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2 Sumário Capa Folha de rosto APRESENTAÇÃO 1) O amor da Sabedoria eterna e a Palavra de Deus como fundamentos da ação evangelizadora e da espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort 2) Visão geral da obra 3) Vida e obra de São Luís Maria Grignion de Montfort INTRODUÇÃO I. Oração à Sabedoria eterna II. Advertência da divina Sabedoria aos príncipes e aos grandes da terra no livro da Sabedoria, capítulo 6 Capítulo I - Para amar e buscar a Sabedoria, é necessário conhecê-la I. Necessidade do conhecimento da Divina Sabedoria II. Vários tipos de Sabedoria Capítulo II - A origem e a excelência da Sabedoria eterna I. A Sabedoria em relação ao Pai II. As operações da Sabedoria nas almas Capítulo III - Maravilhas da potência da divina Sabedoria na criação do mundo e do homem I. Na criação do mundo II. Na criação do homem Capítulo IV - Maravilhas da bondade e misericórdia da Sabedoria eterna antes da Encarnação Conclusão Capítulo V - A excelência maravilhosa da Sabedoria eterna I. Uma companheira para a vida II. Elogio da Sabedoria (capítulo 7) Capítulo VI - O intenso desejo que a divina Sabedoria tem de se dar aos homens I. A carta de amor da Sabedoria eterna II. A Encarnação, a morte e a Eucaristia III. Ingratidão dos que rejeitam a Sabedoria IV. Conclusão Capítulo VII - A escolha da verdadeira sabedoria I. A sabedoria do mundo II. A sabedoria natural III. Conclusão Capítulo VIII - Efeitos maravilhosos da Sabedoria eterna nas almas daqueles que a possuem Capítulo IX - A Encarnação e a vida da Sabedoria eterna I. A Encarnação da Sabedoria eterna II. A vida da Sabedoria encarnada Capítulo X - A beleza encantadora e a doçura inefável da Sabedoria encarnada 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg I. A Sabedoria é doce em seus princípios II. Ela é doce segundo os profetas III. Ela é doce em seu nome IV. Ela é doce em sua face V. Ela é doce em suas palavras Capítulo XI - A doçura da Sabedoria encarnada em seu modo de agir I. Ela é doce em seu modo de proceder II. Ela é ainda mais doce na glória Capítulo XII - Os principais oráculos da Sabedoria encarnada que devemos crer e praticar para ser salvos Capítulo XIII - Compêndio das dores inexplicáveis que a Sabedoria encarnada quis sofrer por nosso amor I. A razão mais poderosa para amar a Sabedoria II. As circunstâncias da Paixão da Sabedoria III. A afeição extrema da Sabedoria em suas dores Conclusão Capítulo XIV - O triunfo da Sabedoria eterna na cruz e pela cruz I. A Sabedoria e a cruz II. A cruz e nós III. Conclusões práticas Capítulo XV - Meios para adquirir a Divina Sabedoria Primeiro meio: um desejo ardente 1) Necessidade do desejo da Sabedoria 2) Qualidades necessárias desse desejo 3) Exemplos desse desejo Segundo meio: uma oração contínua 1) Necessidade da oração contínua 2) Qualidades necessárias à oração 3) Oração de Salomão para obter a divina Sabedoria Capítulo XVI - Meios para obter a Divina Sabedoria Terceiro meio: uma mortificação universal 1) Necessidade da mortificação 2) Qualidades necessárias à mortificação Capítulo XVII - Quarto meio: uma terna e verdadeira devoção à Santíssima Virgem 1. Necessidade da verdadeira devoção a Maria 2. Em que consiste a verdadeira devoção a Maria Consagração a Jesus Cristo, Sabedoria encarnada, pelas mãos de Maria Coleção Ficha Catalográfica Notas 4 kindle:embed:0002?mime=image/jpg APRESENTAÇÃO TIAGO JOSÉ RISI LEME 5 1) O amor da Sabedoria eterna e a Palavra de Deus como fundamentos da ação evangelizadora e da espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort São Luís Maria Grignion de Montfort escreveu esta obra, que se pode considerar um verdadeiro e profundo tratado sobre a Sabedoria eterna, provavelmente tendo como primeiras destinatárias as religiosas de uma das congregações por ele fundadas, e que constitui um dos ramos da hoje chamada Família Montfortina: as Filhas da Sabedoria. Essa congregação foi fundada por ele, juntamente com a bem-aventurada Marie-Louise Trichet, em 1703, com o objetivo de garantir a assistência, a formação religiosa e a educação das populações menos favorecidas da região ocidental da França. No início, a congregação atuava no campo hospitalar, passando posteriormente a trabalhar no campo educacional, junto a crianças carentes. Em 2005, a congregação possuía aproximadamente 2.000 irmãs espalhadas pelos cinco continentes, um terço das quais servindo na Igreja da França.[1] Em 21 de junho de 1997, São João Paulo II dirigiu uma belíssima mensagem à Família Montfortina por ocasião do 50º aniversário da canonização de seu fundador. Nessa mensagem, o Santo Padre assim se refere ao testemunho de santidade e vida apostólica de São Luís Maria Montfort e ao legado de sua obra de imenso valor teológico e espiritual, com particular referência a seu amor à Sabedoria encarnada: São Luís Maria tomou por lema estas simples palavras: “Só Deus”. Ele cantava: “Só Deus é a minha ternura, só Deus é o meu sustentáculo, só Deus é todo o meu bem, a minha vida e a minha riqueza” (Cântico 55, 11). Nele, o amor por Deus era total. Era com Deus e por Deus que ia ao encontro dos outros e percorria os caminhos da missão. Continuamente consciente da presença de Jesus e de Maria, era em todo o seu ser uma testemunha da caridade teologal, que ele desejava fazer partilhar. A sua ação e a sua palavra não tinham por finalidade senão chamar à conversão e fazer viver de Deus. Os seus escritos são de igual modo testemunhos e louvores ao Verbo encarnado, e também a Maria, “obra-prima do Altíssimo, milagre da Sabedoria eterna” (cf. O amor da Sabedoria eterna, n. 106).[2] É nessa perspectiva, tão bem delineada pelo Papa polonês, que se situa o sentido fundamental desta obra, qual seja, em outras palavras: incutir nos corações das mulheres e dos homens de boa vontade – e não unicamente das Filhas da Sabedoria – o amor pela Sabedoria eterna, a partir do conhecimento, reflexão e meditação sobre o amor infinito que Ela demonstrou por nós, assumindo a forma humana no seio da Virgem Santíssima, chegando à consequência extrema de sua Encarnação ao morrer na cruz do modo mais atroz e humilhante que qualquer ser humano poderia sofrer. Conforme afirma São João Paulo II, São Luís Maria tem uma “espiritualidade teocêntrica”, aberta a comunicar-se sobretudo aos mais humildes. Sua intensa vida de oração e sua capacidade de refletir sobre as verdades apreendidas pelo coração – através da fé que nos é comunicada pela Igreja – não se restringiam a permanecer com ele, no âmbito de uma espiritualidade intimista ou individualista, mas transbordavam em sua atividade apostólica e no impulso a colocar por escrito tudo aquilo que só poderia lhe vir da oração, escrevendo na perspectiva de que não apenas os sábios e entendidos pudessem compreendê-lo, mas sobretudo os simples e menos instruídos: Ele tem “o gosto de Deus e da Sua verdade” (O amor da Sabedoria eterna, n. 13) e sabe comunicar a sua 6 fé em Deus, do Qual exprime ao mesmo tempo a majestade e a doçura, pois Deus é fonte transbordante de amor. O Padre de Montfort não hesita em abrir aos mais humildes o mistério da Trindade, que inspira a sua oração e a sua reflexão sobre a Encarnação redentora, obra das Pessoas divinas. Quer fazer compreender a atualidade da presença divina no tempo da Igreja [...]. Na nossa época, o seu testemunho pode ajudar a fundar com vigor a existência cristã sobre a fé no Deus vivo, sobre uma relação calorosa com Ele e sobre uma sólida experiência eclesial, graças ao Espírito do Pai e do Filho, cujo Reino continua no presente.[3] Outros Papas além de São João Paulo II citam São Luís Maria Grignion de Montfort em seus discursos, encíclicas e exortações, testemunhando a relevância de seu pensamento para nossos dias. Bento XVI, por exemplo, em sua Audiência Geral de 19 de agosto de 2009, o exaltou como uma das “personalidades de elevado relevo” da “escola francesa” de santidade, que “teve entre os seus frutos também São João Maria Vianney”.[4] Com Papa Francisco não é diferente. Em seu Discurso aos Participantesno Capítulo Geral dos Irmãos de São Gabriel e aos membros da Família Monfortina, o Santo Padre enfatiza o amor da Sabedoria encarnada e a Palavra de Deus como fundamentos de sua ação evangelizadora e de sua espiritualidade. Tais devem ser também os pilares da vida não só dos religiosos e religiosas que têm São Luís Maria como pai e fundador, mas também de todos os homens e mulheres de boa vontade: Esta é a ocasião para fazer memória, para agradecer e para voltar aos fundamentos lançados, há mais de trezentos anos, por São Luís Maria Grignion de Montfort — cujo aniversário de morte recordareis amanhã [...]. Um destes fundamentos é a Palavra de Deus, que deve ser meditada constantemente a fim de que se encarne na vida e, pouco a pouco, modele os pensamentos e os gestos segundo os de Cristo. O outro é a Sabedoria, cujo amor e busca incessante inspiraram São Luís Maria a escrever páginas luminosas. Para alcançá-la, ele convida a “ouvir Deus com submissão humilde; a agir n’Ele e através d’Ele, com fidelidade perseverante; e, por fim, a obter a luz e a unção necessárias para inspirar nos outros o amor pela Sabedoria, a fim de os conduzir para a vida eterna” (O amor da Sabedoria eterna, n. 30). Pondo em prática tais conselhos, conseguireis discernir os particulares desafios, que constituem sempre oportunidades para “recomeçar juntos a partir de Cristo e de Montfort”.