reflexo das práticas sociais” (BACCEGA,
2013, p. 14).
No cotidiano das práticas sociais, os sujeitos críticos são aqueles que, como afirma
Duarte (2003, p. 47), não obtêm “[...] concordância total com os enunciados
envolvidos na troca”. Passamos a perceber a construção da cidadania e o processo de
consumo como um conjunto de comportamentos entendido, sim, como um fenômeno
complexo, mas que “envolve as relações socioculturais e se consubstancia num sistema
simbólico, amplificado pelos meios de comunicação” (CARRASCOZA, 2016, p. 7).
A comunicação, neste âmbito, integra-se ao complexo fenômeno cultural,
compreendendo a cultura como sendo um conjunto de práticas individuais e coletivas.
Isso ocorre porque os sinais visíveis das práticas comunicacionais são manifestados
através da palavra. Para Gomes (2001, p. 17), “[...] o homem não é só o ser que
dispõe da palavra como de um instrumento, mas é a linguagem que possibilita ao
homem criar uma existência humana com os outros no mundo”. Por essa razão, é
importante entender o sujeito como alguém sempre aberto a possibilidades, mas não
alguém que se fecha em si mesmo, incomunicável, que não coabita com o outro
(WOLTON, 2006), ou alguém cristalizado em suas próprias certezas, mas pessoas
dispostas a exercer a comunicação e o consumo como elementos fomentadores de
novas formas de sociabilidade.
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Por essa razão, a comunicação passa a ser valorizada também como estratégia dos
indivíduos a se relacionarem com a sociedade em geral, conforme destaca Rodrigues
(1997, p. 23-24):
[...] Por toda parte se fala hoje de comunicação [...]. Cada sociedade tem uma
explicação para as suas formas de organização, em função de uma teoria
implícita da comunicação que dá conta das relações dos indivíduos com a
sociedade global com as diversas instituições que a constituem, das
instituições entre si e da sociedade global com a natureza.
Nessa perspectiva, a comunicação historicamente tem a intenção de romper com o
isolamento social. Para isso, é fundamental manter as trocas de informação, as
partilhas e as interações sociais. Thompson (1998) elenca três tipos de interação: face
a face; mediada e quase mediada. Para o autor, a interação face a face se estabelece na
presença e na sintonia com o outro. Essa sintonia entre produtores e receptores ocorre
por meio do processo dialógico. A manutenção do diálogo nas práticas
comunicacionais contribui para fortalecer as resistências, as lembranças, as lutas, os
sonhos e ajuda a desenvolver o pensar crítico; além disso, na interação face a face,
modalidade comunicacional que valoriza o diálogo enquanto processo que humaniza e
ajuda a criar vínculos entre os sujeitos, deve-se ter articulação entre o que a pessoa diz
e o que ela pratica no seio da comunidade. Ou seja, deve haver coerência entre o
discurso e a ação concreta do sujeito. Isso porque a comunicação face a face,
respaldada pelo diálogo, ajuda os sujeitos a se posicionarem e agirem de modo a
contribuir com a transformação do contexto social que os cerca.
Historicamente a interação face a face foi e continua sendo, em diversos grupos
sociais, a modalidade comunicacional mais utilizada pelos sujeitos. A oralidade
possibilita encontros. E esses encontros ajudam a manter viva a resistência, a
memória, as trocas, as aproximações, a solidariedade e as alegrias.
Mesmo tendo algumas restrições em termos de poder de alcance, a comunicação
face a face é um importante espaço de encontro. Em outro registro, Jovchelovitch
(2008), ao caracterizar o encontro comunicativo a partir da psicologia social com uma
vertente sociológica, confere destaque aos aspectos dialógicos ou não dialógicos. Para
a autora, a característica fundamental do encontro dialógico é o reconhecimento das
diferentes ideias, mas, quando se dialoga, é possível chegar a um entendimento em
que “[...] todos os participantes do processo podem adquirir e desenvolver
conhecimento” (p. 240). De acordo com Jovchelovitch (2008, p. 240), “[...] as
transformações operadas pela comunicação dialógica produzem coexistência e inclusão
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social de diferentes saberes, que levam à eventual hibridização de sistema de saber”.
Não se trata de mera junção de opiniões e saberes, mas sim de conhecimentos que
são apresentados para serem lembrados, debatidos, questionados e valorizados pelos
sujeitos. Esses conhecimentos estão à disposição do outro e, quando visam a
construção do espaço comum, eles podem perfeitamente ser apropriados e
socializados pelo grupo social. No encontro não dialógico, o processo é diferente.
Nesses encontros não se aceita nem se dá legitimidade ao pensamento das pessoas
menos instruídas, porque há um entendimento de que existe um conhecimento
superior e esse conhecimento, pensado por alguém, tem a capacidade de substituir as
demais ideias. Para Jovchelovitch (2008, p. 242), essesencontros possuem “[...]
enorme potencial destrutivo, pois eles tendem a menosprezar e, às vezes, a destruir os
saberes acumulados pelas tradições culturais de grupos e comunidades específicas”.
Outra proposta defendida por Thompson (1998) é a interação mediada. Nela, as
pessoas, mesmo não partilhando ambiente, espaço e tempo, podem utilizar os meios
técnicos para compartilhar as informações com outros indivíduos. Nesse caso, o não
compartilhamento do mesmo tempo e espaço, como ocorre na comunicação face a
face, diminui as marcas simbólicas, acentuadas nas gestualidades, nas expressões
faciais, na entonação da voz. Com isso, aumentam-se as chances de acontecerem
ambiguidades na informação e na comunicação, pois os sujeitos podem não
compreender as mensagens recebidas. Por essa razão, na interação mediada podem
ocorrer algumas interrupções no processo comunicativo; mesmo assim, como salienta
Thompson (1998, p. 79) “[...] as interações mediadas têm um caráter mais aberto”.
Essa abertura se refere à possibilidade de compreender melhor a mensagem veiculada.
O próprio Thompson (1998) cita alguns exemplos de mídias que realizam interação
mediada, tais como a carta, o telefone, e aqui podemos acrescentar a crescente
utilização das redes sociais digitais e os aplicativos como o WhatsApp.
Com essas novas ferramentas, introduz-se a simultaneidade: conexões com o
global, nacional e local, de modo ágil, fácil e econômico. Pois a veiculação da
informação e da comunicação está presente, também, evidentemente de maneira
distinta, nas interações face a face, em que a simultaneidade é o envio da mensagem,
em tempo real, aos sujeitos comunicantes. Demonstrando que a interação mediada
presume, conforme relata Martino (2009, p. 179), a existência dos termos:
[...] mensagem e receptor – intermediados por uma série de códigos, signos e
práticas responsáveis por estabelecer pontos de flutuação de sentido entre o
efeito planejado pelo produtor da mensagem e a reconstrução feita pelo sujeito
13
(MARTINO, 2009, p. 179).
Na terceira fase, Thompson (1998) fala sobre a interação quase mediada. Refere-se
à relação do sujeito com a mídia. Essa interação pode acontecer de forma simultânea
ou não, ao mesmo tempo ou em tempos diferentes, dependendo sempre da relação do
sujeito com o meio. A principal diferença em relação à interação face a face e mediada
é que na interação quase mediada as mensagens são produzidas para grande
quantidade de sujeitos. O fluxo comunicacional é “[...] predominantemente de sentido
único” (THOMPSON, 1998, p. 79).
