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DISCIPLINA ECLESIÁSTICA Fundamentos bíblicos e históricos da disciplina Eclesiástica FÁBIO LEMOS ROCHA DISCIPLINA ECLESIÁSTICA Fundamentos bíblicos e históricos da disciplina Eclesiástica ISBN 978-65-994866-6-1 Produção Editorial Lucas Vinícius Silveira Dias Capa Tiago Santana Editor Editora Tssantana Rua Hermínio Costa, 16 – Parada Inglesa São Paulo/SP 02242-060 atendimento@tssantana.com.br www.tssantana.com.br © Copyright 2022. Todos os direitos reservados à Editora Tssantana. DEDICATÓRIA À minha esposa Keila que é participante do meu ministério desde quando nos casamos. Ela que sempre me apoiou durante o período de estudo no seminário como uma verdadeira auxiliadora idônea. Dedico também ao meu filho Danilo que é uma bênção do Senhor em nossa família. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar a Deus, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, que é meu maior alicerce. Agradeço também pela capacitação que por ele me foi concedida para escrever este trabalho. À minha família que sempre me apoiou e caminhou comigo, sendo parceira de oração e lutas. Minha amada esposa Keila que nunca mediu esforços para me auxiliar e ver esse trabalho concluído. Meu filho Danilo que sempre me abraçou forte quando seguia de viagem para São Paulo, deixando bem claro que entendia a minha ida, mas que aguardava ansioso o meu retorno. Ao meu pai, que sempre me apoiou. À família Barros Moreira que sempre caminhou ao nosso lado, pelo apoio espiritual e amizade. Aos meus irmãos e amigos, Daniel Noronha, Daniel Sales, Lucas Tucci, Namã Roque e Mateus Felizardo, pelo apoio, amizade, conselhos e suporte sempre que precisei. Ao Presbitério Circuito das Águas (PCAG) e ao meu tutor eclesiástico Rev. Jackson César da Silva, por todos os conselhos, orações e orientações. À Igreja Presbiteriana de Caxambu, pelo auxílio financeiro, espiritual e cuidado para comigo e minha família em todos esses anos, e ao amado conselho da Igreja. Aos pastores da IPB Caxambu, Rev. Carlos Alberto Dias, Rev. Jackson César da Silva e Rev. André Leandro F. Matallo, pelo apoio, orações e conselhos. À Congregação Presbiteriana Betel, onde servi a Deus, durante o período de preparação para o ministério. Ao meu professor, mestre e orientador Rev. Jônatas Abdias de Macedo, pela orientação, acompanhamento, conselhos e pastoreio, sem os quais não teria conseguido desenvolver este trabalho. Ao Seminário Presbiteriano José Manoel da Conceição, professores e funcionários, por promoverem um ambiente instrutivo para o meu crescimento intelectual e espiritual. PREFÁCIO A Confissão Belga, escrita por Guido de Brés em 1561, já afirmava em seu artigo 29: “As marcas para conhecer a verdadeira igreja são estas: ela mantém a pura pregação do Evangelho, a pura administração dos sacramentos como Cristo os instituiu, e o exercício da disciplina eclesiástica para castigar os pecados”. Embora reconhecida, na teoria, como tendo importância equivalente às duas primeiras, a terceira marca tem sido cada vez mais negligenciada. No entanto, ela é tão necessária para a pureza da verdadeira Igreja quanto as duas primeiras. Nesta obra concisa, fundamentada em excelente bibliografia e organizada de maneira lógica e didática, o Rev. Fábio Rocha oferece ao leitor fundamentos bíblicos, teológicos e práticos para uma reflexão urgente e proveitosa quanto ao valor e necessidade da disciplina eclesiástica para a manutenção da pureza da Igreja. Recomendo a leitura com entusiasmo. Rev. Márcio Roberto Alonso Pastor da IPB Jardim América – Goiânia/GO Professor do Seminário Presbiteriano Brasil Central Capelão do Instituto Presbiteriano de Educação – IPE As censuras eclesiásticas são necessárias para chamar e ganhar para Cristo os irmãos ofensores para impedir que outros pratiquem ofensas semelhantes, para purgar o velho fermento que poderia corromper a massa inteira, para vindicar a honra de Cristo e a santa profissão do Evangelho e para evitar a ira de Deus, a qual com justiça poderia cair sobre a Igreja, se ela permitisse que o pacto divino e os seios dele fossem profanados por ofensores notórios e obstinados. CFW. XXX.III. INTRODUÇÃO Deus sempre quis que seu povo fosse distinto dos outros povos, ou seja, um povo santo, separado. Nesse sentido, a disciplina firmada sobre os preceitos bíblicos serve ao propósito de Deus em manter a pureza da igreja. A