[5] 7 2) Visão geral da obra A obra que temos em mãos pode ser dividida em duas partes: a primeira referente à Sabedoria eterna conforme revelada no Antigo Testamento (capítulos I a VIII) e a segunda (IX em diante) relativa à Sabedoria encarnada, conforme revelada no Novo Testamento, na Pessoa do Verbo que se fez carne no seio da Bem-aventurada Virgem Maria: Jesus Cristo, Filho Unigênito do Pai, Deus conosco, cujo amor veio revelar- nos através de sua encarnação, do anúncio do Reino, de sua morte e de sua ressurreição. A obra se inicia com uma Oração à divina Sabedoria, exaltada pelo autor como “soberana do céu e da terra”, a Quem ele suplica perdão por “ousar falar de suas maravilhas, embora sendo tão ignorante e pecador” (n. 1). É a atitude de alguém que se dispõe, com coração reto e espírito decidido, a confirmar os irmãos na fé e no caminho da salvação, tal qual mestre e bom pastor. O autor também reconhece a atuação da graça santificante em sua vida, numa atitude de gratidão que também se afigura fundamental nos corações daqueles que Deus escolheu para edificar seu Reino no mundo e proteger a vinha que é seu povo: Vós tendes tantas belezas e doçuras, me preservastes de tantos males e me cumulastes de tantas graças, e mesmo assim ainda sois tão desconhecida e desprezada. Como podereis querer que eu me cale? Não são apenas a justiça e o reconhecimento que me obrigam a falar de vós, mas também o meu próprio interesse, e o farei ainda que gaguejando! (n. 1) São Luís Maria reconhece que sua obra pode parecer desprovida de metodologia, [6] mas justifica-se por seu “desejo tão grande” de possuir a Sabedoria eterna, inspirando-se em Salomão nesse modo de “tatear sem método” (n. 2). Por outro lado, seu esforço por difundir o amor à Sabedoria eterna também justifica seu modo de proceder na redação da obra. Trata-se, ao contrário, de uma clara disposição a colocar-se ao sabor do vento do Espírito, que sopra onde quer e como quer (cf. Jo 3,8). O capítulo I versa sobre a necessidade do conhecimento da Divina Sabedoria e os vários tipos de Sabedoria. A necessidade de conhecer a Divina Sabedoria se deve principalmente ao fato de não se poder amar aquilo que não se conhece, de modo que só se ama pouco a Deus quando não se conhece muito a seu respeito. Por isso a importância daquela que São Luís Maria designa como “a mais nobre, a mais doce, a mais útil e a mais necessária de todas as ciências e conhecimentos do céu e da terra”, qual seja, “a ciência supereminente de Jesus” (n. 8), cujo objeto é “o que há de mais nobre e mais sublime, a Sabedoria incriada e encarnada, que abriga em si toda a plenitude da divindade e da humanidade, tudo o que há de grande no céu e na terra, todas as criaturas visíveis e invisíveis, espirituais e corpóreas” (n. 9). No capítulo II, o autor apresenta a origem e a excelência da Sabedoria eterna. Tal origem se situa antes do tempo e da criação do Universo, tendo como princípio a própria essência e eternidade do Pai e relacionando-se intrinsecamente com o mistério da Santíssima Trindade. A excelência da Sabedoria eterna, por sua vez, diz respeito às operações da Sabedoria nas almas; tais operações são a “grande variedade de estados, funções e virtudes das almas” (n. 29) e se encontram referidas em Eclesiástico 24, que São Luís Maria cita integralmente. 8 O capítulo III narra as maravilhas da divina Sabedoria na criação do mundo e do homem. Além de criar, ou seja, trazer ao ser, sendo, portanto “a mãe e a artífice de todas as coisas” (n. 31), a Sabedoria também é aquela que mantém e conserva as criaturas no ser: “a Sabedoria eterna permanece em todas as coisas, para sustentá-las, contê-las e renová-las”. O homem é concebido como a “obra-prima” da Sabedoria eterna, “a imagem viva de sua beleza e de suas perfeições, o grande vaso de suas graças, o tesouro admirável de suas riquezas e seu único vicário na terra” (n. 35). O capítulo IV fala sobre a bondade e misericórdia da Sabedoria eterna antes da Encarnação, quando Ela se compadece do estado em que Adão e a humanidade se encontraram lançados após a queda, lançados à própria sorte, privados do estado original de santidade perfeita e visão beatífica. Nesse capítulo, São Luís Maria recorre à metáfora – também presente nos Santos Padres da Igreja e cujo fundamento bíblico se encontra em Gn 1,26 – de algo como uma conferência entre as três Pessoas da Santíssima Trindade, em que, tendo como pano de fundo “uma espécie de combate entre a Sabedoria eterna e a Justiça de Deus” (n. 42), a causa do homem é defendida pela Pessoa do Filho, que se dispõe a resgatar a humanidade decaída: A Sabedoria eterna, vendo que não havia nada no universo capaz de expiar o pecado do homem, satisfazer a justiça e apaziguar a ira de Deus – mas querendo salvar o pobre homem que Ela era inclinada a amar –, encontra um meio admirável, algo inimaginável: em seu amor incompreensível, que vai ao paroxismo, essa adorável e soberana Princesa se oferece Ela mesma em sacrifício ao Pai, a fim de satisfazer sua justiça, acalmar sua ira e nos retirar da escravidão do demônio e das chamas do inferno, alcançando para nós uma eternidade de felicidade (n. 45). No capítulo V, citando e comentando os capítulos 7 e 8 do livro da Sabedoria, o autor faz o elogio da Sabedoria eterna, enfatizando, entre outros aspectos, sua presença em nossa vida, sem a qual não passamos de criaturas indigentes e perdidas, que não sabem que rumo tomar, desconhecendo o sentido da própria vida: Quem pode ser pobre com a Sabedoria, que é tão rica e generosa? Quem pode ser triste com a Sabedoria, que é tão doce, bela e terna? Quem daqueles que buscam a Sabedoria diz sinceramente com Salomão: Proposui ergo (“Eu, portanto, decidi!”)? A maior parte das pessoas não tomou essa decisão sincera; a maioria delas não tem senão veleidades ou, pior ainda, decisões oscilantes e indiferentes. Por isso, jamais encontram a Sabedoria (n. 59). O capítulo VI trata do desejo da Sabedoria eterna de se dar aos homens. Tal desejo é uma consequência do vínculo de amizade que os une. De fato, numa consideração otimista da humanidade, na perspectiva da Encarnação da Sabedoria eterna, São Luís Maria define o homem com termos que manifestam sua grandeza e preeminência no conjunto da criação, estando ele, de certo modo, acima até mesmo dos anjos: “compêndio” das maravilhas da Sabedoria eterna, “seu pequeno e grande mundo, sua imagem viva e seu representante na terra” (n. 64). A prova maior do desejo que a Sabedoria teve, desde a eternidade, de estabelecer relação com a humanidade decaída foi a sua Encarnação; o sinal visível e perene dessa decisão tomada noseio da Santíssima Trindade é a Eucaristia, memorial permanente de sua Paixão e vínculo sacramental entre Ela e nós: Querendo, de um lado, mostrar seu amor ao homem até o extremo de morrer em seu lugar para o salvar, e não podendo, de outro, decidir-se por deixar o homem, Ela encontra um segredo admirável para morrer e viver ao mesmo tempo, e permanecer com o homem até o fim dos séculos: a instituição amorosa da Eucaristia (n. 71). 9 O capítulo VII versa sobre a escolha da verdadeira Sabedoria, em contraposição à sabedoria terrena, que consiste no “amor pelos bens da terra” (n. 80); à sabedoria carnal, que “é o amor pelo prazer” (n. 81); à sabedoria diabólica, que “é o amor e a estima pelas honrarias” (n. 82); e à sabedoria dos filósofos (n. 84). É evidente que São Luís Maria não rejeita a filosofia, que desde os primórdios do cristianismo forneceu recursos conceituais importantes para a sistematização da fé. O que ele deseja, no entanto, é enfatizar a superioridade do conhecimento revelado pela Sabedoria eterna, antes e depois de sua Encarnação, em relação ao conhecimento teorético abastecido pelo pensamento filosófico. Essa distinção também se encontra em Blaise Pascal (1623-1662), outro grande pensador francês e um dos maiores filósofos modernos, que redigiu, em 23 de novembro de 1654, após uma experiência mística que marcou profundamente sua vida, um célebre Memorial em que se dirige a Deus como “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos sábios”.[7] No capítulo VIII encontramos os “efeitos maravilhosos da Sabedoria eterna nas almas dos que a possuem”, dentre os quais destacamos a comunicação de “seu espírito pleno de luz à alma que a possui” (n. 92), pela qual o homem também se torna capaz de comunicá-lo aos outros (cf. n. 95). O capítulo IX apresenta a Encarnação e a vida da Sabedoria eterna. Embora tenha sido anunciada a Adão, aos patriarcas e aos profetas do Antigo Testamento (cf. n. 104), apenas uma criatura encontrou graça diante de Deus a ponto de merecer tornar- se uma “habitação digna” da Sabedoria encarnada: a Santíssima Virgem Maria (cf. n. 105). Assim, em virtude da Encarnação, “toda a plenitude da divindade se derrama em Maria, na medida das capacidades de uma criatura pura” (n. 106). Os capítulos X e XI refletem sobre a beleza encantadora e a doçura inefável da Sabedoria encarnada, que se fez um de nós “para atrair os corações dos homens a sua amizade e imitação”, adornando-se com “todas as amabilidades e doçuras humanas mais encantadoras e mais sensíveis, sem nenhum defeito nem imperfeição” (n. 117). O capítulo XII consiste numa coletânea dos principais conselhos proferidos pela boca da Sabedoria encarnada e necessários a nossa salvação. São frases que integram seu Testamento de amor, que são os Evangelhos, e que Ela quis nos deixar como legado de seu amor, juntamente com a instituição da Eucaristia e a efusão do Espírito Santo, após sua Ascensão ao céu. Os capítulos XIII e XIV versam sobre as dores atrozes suportadas pela Sabedoria encarnada por amor de nós. Destaca-se nesses capítulos uma belíssima e profunda reflexão sobre a cruz. De fato, a realidade da cruz marcou profundamente a missão de São Luís Maria como apóstolo da região Oeste da França. Nos capítulos XV, XVI e XVII são apresentados quatro meios para adquirir a Divina Sabedoria, quais sejam: 1) um desejo ardente; 2) uma oração contínua; 3) uma mortificação universal; e 4) uma terna e verdadeira devoção à Santíssima Virgem. O desejo ardente constitui “a recompensa da fiel observância dos mandamentos de Deus”, tratando-se, portanto, de “um grande dom de Deus” (182). A oração contínua é uma condição preliminar da obtenção da Sabedoria, uma vez que “quanto maior for um dom de Deus, mais difícil será obtê-lo” (n. 184); sendo Ela o maior e mais 10 excelente dom de Deus, só com muito empenho e sacrifício pode ser alcançada. As qualidades necessárias à oração são: uma “fé viva e firme” (n. 