Na interação quase mediada não se exige resposta direta e imediata do receptor,
por isso pode-se compreender essa fase como sendo um processo comunicativo
extensionista, como alerta Freire (1997), ou seja, na interação quase mediada alguém
ou um grupo social produz as informações, os conhecimentos e as técnicas e as
transfere em massa. Sendo assim, Thompson (1998, p. 80) enfatiza que:
[...] alguns indivíduos se ocupam principalmente da produção de formas
simbólicas para outros que não estão fisicamente presentes, enquanto estes se
ocupam em receber formas simbólicas produzidas por outros a quem eles não
podem responder, mas com quem podem criar laços de amizade, afeto e
lealdade.
Na interação quase mediada, os sujeitos participam do processo de produção das
mensagens e, de algum modo, interferem na divulgação do conteúdo em tempo real,
mas, para isso, é preciso acessar as ferramentas de comunicação que tenham essa
interatividade e, nesse caso, com criatividade consegue-se mobilizar pessoas em prol
dos acontecimentos que estão sendo veiculados, os tais memes e vomitaços que
ganham adesões de internautas nos dias atuais. Mesmo fazendo o contraponto à
mídia de massa e tradicional, os sujeitos recebem e consomem os sistemas de
significações, e a principal necessidade que supre, como afirma Baccega (2013, p. 20),
“é a necessidade simbólica” das mensagens e dos conteúdos.
14
2.1. A comunicação e o consumo como fenômenos sociais
Na sociedade da comunicação e do consumo, essas interações sociais se conectam,
não dá para sobrevalorizar uma dessas fases em detrimento das outras, porque a
utilização dessas modalidades de comunicação, como observa Braga e Calazans (2001,
p. 35), “[...] está ao mesmo tempo ‘dentro’, como parte constitutiva necessária em
qualquer atividade social; e ‘fora’, como espaço geral das interações sociais”. Com esse
entendimento, faz sentido quando Bordenave (2006) aborda a comunicação enquanto
fenômeno social. De acordo com ele,
[...] é necessário compreender que a comunicação não inclui apenas as
mensagens que as pessoas trocam deliberadamente entre si [...] muitas outras
são trocadas sem querer, numa espécie de paracomunicação [...] tudo tem
algum significado, tudo comunica [...] às vezes, até mesmo o silêncio
comunica, por isso é impossível não comunicar (BORDENAVE, 2006, p.
50). (grifo do autor)
Ao enfatizar a comunicação como sendo um dos pilares de sustentação das relações
sociais e do compartilhamento com o outro, é preciso ter presente a sua conexão com
as experiências socioculturais dos sujeitos, e isso envolve aquilo que McCracken
(2007) chama de capacidade de carregar e comunicar significado cultural. Para
Wolton (2006, p. 22), “[...] os povos e a cultura querem ser respeitados. Não há
informação nem comunicação sem o respeito do outro”.
Pode-se afirmar que todo consumo, de qualquer bem, é cultural. E o significado
cultural é constituído “no bem de consumo e no consumidor individual, movendo-se
numa trajetória de dois pontos de transferência: do mundo para o bem e do bem para
o indivíduo” (McCRACKEN, 2007, p. 100).
Nessa ligação entre comunicação e consumo, pressupõem-se as trocas entre os
indivíduos. Entretanto, para que elas ocorram, é preciso reconhecer o outro como seu
igual e, sobretudo, compreender a realidade de vida do sujeito. Para Wolton (2006, p.
14), a comunicação é
[...] um direito de cada um, uma espécie de serviço público da vida, com duas
dimensões complementares. Comunicar é antes de tudo expressar-se [...].
Todo mundo tem algo a dizer e o direito de se expressar. Mas expressar-se
não basta para garantir a comunicação, pois deixa de lado a segunda condição
da comunicação: saber se o outro está ouvindo e se está interessado no que
digo. (grifo do autor)
15
Nota-se que o fundamento da comunicação está em considerar o sujeito enquanto
detentor de cultura e não apenas de ações lineares de transmissão de mensagens. Ou
seja, os princípios culturais ganham “substância na cultura material em geral e nos
bens de consumo em particular” (McCRACKEN, 2007, p. 103).
Segundo Wolton (2006), a comunicação é resultado de duas dimensões: normativa
e funcional.
A dimensão normativa remete ao ideal da comunicação: informar, dialogar,
compartilhar, compreender-se. A dimensão funcional, como seu nome já
indica, ilustra o fato de que, nas sociedades modernas, muitas informações são
simplesmente necessárias para o funcionamento das relações humanas e
sociais (WOLTON, 2006, p. 15).
A comunicação se associa ao consumo através do compartilhamento de
informações. Nesse caso, McCracken (2007) nos ajuda a pensar o consumo como um
processo ritualizado, pois contribui para transmitir e socializar as vivências, o
conhecimento, as ideias, os sonhos, as expectativas e fortalecer as relações
socioculturais. Nesse caso, os rituais de consumo são usados “para transferir
significado cultural dos bens para os indivíduos. São usados quatro tipos de ritual para
esse fim: troca, posse, cuidados pessoais e alienação” (McCRACKEN, 2007, p. 108).
O fluxo desse processo ganha importância a partir da composição sociocultural do
sujeito. Por isso, para falar da força da comunicação é preciso ter presente a vivência
histórica e a realidade cotidiana dos sujeitos.
Martino (2005, p. 28) considera que “[...] em um cotidiano marcado pelos meios
de comunicação, o estudo da cultura passa a ser uma compreensão integral desses
meios [...]”. Aprofundamos o argumento do autor incluindoa complexidade que
integra a noção de consumo na contemporaneidade.
Reforçamos o argumento de que comunicação e consumo são dimensões que se
integram e se complementam, não há como dissociá-los. Entendemos a comunicação
como um espaço aberto e plural. Ela é fomentadora das vivências, das sensibilidades,
das experiências singulares, da solidariedade, do riso, da alegria, das conversas, da
liberdade e da autonomia. Por isso, ressaltamos o exercício de um consumo ativo e
crítico como condição fundamental no convívio social. De acordo com Wolton (2006,
p. 19), “[...] se o mundo está mais visível, não está mais compreensível [...] em
consequência da emergência do par cultura-comunicação nas problemáticas [...] da
globalização”. Essas problemáticas ocorrem muito em função das narrativas que são
divulgadas e consumidas. E, para se ter um consumo consciente, é fundamental sair
16
do senso comum e exercer a criticidade diante de tudo que recebemos enquanto bens
simbólicos.
17
2.2. Consumo, migrações e os vínculos comunicacionais
As perspectivas teóricas sobre o conceito de consumo ganham importância na
atualidade pelos mais diversos objetos, observações, olhares e interpretações. Os
estudos sobre o consumo não podem mais ser pensados como uma instância
secundária. Ao estabelecer um breve panorama sobre o conceito, McCracken (2007)
postula que o surgimento do consumo moderno tem forte ligação com o processo de
transformação ocorrido na cultura ocidental.
McCracken (2007) elenca três fatos marcantes dessas mudanças. O primeiro,
ocorrido na Inglaterra no século XVI, período em que a monarquia fez uso dos gastos
da realeza como instrumento político e estimulou o consumo entre os nobres como
forma de ostentar as condições sociais e obter prestígio junto à realeza. Já no século
XVII ocorre a expansão do consumo para outras esferas da vida social. Por sua vez, no
século XVIII, consolida-se o fenômeno do consumo em ritmos variados e
permanentes da vida cotidiana dos sujeitos.
É importante perceber que o desenvolvimento do consumo, principalmente a
partir dos vestuários da nobreza, passando pela moda e se afirmando como as últimas
tendências, indica que o status social “começa a transferir seus significados para um
sistema baseado na novidade” (ROCHA e ROCHA, 2007, p. 73).