disciplina eclesiástica é considerada uma das marcas da igreja verdadeira e também uma bênção para o povo de Deus (Hb 12.10,11). Contudo, nem sempre se tem a correta definição do valor da disciplina na igreja. Isso faz com que sejam levantados questionamentos quanto a sua necessidade. Tendo isso em mente, o objetivo geral deste livro é demonstrar a necessidade da disciplina eclesiástica para a pureza da igreja. Além disso, como objetivos específicos podemos destacar: as definições e conceitos que englobam a disciplina, o propósito da disciplina, a sua correlação nas Escrituras, o modelo bíblico de disciplina, a autoridade da disciplina; apresentar o papel dos reformadores no resgaste da disciplina em um contexto de corrupção na igreja; e, por fim, apresentar como o fiel exercício da disciplina protege a pureza da igreja em contraste com a negligência que pode destruir a igreja e a refutação às objeções a disciplina. Sendo assim, o presente livro se pauta pelo seguinte questionamento: a disciplina eclesiástica é necessária para a pureza da igreja? Como resposta a esse questionamento, defendo a hipótese de que a disciplina eclesiástica é uma ordenação divina que visa à pureza da igreja e que, em tempo algum, deve ser negligenciada. A estrutura do livro é composta de três capítulos. No primeiro capítulo, o objetivo é descrever os aspectos que se relacionam à disciplina, tais como: a definição e os conceitos, o propósito, a disciplina nas Escrituras, o modelo disciplinar nas Escrituras e o encorajamento para o exercício da disciplina. O segundo capítulo se ocupará de apresentar o papel dos reformadores no resgaste do padrão da disciplina na igreja, levando-se em conta o contexto no qual eles estavam inseridos. Este ponto histórico é relevante para o trabalho ao se considerar a importância dos reformadores para o desenvolvimento das confissões Reformadas que reconheceram a disciplina eclesiástica como uma das marcas da igreja verdadeira e necessária para a sua pureza. O terceiro capítulo se ocupa em apresentar a necessidade da disciplina eclesiástica e como ela protege a igreja da contaminação, mantendo a sua pureza; em seguida, o resultado da negligência da disciplina e a refutação à algumas das possíveis objeções quanto ao exercício da disciplina na igreja. Este trabalho não tem a pretensão de finalizar o assunto sobre a necessidade da disciplina eclesiástica para a pureza da igreja, mas abençoar a igreja, mostrando a relevância do tema em discussão. Essa doutrina é uma ordenação divina, necessária para a pureza da igreja. Portanto, se a igreja deseja ser fiel a Deus, ela precisa se ocupar e se atentar em disciplinar os seus membros, impedindo que a negligência incorra em sua contaminação. DISCIPLINA ECLESIÁSTICA – DEFINIÇÕES E CONCEITOS A disciplina eclesiástica é um tema relevante, embora, como será pontuado posteriormente, com o passar do tempo tem sido rejeitada por equívocos quanto ao seu real significado. Calvino trata desta realidade em seu tempo, tendo em vista que muitos já se opunham com ódio a essa doutrina.[1] Já Poirier destaca que a simples menção da expressão “disciplina eclesiástica” hoje é suficiente para despertar todo tipo de reações adversas.[2] A expressão disciplina eclesiástica ou “Censuras Eclesiásticas”, segundo definição da Confissão de Fé de Westminster[3], não é encontrada nestes termos na Bíblia, mas é uma doutrina que pode ser lógica e claramente deduzida das Escrituras.[4] Nesse sentido, primeiramente, faz-se necessário uma apresentação da definição e dos conceitos a que se refere a expressão “disciplina eclesiástica”. A palavra disciplina para Packer está relacionada aos métodoseducativos, instrucionais e de treinamentos que se requer para a formação de um discípulo, bem como a correção em seu sentido mais restrito.[5] Shedd comenta que a palavra disciplina conota a ideia de um mestre com seu discípulo ensinando e corrigindo seus conceitos equivocados.[6] Santos diz que o conceito estabelecido para a palavra disciplina é abrangente e refere-se ao ensino, discipulado e ao exercício da ordem, bem como a atitudes corretivas.