185), “uma fé pura” (n. 186), que não dependa de sensações, êxtases e revelações individuais, e, por fim, a perseverança (n. 188). A mortificação diz respeito a deixar as obras da carne (tudo o que se relaciona com a busca desenfreada do prazer, da riqueza e do poder), para abraçar as obras do Espírito, que muitas vezes exigem sacrifício e abnegação (cf. n. 194), pois, conforme disse a mesma Sabedoria encarnada, “é largo e espaçoso o caminho que leva para a perdição. E são muitos os que tomam esse caminho. Como é estreita a porta e apertado o caminho que leva para a vida! E são poucos os que o encontram” (Mt 7,13-14). Por fim, a verdadeira devoção à Santíssima Virgem Maria, que é o objeto do último capítulo, é designada como “o mais maravilhoso de todos os segredos para adquirir e conservar a divina Sabedoria” (n. 203). O capítulo reflete sobre a necessidade da verdadeira devoção a Maria e em que consiste tal devoção. A necessidade da verdadeira devoção diz respeito a uma constatação de São Luís Maria que, para nós católicos romanos, constitui uma verdade de fé: Jamais houve alguém senão Maria a encontrar graça diante de Deus, para si mesma e para todo o gênero humano, de modo que só ela teve o poder de encarnar e trazer ao mundo a Sabedoria eterna. Somente ela também, pela operação do Espírito Santo, tem o poder de encarná-lo, por assim dizer, nos predestinados (n. 203). As metáforas do paraíso perdido são transpostas para o contexto novo e permanente da Encarnação e da redenção, sendo Maria a nova árvore da vida que produziu o novo e definitivo fruto da vida: Jesus Cristo. Sendo ela a árvore, dela recebemos o fruto: “quem quiser esse fruto admirável em seu coração deve ter a árvore que o produz: quem quiser ter Jesus, deve ter Maria” (n. 204). Maria Santíssima não está acima do Senhor Jesus, o que seria uma heresia. Ela não deixou de ser uma criatura do Pai após a Encarnação do Verbo. No entanto, é um fato inegável que a Sabedoria eterna, quando abriu mão de sua divindade para fazer- se um de nós, assumindo a condição de servo (cf. Fl 2,6-11), quis também submeter- se a Maria (cf. Jo 2,51). São Luís Maria argumenta que essa submissão de Jesus a Maria, enquanto submissão do Filho à Mãe, permanece de um modo misterioso e incompreensível após a ressurreição e ascensão do Filho, e a assunção e coroação da Mãe: [...] tendo Deus Filho, a Sabedoria eterna, se submetido perfeitamente a Maria como sua Mãe, Ele deu a ela, sobre Si próprio, um poder maternal e sobrenatural que é incompreensível, não apenas durante sua vida na terra, mas também no céu, porquanto a glória, além de não destruir a natureza, a aperfeiçoa. Disso decorre que, no céu, mais do que nunca, Jesus é Filho de Maria, e Maria, Mãe de Jesus (n. 205). Por fim, a verdadeira devoção à bem-aventurada Virgem Maria consiste, em poucas palavras, conforme o próprio São Luís Maria refere, “em ter grande estima por suas grandezas, um grande reconhecimento por seus benefícios, um grande zelo por sua glória, em invocar continuamente seu auxílio e depender totalmente de sua autoridade, como também em apoiar-se firmemente e confiar ternamente em sua bondade materna” (n. 215). O fim último de tal devoção, bem como seu efeito final, é conceber Jesus Cristo, a Sabedoria eterna, em nossa alma e conservá-lo nela até o 11 entardecer de nossa existência terrena, para então gozarmos da visão face a face no céu (n. 220). No final da obra, São Luís Maria nos dá a fórmula da Consagração a Jesus Cristo, Sabedoria Encarnada, pelas mãos de Maria, que também constitui o ponto de culminância do Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem Maria.[8] 12 3) Vida e obra de São Luís Maria Grignion de Montfort Em seu Discurso aos peregrinos reunidos em Roma para a canonização de Luís Maria Grignion de Montfort, de 21 de julho de 1947, o Papa Pio XII assim se refere ao grande missionário do Santo Rosário: A característica própria a Luís Maria, e pela qual é um autêntico bretão, é sua tenacidade perseverante em perseguir o santo ideal, o único ideal de suavida: ganhar os homens para dá-los a Deus. Na busca desse ideal, ele lançou mão de todos os recursos que poderia receber da natureza e da graça, de modo que pôde ser verdadeiramente, em todos os campos, o apóstolo do Oeste da França. [...] A caridade: eis o grande, ou mesmo o único segredo dos resultados surpreendentes da vida tão breve, tão múltipla e movimentada de Luís Maria Grignion de Montfort. [...] A cruz de Jesus, a Mãe de Jesus: os dois polos de sua vida pessoal e de seu apostolado. E eis como essa vida, em sua brevidade, foi plena; como esse apostolado, exercido durante apenas doze anos, se perpetua já há mais de dois séculos e se estende sobre muitas regiões! O fato é que a Sabedoria, à qual ele se entregou, fez frutificar seus labores, coroou seus trabalhos, que a morte certamente não interrompeu. A obra é toda de Deus, mas também traz consigo a marca daquele que foi seu fiel cooperador.[9] São Luís Maria nasceu em Montfort, próximo a Rennes (França), em 31 de janeiro de 1673, filho mais velho de um advogado bretão. Sua primeira educação esteve a cargo dos jesuítas. Aos 19 anos, entrou no seminário Saint-Sulpice, em Paris, onde brilhou por sua inteligência e profunda piedade. Foi na escola de Saint-Sulpice que pôde se desenvolver sua grande devoção à Virgem Maria e à cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, dois pilares de sua missão, como acenou Pio XII por ocasião de sua canonização. Foi ordenado sacerdote em 1700, aos 27 anos de idade, tornando-se capelão do hospital de Poitiers, onde divide a mesa com os doentes e reúne, em torno de Marie- Louise Trichet, filha de um alto magistrado, um grupo de moças que desejavam se dedicar aos pobres. Assim nasceu a congregação das Filhas da Sabedoria. As reformas que ele propõe e o embate de ideias com os Jansenistas incomodam a burguesia local, que consegue retirá-lo do hospital. Ele então se dirige ao papa, a fim de ser enviado em missão. O papa o envia de volta à França, como pregador das missões paroquiais, o que também o faz atrair a simpatia de alguns e a cólera de outros. Também foram fundadas por ele duas outras congregações: uma conhecida como Companhia de Maria, dos Padres Missionários Montfortinos, que só terá início após sua morte, e a congregação dos Irmãos de São Gabriel. Sua incansável atividade missionária de pregação pelas dioceses do Oeste da França também o colocou em conflito com as autoridades eclesiásticas. Porém, o bispo de La Rochelle, dom Etienne de Champfour, tornou-se para ele um protetor eficaz. A partir de 1711, o padre Luís Maria pregou em sua diocese três missões: uma para homens, outra para soldados e uma terceira para mulheres. Tendo sido alvo de uma tentativa de envenenamento, precisou fugir da cidade, indo pregar em outras dioceses, como Aunis, Thairé, Saint-Vivien, Esnandes e Courçon. Em 1714, pregará na diocese de Saintes. Sua atividade apostólica se desenrolou no período de dez anos, por meio de sua palavra poderosa e a chama de seu zelo, sendo inclusive acompanhada de milagres. Sua vida espiritual foi alimentada por uma oração contínua e vivificada em retiros 13 prolongados. Uma série de cantos populares completa os frutos de sua pregação. Plantando a cruz de Cristo por inúmeros povoados e semeando a devoção ao Rosário, a Divina Providência se serviu dele para preparar os fiéis da parte ocidental da França para a resistência contra as perseguições que se seguiram à Revolução Francesa. Após dezesseis anos de apostolado, em 1716, morre em plena atividade missionária, em Saint-Laurent-sur-Sèvre (Vendée), com apenas quarenta e três anos. É considerado um dos maiores santos dos tempos modernos e o grande promotor da devoção à Santíssima Virgem de nosso tempo. Foi beatificado pelo Papa Leão XIII, em 22 de janeiro de 1888, e canonizado por Pio XII, em 20 de julho de 1947. Entre suas obras principais, destacam-se: L’Amour de la Sagesse éternelle (O amor da Sabedoria eterna); Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge Marie (Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem Maria); Le Secret de Marie (O segredo de Maria); Lettre circulaire aux Amis de la Croix (Carta circular aos amigos da cruz); Le Secret admirable du très saint Rosaire pour se convertir et se sauver (O segredo admirável do santíssimo Rosário para se converter e se salvar); La Prière embrasée (A oração abrasada) e Les Cantiques (Os cânticos). 14 INTRODUÇÃO I. Oração à Sabedoria eterna 1. Ó divina Sabedoria, soberana do céu e da terra, humildemente prostrado diante de vós, peço-vos perdão por ousar falar de vossas maravilhas, embora sendo eu tão ignorante e pecador. Não leveis em conta, eu vos suplico, as trevas de meu espírito e as impurezas de meus lábios, ou então, se vós as olhardes, que seja somente para as destruirdes apenas com um olhar e um sopro de vossa boca. Vós tendes tantas belezas e doçuras, me preservastes de tantos males e me cumulastes de tantas graças, e mesmo assim ainda sois tão desconhecida e desprezada. Como podereis querer que eu me cale? Não são apenas a justiça e o reconhecimento que me obrigam a falar de vós, mas também o meu próprio interesse, e o farei ainda que gaguejando! Como uma criança, não faço mais do que gaguejar, é verdade, mas isso se deve ao fato de que sou apenas uma criança e, ao gaguejar, desejo aprender a falar com desenvoltura, quando eu tiver alcançado a plenitude de vossa idade.[1] 2. Reconheço que poderá parecer que não há qualquer espírito de ordem naquilo que escrevo, mas a razão disso é que tenho um desejo tão grande de vos possuir que, a exemplo de Salomão, procuro-vos de todos os lados, tateando sem método. Se me empenho em vos tornar conhecida neste mundo, foi porque vós mesma prometeste a vida eterna a todos aqueles que vos tornassem conhecida e alcançável. Transformai, então, minha amável Princesa, minha gagueira em eminente discurso. Recebei os movimentos de minha escrita como passos que dou para vos encontrar. Enviai, do alto de vosso trono, copiosas bênçãos e luzes a tudo aquilo que desejo fazer e dizer de vós, para que todos os que me ouvirem sejam inflamados de um desejo renovado de vos amar e vos possuir no tempo e na eternidade. 