Essa novidade gera rapidez, transitoriedade no ato de consumo que se acentua
ainda mais após a II Guerra Mundial. Ou seja, a sociedade começa a se formar em
torno do que Jameson (2007) descreve como sociedade pós-industrial, capitalismo
multinacional, sociedade de consumo, sociedade “dos mídia”. Para Jameson (2007, p.
26), a sociedade atual “está ligada a essa fase do capitalismo avançado, multinacional e
de consumo”.
Algumas mudanças socioculturais podem ser entendidas como avanços e rupturas
e ingresso com força na sociedade de consumo. Jameson (2007) apresenta as
mudanças que impulsionaram os novos tipos de consumo:
Obsolescência programada, um ritmo ainda mais rápido de mudança na moda
e no styling, a penetração da propaganda, da televisão e dos meios de
comunicação social em grau até agora sem precedentes e permeando a
sociedade, a substituição do velho conflito cidade e campo, centro e província,
pela terceirização e pela padronização universal (JAMESON, 2007, p. 26).
Com a apresentação e a atualização dessas lógicas, foi preciso compreender tanto o
comportamento do consumidor, permeado por essas mudanças, quanto os processos
18
de consumo. Daí a importância dos estudos de cunho antropológico de Rocha e
Rocha (2007). Com base no comportamento do consumidor, Rocha e Rocha (2007,
p. 72) afirmam que “todo ato de consumo é visto como impregnado de significado
simbólico, sendo o locus em que se reafirmam, entre outras questões: identidade,
pertencimento, hierarquia, status e poder”.
Para os autores, os estudos da antropologia do consumo identificam os meios de
comunicação como espaço para viabilizar a dimensão pública do consumo, permitindo
que a socialização de produtos, serviços e bens simbólicos seja apropriada, mediante
necessidades, desejos e satisfações dos indivíduos. Com base nesses estudos, Rocha e
Rocha (2007) identificam que:
[...] 1) O consumo é um sistema de significação e a principal necessidade
social que supre é a necessidade simbólica. 2) Consumo é como um código e
por ele é traduzida boa parte das relações sociais e são elaboradas muitas das
experiências de subjetividades. 3) Esse código, ao traduzir sentimentos e
relações sociais, forma um sistema de classificação do mundo a partir de si
mesmo, e, como é próprio dos códigos: pode ser sempre inclusivo: de um
lado, inclusivo de novos produtos e serviços que a ele se agregam e são
articulados aos demais; e de outro, inclusivo de identidades e relações sociais
que são definidas, em larga medida, a partir dele (ROCHA e ROCHA, 2007,
p. 75).
Nessa perspectiva, os meios de comunicação, ao viabilizar a dimensão pública do
consumo, ajudam a constituir as práticas socioculturais e do imaginário da sociedade.
Para Baccega (2013, p. 29), o consumo não é apenas das “informações jornalísticas,
impressas ou audiovisuais: os fatos novos serão mais bem entendidos se expressos no
âmbito dos desejos, do imaginário, das novas identidades, do simbólico”. Nesse
sentido, o consumo é compreendido como um processo em que o sujeito, além de
participar, se envolve nas escolhas e tomadas de decisões na apropriação dos bens,
produtos, serviços e informações.
Jordão (2016) também contribui com o debate ao abordar o consumo como
apropriação e uso de produtos, serviços e valores. Com base nas apropriações e usos,
ele elenca seis dimensões das perspectivas teóricas sobre o consumo enquanto bens
simbólicos:
[...] 1) Racionalidade econômica: veem o consumo como um lugar de
reprodução da força de trabalho e expansão do capital; 2) Observação da
19
relação entre produtores e consumidores, ou seja, como o lugar onde classes e
grupos competem pela apropriação do que a sociedade produz e seus modos
de usá-los; 3) Racionalidade do consumidor: traz a proposição de que o
consumo é um lugar de diferenciação e distinção; 4) Racionalidade integrativa
e comunicativa do consumo: consumo como processo ritual, dando sentido ao
fluxo dos acontecimentos; 5) Consumo enquanto dimensão reguladora, pois
se manifesta nos desejos que se transformam em demandas e em atos
socialmente regulados; 6) Consumo de práticas culturais (JORDÃO, 2016, p.
21).
É nessa relação entre usos e apropriações do consumo que “se constituem os
sentidos sociais compartilhados com toda a sociedade” (BACCEGA, 2011, p. 41).
Para Mundel (2016, p. 30), “o consumo traduz as relações sociais e produz sentido
sobre cada indivíduo e sua posição social”.
Evidentemente que o debate sobre o consumo, o consumidor e o consumismo se
estende cada vez mais rápido, móvel e transitório na atualidade. Os sujeitos que
utilizam o consumo pelo viés da transitoriedade são entendidos como sujeitos da
fugacidade ou, como diz Bauman (2008), o consumo da contemplação e do descarte.
[...] a sociedade de consumidores é, com muita frequência, representada como
se estivesse centralizada em torno das relações entre o consumidor,
firmemente estabelecido na condição de sujeito cartesiano, e a mercadoria,
designada para o papel de objeto cartesiano, ainda que nessas representações o
centro de gravidade do encontro sujeito-objeto seja transferido, de forma
decisiva, da área da contemplação para a esfera da atividade. Quando se trata
de atividade, o sujeito cartesiano pensante (que percebe, examina, compara,
calcula, atribui relevância e torna inteligível) se depara – tal como ocorreu
durante a contemplação – com uma multiplicidade de objetos espaciais (de
percepção, exame, comparação, cálculo, atribuição de relevância,
compreensão), mas agora também com a tarefa de lidar com eles: movimentá-
los, apropriar-se deles, usá-los, descartá-los (BAUMAN, 2008, p. 19).
As palavras de Bauman (2008) estão sintonizadas com os argumentos de Baccega
(2011, p. 32): “há umaceleridade [...]. A sociedade de consumo marca-se também
pelo descarte, pelo lixo portentoso carregado de bens”. Entretanto, buscamos
posicionar aqui que o consumo deve ser compreendido por outra racionalidade: a do
sujeito crítico. Para Baccega (2011, p. 29), o consumo por esse viés “passa a ser visto
20
como território de interações, com espaços de escolha e de diálogo entre sujeitos, de
satisfação de necessidades materiais e culturais”, constituindo o consumo consciente e
que ajuda o sujeito a pensar (CANCLINI, 2007). Entendemos o “conscientizar” a
partir de Baquero (2006), isto é, tomar posse do real, com olhar o mais crítico possível
dessa realidade.
Nessa perspectiva, o consumo é visto como um direito, e esse direito é vivenciado
pelos sujeitos das diferentes classes sociais. Em estudo recente, Ariztía (2016) aponta
características fundamentais entre o consumo e a classe que vão além da aquisição de
bens produzidos para venda no mercado. Ariztía (2016, p. 29) constata que “o
consumo contribui para a produção das classes médias”.
Como intuito de fundamentar esse achado, Ariztía (2016, p. 19) identifica três
dimensões do consumo e a classe média: 1) a de que o consumo e a classe média se
entendem e se mobilizam; 2) o consumo é entendido principalmente em termos da
produção de distinções simbólicas; e 3) o consumo é pensado com um recurso ou
mediação.
O consumo enquanto espaço de mobilização da classe social e de mediação entre
os sujeitos é fundamental para estabelecer relações com o processo migratório.
Relacionar o consumo com a imigração é importante, pois ajuda a mapear os fatos, os
acontecimentos, as lutas, as tomadas de decisões, as vivências cotidianas dos sujeitos
que estão em busca de bem-estar, qualidade de vida e em processo de afirmação social
em ambientes diferenciados e, por vezes, transitório.