[7] Adams[8] e Devey[9] também corroboram o entendimento de que a palavra disciplina compreende os métodos educativos e instrucionais a que todo discípulo deve se sujeitar. Além disso, Adams comenta a importante correlação entre as palavras “disciplina” e “discípulo” e aponta para o fato de que as duas palavras possuem a mesma origem. Devey, por sua vez faz uma importante conceituação das palavras “discipular’ e “disciplinar”. Ele afirma que os atos de “discipular” têm como objetivo o crescimento dos que vivem em obediência, enquanto “disciplinar” tem como objetivo a restauração dos que vivem na desobediência.[10] A disciplina eclesiástica conforme observada acima possibilita a formulação de dois conceitos relativos a essa doutrina, que são chamados de positivo e negativo. Packer[11] e Adams[12] estão de acordo quanto aos aspectos positivos e negativos que envolvem a palavra disciplina. É importante ressaltar que o aspecto positivo da disciplina está relacionado ao sentido educacional e instrutivo, e o aspecto negativo à correção e à admoestação, muito embora, isso não signifique que a disciplina corretiva deixe de ser instrucional. Poirier ao citar a visão de Sproul, apresenta o seguinte ponto: “A igreja é chamada não apenas para um ministério que reconcilie as pessoas que a frequentem, mas a um ministério que as alimente”. Portanto isso inclui a disciplina.[13] Packer está convicto de que o aspecto positivo é indispensável para que a igreja aplique a disciplina em seu sentido corretivo.[14] Adams, seguindo a mesma linha de pensamento de Packer, entende que a disciplina, em seu aspecto positivo, ou seja, o ensino, é imprescindível para o aspecto corretivo, pois é justamente isso que garante um ambiente saudável para o exercício da disciplina na igreja. Ele define a disciplina como uma espada de dois gumes. Considerando que o lado preventivo da disciplina (positivo) e lado corretivo (negativo) se complementam, ele afirma que mesmo com o resgaste da disciplina em seu sentido corretivo, ela poderá ser ofuscada caso não se obtenha a correta compreensão do aspecto preventivo. Frame destaca que a disciplina assume diversos aspectos e um deles é o ensino. Ele destaca que a disciplina é um assunto muito importante para a igreja, ensinado nas Escrituras e relacionado ao poder conferido à Igreja.[15] Kimble e Harvey estão de acordo que a disciplina eclesiástica envolve diversos processos. Kimble afirma que para se obter uma definição dessa doutrina é necessário observar uma série de variantes, pois a disciplina está em conexão com vários temas, tais como: responsabilidade, exortação, autoridade da igreja, excomunhão, arrependimento e reconciliação. Em seguida, ele define a disciplina eclesiástica como a autoridade da igreja outorgada por Jesus Cristo, para manter a ordem por meio da correção dos membros que persistem na vida em pecado, para a pureza da igreja e para a glória de Deus.[16] Harvey, também, entende que a disciplina é um conjunto de processos em que a igreja é responsável por: cuidar das almas, educar seus membros, instruí-los de forma pública e privada, mas que, em seu sentido mais restrito, indica uma ação corretiva da igreja contra aqueles que vivem na prática do pecado, mantendo a honra do nome de Cristo e o bem-estar da igreja.[17] Os dois conceitos, quanto à definição da disciplina eclesiástica apresentados nesta seção, encontram-se postulados no Livro de Ordem da Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil de 1924: Disciplina é o exercício da autoridade e a aplicação de sistemas de leis que o Senhor Jesus Cristo deu a Igreja. O termo tem dois sentidos: o primeiro refere-se ao governo todo, à inspeção, educação, guarda e superintêndia que a Igreja exerce sobre seus membros, os seus oficiais e os seus concílios; o segundo é restrito, e se refere tecnicamente ao processo judicial. (Art.143)[18] Conforme proposto nesta seção, a partir da reflexão acerca das definições e conceitos, tornou-se possível apreender que a “disciplina eclesiástica” se refere à educação, à instrução e à correção que acontece no contexto que a vida cristã exige. Assim, não há intenção de colocar fim a esta discussão, mas apresentar algumas definições e conceitos que serão úteis para este trabalho. O PROPÓSITO DA DISCIPLINA ECLESIÁSTICA Propósito e objetivo possuem o mesmo sentido, ou seja, algo que se pretende alcançar. [19] Considerando que propósito é algo que se pretende alcançar, qual a pretensão da Igreja ao exercer a disciplina eclesiástica O fato de não se conhecer o propósito da disciplina pode levar a equívocos quanto à sua real necessidade. Poirier comenta que a disciplina eclesiástica quando observada apenas em sua forma mais extremada, a saber, a exclusão, pode causar uma falsa impressão.