15 II. Advertência da divina Sabedoria aos príncipes e aos grandes da terra no livro da Sabedoria, capítulo 6 3. A Sabedoria é mais digna de estima do que a força, e o homem prudente vale mais que o corajoso. 1Escutem, portanto, reis, e compreendam! Aprendam, juízes de toda a terra! 2Prestem atenção, vocês que governam multidões e se orgulham do grande número de súditos! 3O governo que vocês têm nas mãos foi-lhes dado pelo Senhor, e o domínio provém do Altíssimo. Ele examinará as obras que vocês praticam e sondará em vocês as intenções. 4Pois, embora sejam ministros do Reino dele, vocês não julgaram corretamente, não observaram a Lei, e não agiram de acordo com a vontade de Deus. 5Ele virá sobre vocês repentinamente e de modo terrível, porque contra os que têm muito poder cabe um julgamento implacável. 6Os pequenos serão perdoados com misericórdia, mas contra os poderosos o julgamento será poderoso. 7O Senhor de tudo não recuará diante de ninguém, a grandeza não o impressionará; porque ele fez tanto o pequeno como o grande, e ele tem atenção igual para com todos. 8Mas os poderosos serão rigorosamente investigados. 9Estas minhas palavras são para vocês, soberanos, para que aprendam a sabedoria e não venham a cair. 10Quem observa santamente as coisas santas será santificado, e quem as aprende encontrará defesa. 11Portanto, desejem e busquem minhas palavras, e vocês serão instruídos. 4. 12A Sabedoria é resplandecente e não murcha. Ela se mostra facilmente a quem lhe tem amor, e se deixa encontrar por aquele que a procura. 13Ela se adianta para ser conhecida por aquele que a deseja. 14Quem por ela madruga não se cansará, pois a encontrará sentada junto à porta de casa. 15Meditar sobre ela, portanto, é a perfeição da inteligência, e quem dela cuida estará logo sem preocupações. 16Vai por toda parte buscando aqueles que sejam dignos dela;mostra-se a eles bondosamente nos caminhos, e vai a eles em todos os pensamentos. 17Princípio da Sabedoria é o desejo verdadeiro de instrução. 16 A preocupação pela instrução é o amor. 18E o amor é a observância das leis da Sabedoria. Guardar as leis garante a imortalidade. 19E a imortalidade permite estar perto de Deus. 20Assim, o desejo da sabedoria conduz ao reino. 21Portanto, soberanos dos povos, se vocês gostam de tronos e cetros, honrem a Sabedoria, para que assim vocês reinem para sempre. 22Vou anunciar a vocês o que é a Sabedoria, e como surgiu. Não esconderei de vocês os mistérios dela. Pelo contrário, investigarei desde o início da criação, e mostrarei o seu conhecimento, sem me afastar da verdade. 23Não estarei acompanhado da inveja devoradora, pois esta nada tem de comum com a Sabedoria. 24Grande número de sábios é salvação para o mundo, e rei sensato traz bem-estar ao povo. 25Assim, aprendam com minhas palavras, e disso vocês tirarão proveito. 5. Eu não quis, meu caro leitor, misturar a fraqueza de minha linguagem com a autoridade das palavras do Espírito Santo, mas desejo tomar a liberdade de enfatizar os seguintes pontos: 1) Como a Sabedoria eterna é, por si mesma, doce, leve e estimulante, embora seja luminosa, excelente e sublime! Ela atrai os seres humanos, para ensinar-lhes os meios para a felicidade. Ela os interpela, sorri para eles, cumulando-os de mil benefícios. Ela os previne de mil maneiras diferentes, até sentar-se à porta de suas casas, para aguardá-los e dar-lhes provas de amizade. Nós, que temos coração, podemos recusá-lo a essa doce sedutora? 6. 2) Que grande infelicidade a dos poderosos e dos ricos quando não têm amor pela Sabedoria! Como são dignas de temor – e inexplicáveis em nossa língua – as palavras que Ela lhes dirige: Horrende et cito apparebit vobis... Judicium durissimum his qui praesunt fiet... Potentes... potenter tormenta patientur. Fortioribus... fortior instat cruciato (“Ele virá sobre vocês repentinamente e de modo terrível, porque contra os que têm muito poder cabe um julgamento implacável. [...] Contra os poderosos, o julgamento será poderoso. [...] Os poderosos serão rigorosamente investigados”, Sb 6,5-8). Acrescentemos a essas palavras algumas daquelas que Ela lhes disse ou mandou dizer depois de sua Encarnação: Vae vobis, divitibus. Facilius est camelum pere foramen acus transire quam divitem intrare in regnum caelorum (“Ai de vocês, ricos. É mais fácil um camelo passar pelo vão de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos céus”, Lc 6,24; Mt 19,24; cf. Mc 10,25; Lc 18,25). Essas últimas palavras foram repetidas tantas vezes pela divina Sabedoria, quando vivia sobre a terra, que três evangelistas as reproduziram integralmente, sem mudar uma vírgula. Isso deveria fazer os ricos se derramar em lágrimas, gritar e urrar: Agite 17 nunc, divites, plorate, ululantes in miseriis quae advenient vobis (“E agora vocês, ricos, chorem e gemam por causa das desgraças que estão para cair sobre vocês”, Tg 5,1). Mas, infelizmente, eles têm neste mundo seu consolo; estão como que enfeitiçados pelos prazeres comprados com suas riquezas, e não enxergam os infortúnios que lhes pendem da cabeça. 7. 3) Salomão assegura que fará uma descrição fiel e exata da Sabedoria, e que nem a inveja nem o orgulho – que são contrários à caridade – o impedirão de comunicar uma ciência que lhe foi dada do céu, de modo que ele não teme que os outros o alcancem ou mesmo o ultrapassem no conhecimento dela (cf. Sb 6,24-26). É a exemplo desse grande homem que vou explicar de maneira simples no que consiste a Sabedoria antes de sua Encarnação, em sua Encarnação e depois de sua Encarnação, e os modos de obtê-la e conservá-la. No entanto, não tendo a abundância dos conhecimentos e das luzes que ele tinha, não tenho por que temer a inveja e o orgulho, tanto quanto minha insuficiência e ignorância, que lhe peço, caro leitor, por caridade suportar e desculpar. 18 Capítulo I Para amar e buscar a Sabedoria, é necessário conhecê- la I. Necessidade do conhecimento da Divina Sabedoria 8. Podemos amar aquilo que não conhecemos? Podemos amar com ardor o que não conhecemos senão imperfeitamente? Por que amamos tão pouco a Sabedoria eterna e encarnada, o adorável Jesus, senão porque não o conhecemos, ou o conhecemos tão pouco? Não há quase ninguém que estude como se deve, com o Apóstolo,[1] essa ciência supereminente de Jesus, que é, no entanto, a mais nobre, a mais doce, a mais útil e a mais necessária de todas as ciências e conhecimentos do céu e da terra. 9. 1) Essa é, em primeiro lugar, a mais nobre dentre todas as ciências, porque tem como objeto o que há de mais nobre e mais sublime, a Sabedoria incriada e encarnada, que abriga em si toda a plenitude da divindade e da humanidade, tudo o que há de grande no céu e na terra, todas as criaturas visíveis e invisíveis, espirituais e corpóreas. São João Crisóstomo afirma que Nosso Senhor é uma síntese das obras de Deus, um quadro resumido de todas as suas perfeições e de todas as perfeições que se encontram nas criaturas (cf. Cl. 1,16; 2,9). Omnia quae velle potes aut debes est Dominus Jesus Christus. Desidera hunc, requiere hunc, quia haec est una et pretiosa margarita pro qua emenda etiam vendenda sunt omnia quae tua sunt (“Jesus Cristo, a Sabedoria eterna, é tudo o que podes e deves desejar. Deseja-o, busca-o, pois Ele é esta pérola única e preciosa para a compra da qual não deves colocar nenhum obstáculo a vender tudo o que tens”).[2] In hoc glorietur qui gloriatur, scire et nosse me (“Se alguém quer gloriar-se, que se glorie de me conhecer e me compreender”, cf. Jr 9,23). Que o sábio não se glorie de sua sabedoria, nem o forte de sua força, nem o rico de suas riquezas; mas aquele que se gloria, encontre sua glória no fato de me conhecer, e não em conhecer outra coisa. 10. 2) Não há nada de mais doce do que o conhecimento da divina Sabedoria: Bem-aventurados aqueles que a escutam; mais felizes ainda os que a desejam e a buscam; mas os mais felizes mesmo são aqueles que seguem seus caminhos, saboreiam em seu coração essa doçura infinita que é a alegria e a felicidade do Pai eterno e a glória dos anjos (cf. Pr 2,1-9). Se soubéssemos qual o prazer experimentado por uma alma que conhece a beleza da Sabedoria, que suga o leite desse mamilo do Pai (mamilla Patris),[3] exclamaríamos com a Esposa: Meliora sunt ubera tua vino (“O leite de seus mamilos é mais doce que o melhor vinho e que todas as doçuras das criaturas”, cf. Ct 1,2), sobretudo quando Ela faz as almas que a contemplam ouvirem estas palavras: Gustate et videte. Comedite et bibite; et inebriamini: Saboreai e vede (cf. Sl 33,9). Comei e bebei, e 19 inebriai-vos de minhas delícias eternas (cf. Ct 5,1); pois minha convivência jamais tem nada de desagradável, nem minha intimidade nada de enfadonho, mas em mim só encontrareis alegria e satisfação (non enim habet amaritudinem conversatio illius; nec taedium convictus illius, sed laetitiam et gaudium, cf. Sb 8,16). 11. 3) Esse conhecimento da Sabedoria eterna não é apenas o mais doce e o mais nobre, mas também o mais útil e o mais necessário, pois a vida eterna consiste em conhecer Deus e seu Filho Jesus Cristo (cf. Jo 17,3). Exclama o Sábio ao dirigir-se à Sabedoria: “Conhecer-vos é a perfeita justiça; e compreender vossa equidade e vossa potência é a raiz da imortalidade” (Sb 15,3). Se quisermos verdadeiramente ter a vida eterna, que tenhamos de fato o conhecimento da Sabedoria eterna. Se quisermos verdadeiramente ter a perfeição da santidade neste mundo, conheçamos a Sabedoria. Se quisermos ter em nosso coração a raiz da imortalidade, que tenhamos em nosso espírito o conhecimento da Sabedoria. Conhecer Jesus Cristo Sabedoria encarnada é saber tudo o que necessitamos. Presumir que sabemos tudo, mas sem conhecê-lo, é nada saber de fato.