Nesse contexto, a imigração representa o deslocamento de indivíduos de um lugar
para outro por diversas razões, sendo que a principal delas é a busca de melhores
condições de vida em um novo território. Segundo Sayad (1998, p. 15):
[...] a imigração é, em primeiro lugar, um deslocamento de pessoas no espaço,
e, antes de mais nada, no espaço físico [...] Mas o espaço dos deslocamentos
não é apenas um espaço físico, ele é também um espaço qualificado em
muitos sentidos, socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente
(sobretudo através das duas realizações culturais que são a língua e a religião).
A característica do processo migratório é a transformação do provisório para o
contato prolongado e intenso com a sociedade. Nas palavras de Sayad (1998, p. 45), é
a oscilação “entre o estado provisório que a define de direito e a situação duradoura
que a caracteriza de fato”. Por isso, o imigrante busca se adequar continuamente ao
local escolhido por conta da necessidade de conquistar novos espaços, os quais, no
decorrer do processo, parecem como uma reconfiguração social.
21
No processo migratório, existem diversos motivos na tomada de decisões. A
imigração pode ocorrer de modo espontâneo ou por questões econômicas,
perseguições, conflitos, guerras, catástrofes, entre outras. Migrações forçadas
acontecem devido à forte repressão que os indivíduos sofrem por parte dos governos
ou de organizações, em função do seu posicionamento sociocultural e político. As
outras situações são os denominados imigrantes econômicos ou espontâneos que se
deslocam de seus países em virtude da ausência dos direitos: saúde, educação,
saneamento, moradia e trabalho.
Sayad (1998) sustenta que se deveria reconhecer a utilidade sociocultural e
econômica dos imigrantes, em vez de identificá-los com uma narrativa
preconceituosa:
[...] um migrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de
trabalho provisória, temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio, um
trabalhador imigrante, mesmo se nasce para a vida na imigração, mesmo se é
chamado a trabalhar durante toda sua vida no país, mesmo se está destinado a
morrer como imigrante, continua sendo um trabalhador definido e tratado
como provisório, ou seja, revogável a qualquer momento (SAYAD, 1998, p.
53-54).
Essa autorização recebida pelo imigrante está ligada ao estudo, à capacitação, mas
quase sempre se liga ao trabalho. De certa forma, o trabalho faz com que o imigrante
exista socialmente, pois “condiciona toda a existência do imigrante, não é qualquer
trabalho, [...] é o trabalho que o mercado para imigrantes lhe atribui” (SAYAD, 1998,
p. 55). Sendo assim, ao desaparecer o trabalho, surgem os trabalhos precarizados, mas
quase sempre o imigrante também desaparece pelas enormes dificuldades que enfrenta
cotidianamente para se manter.
A intenção de um imigrante é participar da vida sociocultural e econômica do país
que o acolhe, ou seja, interagir com as pessoas, produzir, consumir, conquistar
moradia, trabalho, entre outras. São fatores principais para iniciar o processo de
reconstrução da sua vida e a dos seus familiares. Para Cogo e Badet (2013, p. 43), os
migrantes também participam da formação de uma rede comunicacional e “em alguns
casos há a participação direta dos próprios migrantes na produção de conteúdo” na
mídia.
Nesse processo de participação ativa dos imigrantes, Cogo (2012) observa a forte
presença do celular no contexto das redes migratórias. As informações estão
disponíveis no aparelho de celular, por exemplo, e é possível estarem conectados o
22
tempo todo, apoiando e estimulando uns aos outros tanto para se manter unidos
quanto para motivar outros sujeitos a tomarem as decisões e experimentarem o
processo migratório. Nesse sentido, Cogo (2012) elenca dois processos na construção
dessa rede migratória. Para Cogo (2012, p. 30), o primeiro “está relacionado às
possibilidades de experimentação abertas pelo desenvolvimento das tecnologias como
espaços relevantes de construção e circulação de imaginários e de agendas”.
O segundo processo, de acordo com Cogo (2012, p. 31), retrata a presença das
redes de migrantes que “pode ser observada a partir da construção do projeto
migratório, ou seja, na decisão de migrar incentivada por parentes, amigos e
conhecidos que já passaram pela mesma experiência”.
O projeto migratório fortalecido pelos meios de comunicação é que dá a dimensão
de vínculos comunicacionais entre os imigrantes, pois “as trocas simbólicas constituem
o núcleo do sentido” (WOLTON, 2006, p. 26). A comunicação enquanto geradora
de vínculo “é o símbolo da libertação em relação à tradição, da mobilidade em relação
à estabilidade, de uma sociedade menos hierárquica, mas centrada em si e na relação
com o outro” (WOLTON, 2006, p. 26), mesmo que essa relação seja mediada pelas
redes sociais e que aplicativos como o WhatsApp favoreçam a conectividade, pois,
como diz Wolton (2006, p. 28) “conectar é agir”. É uma forma de consumir
informações e de ação na sociedade contemporânea, em que cada vez mais prevalece a
sensação de que estar ligado é estar junto (MAFESSOLI, 2007), e possibilita, por
exemplo, que os imigrantes dialoguem sobre seus anseios, desejos, sonhos,
necessidades e conquistas com as pessoas que estão no mesmo processo e também
com aquelas que deixaram em seu país de origem.
As reflexões de Baitello Junior (2014) sobre os vínculos e a comunicação favorecem
as plurais relações humanas. De acordo com o autor, são frequentemente esquecidas
“sob o pretexto de serem apenas entorno: a ponta geradora de toda a comunicação, que
se constitui de um corpo, e a ponta-alvo do mesmo processo, que igualmente existe em
sua natureza primeira de corpo” (BAITELLO JUNIOR, ٢٠١٤, p. ١١). O autor indica
que o corpo é o suporte dos processos comunicativos, por isso Baitello Junior (٢٠١٢)
detecta uma das armadilhas presentes nas relações humanas e na vida de consumo que
é o “pensamento sentado”, isto é, pessoas que pensam e agem de modo acomodado,
com sérias dificuldades de observar, interpretar e ressignificar a realidade em seu
entorno.
Baitello Junior (2014) nos faz pensar a construção de vínculos a partir da
comunicaçãoprimária. Para ele, o corpo é a raiz de todo o processo comunicativo, que
23
se inicia no nascimento, pois esse momento “deveria ser definido como momento
inaugural de toda a comunicação social” (BAITELLO JUNIOR, 2014, p. 95). A
partir do nascimento, é o corpo que transmite as mensagens: “os sons e a fala, os
gestos com as mãos, com a cabeça, com os ombros, os movimentos do corpo, o andar,
o sentar, a dança, os odores e a sua supressão, os rubores ou a palidez, a respiração
ofegante ou presa, as rugas ou cicatrizes, o sorriso, o riso, a gargalhada e o choro”
(BAITELLO JUNIOR, 2014, p. 95).
Nessa perspectiva, as linguagens corporais se apresentam como ponto de partida e
com potencial de ampliação a partir das técnicas e das ferramentas tecnológicas
disponíveis para apropriar, usar, consumir e realizar os encontros entre os sujeitos no
processo comunicativo. É com o corpo, gerando vínculos, que podemos tecer
aproximações com a comunicação entre os imigrantes, numa postura e, na maioria das
vezes, numa dimensão horizontal e de relações solidárias. Além disso, os imigrantes, a
partir da sua linguagem corporal, mobilizam os usos e as apropriações de materiais,
ferramentas e instrumentos para se apropriar do espaço, do tempo e compartilhar as
vivências com outros sujeitos. Ou seja, é na construção de vínculos comunicacionais,
materiais ou simbólicos que os imigrantes lutam para reconstruir suas vidas.