[20] A definição do propósito da disciplina deve servir para desfazer essa falsa impressão e, ao mesmo tempo, produzir o entendimento de que ela é necessária. Frame diz que a disciplina acontece de variadas formas dependendo da gravidade dos pecados e a forma mais extrema é a expulsão ou excomunhão. Porém, não podemos nos esquecer que a advertência e a repreensão devem ser os meios para lidar com os pecados de menor gravidade.[21] Packer corrobora a ideia de Frame e diz que a disciplina na igreja vai desde a simples admoestação até a exclusão da igreja. Ele ainda comenta que a disciplina na igreja não pode ser entendida como punição apenas pelo punir. O pecado jamais deve ficar impune, entretanto, deve-se lembrar sempre que um dos propósitos da disciplina é o de conduzir o faltoso ao arrependimento e recuperar a ovelha perdida.[22] Kuiper comenta que o exercício da disciplina é decididamente saudável e, também, aumenta a glória da igreja, contribuindo para o respeito da igreja para com os de fora. Ele destaca que o propósito da disciplina sempre será a restauração do ofensor e nunca a sua destruição e, aponta para o propósito mais elevado da disciplina eclesiástica, a saber, a honra do nome de Cristo.[23] Segundo Kuiper: O propósito mais elevado da disciplina eclesiástica ainda precisa ser mencionado. Esta é a glória do Cabeça da igreja, a saber: Jesus Cristo. Como o bem-estar do membro é um meio para o objetivo do bem-estar da igreja como um corpo, o bem-estar do corpo é um meio para a glorificação de Cristo. Tudo isso é uma forma de dizer que a igreja que negligencia a disciplina não está apenas destruindo sua própria glória, mas está pecando ao negligenciar a glória de Cristo. O uso fiel da disciplina é de fato uma marca clara da verdadeira igreja. A igreja que não está profundamente preocupada com a honra de Cristo simplesmente não é uma igreja de Cristo. Por outro lado, um amor intenso por Cristo e, consequentemente, um zelo ardente por sua glória, levarão a verdadeira Igreja a ser fiel no exercício da disciplina.[24] Já Calvino aponta três propósitos para a disciplina eclesiástica: O primeiro é que entre os cristãos não se nomeiem, com afronta de Deus, aqueles que levam uma vida torpe e escandalosa, como se sua santa Igreja houvesse de ser uma conjuração de homens réprobos e maus. Ora, visto ser ela o corpo de Cristo [Cl 1.24], não pode ser poluída por membros fétidos e pútridos desta natureza, sem que alguma ignomínia recaia sobre sua Cabeça... O segundo fim é que não se corrompam os bons pelo trato constante dos maus, como costuma acontecer. Ora, tal é nossa propensão a desviar-nos, que nada é mais fácil que sermos desgarrados do reto curso da vida pelos maus exemplos O terceiro fim consiste em que esses mesmos que foram disciplinados comecema arrepender-se, confusos de vergonha de sua torpeza.[25] Seguindo a mesma linha de pensamento de Calvino, Frame[26] e Lopes concordam acerca de três propósitos para a disciplina eclesiástica. Lopes diz discordar de quem pensa que o único propósito da disciplina é recuperar o irmão faltoso, pois para ele a disciplina deve servir a três propósitos, e são eles: restaurar e reconciliar o pecador (Mt 18.15; 1Co 2.5-8); manter a pureza da igreja (1Co 5.1-7) e; impedir que o pecado se espalhe (1Tm 5.20). Frame diz que o primeiro propósito é restaurar o ofensor dos seus pecados, conduzindo-o ao arrependimento. Isso não pode ser confundido com crueldade, pelo contrário, isto é manifestação de amor. O segundo propósito apresentado por Frame é o de impedir a propagação do pecado e instruir a congregação. Observa-se, portanto, que a disciplina eclesiástica também é educativa, pois serve como exemplo, a fim de que outros não sejam induzidos pelo mesmo erro. Em terceiro lugar, Frame diz que a disciplina cumpre o propósito de proteger a igreja e a honra de Cristo. Quando uma igreja não trata seriamente o pecado, ela perde o seu prestígio ante o mundo e, consequentemente, isso recai sobre a honra de Cristo, a saber, o cabeça da Igreja.[27] No Código de Disciplina da Igreja Presbiteriana do Brasil encontramos a seguinte definição de propósito: “Toda a disciplina visa edificar o povo de Deus, corrigir escândalos, erros ou faltas, promover a honra de Deus, a glória de Nosso Jesus Cristo e o próprio bem dos culpados (Art.2).”