[4] 12. De que adianta a um arqueiro saber atirar flechas na zona periférica de um alvo quando seu objetivo mesmo é acertar bem no centro? Assim também, de que nos servirãotodas as outras ciências necessárias à salvação se não conhecemos aquela de Jesus Cristo, que é a única necessária e o centro para o qual todas as outras devem convergir? Ainda que o grande apóstolo Paulo soubesse tantas coisas e fosse versado nas letras humanas, ele dizia, contudo, não saber senão Jesus Cristo Crucificado: Non judicavi me scire aliquid inter vos, nisi Jesum Christum, et hunc crucifixum (“Pois entre vocês eu decidi não saber nada além de Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”, 1Cor 2,2). Digamos, portanto, com ele: Quae mihi fuerunt lucra, haec arbitratus sum propter Christum detrimenta. Verum tamen [existimo] omnia detrimentum esse, propter eminentem scientiam Jesu Christi (“Mas tudo o que para mim era lucro, agora considero como perda, por causa de Cristo. Mais que isso. Considero tudo como perda, diante do bem superior que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo”, Fl 3,7-8). Agora vejo e experimento que essa ciência é tão excelente, tão cativante, tão proveitosa e admirável que já não tenho nenhum interesse pelas outras, que outrora tanto me agradaram. Elas agora me parecem tão vazias e ridículas que considero perda de tempo dar-lhes muita importância: Haec autem dico ut nemo vos decipiat in sublimitate sermonum. Videte ne quis vos decipiat per philosophiam et inanem fallaciam (“Digo isso, para que ninguém os engane com belos discursos. Tomem cuidado para que ninguém os escravize com filosofias enganosas e vazias, baseadas em tradições humanas e elementos do mundo, e não em Cristo”, Cl 2,4.8). Crescite in gratiam et in cognitione Domini nostri et Salvatoris Jesu Christi (“Cresçam na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”, 2Pd 3,18). Ora, a fim de crescermos na graça e no conhecimento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada, falaremos dela nos capítulos subsequentes, depois de distinguirmos vários tipos de sabedoria. 20 II. Vários tipos de Sabedoria 13. Em sua acepção geral, a palavra sabedoria significa uma ciência saborosa (sapida scientia)[5] ou o gosto de Deus e de sua verdade. No entanto, existem vários tipos de sabedoria. Primeiramente, elas se distinguem em verdadeira e falsa sabedoria: a verdadeira é o gosto da verdade, sem falsidade nem disfarce; a falsa é o gosto da mentira, coberta com a aparência da verdade. A falsa sabedoria é a sabedoria ou prudência mundana, que o Espírito Santo classifica em três tipos: Sapientia terrena, animalis, diabolica (“Porque esse tipo de sabedoria não vem do alto, mas é terrena, psíquica e demoníaca”, Tg 3,15). A verdadeira sabedoria se distingue em natural e sobrenatural. A sabedoria natural é o conhecimento das coisas naturais de um modo eminente em seus princípios. A sabedoria sobrenatural é o conhecimento das coisas sobrenaturais e divinas em sua origem. Essa sabedoria sobrenatural se divide em sabedoria substancial e incriada, e em sabedoria acidental e criada. A sabedoria acidental e criada é a comunicação que a Sabedoria incriada faz de si mesma aos homens, ou seja, é o dom da sabedoria. A Sabedoria substancial e incriada é o Filho de Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, isto é, a Sabedoria eterna na eternidade, ou Jesus Cristo no tempo. É exatamente dessa Sabedoria eterna que vamos falar. 14. Desde a sua origem, nós a contemplaremos na eternidade, residindo no seio do Pai, como o objeto de suas complacências. Nós a veremos no tempo, brilhando na criação do universo. Em seguida, nós a veremos completamente humilhada em sua Encarnação e em sua vida mortal, e depois a encontraremos gloriosa e triunfante nos céus. Por fim, veremos quais são os meios dos quais devemos nos servir para alcançá-la e mantê-la. Assim sendo, deixo aos filósofos os argumentos de sua filosofia como inúteis. Deixo aos alquimistas os segredos de sua sabedoria mundana. Sapientiam loquimur inter perfectos (“Aos adultos na fé falamos de sabedoria, mas não da sabedoria deste mundo, nem dos chefes passageiros deste mundo”, 1Cor 2,6). Portanto, falaremos da verdadeira Sabedoria, da Sabedoria eterna, incriada, encarnada, às almas perfeitas e predestinadas. 21 Capítulo II A origem e a excelência da Sabedoria eterna 15. Aqui devemos exclamar com São Paulo: O altitudo... Sapientiae... Dei (“Oh, profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis suas decisões e misteriosos seus caminhos!”, Rm 11,33). Generationem ejus quis enarrabit? (“Quem falará de sua geração?”, Is 53,8; At 8,33). Quem será o anjo suficientemente esclarecido e o homem temerário o bastante para fazer a tentativa de nos explicar de modo adequado a origem dela? Pois, diante dela, todos os olhos se fecham, com medo de serem ofuscados por uma luz tão viva e brilhante. É aqui que toda língua se emudece, com medo de obliterar uma beleza tão perfeita ao querer desvendá-la. É aqui que todo espírito precisa se prostrar e adorar, com medo de ser oprimido pelo peso imenso da glória da divina Sabedoria, ao querer sondá-la. 22 I. A Sabedoria em relação ao Pai 16. Eis, entretanto, a ideia que o Espírito Santo, para adequar-se a nossa fraqueza, nos dá no livro da Sabedoria, que Ele compôs para nós: “[A Sabedoria eterna] é emanação do poder de Deus, emanação pura da glória do Onipotente. Por isso, mancha alguma nela se infiltra. Ela é reflexo da luz eterna, espelho nítido da ação de Deus e imagem de sua bondade” (Sb 7,25-26). 17. A ideia substancial e eterna da divina beleza é que foi mostrada a São João na ilha de Patmos, quando ele escreveu: In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum (“No princípio existia a Palavra – ou o Filho de Deus, ou a Sabedoria eterna –, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus”, Jo 1,1). 18. É em referência a Ela que se diz, em vários trechos dos livros de Salomão,[1] que a Sabedoria foi criada, ou seja, produzida, desde o princípio, antes de todas as coisas e de todos os séculos. Ela mesma diz a seu próprio respeito: “Fui estabelecida desde a eternidade, desde o princípio, antes que a terra começasse a existir. Fui gerada quando as profundezas ainda não existiam, e antes que existissem as nascentes das águas” (Pr 8,23-24). 19. Foi nessa beleza suprema da Sabedoria que Deus colocou o seu agrado, na eternidade e no tempo, como o próprio Senhor Deus Altíssimo atestou expressamente no dia de seu batismo e de sua transfiguração: Hic est Filius meus dilectus, in quo mihi bene complacui (“Este é o meu Filho amado, em quem encontro o meu agrado. Ouçam-no”, Mt 17,5; cf. Mt 3,17). Foi dessa luminosa e incompreensível claridade que os apóstolos [Pedro, Tiago e João] viram uma manifestação fugaz no momento de sua transfiguração, claridade essa cujos raios os encheram de doçura, mergulhando-os no êxtase: Illustre quiddam [cernimus] Sublime, celsum, interminum, Antiquius caelo et chao! Essa eterna Sabedoria é: Algo de nobre, exaltado, imenso, Infinito e mais antigo que o universo![2] Se, de fato, eu não tenho palavras para explicar a única e pálida ideia que tive dessa beleza e doçura suprema, apesar de minha ideia estar infinitamente aquém de sua excelência, quem é que poderá ter uma ideia adequada dela e explicá-la como convém? Só vós, ó Deus Onipotente – que sabeis no que Ela consiste – podeis revelá-la a quem quiserdes. 23 II. As operações da Sabedoria nas almas 20. Eis como, no capítulo 24 do livro do Eclesiástico,[3] a própria Sabedoria se define, no que diz respeito a seus efeitos e a suas operações nas almas. Não misturarei minhas pobres palavras com as dela, para não diminuir-lhes o fulgor e a sublimidade: 1. A Sabedoria louvará a si mesma; ela honrará e glorificará a si mesma no Senhor, no meio de seu povo. 2. Ela abrirá sua boca nas assembleias do Altíssimo e se glorificará nos exércitos do Senhor. 3. Ela será elevada no meio de seu povo e será admirada na assembleia de todos os santos. 4. Ela receberá louvores entre a multidão dos eleitose será bendita por aqueles que forem benditos de Deus. Ela dirá:[4] 21. 5. Saí da boca do Altíssimo; nasci antes de todas as criaturas. 6. Fui eu que fiz nascer no céu uma luz que jamais se apagará e que cobriu toda a terra como uma nuvem. 7. Morei nos lugares mais elevados e meu trono se encontra numa coluna de nuvem. 8. Percorri sozinha toda a extensão do céu; penetrei a profundeza dos abismos. Caminhei sobre as ondas do mar. 9. E percorri toda a terra.[5] 22. 10. Imperei sobre todos os povos e sobre todas as nações. 11. Calquei sob os meus pés, por meu poder, os corações de todos os homens, grandes e pequenos; e, entre todas as coisas, procurei um lugar de repouso e uma morada na herdade do Senhor.[6] 23. 12. Então o Criador do universo me deu ordens e me falou. Aquele que me criou repousou em meu tabernáculo. 13. E me disse: “Habita em Jacó. Que Israel seja a tua herança. Enraíza-te nos meus eleitos”.[7] 24. 24 14. Fui criada desde o princípio e antes de todos os séculos. Jamais deixarei de estar na sucessão de todas as eras, e exerci, em sua presença, meu ministério na morada santa. 15. Fui estabelecida em Sião, encontrei meu repouso na cidade santa, e meu poder se estabeleceu em Jerusalém.[8] 25. 16. Enraizei-me no povo que o Senhor honrou, cuja herança é a partilha de meu Deus, e estabeleci minha morada na assembleia de todos os santos. 17. Cresci como os cedros do Líbano e como o cipreste da montanha de Sião. 18. Ergui meus ramos para o alto, como as palmeiras da montanha de Cades e os pés de roseira de Jericó. 19. Cresci como uma linda oliveira no campo e como o plátano que é plantado num grande caminho, à beira das águas. 20. Espalhei um cheiro de perfume como a canela e o bálsamo mais precioso, e um odor como o da mirra mais pura. 21. Perfumei minha casa como o gálbano, o benjoeiro, a caixa de perfume, o ônix e a mirra, como a gota de incenso que cai por si só; e meu odor é como aquele de um bálsamo puríssimo e sem mistura. 22. Estendi meus ramos como o terebinto, e meus ramos são ramos de honra e graça. 