Nesse sentido, a articulação conceitual entre consumo, migrações e comunicação,
enquanto geradora de vínculos, é fundamental porque as práticas da vida cotidiana são
compreendidas aqui como uma variável dependente de outros elementos estruturais
que se ancora como um espaço central para entender as dinâmicas da vida social e das
práticas de consumo dos imigrantes. Essa perspectiva de leitura e interpretação tende
a olhar as possibilidades de consumo como espaço no qual se produzem, negociam e
circulam significados sociais (ARIZTÍA, 2016).
24
2.3. Trabalho e migrações no Brasil
O trabalho é uma atividade central na vida das pessoas e, mais do que nunca,
somos dependentes dele para manter a nossa sobrevivência num mundo em que a
lógica capitalista visa acentuar as desigualdades, promover a competitividade, as
mobilidades, as relações individualistas e, com isso, os postos de trabalho se tornam
transitórios, instáveis, precários e inexistentes para um contingente cada vez maior da
população.
O trabalho é vital. Esse status está expresso na longa trajetória da atividade
humana e na permanente luta por sobrevivência e bem estar social. Entretanto, não
foi sempre assim. As tradições grega e judaico-cristã atribuíam ao trabalho a função
de pena, tortura. Por sua vez, os deuses gregos não trabalhavam, e o Deus dos judeus e
dos cristãos, estabeleceu que deveriam trabalhar seis dias e descansar no sétimo dia. É
interessante perceber essa relação porque é ela que vai estruturar a vida da sociedade
ao longo do tempo, mesmo que alguns sistemas de estruturação socioeconômica
tentem ampliar o tempo do trabalho ao longo da história.
Um aspecto a ser destacado dos povos antigos, gregos, judeus e cristãos é que eles
condenavam as pessoas a viver em regime de trabalho compreendido como tortura,
inferioridade, justamente para reter as pretensões de serem iguais aos deuses
(KAMPER, 1998). Isso se dá tanto no mito grego, em que Zeus condena as pessoas a
passarem a vida trabalhando, quanto no relato do paraíso, onde não havia miséria nem
necessidades, mas a posse do fruto da árvore do conhecimento faz surgir o castigo:
“com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo” (BÍBLIA, 2009).
[2]
Essa capacidade de identificar o bem e o mal é responsável, dentro da lógica de
estruturação social, pelo reposicionamento do trabalho na sociedade. Se antes era visto
como tortura, pena, maldição, inferioridade, a natureza do trabalho passa a se
reorganizar enquanto possibilidade e se transforma em criatividade, talento e
desenvolvimento; nas palavras de Kamper (1998, p. 20), “numa espécie de doação,
num tipo de presente que permite aos homens reorganizar sua vida, revalorizando-a e
mesmo revolucionando a sociedade”.
O trabalho enquanto desenvolvimento se expande ao longo das civilizações. Na
sociedade antiga, quem trabalhava eram os escravos. Já na Idade Média, eram os
artesãos que desempenhavam o trabalho cotidiano, e os monges, por exemplo, eram
agricultores, arquitetos e construíam instalações de higiene bastante avançadas para a
época. Por sua vez, a sociedade burguesa passa a atribuir centralidade ao trabalho, e,
25
com isso, a atividade se estende em todas as dimensões e setores da ação humana.
Esse contexto é importante para perceber que o trabalho passa, aos poucos, a reger a
organização dos processos sociais, a dinâmica da vida, e, como consequência, o
trabalho se transforma numa espécie de sacrifício voluntário (BRAGA, 2012),
obtendo remuneração pelo que faz e desenvolve.
26
2.4. A força vital e as tentativas de ampliar o tempo do trabalho
É importante conectar o trabalho com outras modalidades vividas pelo ser
humano. Kamper (١٩٩٨, p. ١٣) alia o trabalho, considerado “duras penas”, com a vida
ativa (ARENDT, 2007), ou seja, com o prazer e com outras formas de dar sentido à
vida, tais como: o ócio, o lúdico, o amor, por isso “a vida também é de duras penas e o
trabalho também pode ser caracterizado pelo prazer”.
[...] Por um lado, o trabalho oferece a liberdade, por outro lado, move-se
dentro de mecanismos de coação. O trabalho favorece a dominação, a
servidão. Oferece uma graça, mas também representa uma maldição. [...] o
trabalho gera salário, que é sinônimo de recompensa e também de castigo e
pena (KAMPER, 1998, p. 18).
Para alguns autores, tais como Arendt (2007), Braga (2012) e Antunes (2009),
essa articulação é entendida como formas de resistência, principalmente pela
tendência de ampliação do tempo de trabalho provocada pelo sistema capitalista, de
forma que, de algum modo, a expansão consiga abarcar todos os momentos da vida do
sujeito.
Sobre isso, a organização do tempo do trabalho na sociedade industrial, por
exemplo, era realizada conforme a necessidade e o tempo das máquinas, isto é, as
pessoas podiam facilmente ultrapassar dezesseis horas de trabalho por dia, provocando
outros estilos e ritmos de vida (BRAGA, 2012). Fazendo um paralelo com os dias
atuais, a tecnologia, as ferramentas digitais, os aplicativos móveis fazem com que os
trabalhadores vivam permanentemente ligados à atividade laboral que desempenham e
representam. E quem não se adapta a esses estilos, tempos e ritmos é descartado do
processo. Com isso, ocorrem as substituições e as ausências de ocupações ocasionadas
pelos equipamentos tecnológicos, pois eles reduzem o número de trabalhadores,
provocando o desemprego, o subemprego, a informalidade, além da precarização das
condições do trabalho.
Especificamente no Brasil, Braga (2012) problematiza a natureza do trabalho
centrando esforço para dimensionar a política do precariado. Ele se apoia na
sociologia crítica do trabalho e tece olhares a partir das décadas de 1950 e 1960, por
compreender que, nesse período, começam os grandes desafios da periferia capitalista.
Para Braga (2012, p. 44), “o atraso brasileiro forjou as bases políticas da relação entre
a sociologia e a classe operária ao longo desse período”. Ou seja, o estado
desenvolvimentista do pós-guerra e o coletivo empresarial não apenas se apoiaram em
27
um ambíguo compromisso social com os trabalhadores. Vale lembrar que, nesse
período, o Brasil estava acolhendo diversos imigrantes que viviam em condições de
trabalho precarizado, como também o próprio Estado estimulou as pessoas a
trabalharem cada vez mais, com isso, os imigrantes deveriam almejar a mobilidade
social. Entretanto, a pressão empresarial era e continua sendo outra. Eles querem
maior produtividade e “anular a distância histórico-cultural existente entre as
sociedades subdesenvolvidas e o capitalismo avançado” (BRAGA, 2012, p. 126).
Esseprocesso de estruturação do capitalismo, que se desenvolveu e continua a se
expandir em escala global, gera informalização da força vital do trabalho e faz ampliar
as condições de precarização dos trabalhadores. Antunes (2013, p. 14) entende que
“uma análise do capitalismo atual nos obriga a compreender que as formas vigentes do
valor trazem embutidos novos meios geradores de trabalho excedente, ao mesmo
tempo que expulsam da produção uma infinitude de trabalhadores que se tornaram
sobrantes, descartáveis e desempregados”.
28
2.5. Do trabalho informal ao processo de precarização
Antunes (2013) tece algumas classificações da informalidade vivenciadas pelos
trabalhadores no Brasil. Antes de elencar as denominações, é importante definir o
trabalho informal. Para Antunes (2013, p. 15), a informalidade são os sucessivos
“contratos temporários, sem estabilidade, sem registro em carteira, trabalhando dentro
ou fora do espaço produtivo das empresas, quer em atividades mais instáveis ou
temporárias, quer sob a ameaça direta do desemprego”.