[28] Nesta seção, foi possível apreender que entre os estudiosos há um consenso de que o propósito da disciplina não pode ser entendido apenas como punição, pois quando uma igreja aplica a disciplina, o que ela pretende alcançar é a reconciliação do faltoso, o bem-estar da igreja e a honra do nome de Cristo. DISCIPLINA ECLESIÁSTICA NAS ESCRITURAS A principal fonte de pesquisa quanto à prática do exercício da disciplina é encontrada nas Sagradas Escrituras. A proposta desta seção é analisar algumas passagens tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, levando em conta o método da Teologia Bíblica, aplicando o princípio do Progresso da Revelação.[29] Considerando que o contexto do Antigo Testamento é muito extenso e rico em informações relevantes, é importante ressaltar que não se pretende, nesta seção, esgotar todas as passagens que fazem referência à disciplina, mas, de forma geral, considerar a relevância do assunto para o povo de Deus na Antiga e na Nova Aliança, a partir da observação de como os apóstolos trataram do tema da disciplina em situações correspondentes. Os propósitos de Deus para a nação de Israel são claramente encontrados no Antigo Testamento. Deus sempre quis que os israelitas fossem uma nação distinta dos outros povos e, assim, a santidade se destaca como uma das marcas distintivas do povo de Deus. O texto de Levítico 11.44-45[30] aponta que a nação israelita deveria ser distinta das outras nações, com base em uma ordenação divina baseada no caráter Santo de Deus, indicando que seu povo deveria ser santo como ele é. No Novo Testamento, o apóstolo Pedro escreve à igreja dizendo: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9). Kistemaker comenta que uma nação santa segue as regulamentações prescritas para o seu bem-estar. Mohler corrobora o comentário de Kistemaker de que as regulamentações estabelecidas por Deus também objetivavam o bem-estar da nação israelita.[31] Lopes comenta que a Lei de Deus para Israel estabelecia variadas formas de punição aos infratores, a fim de que o pecado e o pecador fossem eliminados.[32] Diante disso, pode-se inferir que Deus mantém o seu propósito na Nova Aliança de chamar o seu povo para uma vida de pureza e santidade, bem como, para ser distinto do mundo, mediante a observação dos preceitos estabelecidos em sua Palavra. Isso implica dizer que a disciplina tanto na Antiga quanto na Nova Aliança é fundamental para o propósito divino em manter a pureza de seu povo. Outro aspecto importante relacionado a disciplina nestes textos é o fato de que Israel é considerado o povo de Deus, ou seja, deve ser entendido como uma nação, uma congregação que necessariamente precisava de normas que regulamentassem o bem-estar e, principalmente, a honra do nome de Deus, visto que foram chamados e separados para ser um povo santo. Mohler comenta que o sistema disciplinar de Israel foi projetado em grande parte para proteger a pureza da nação.[33] A Igreja do Novo Testamento é o povo de Deus que também deve ser caraterizado por sua santidade de forma visível ao mundo, através da pureza e integridade de sua vida (1 Pe 2.9- 10). Sendo assim, faz-se necessária a observação de alguns temas correlacionados nas Escrituras, levando em conta os aspectos do Progresso da Revelação. Lopes aponta para o texto de Lv 24.14, em que aquele que blasfemasse contra o nome do Senhor deveria ser apedrejado e, dessa forma o pecado seria eliminado do meio do povo.[34] No Novo Testamento, Paulo escreve a Timóteo relatando a forma como havia tratado dos blasfemadores Himeneu e Alexandre (1Tm 1.19-20). Calvino ao comentar sobre esta passagem se diz convicto de que quando Paulo usa a expressão “entregar para Satanás” deve-se interpretar essa ideia no sentido de excomunhão, lembrando que essa ideia é apresentada em 1Co 5.5. Ele ainda destaca que a excomunhão pode tornar as pessoas ainda piores, mas que esse é o meio para que os pecadores obstinados sejam atingidos por infortúnios e, assim, serem conduzidos ao arrependimento.[35] Keener concorda com Calvino de que se trata de excomunhão, afirmando que segundo os Manuscritos do Mar Morto, havia diferentes níveis de excomunhão e, dentre elas, a forma mais drástica era a plena exclusão da comunidade.