23. Produzi flores de um agradável odor como a vinha, e minhas flores são frutos de glória e abundância.[9] 26. 24. Sou a mãe do puro amor, do temor, da ciência e da esperança santa. 25. Em mim se encontra toda a graça do caminho e da verdade; em mim está toda a esperança da vida e da virtude.[10] 27. 26. Vinde a mim, vós que me desejais com ardor, e fartai-vos dos frutos por mim produzidos. 27. Pois meu espírito é mais doce que o mel e minha herança ultrapassa, em doçura, o mel mais excelente. 28. A memória de meu nome atravessará a sucessão de todos os séculos.[11] 28. 25 29. Os que de mim se alimentam ainda sentirão fome e os que de mim bebem ainda terão sede. 30. Aquele que me escuta não será confundido, e os que trabalham comigo jamais pecarão. 31. Os que me tornam conhecida terão a vida eterna. 32. Tudo isso é o livro da vida, a aliança do Altíssimo e o conhecimento da Verdade.[12] 29. Todas essas árvores e todas essas plantas às quais a Sabedoria se compara, que produzem frutos de qualidades tão diferentes, marcam essa grande variedade de estados, de funções e virtudes das almas, que se assemelham a cedros, quando têm os corações elevados para o céu; ou a ciprestes, quando cultivam a meditação contínua sobre a morte; ou a palmeiras, pelo humilde sofrimento de seus trabalhos; ou a roseiras, pelo martírio e a efusão de seu sangue. Todas elas estendem seus ramos bem longe, pelo alcance de sua caridade para com seus irmãos. E todas as outras plantas odoríferas, como o bálsamo, a mirra e as outras, que são menos notadas pela visão, representam as almas retiradas, que desejam ser mais conhecidas por Deus do que pelos homens. 30. Depois de representar-se como a mãe e a fonte de todos os bens, a Sabedoria exorta todos os homens a deixar tudo para trás, a fim de somente a Ela desejar, pois, conforme afirma Santo Agostinho, “ela se dá apenas àqueles que a desejam e a buscam com o mesmo ardor digno de algo tão grandioso”.[13] A divina Sabedoria assinala, nos versículos 30 e 31, três graus de piedade, cuja perfeição consiste no primeiro deles: 1) Ouvir a Deus com humilde submissão; 2) Agir nele e por ele com perseverante fidelidade; 3) Por fim, adquirir a luz e a unção necessárias para despertar nos outros o amor da Sabedoria e, assim, conduzi-los à vida eterna. 26 Capítulo III Maravilhas da potência da divina Sabedoria na criação do mundo e do homem I. Na criação do mundo 31. A Sabedoria eterna começou a resplandecer fora do seio de Deus, quando, após uma eternidade inteira, fez a luz, o céu e a terra. São João diz que tudo foi feito pelo Verbo, ou seja, pela Sabedoria eterna: Omnia per ipsum facta sunt (“Tudo foi feito por meio dela”, Jo 1,3).[1] Salomão diz que Ela é a mãe e a artífice de todas as coisas: Horum omnium mater est. Omnium artifex Sapientia (Sb 7,12.21). Observe que ele não a chama somente de artífice do universo, mas também de mãe, pois o artífice não ama, nem cuida de sua obra como uma mãe faz com seu filho. 32. Pelo fato de tudo ter criado, a Sabedoria eterna permanece em todas as coisas, para sustentá-las, contê-las e renová-las: Omnia continet, omnia innovat (“sustenta tudo o que existe; sendo única, ela tudo pode e tudo renova”, Sb 1,7; 7,27).[2] Foi essa beleza sumamente perfeita que, depois de criar o mundo, estabeleceu a bela ordem que nele existe. Ela separou, compôs, pesou, acrescentou e contou tudo o que nele está. Ela expandiu os céus; dispôs o sol, a lua, as estrelas e os planetas em ordem; colocou os fundamentos da terra; estabeleceu limites e leis para o mar e os abismos; formou as montanhas; pesou e equilibrou todas as coisas, inclusive as fontes de água. Enfim, Ela mesma diz: Eu estava, junto [de Deus], como mestre de obras. Eu era sua alegria todos os dias, e brincava o tempo todo em sua presença. Eu brincava com o mundo, sua terra, e me deliciava com a humanidade (Cum eo eram cuncta componens; et delectabar per singulos dies, ludens coram eo omni tempore, ludens in orbe terrarum, Pr 8,30-31). 33. Esse divertimento inefável da divina Sabedoria pode ser percebido, de fato, nas diferentes criaturas que Ela criou no Universo. Pois, sem falar das diferentes espécies de anjos, que são, por assim dizer, de número infinito; sem falar dos diferentes tamanhos de estrelas, nem dos diferentes temperamentos dos homens: que admirável transformação podemos ver nas estações e nos tempos, que variedade de instintos nos animais, quantas espécies de plantas, que diferentes belezas nas flores, que diferentes sabores nos frutos! Quis sapiens, et intelliget haec (“Quem é sábio, entenda essas coisas. Quem é inteligente, que as compreenda”, Os 14,10; cf. Jr 9,12; Sl 106,43). A quem foi que a Sabedoria se comunicou? Só essa pessoa terá a inteligência de todos esses mistérios da natureza! 34. A Sabedoria os revelou aos santos, como podemos ver em suas vidas; e eles ficavam muitas vezes tão surpresos ao ver a beleza, a doçura e a ordem da divina Sabedoria nas menores coisas – como uma abelha, uma formiga, uma espiga de trigo, uma flor, uma pequena minhoca –, que não raro caíam no êxtase e no arrebatamento. 27 II. Na criação do homem 35. Se o poder e a bondade da Sabedoria eterna refulgiram de tal modo na criação, na beleza e na ordem do universo, eles brilharam ainda mais na criação do homem, o qual foi constituído como sua obra-prima, a imagem viva de sua beleza e de suas perfeições, o grande vaso de suas graças, o tesouro admirável de suas riquezas e seu único vicário na terra: Sapientia tua fecisti hominem, ut dominaretur omni creaturae quae a te facta est (“E com tua sabedoria preparaste o ser humano para dominar sobre as criaturas que fizeste existir”, Sb 9,2). 36. Careceria aqui, para a maior glória dessa bela e poderosa trabalhadora, explicar a beleza e a excelência original que o homem recebeu ao ser criado por Ela; mas o pecado por ele cometido,[3] cujas trevas e manchas foram transmitidas também a mim, miserável filho de Eva, obscureceu-mede tal modo o entendimento que só posso tratar desse assunto de modo imperfeito. 37. Pode-se dizer que Ela fez uma cópia e uma imagem esplendente de seu entendimento, de sua memória e de sua vontade, dando-as à alma do homem, a fim de que ele fosse o retrato vivo da divindade.[4] Ela acendeu em seu coração um incêndio de puro amor por Deus, formando-lhe um corpo pleno de luz, e constituiu nele como que uma síntese de todas as múltiplas perfeições dos anjos, dos animais e outras criaturas. 38. Tudo no homem era luminoso e sem trevas, belo e sem torpeza, puro e sem mancha, regrado e sem desordem alguma, nem mancha ou imperfeição. Ele tinha como apanágio a luz da Sabedoria em seu espírito, pela qual conhecia perfeitamente seu Criador e suas criaturas. Tinha a graça de Deus em sua alma, pela qual era inocente e agradável aos olhos do Altíssimo. Tinha em seu corpo a imortalidade. Tinha o puro amor de Deus em seu coração – sem temor da morte –, pelo qual O amava continuamente, sem oscilação, e puramente, pelo amor dele mesmo. Enfim, ele era tão divino que estava incessantemente fora de si mesmo, transportado em Deus, sem ter qualquer paixão a ser vencida ou qualquer inimigo contra o qual lutar. Ó liberalidade da Sabedoria eterna para com o homem! Ó feliz estado do homem em sua inocência! 39. No entanto, a pior das desgraças se dá quando esse vaso divino se quebra em mil pedaços; essa bela estrela cai; esse belo sol fica coberto de lama! E isso tudo se dá quando o homem cai em tentação e, ao pecar, perde a sabedoria, a inocência, a beleza e a imortalidade. E, por fim, perde todos os bens que recebeu, sendo assaltado por uma infinidade de males. Assim, seu espírito se torna bestializado e permanece envolvido em trevas, de modo a não ver mais nada. Seu coração se congela para Deus e já não O ama mais. Sua alma fica obscurecida pelo pecado, assemelhando-se ao demônio. Ele então passa a ter paixões desordenadas, não sendo capaz de dominá-las. A única companhia que ele tem é a dos demônios, dos quais ele se fez escravo e morada. Ele é atacado pelas criaturas, prontas para guerreá-lo. 28 Assim o homem se transforma, de uma hora para outra, em escravo dos demônios, objeto da ira divina[5] e vítima dos infernos! Ele parece tão horrendo para si próprio que procura se esconder de vergonha. Torna-se maldito e é condenado à morte. É expulso do paraíso terreno e perde seu lugar nos céus. Deverá levar uma vida infeliz sobre a terra decaída, sem qualquer esperança de ser feliz. Ali deverá morrer como criminoso e, após sua morte, ser como o diabo: condenado para sempre em seu corpo e em sua alma, tanto ele como seus descendentes. Essa foi a assustadora desgraça na qual o homem, ao pecar, caiu. Essa foi a sentença que a justiça divina, equânime, pronunciou contra ele. 40. Adão, nesse estado, fica como que desesperado, não podendo receber remédio nem dos anjos, nem das outras criaturas. Nada é capaz de repará-lo, uma vez que ele foi criado belo e perfeito, mas se tornou, por seu pecado, horrendo e imundo. Ele se vê banido do paraíso e da presença de Deus; vê a justiça de Deus a persegui-lo com toda a sua posteridade. Vê o céu fechado e o inferno aberto, e ninguém para abrir-lhe um e fechar-lhe o outro. 29 Capítulo IV Maravilhas da bondade e misericórdia da Sabedoria eterna antes da Encarnação 41. A Sabedoria eterna fica profundamente comovida pelo infortúnio do pobre Adão e de todos os seus descendentes. Ela vê, com grande desprazer, seu vaso de honra quebrado, seu retrato[1] desfigurado, sua obra-prima destruída, seu vicário na terra derrubado. Ela dá ouvidos a sua voz gemente e a seus gritos. Ela vê com compaixão o suor de seu rosto, as lágrimas de seus olhos, as fadigas de seus braços, a dor de seu coração e a aflição de sua alma. 42. Parece que estou até vendo essa amável Soberana chamar e reunir uma segunda vez, por assim dizer, a Santíssima Trindade para reparar o homem, como Ela havia feito ao criá-lo.