A partir dessa definição, a primeira denominação de informalidade proposta por
Antunes (2013) é o trabalhador informal tradicional. Identifica-o como tendo baixa
qualificação, e sua força vital do trabalho contribui para obter renda. A remuneração
permite realizar o consumo individual e familiar. Nesse caso, o trabalhador informal
tradicional, para ampliar sua renda, pode contar com o auxílio dos membros da
família ou de ajudantes temporários. Exemplo desse tipo de atividade são as oficinas
de consertos em geral, espaços mantidos pelos clientes do bairro e pelas relações
pessoais.
A segunda denominação de informalidade é o trabalhador informal menos instável.
São pessoas que possuem um mínimo de conhecimento profissional e são
conhecedoras da sua área de atuação. E, na maioria dos casos, o trabalhador menos
instável exerce suas atividades no setor designado para prestar esse serviço. Essa
categoria abrange: costureiros, pedreiros, camelôs, vendedores ambulantes,
domésticos, entre outros.
A terceira denominação de informalidade é o trabalhador informal mais instável.
Pessoas com baixa qualificação que são contratadas por tempo determinado e recebem
a sua remuneração a partir do serviço realizado. Executam trabalhos eventuais e se
valem da sua força física, tais como carroceiros, carregadores e serviços gerais. É
importante destacar que os trabalhadores mais instáveis podem ser subempregados
pelos trabalhadores menos instáveis. Entretanto, essas atividades fazem parte das
condições de trabalho precarizado.
A quarta denominação de informalidade é o trabalhador ocasional ou temporário.
São pessoas que desempenham atividades laborais enquanto estão desempregadas, os
chamados “bicos”; nas palavras de Antunes (2013, p. 16), “ora estão desempregados,
ora são absorvidos pelas formas de trabalho precário”.
O quinto modo de ser da informalidade é o trabalhador informal assalariado sem
registro. Alguns empregadores protelam em conceder o registro e se utilizam de
29
discursos tais como: período de experiência, jornada de trabalho e remuneração
diferenciadas. Isso geralmente ocorre com os trabalhadores em domicílios, galpões e
indústrias de calçados.
A partir dessas classificações, constata-se que a informalidade e as formas de acesso
do trabalhador nessas atividades são desempenhadas em condições precárias.
Incluem-se nessa dinâmica a baixa remuneração e as jornadas de trabalho ampliadas e,
em diversas circunstâncias, os trabalhadores que não têm como garantia o acesso aos
direitos sociais e civis.
Outra questão que merece ser problematizada é a ruptura institucional, não só do
ponto de vista das contratações formais, com registro, sendo observadas as leis
trabalhistas que regulam a força do trabalho inclusive com as garantias, tais como:
férias, décimo terceiro e outros, mas também a partir da ruptura com as formas de
trabalho desprovidas de direitos (STANDING, 2015). E aqui podemos incluir os
trabalhadores imigrantes que exercem as suas funções com as jornadas de trabalho
expandidas, em horários desconfortáveis, como horários noturnos e nos finais de
semana.
Além disso, o exercício profissional dos imigrantes também é marcado por
trabalhos análogos à escravidão, pela mão de obra clandestina e pelas discriminações
não só no local de trabalho, mas também no acesso às dependências, na rua, no bairro
onde moram, na roda de conversa. Sobre isso, Antunes (2013, p. 20) alerta que os
imigrantes são “discriminados, mas não resignados, eles são parte integrante da classe-
que-vive-do-trabalho, exprimindo a vontade de melhorar as próprias condições de
vida por meio do trabalho”.
Por isso, Standing (2015, p. 16) atribui o conceito de precariado, unindo o adjetivo
precário com o substantivo proletariado. Dessa união surge o precariado que, no
entendimento de Standing (2015, 25), é uma classe em formação, ou seja, o
precariado tem característica de classe, de “pessoas que têm relações de confiança
mínima com o capital e o Estado”, e, nesse contexto, os imigrantes “são parte
substancial das manifestações do precariado” (p. 16), caso dos imigrantes haitianos,
que, em sua grande maioria, são pessoas com nível de escolarização elevado, com
qualificação profissional, mas que aceitam empregos de serviços gerais, por exemplo,
com rendimentos abaixo do que é praticado no mercado. Entretanto, eles aceitam
essas situações por conta da necessidade imediata de se manterem e enviarem
remessas aos familiares que ficaram no país de origem, mas eles têm consciência da
sua subvalorização, da desigualdade de renda, da marginalização e da exploração que
30
sofrem. Nessas circunstâncias, o precariado inclui trabalho, emprego, moradia, saúde,
educação, mas sem direito à proteção social, à mobilidade socioeconômica e com a
ameaça constante da deportação.
São constatações de que as condições atuais do trabalho são precárias, em todas as
áreas, atingindo todas as regiões do país, bem como os trabalhadores qualificados ou
não. É fato que os imigrantes têm o direito de trabalhar. Quando trabalham na
informalidade, como vendedores na rua, geralmente são coagidos, tratados como
desordeiros e até mesmo como criminosos. E esses mesmos imigrantes em condições
precárias de trabalho quase nunca têm momentos de lazer e descontração, porque a
rotina produtiva é intensa e as preocupações são muitas, entre as quais, a
impossibilidade de matricular seus filhos na escola. Diante isso, eles têm direitos, mas
não são considerados cidadãos.
Nas palavras de Standing (2015, p. 150), os trabalhadores imigrantes “são
descartáveis, sem acesso aos benefícios do Estado ou da empresa, e podem ser
descartados com impunidade, pois, se protestarem, a polícia será mobilizada para
penalizá-los, criminalizá-los e deportá-los”.
Como estamos vendo aqui, o capital, com todas as suas contradições, dá boas-
vindas à migração, justamente porque esses trabalhadores com qualificações e de baixo
custo para as empresas diminuem as pressões para pagamentos de direitos e custos
trabalhistas. Tanto é que, entre 2011 e 2014, diversas empresas multinacionais das
regiões Sul e Sudeste do Brasil enviavam ônibus ao estado do Acre, que retornavam
com a lotação completa de imigrantes haitianos contratados para atuarem nas
indústrias, na construção civil, nos frigoríficos para abate de aves e suínos, como é o
caso dos frigoríficos instalados no município de Chapecó, no estado de Santa
Catarina.[3] Os imigrantes são contratados para atividades laborais ligadas a produção
e serviços, na faixa salarial de até dois salários mínimos (RAIS, 2015); aproximam-se
das condições precárias, da informalidade, dos subempregos, dos desempregos, e por
vezes são encorajados a retornar ao país de origem quando não são mais necessários.
31
2.6. Migrações e a mediação social em torno do trabalho
Casaqui (2010) afirma a importância de ter presente que estamos vivendo um
momento de crise do emprego, uma vez que o Brasil atravessa um momento
extremamente delicadodo ponto de vista político, com impactos significativos na
economia. Esse cenário tem gerado exclusões de postos de trabalho e afetado
fortemente os brasileiros, quanto mais os imigrantes. Com acentuação da crise do
emprego, há uma rearticulação social, pois
[...] a construção da identidade a partir do trabalho entra em conflito, e o
consumo migra da esfera da realização material de afetos para o plano das
ausências, das frustrações e pressões sociais. O desemprego passa a ser um
fantasma para um enorme contingente de trabalhadores, e uma realidade
terrível para tantos outros (CASAQUI, 2010, p. 5).