[36] O que se observa nestes dois textos são os elementos de continuidade e de descontinuidade. A exclusão deve ser comparada à eliminação do pecado e do pecador, o que serve para impedir que pecado prolifere na igreja – esse é o elemento de continuidade. O elemento de descontinuidade é a entrega a Satanás como forma de juízo sobre o pecador obstinado, a fim de que ele seja levado ao arrependimento. Lopes destaca outros exemplos de disciplina no Antigo Testamento em que os infratores não passaram impunes e seus pecados colocavam em risco a ordem e o bem-estar da comunidade de Israel.[37] Nesses casos também se aplica o mesmo princípio de continuidade e de descontinuidade. A) O caso de Acã. Ele foi desobediente e roubou os despojos da batalha contra Jericó e a ira de Deus se ascendeu contra Israel que saiu derrotado na batalha. Neste caso a desobediência previa o apedrejamento como forma de disciplina, para que o mal fosse eliminado do meio do povo (Js.7); B) O caso de apostasia (Dt.13.1-10). Deus prescreveu a forma correta de disciplina para punir os falsos mestres que colocassem em descrédito os seus mandamentos e as suas ordenanças, ressaltando a necessidade de eliminá-lo do meio do povo. Lopes comenta que a disciplina no Antigo Testamento ao punir o infrator severamente tinha como propósito instruir o restante do povo. A punição deveria servir de advertência para que outros temessem as consequências de seus pecados e, também, manter o bem-estar no meio da congregação.[38] Observa-se, portanto, que aqueles que se opunham à Lei do Senhor estavam passíveis de correção, pois Deus orientou seus líderes para que exercessem disciplina quando houvesse pecado no meio da congregação de Israel. O apóstolo Paulo exorta a igreja de Coríntios: “Mas, agora, vos escrevo que não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse tal, nem ainda comais. Pois com que direito haveria eu de julgar os de fora? Não julgais vós os de dentro? Os de fora, porém, Deus os julgará. Expulsai, pois, de entrevós o malfeitor (1 Co 5.11-13). Calvino e Kistemaker estão de acordo que a jurisdição da disciplina pertence à igreja. Calvino comenta que todos os pecados listados por Paulo não se referem ao foro íntimo, pois o que é de foro íntimo não pode ser levado ao tribunal da igreja.[39] Kistemaker diz que a igreja administra a disciplina com vista a sua pureza.[40] No mesmo capítulo da carta à igreja de Corinto, versos 6-8, Paulo apresenta a analogia do fermento e exorta para que seja retirado da igreja aquele que cometeu tamanho ultraje, a fim que outros não caiam na mesma desgraça. Wenham comenta que o livro de Números tem como um dos seus temas principais a disciplina e a direção divina para Israel, em uma viagem pelo deserto rumo à Terra Prometida, considerando o fato de que é através da obediência à Lei que Israel seria santificado.[41] No capítulo 16, Corá e seus companheiros se rebelaram contra a liderança de Moisés e Arão sem um motivo justo. O princípio a ser extraído dessa passagem deve ser o entendimento de que aqueles que rejeitam a liderança instituída por Deus e provocam divisões no meio da congregação rejeitam o próprio Deus e, consequentemente, atraem a disciplina para si.[42] Isso não pode produzir uma falsa impressão de que os líderes da igreja não podem ser disciplinados. Contudo, Paulo fala sobre a acusação de autoridades da igreja. Ele exorta quanto à necessidade de provas substanciais, da presença de testemunhas e sobre a importância da repreensão aos pecadores na presença de todos (1Tm 5.19). Calvino diz que as orientações de Paulo são para salvaguardar os líderes da igreja da astúcia dos homens. Keener diz que tanto a cultura grega quanto a judaica reconhecia o valor das testemunhas. Ele ainda ressalta que Paulo aplica um princípio já estabelecido por Deus no Antigo Testamento (Dt 17.6; 19.15), que encontra validade no Novo Testamento, sendo aplicado por Jesus em Mateus 18. Dois pontos devem ser observados para se acatar uma denúncia com líderes da igreja: provas substanciais e a presença de testemunhas. A trajetória final do Antigo Testamento aponta para uma significativa mudança nos padrões disciplinares. Berkhof ressalta que a exclusão tornou-se o meio de disciplina substituindo o apedrejamento, após Israel perder seu reconhecimento de nação independente e assumir o caráter de assembleia religiosa.