[2] Parece que, nesse grande conselho, ocorre uma espécie de combate entre a Sabedoria eterna e a Justiça de Deus. 43. Parece que estou ouvindo essa Sabedoria discutindo sobre a causa do homem, e dizendo que, com efeito, o homem verdadeiramente merece, por seu pecado, junto com toda a sua posteridade, ser condenado para sempre, junto com os anjos rebeldes. No entanto, é preciso ter piedade dele, pois ele pecou mais por fraqueza e ignorância do que por malícia. Ela argumenta, de um lado, que se trata de uma grande perda o fato de uma obra-prima tão bem-acabada permanecer para sempre escrava de seu inimigo, e de milhões e milhões de seres humanos estarem perdidos para sempre devido ao pecado de um só. Ela mostra, de outro, os lugares do céu vacantes pela queda dos anjos apóstatas – e que convém ocupar –[3] e a grande glória que Deus receberá no tempo e na eternidade se o homem for salvo. 44. Parece que estou ouvindo a Justiça responder que a sentença de morte e de condenação eterna foi decretada contra o homem e seus descendentes, e que ela deve ser cumprida sem demora e sem misericórdia, assim como contra Lúcifer e seus apoiadores; que o homem foi ingrato pelos benefícios recebidos, tendo seguido o demônio em sua desobediência e em seu orgulho, e que ele deve continuar a ser castigado, uma vez que é necessário que o pecado seja punido. 45. A Sabedoria eterna, vendo que não havia nada no universo capaz de expiar o pecado do homem, satisfazer a justiça e apaziguar a ira de Deus – mas querendo salvar o pobre homem que Ela era inclinada a amar –, encontra um meio admirável, algo inimaginável: em seu amor incompreensível, que vai ao paroxismo, essa adorável e soberana Princesa se oferece Ela mesma em sacrifício ao Pai, a fim de satisfazer sua justiça, acalmar sua ira e nos retirar da escravidão do demônio e das chamas do inferno, alcançando para nós uma eternidade de felicidade. 46. Seu oferecimento é aceito. Toma-se então uma decisão: a Sabedoria eterna, ou o Filho de Deus, se fará homem no tempo oportuno e em circunstâncias determinadas. Durante aproximadamente quatro mil anos, desde a criação do mundo e o pecado de Adão até a Encarnação da divina Sabedoria, Adão e seus descendentes 30 morreram segundo a lei estabelecida por Deus como punição a eles. Contudo, em vista da Encarnação do Filho de Deus, eles receberam graças para obedecer a seus mandamentos e para fazer uma penitência adequada depois de transgredi-los. E aqueles que morreram na graça e na amizade de Deus tiveram suas almas transportadas ao limbo, à espera de seu Senhor e Libertador, que virá abrir-lhes a porta do céu. 47. A Sabedoria eterna, durante todo o tempo que se passou antes de sua Encarnação, testemunhou aos homens, de inúmeras maneiras, a amizade que lhes tinha e o grande desejo de comunicar-lhes seus favores e de relacionar-se com eles: Deliciae meae esse cum filiis hominum (“Eu me deliciava com a humanidade”, Pr 8,31). Ela própria percorreu todos os cantos em busca daqueles que fossem dignos dela: Quoniam dignos seipsa circuit quaerens (“Vai por toda parte buscando aqueles que sejam dignos dela”, Sb 6,16), ou seja, pessoas dignas de sua amizade, dignas de seus tesouros, dignas de sua própria pessoa. Ela se espalhou por diferentes nações, derramando-se nas almas santas, para nelas formar amigos de Deus e profetas. Foi Ela que formou todos os santos patriarcas, os amigos de Deus, os profetas e os santos do Antigo e do Novo Testamento: Et per nationes in animas sanctas se transfert, amicos Dei et prophetas constituit (“E entrando nas almas santas, através das gerações, forma os amigos de Deus e os profetas”, Sb 7,27; cf. 7,14). Foi essa Sabedoria eterna que inspirou os homens de Deus, e que falou pela boca dos profetas. Ela os dirigiu em seus caminhos, iluminou-os nos momentos de dúvida, sustentou-os em suas fraquezas e livrou-os de todos os males. 48. Eis como o Espírito Santo se refere a isso no livro da Sabedoria (10,1-21): 1. A Sabedoria protegeu o pai do mundo, o primeiro ser humano, quando foi criado sozinho. Elao libertou da própria queda. 2. [Ela] deu-lhe força para governar todas as coisas. 3. Mas o injusto, com sua cólera, afastou-se dela, e com sua ira contra o irmão, encontrou a ruína. 4. Por causa dele a terra foi inundada, mas novamente a Sabedoria a salvou, conduzindo o justo numa fraca embarcação. 5. Quando as nações se encontraram na maldade e se confundiram, ela reconheceu o justo, o manteve sem mancha diante de Deus e o conservou forte na compaixão pelo filho. 6. Ela salvou o justo que fugia do fogo caído sobre cinco cidades, enquanto os ímpios pereciam. 7. Como testemunho da maldade desses, o que resta é uma terra devastada e fumegante, cujas plantas produzem frutos que não amadurecem, e uma estátua de sal que serve de lembrança de uma alma incrédula. 8. Pois, tendo desprezado a Sabedoria, não apenas se prejudicaram desconhecendo o bem, mas também deixaram para a vida uma lembrança da sua insensatez, para que suas faltas não ficassem ocultas. 49. 9. A Sabedoria, porém, livrou da aflição 31 os que lhe eram fiéis. 10. Ela guiou por caminhos retos o justo que fugia da ira do irmão, mostrou-lhe o reino de Deus e lhe deu o conhecimento das coisas santas, sustentou-o nas tarefas e o enriqueceu nos trabalhos. 11. Esteve a seu lado diante da cobiça de seus adversários, e o enriqueceu. 12. Ela o protegeu dos inimigos e o defendeu dos que lhe preparavam ciladas. E lhe deu a vitória em duro combate, para ele perceber que a piedade é mais forte que tudo. 13. Ela não abandonou o justo [José] que fora vendido, e o protegeu do pecado. 14. Desceu com ele para uma cisterna e não o deixou em algemas, até alcançar para ele o cetro real e o poder sobre aqueles que o dominavam. Desmascarou aqueles que o haviam caluniado e lhe deu fama eterna. 15. Ela libertou um povo santo, uma semente irrepreensível, do meio de nações de opressores. 16. Entrou na alma de um servo do Senhor, e com prodígios e sinais enfrentou reis temíveis. 17. Aos santos deu a recompensa pelos sofrimentos e conduziu-os por um caminho maravilhoso.Tornou-se para eles abrigo durante o dia e esplendor de estrelas à noite. 18. Ela os fez atravessar o mar Vermelho e os guiou no meio de muitas águas. 19. Afogou seus inimigos e os vomitou do fundo do abismo. 20. Por isso, os justos despojaram os ímpios e cantaram, Senhor, um hino ao teu nome santo, louvando juntos tua mão protetora. 21. Porque a Sabedoria abriu a boca dos mudos e soltou a língua dos pequenos. 50. No capítulo 11 do livro da Sabedoria, o Espírito Santo pontua os diferentes males dos quais a Sabedoria livrou Moisés e os israelitas quando peregrinavam no deserto. A isso podemos acrescentar que todos os que foram livrados de grandes perigos, no Antigo e no Novo Testamento – como Daniel na cova dos leões; Suzana, do falso crime do qual fora acusada; os três jovens da fornalha da Babilônia; São Pedro, da prisão; São João, da caldeira de óleo fervente; e uma infinidade de mártires e confessores, dos tormentos que se submetiam a seus corpos, e das calúnias, que tentavam denegrir sua reputação –, todos eles foram livrados e curados pela Sabedoria eterna: Nam per Sapientiam sanati sunt quicumque placuerit tibi, Domine, a principio (“Assim foram endireitados os caminhos de quem está na terra. Os homens aprenderam o que te agrada e foram salvos pela sabedoria”, Sb 9,19). 32 Conclusão 51. Exclamemos, portanto: “Mil vezes feliz uma alma na qual a Sabedoria entrou para nela fazer morada! Por mais golpes que a ela se desfiram, ela se manterá vitoriosa. De todos os perigos que a ameacem, ela será livrada; por mais tristezas que caiam sobre ela, ela será consolada e rejubilará; e de todas as humilhações nas quais ela cair, será levantada e glorificada no tempo e na eternidade”. 33 Capítulo V A excelência maravilhosa da Sabedoria eterna I. Uma companheira para a vida 52. Tendo o Espírito Santo [no capítulo 8 do livro da Sabedoria] se dado ao trabalho de nos mostrar a excelência da Sabedoria, em termos tão sublimes e compreensíveis, não devemos senão referi-los aqui, acrescentando-lhes breves reflexões. 53. 1) A Sabedoria percorre de um extremo a outro com força, e tudo governa com doçura. Nada é tão doce quanto a Sabedoria. Ela é doce em si mesma, sem amargor. Doce para aqueles que a amam, sem dar-lhes nenhum desgosto. Doce em seu proceder, sem impor qualquer violência. Você muitas vezes poderá dizer que Ela não está nos acidentes e tribulações que surgem, por ser tão doce e secreta. Mas como sua força é invencível, Ela faz tudo chegar a seu fim, de um modo imperceptível e irrefreável, por caminhos ignorados pelos homens. É preciso que o sábio seja, a seu exemplo: suaviter fortis et fortiter suavis (docemente forte e fortemente doce). 54. 2) Eu a amei, a procurei desde a minha juventude; tratei de tê-la como Esposa. Quem quiser adquirir o grande tesouro da Sabedoria deve, a exemplo de Salomão, procurá-la: a) o quanto antes, e mesmo desde a tenra idade, se possível for; b) de modo puro e espiritual, como um casto esposo busca sua esposa; c) constantemente, até o fim, até Ela ter sido obtida. É certo que a Sabedoria eterna tem tanto amor pelas almas, a ponto de desposá-las e contrair com elas um matrimônio espiritual,[1] porém verdadeiro, que o mundo não conhece – e disso a história nos legou muitos exemplos. 55. 3) Ela revela a glória de sua origem, pelo fato de estar estreitamente unida a Deus e ser amada por aquele que é o Senhor de todas as coisas. A Sabedoria é o próprio Deus: nisso consiste a glória de sua origem. Deus Pai encontra nela todo o seu agrado, conforme testemunhou [no alto do monte Tabor],[2] manifestando quanto a ama. 56. 4) Ela é a mestra da ciência de Deus e a diretora de suas obras. Somente a Sabedoria esclarece todo homem que vem a este mundo (cf. Jo 1,9). Somente Ela desceu do céu para nos ensinar os segredos de Deus (cf. Jo 1,18; Mt 11,27; 1Cor 2,10) e não temos outro Mestre verdadeiro (cf. Mt 23,8.10) que não a Sabedoria encarnada, nomeada Jesus Cristo. Somente Ela dirige todas as obras de Deus a seu fim, de modo particular os santos, fazendo-os conhecer aquilo que devem realizar, e fazendo-os experimentar e cumprir aquilo que os faz conhecer. 