A mobilidade dos imigrantes não ocorre apenas por questões laborais; há outros
motivos, muito embora o trabalho seja um fator principal. Cogo (2014) relata, a partir
de estudos de Oliveira (2011), como um grupo de haitianos recém-chegados à capital
do Amazonas nutre expectativas, entre elas a possibilidade de encontrar trabalho e ter
uma vida melhor. Os dados nacionais sobre empregabilidade dos haitianos apontados
por Tonhati et al. (2016, p. 39) nos informam que entre 2010 e 2014 havia 30.484
haitianos inseridos no mercado de trabalho formal. Pessoas na faixa etária ativa (20 a
39 anos) e com jornada de trabalho de 40 a 45 horas semanais eram 19.596 (cf.
TONHATI et al., 2016, p. 55).
Ou seja, o trabalho é fundamental para a manutenção das condições de vida dos
imigrantes. Mesmo que as questões laborais estejam ameaçadas pela fragmentação,
pela flexibilização e pela reestruturação das profissões (STOER, MAGALHÃES E
RODRIGUES, 2004), é uma oportunidade de recomeçar a vida. Os imigrantes
enfrentam situações adversas para ofertar a sua força vital e realizar as produções no
mundo do trabalho. Eles passam por problemas relacionados ao idioma, aos impasses
referentes às documentações exigidas, à aceitação e à adaptação no ambiente de
trabalho. Nesse cenário, os imigrantes precisam mobilizar esforços individuais e
coletivos a fim de buscar oportunidades e espaços de inserção no mundo do trabalho,
e também se apegam às oportunidades,[4] às esperanças e aos valores humanos como
forma de luta, mobilização e resistência.
A análise conceitual em torno do trabalho é ampla e paradigmática. Casaqui
(2010), por exemplo, numa vertente atual, compreende o trabalho como espaço de
32
mediação social. E essa mediação permite relacionar a força vital do trabalhador com
a produção e o consumo.
[...] o trabalho em torno da produção de bens e ofertas de serviços é baseado
naquilo que é denominado pelos consumidores, na forma como a vida social,
as interações entre os homens, os diversos cenários pelos quais transitam são
percebidos como oportunidade de mercadorização da experiência humana
(CASAQUI, 2010, p. 3).
Essas experiências de trabalho, consumo, desemprego e migração têm sido pautas
recorrentes na mídia. Por isso, compreender o trabalho e o consumo como
possibilidade de organização, mediação e interação social é dar centralidade aos bens e
serviços, bem como aos recursos tecnológicos enquanto espaço de criatividade. Para
isso, é preciso ter presente os três registros apontados por Kamper (1998): ligação das
pessoas ao mundo real, que se articula com o corpo; ao simbólico, que se liga com a
linguagem; e ao imaginário, com os sonhos e os projetos de vida.
Diante disso, é importante perceber a centralidade do trabalho e do consumo, mas
também ter presente as rupturas, as resistências que podem ser vivenciadas a partir do
ócio, dos momentos lúdicos, do lazer e do prazer de viver. Esses momentos permitem
encontrar mecanismos que também conduzem os sujeitos ao desenvolvimento de suas
potencialidades e à tomada de consciência crítica em meio à realidade que enfrentam.
Isso porque o trabalho, enquanto mediação, ganha contornos estéticos e subjetivos
que podem absorver integralmente as pessoas a partir da alienação, da exploração e da
dominação. E o que estamos compreendendo é que o trabalho tem, sim, potencial de
promover a estruturação social, mas pode e deve ser mecanismo de humanização e de
emancipação do ser humano, pois os trabalhadores, em geral, e os imigrantes, em
específico, são sujeitos históricos num mundo em contínua transformação.
33
2.7. A imigração sob a ótica do trabalho
O Brasil, a partir de 2003, interrompeu o receituário neoliberal que gerou a mais
grave crise do emprego, em decorrência de competitividade empresarial, estabilização
do real, elevado custo para contratação de mão de obra e qualificação inadequada dos
trabalhadores (POCHMANN, 2006). Para reverter essa tendência, o Estado passou a
investir numa série de medidas de crescimento econômico, de fortalecimento de
políticas públicas e de valorização da classe trabalhadora, como a criação de estruturas
para dois grandes eventos mundiais, Copa do Mundo e Olímpiadas. Essas ações
foram implantadas pelo governo do presidente Lula, e permitiram a expansão do
emprego no país.
Entretanto, a acentuação da crise financeira dos países desenvolvidos afetou
diretamente os países da cooperação Sul-Sul. Com isso, o Brasil passa a vivenciar a
fase da desaceleração com impactos no desemprego. É importante salientar que, no
desenvolvimento histórico do sistema capitalista, a característica dominante é o
desemprego. Para Mészáros (2006, p. 31):
[...] o sistema capitalista é constituído de uma rede fechada de inter-relações e
de intermediações por meio da qual agora é impossível encontrar paliativos e
soluções parciais ao desemprego em áreas limitadas, em agudo contraste com
o período desenvolvimentista do pós-guerra, em que políticos liberais de
alguns países privilegiados afirmavam a possibilidade do pleno emprego em
sua sociedade livre.
Mészáros (2006, p. 32) entende que “a globalização do desemprego e da
precarização, até o momento, não pode ser remediada sem a substituição radical do
sistema capitalista”. Isso porque o objetivo do capital é expandir, e para conseguir isso
é preciso acentuar a “desumanizadora precarização da força do trabalho” (p. 34).
As lutas pela redução da jornada de trabalho ganham adesão das pessoas nas redes
sociais digitais, entretanto, as instituições montam estratégias para que as jornadas de
trabalho sejam prolongadas. Sendo assim, Mészáros (2006, p. 36) alerta que “as
classes trabalhadoras de algumas das mais desenvolvidas sociedades pós-industriais
estão experimentando uma amostra da real perniciosidade do capital liberal”. Em
outro momento, Mészáros (2006, p. 37) pontua que “o trabalho sem garantias e mal
pago está se alastrando como uma mancha de óleo, ao passo que mesmo o trabalho
mais estável está sofrendo uma pressão em direção à intensificação sem precedentes à
plena disponibilidade para uma submissão aos mais diversificados horários de
34
trabalho”.
O desemprego e as ocupações dos postos de serviços precários têm impactado
fortemente a vida dos brasileiros, com sério agravamento para os imigrantes. Para
compreender essa situação, é preciso ter presente a política neoliberal adotada pelos
governantes e as orientações socioeconômicas e políticas do FMI.
Alguns dados ilustram essa situação. Um levantamento de dados sobre o
desemprego desde os anos 1990 até metade dos anos 2000, elaborado por Pochmann
(2006, p. 71), identificou que o reflexo do modelo econômico adotado nesse período
trouxe implicações e demissões por conta “da implantação de novos programas de
gestão de produção, de reorganização do trabalho e de inovações tecnológicas”. Nesse
período, trabalhadores da classe baixa, sem escolarização e com menor tempo de
registro ocupacional foram dispensados. Outra informação importante desse período
diz respeito às taxas de desemprego por gênero e raça. Pochmann (2006) identifica
que as mulheres e os negros foram os mais afetados e que
[...] a discriminação racial passou a excluir de ocupações mais nobres aqueles
que, depois de muito esforço, haviam alcançado maior renda e escolaridade
[...] há um bloqueio à ascensão social, sobretudo para a população negra,
mesmo quando esta alcança maior escolaridade (POCHMANN,2006, p.
64).
Em 2002, os acentuados índices de pobreza, extrema pobreza, desvalorização do
salário mínimo e desemprego eram de 12,2% (IBGE/2010). Situações revertidas com
ações de valorização do salário mínimo, energia elétrica para mais de 10 milhões de
residências, construções habitacionais, criação de universidades e escolas técnicas.