[43] Kimble corrobora o pensamento de Berkhof, e comenta que o exílio na Babilônia pode ser considerado um novo modelo de disciplina que visava levar ao arrependimento e à obediência. O evento do exílio ocorreu após diversas advertências de Deus por meio dos profetas. Sendo assim, depois de todas as advertências, Deus cumpriu a sua palavra e disciplinou o seu povo, mas também foi fiel ao restaurá-lo, após os setenta anos de cativeiro.[44] Ele considera esse um novo estágio e uma contribuição da Revelação Progressiva, destacando que no livro de Esdras (Ed 10.8) há um exemplo claro de exclusão formal, sem a morte do ofensor e com a possibilidade de arrependimento. Este mesmo modelo de disciplina será encontrado no Novo Testamento.[45] Galardi destaca que: Ao nos prepararmos para examinar os requisitos do Novo Testamento para a disciplina da igreja, é importante que os fundamentos do Antigo Testamento sejam compreendidos, pois o Novo Testamento se baseia no Antigo, os dois estão ligados e não devem ser separados.[46] Os exemplos apresentados nessa seção demonstram que a disciplina era uma prática recorrente na comunidade de Israel como um instrumento de Deus para a purificação de seu povo. É importante destacar que as punições estabelecidas para Israel não encontram mais validade em nossos dias. Contudo deve-se considerar seus princípios como válidos, pois o pressuposto principal reside na ideia de que o pecado jamais deve ficar impune, a fim de que a santidade do povo de Deus o diferencie do restante do mundo.[47] O contexto da vida cristã no Novo Testamento apresenta diversas experiências relativas à disciplina eclesiástica, como já foi destacado. É importante observar nas passagens do Novo Testamento como a igreja Primitiva tratou desta importante doutrina. No Novo Testamento é possível encontrar algumas passagens que destacam a forma como a igreja deve aplicar a disciplina. Lopes aponta alguns textos, tais como: a instituição do padrão disciplinar por Jesus (Mt.18.15-20), o caso de incesto na igreja de Corinto (1 Co 5.1-5) e outros diversos casos descritos nas cartas às igrejas.[48] Na passagem de Mateus 18, Jesus apresenta os passos a serem seguidos para a aplicação da disciplina na igreja, iniciando com uma orientação sobre a autodisciplina, o padrão como o irmão faltoso deve ser abordado e, por fim, a necessidade da restauração. Um importante alerta é feito por Adams, no que se refere ao contexto desta passagem, tendo em vista que tudo começa e termina com a autodisciplina.[49] Kimble está de acordo com o alerta de Adams e destaca que o contexto da passagem em estudo trata-se de fato da autodisciplina. A orientação de Cristo a seus discípulos se refere a se absterem de práticas pecaminosas que pudessem conduzir outros ao pecado, levando-se em conta ser esse o pré- requisito para desempenhar o exercício da disciplina. Em seguida, Jesus fala da dedicação de um pastor e de seu regozijo ao restaurar a ovelha que estava perdida, apontando para a necessidade de agir com misericórdia e amor.[50] Conforme Hendriksen: Jesus acaba de advertir contra o mal de tentar outros a pecar. Em vez de ser a causa da ruína de alguém, todo seguidor do Senhor deveria dedicar-se à tarefa de encontrar a ovelha que se extraviou e trazê-la de volta ao redil.[51] Para Shedd, não há passagem mais clara no Novo Testamento à respeito da importância do exercício da disciplina, considerando que o pressuposto principal reside no fato de que onde há pecado cometido, ali haverá sempre a necessidade da disciplina.[52] Portanto, conforme Mateus 18.15-20, observa-se que o procedimento para com o faltoso deve seguir alguns passos determinados por Jesus. 1 º º Passo: Confrontação particular. "Se teu irmão pecar contra ti, vai argui- lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão" (Mt.18.15). Hendriksen destaca que a autodisciplina deve preceder a disciplina. Ele destaca que a autodisciplina conduz à humilhação e faz com que a disciplina seja conduzida por um espírito amoroso, que é próprio dos discípulos de Jesus.[53] Davey comenta que Cristo nos encoraja a confrontar o irmão em pecado, a fim de que ele reconsidere a suas atitudes tolas e pecaminosas. Ressalta que o aspecto mais incômodo deste verso é o fato de que todo crente qualificado tem a responsabilidade de confrontar o irmão em pecado.[54] Conforme Leeman: Assim como é um trabalho dos pais disciplinarem os seus filhos, é o seu trabalho, cristão, participar da disciplina da sua igreja. Você sabia disso? Isso é tão fundamental para quem é um cristão e um membro da igreja como é para um pai disciplinar um filho.