57. 5) Se desejamos as riquezas desta vida, que há de mais rico que a Sabedoria que faz todas as coisas? 34 6) Se o espírito do homem realiza alguma obra, quem tem maior participação que Ela na arte pela qual todas as coisas são feitas? 7) Se alguém ama a justiça, as grandes virtudes também são obra dela. É Ela quem ensina a temperança, a prudência, a justiça e a força, que consistem na coisa mais útil do mundo ao homem nesta vida. Salomão demonstrou que, como não se deve amar senão a Sabedoria, é dela também que se deve tudo esperar: tanto os bens espirituais como os bens materiais, as virtudes teologais e cardeais. 58. 8) Se alguém deseja alcançar a profundidade da ciência, é Ela que conhece o passado e opina a respeito do futuro. Ela penetra o que há de mais sutil nos discursos e de mais difícil a discernir nas parábolas; [Ela conhece os sinais e prodígios] antes que se manifestem e aquilo que há de ocorrer na sucessão dos tempos [e] dos séculos. Quem quiser ter uma ciência dos tesouros da graça e da natureza que não seja comum, seca, nem superficial,[3] mas extraordinária, santa e profunda, deve fazer todos os esforços para adquirir a Sabedoria, sem a qual um homem, ainda que sábio diante dos homens, conta como nada diante de Deus: in nihilum computabitur (“ninguém lhes dará valor”, Sb 3,17). 59. 9) Portanto, tomei a firme resolução de tê-la como minha companheira, sabendo que Ela me dará parte de seus bens e será meu consolo em minhas dores e desânimo. Quem pode ser pobre com a Sabedoria, que é tão rica e generosa? Quem pode ser triste com a Sabedoria, que é tão doce, bela e terna? Quem daqueles que buscam a Sabedoria diz sinceramente com Salomão: Proposui ergo (“Eu, portanto, decidi!”)? A maior parte das pessoas não tomou essa decisão sincera; a maioria delas não tem senão veleidades ou, pior ainda,decisões oscilantes e indiferentes. Por isso, jamais encontram a Sabedoria. 60. 10) Ela me tornará ilustre entre os povos e, por mais jovem que eu seja, serei honrado até mesmo pelos anciãos. 11) Será notável a acuidade de meu espírito para fazer a justiça. Os mais poderosos ficarão admirados quando me virem, e os príncipes testemunharão surpresa em seus rostos. 12) Quando eu me calar, eles esperarão que eu fale; quando eu falar, olharão para mim com atenção; e quando eu me estender em meus discursos, colocarão a mão em suas bocas. 13) É Ela que me dará a imortalidade, e é por Ela que tornarei a memória de meu nome eterna entre aqueles que devem me seguir. 14) Governarei as nações por meio dela, e as nações me serão submissas. Sobre essas palavras do Sábio, que louva a si mesmo, São Gregório fez esta reflexão: “Aqueles que Deus escolheu para escrever suas palavras sagradas, estando cheios do Espírito Santo, saem de certo modo de si mesmos para entrar naquele que os possui, e, assim, tornando-se a língua de Deus, não consideram senão Deus naquilo que dizem; falam de si mesmos como falariam de um outro”.[4] 35 61. 15) Os reis mais temidos sentirão temor ao ouvir falar de mim. Mostrarei que sou bom para meu povo e destemido na guerra. 16) Entrando em minha casa, encontrarei repouso com ela, pois sua conversa não tem nada de desagradável, nem sua companhia é de modo algum enfadonha, mas cheia de alegria e satisfação. 17) Pensando, portanto, nessas coisas, meditando-as em meu coração, considerando que encontrarei a imortalidade na união com a Sabedoria, 18) Um santo prazer em sua amizade, riquezas inesgotáveis nas obras de suas mãos, a inteligência em suas conferências e entrevistas, e uma grande glória na comunicação de seus discursos, fui procurá-la de todos os lados, a fim de tê-la como minha companheira. O Sábio, depois de ter resumido em poucas palavras o que havia explicado antes, tira esta conclusão: “Fui procurá-la de todos os lados”. Para adquirir a Sabedoria, é preciso buscá-la com ardor, ou seja: deve-se estar pronto para deixar tudo, sofrer tudo e empreender todos os esforços para possuí-la. Somente poucos a encontram, pois também são poucos os que a procuram da maneira digna dela. 36 II. Elogio da Sabedoria (capítulo 7) 62. O Espírito Santo, no capítulo 7 do livro da Sabedoria, fala ainda da excelência da Sabedoria nestes termos: Na Sabedoria existe um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, leve, móvel, penetrante, sem mancha, límpido, claro, favorável, amigo do bem, penetrante, livre, que faz o bem, amigo do ser humano, sólido, seguro, sereno, que tudo pode e abrange, que penetra todos os espíritos inteligentes e puros, os mais sutis. A Sabedoria é mais ágil que qualquer movimento; atravessa e penetra tudo por causa de sua pureza (Sb 7,22-24). Enfim, a Sabedoria “é um tesouro inesgotável para o ser humano: quem a adquire alcança a amizade de Deus, pois fica recomendado pelos dons da instrução” (Infinitus enim thesaurus est hominibus, quo qui usi sunt participes facti sunt amicitiae Dei, propter disciplinae dona commendati, Sb 7,14). 63. Depois dessas palavras tão poderosas e ternas do Espírito Santo para nos revelar a beleza, a excelência e os tesouros da Sabedoria, qual é o homem que não a amará e a procurará com todas as forças? Ainda mais porque se trata de um tesouro infinito, próprio para o homem, e para o qual o homem foi feito, e Ela mesma deseja infinitamente dar-se ao homem. 37 Capítulo VI O intenso desejo que a divina Sabedoria tem de se dar aos homens 64. Existe uma ligação tão profunda de amizade entre a Sabedoria eterna e o homem, a ponto de ser incompreensível. A Sabedoria é para o homem, e o homem para a Sabedoria; é um tesouro infinito para os homens (Thesaurus infinitus hominibus, Sb 7,14), e não para os anjos ou para as outras criaturas. Essa amizade da Sabedoria pelo homem se deve ao fato de ele ser, em sua criação, o compêndio de suas maravilhas, seu pequeno e grande mundo, sua imagem viva e seu representante na terra. E, desde que, pelo excesso do amor que Ela lhe tinha, Ela se tornou semelhante a ele ao fazer-se homem, e se entregou à morte para salvá-lo. Ela o ama como seu irmão, seu amigo, seu discípulo, seu aluno, o preço de seu sangue e o coerdeiro de seu Reino, de modo que a Ela se faz uma violência extrema quando lhe recusamos ou lhe tiramos o coração de um homem. 38 I. A carta de amor da Sabedoria eterna 65. Essa beleza eterna e sumamente digna de ser amada deseja tanto a amizade dos homens que fez um livro com o propósito de conquistá-la, revelando-lhes suas excelências e os desejos que tem dela. Esse livro é como uma carta de uma amada a seu amado, escrita para ganhar sua afeição. Os desejos pelo coração do homem ali manifestados são tão urgentes, a busca por sua amizade tão terna, os convites e as promessas tão apaixonados que, ao ouvi-la falar, você chegaria a dizer que não se trata da Soberana do céu e da terra, e que Ela precisa do homem para ser feliz. 66. Para encontrar o homem, por vezes Ela corre por grandes caminhos, por vezes sobe até o cume das grandes montanhas, por vezes vai até as portas das cidades, ou entra nas praças públicas, no meio das assembleias, gritando o mais alto que pode: Homens, eu me dirijo a vocês e minha voz se dirige aos filhos de humanos (O viri, ad vos clamito, et vox mea ad filios hominum, Pr 8,4). Ó homens! Ó filhos dos homens! É a vocês que grito há tanto tempo; é a vocês que minha voz se dirige; é por vocês que eu anseio; são vocês que eu procuro; é de vocês que eu pergunto! Ouçam, venham até mim: quero fazê-los felizes. E para atraí-los de modo poderoso, Ela lhes diz: “É por mim e por minha graça que os reis governam, que os príncipes comandam e que os potentados e os monarcas carregam o cetro e a coroa. Sou eu que inspiro aos legisladores a ciência de fazer boas leis para fiscalizar os Estados, e que dou aos magistrados a força de exercer a justiça com equidade e sem temor”. 67. “Eu amo os que me amam, e todo aquele que me procura com diligência me encontrará, e, ao me encontrar, encontrará abundância de todos os bens. Pois as riquezas, a glória, as honras, as dignidades, os sólidos prazeres e as verdadeiras virtudes estão comigo; e é incomparavelmente melhor para um homem possuir a mim do que possuir todo o ouro e toda a prata do mundo, todas as pedras preciosas e todos os bens de todo o universo. Eu conduzo as pessoas que vêm até mim pelos caminhos da justiça e da prudência e os enriqueço com a posse dos verdadeiros filhos, suprindo plenamente seus desejos. E estejam certos de que meus mais doces prazeres e minhas mais caras delícias são entreter-me e permanecer com os filhos dos homens.” 68. “Agora, filhos, escutai-me. Bem-aventurados os que seguem meus caminhos. Ouçam minhas instruções, sejam sábios e não as rejeitem. Feliz aquele que me ouve, que vigia todos os dias à entrada de minha casa e permanece à minha porta. Aquele que me encontrar, encontrará a vida. E usufruirá da salvação da bondade do Senhor. Mas aquele que pecar contra mim ferirá sua alma. Todos os que me odeiam amam a morte” (cf. Pr 8,31-36). 69. Depois de tudo o que Ela disse de mais terno e mais convidativo para atrair a amizade dos homens, Ela ainda teme que, devido a seu fulgor maravilhoso e a sua soberana majestade, eles não ousem, em sinal de respeito, aproximar-se dela. Por isso Ela lhes revela que “se adianta para ser conhecida por aquele que a deseja. Quem por ela madruga não se cansará, pois a encontrará sentada junto à porta de casa. Meditar sobre ela, portanto, é a perfeição da inteligência, e quem dela cuida estará logo sem preocupações” (Sb 6,13-15). 39 II. A Encarnação, a morte e a Eucaristia 70. Por fim, para aproximar-se mais dos homens e testemunhar-lhes de modo mais sensível seu amor, a Sabedoria eterna fez-se homem, tornando-se criança, tornando-se pobre e morrendo por eles na cruz. Quantas vezes Ela exclamou: Venham a mim. Venham todos a mim. Sou eu. Não tenham medo! (Jo 6,20).
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