Com essas ações estruturais, as taxas de pobreza, extrema pobreza e desemprego
foram reduzidas consideravelmente (IBGE).
Ao verificarmos os dados recentes da Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS, 2016), identificamos que um milhão e quinhentas mil vagas formais foram
reduzidas para pessoas com ensino médio completo e houve aumento de quase trinta
mil vagas para pessoas com ensino superior completo. Isso quer dizer que o mercado
está dispensando pessoas com menos qualificação porque há um contingente
populacional em busca de ocupações com qualificação e disposto a exercer funções
ligadas a serviços como limpeza em prédios, restaurantes, lanchonetes, domicílios,
entre outros setores, na faixa salarial entre um e dois salários (RAIS, 2016).
A maior parte das vagas abertas no mundo do trabalho é de ocupações nos espaços
informais, em funções de autônomo, de trabalho independente e nas cooperativas, em
35
associações e nos setores de serviços. Para Pochmann (2006, p. 61), “as ocupações por
conta própria podem ser identificadas como uma das novas formas de inserção
ocupacional moderna”. De fato, esses espaços se expandem e é neles que os imigrantes
se inserem para trabalhar, mesmo que muitos deles sejam técnicos especializados em
outras áreas, que tenham escolaridade ou experiência profissional. Nada disso é levado
em consideração porque nesses espaços as condições de trabalho e a remuneração são
precárias.
Durães (2014) identifica em seu estudo que a expansão das formas de trabalho
desregulamentadas, desprotegidas, se torna mais visível na ampliação da
informalidade de rua. Cada vez mais o trabalho informal se estrutura no entorno e em
nítida correlação com o mundo formal, pois é no centro da cidade que os
trabalhadores informais disputam clientes com o centro comercial.
Esses trabalhadores, expostos a essas condições precárias e incertas das ruas,
terminam por reforçar o isolamento e a não formação de lutas coletivas,
fragmentando, de forma geral, ações coletivas e organização de classe. Alguns
terminam por conseguir melhores inserções em determinadas ruas ou pontos,
ao contrário de tantos outros. Vivem no limite da sobrevivência, mas de forma
fragmentada. Apesar de estarem todos inseridos em processos de precarização
do trabalho e da vida, há toda uma fragmentação enquanto componentes da
mesma classe trabalhadora (DURÃES, 2014, p. 235).
É importante dizer que a maioria das inserções no mundo do trabalho é
precarizada, pois o trabalhador vive no limite da sobrevivência, provendo
cotidianamente as suas necessidades imediatas e, em muitos casos, trabalhando mais
de doze horas por dia. Soma-se a essas dificuldades a falta de acesso à previdência
social, à saúde e à educação. Além disso, as pessoas que vivem do trabalho informal
são as mais vulneráveis às ações de controle, violência e repressão do poder público.
Linhart (2014) ajuda a entender esse cenário chamando-o de “precariedade
subjetiva” vivenciada também pelos trabalhadores formais, uma vez que nem eles estão
seguros e protegidos para conservar os seus postos de trabalho. Aliás, a informalidade
surge e cresce justamente quando são reduzidas as ocupações formais. Para Linhart
(2014, 46), a precariedade subjetiva “é o sentimento difuso de, uma hora ou outra, ser
obrigado a cometer erros que podem justificar um afastamento ou mesmo uma
demissão”.
A autora faz uma relação interessante entre a precariedade subjetiva vivenciada
pelo trabalhador e as doenças e as suas consequências, que podem levar, em último
36
grau, ao suicídio. Para Linhart (2014), esse sofrimento está presente na relação com o
trabalho contemporâneo e, quando ocorre a fatalidade, ela é considerada acidente de
trabalho, ou mesmo antes de ocorrer “o assalariado é constrangido por seus superiores
a se afastar, porque não se sente bem em um trabalho que está sempre ultrapassando
os limites” (LINHART, 2014, p. 46).
Essas situações de informalidade, condições de trabalho precarizado, precariedade
subjetiva e objetiva, ocasionam descontentamento, sofrimento, doenças, abandono do
emprego, observados tanto entre trabalhadores brasileiros quanto entre os imigrantes.
Os imigrantes passam por situação como essa, e, em alguns casos, ela se acentua.
Quando são provenientes de países subdesenvolvidos, em geral, mesmo com
escolaridade de nível superior, eles exercem atividades manuais nos setores de serviços,
como serventes de pedreiro, pintores, faxineiros menos remunerados que trabalham e
vivem em situações precárias e desumanas. Para Villen (2014), o fenômeno migratório
vive um processo de criminalização e uma
[...] contínua precarização das condições de vida do imigrante – convive, no
entanto, com a função primordial da força de trabalho do imigrante, com seu
papel na divisão social do trabalho, com a contínua demanda de força de
trabalho e baixo custo, muitas vezes sem direitos, porque indocumentada,
além dos mecanismos de abusos e exploração humana no trabalho e na vida
social (VILLEN, 2014, p. 87).
De fato, o pensamento corrente é de que a disponibilidade da força de trabalho dos
imigrantes seja qualificada e sem garantias dos direitos. Essa condição de contratar
mão de obra qualificada em substituição de profissionais menos escolarizados faz
parte de um instrumento de pressão do setor empresarial, especialmente em relação
aos grupos de trabalhadores organizados que lutam em prol do aumento salarial e das
condições de trabalho. Cabe lembrar aqui que a organização social dos imigrantes tem
as suas especificidades, com estruturas de reuniões, com planejamento, mas sem se
envolver em manifestações públicas, uma vez que essa ação é proibida na Lei dos
Estrangeiros.
Diante disso, Villen (2014) apresenta tipologias em relação ao trabalho qualificado
e não qualificado dos imigrantes. Para a autora, a modalidade de profissionais
qualificados nem sempre é uma escolha, “pode ser um imperativo para a conquista do
emprego, recurso para conseguir um contrato a tempo indeterminado e mobilidade na
carreira” (VILLEN, 2014, p. 89). Já os imigrantes com baixa qualificação têm
dificuldade de conseguir emprego, por isso, Villen (2014, p. 92) os denomina de
37
“protótipo da força de trabalho flexível”, ou seja, sem acesso a ocupações, essas pessoas
se sujeitam a todas as formas de exploração, horários ampliados, baixa remuneração e
péssimas condições de trabalho.
Atualmente, no Brasil, os imigrantes estão passando por situações fortemente
precarizadas no acesso ao mundo do trabalho. E tudo isso tem reflexo nas condições
degradantes de trabalho, nos processos de discriminação que recebem dos chefes, dos
agentes públicos e da população local. São fatores problemáticos e experiências
migratórias que merecem ser resolvidos, caso contrário, acentua-se a precarização, a
marginalidade socioeconômica e cultural, produzida e estruturada na ausência de
condições de trabalho.
38
3. HAITI: CONTEXTO HISTÓRICO, POLÍTICO E FLUXO MIGRATÓRIO
O Haiti, cuja capital é Porto Príncipe, está localizado no arquipélago do Caribe. O
país ocupa um terço ocidental da ilha de Hispaniola, entre o mar do Caribe e o
oceano Atlântico Norte, a oeste da República Dominicana. Os primeiros habitantes
da região foram os índios arawakos, de etnia aborígene. Eles foram dizimados pelos
colonizadores espanhóis. Em pouco mais de cento e cinquenta anos de colonização,
1495 a 1650, os colonizadores encontraram 1,5 milhão de índios e todos foram
dizimados. Para materializar o genocídio dos indígenas, seguiram os ritos de
crueldade do trabalho forçado, massacre, fome, doenças e suicídios (SANTIAGO,
2013).
Com forte influência indígena, Haiti deriva da palavra Ayiti, que, na língua dos

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