[55] Adams comenta que a confrontação não é opcional. Jesus não está apresentado uma possibilidade, mas estabelecendo um padrão disciplinar para a igreja.[56] Portanto, todas as vezes que um irmão comente pecado contra outro irmão é necessário seguir o modelo disciplinar estabelecido por Jesus no que se refere ao trato contra o irmão ofensor, para validar todo o processo. 2 º Passo: Admoestação na companhia de testemunhas. “Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça" (Mt.18.16). O segundo passo da disciplina deve ocorrer diante da ineficácia da confrontação pessoal, quando o ofensor permanece obstinado em seu pecado, se negando a dar ouvidos à repreensão.[57] A partir deste momento as testemunhas passam a desenvolver um papel fundamental no processo, confirmando cada palavra, seja do irmão que tenta a reconciliação, seja do irmão que permanece obstinado.[58] Hendriksen comenta que o padrão disciplinar instituído porJesus deve ser admirado e seguido em obediência, considerando o seu caráter prático na tratativa com o pecador obstinado. Ele ainda comenta que a razão principal da presença de duas ou três testemunhas encontra-se nas palavras citadas de Deuteronômio 19.15: “Uma só testemunha não se levantará contra alguém por qualquer iniquidade ou por qualquer pecado, seja qual for que cometer; pelo depoimento de duas ou três testemunhas, se estabelecerá o fato”.[59] Portanto, é preciso considerar o fato de que se mesmo na presença de testemunhas o irmão faltoso ainda permanecer obstinado e não seja ganho, deve-se seguir para o terceiro passo. 3 º º Passo: Levar ao conhecimento da igreja. “E, se ele não os atender, dize-o à igreja” (Mt 18.17a). Quando o irmão faltoso se recusa a dar ouvidos à repreensão, mesmo na presença de outras testemunhas, o assunto deve ser levado ao conhecimento da igreja, para que o pecador obstinado seja tratado com maior rigor pelas autoridades da igreja. Hendriksen destaca que a igreja deve ser considerada “a comunidade dos crentes localmente organizada”.[60] Shedd ressalta que a última instância é a igreja, e que ela é considerada o “supremo tribunal no plano discipulador de Deus”.[61] Mohler considera este passo extremamente sério, pois a igreja deve julgar com base nas orientações das Escrituras e nas circunstâncias, contudo, sem se esquecer do objetivo principal que é a restauração do faltoso.[62] 4 º º Passo: A exclusão: "...se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano". (Mt18.17b). Hendriksen destaca que os que vivem obstinados em seus pecados e não atentam para as exortações, perdem o direito de fazer parte da igreja de Deus ao serem considerados gentios e publicanos. Keener concorda com a interpretação de Hendriksen, destacando que mesmo existindo outras formas de punição aos pecadores que faziam parte de uma sinagoga, como o castigo físico, o pior deles era ser expulso da comunidade judaica e ser considerado um pagão.[63] Kimble comenta que essa é a fase mais difícil da disciplina eclesiástica, contudo é preciso sempre considerar que esta é a última forma de ajudar aqueles que andam obstinados em seus pecados a reconhecerem a necessidade do arrependimento, que é um sinal presente na vida daqueles que realmente fazem parte da igreja de Cristo.[64] Shedd concorda com essa interpretação e destaca que os versos 18 e 19 atestam que teremos a companhia de Cristo no exercício da disciplina.[65] Isso mais do que nunca deve encorajar a igreja no fiel exercício da disciplina. Na passagem de Mateus 18, Jesus apresenta o modelo e os critérios a serem observados sobre à disciplina eclesiástica, demonstrando a sua importância e necessidade para a vida da igreja. Além disso, Cristo confere sua própria autoridade à igreja, a fim de encorajá-la no exercício da disciplina, que sempre terá como propósito final a restauração dos que derem provas de arrependimento. O texto de 1 Coríntios 5 é uma passagem de grande valor para a compreensão da necessidade da disciplina eclesiástica. O apóstolo Paulo confronta a imoralidade sexual dentro da igreja de Corinto, a fim de que se tomem providências para julgar o caso, o qual está trazendo prejuízos ao testemunho público da igreja e vergonha para o nome de Cristo. O conteúdo da denúncia: “Geralmente, se ouve que há entre vós imoralidade e imoralidade tal, como nem mesmo entre os gentios, isto é, haver quem se atreva a possuir a mulher de seu próprio pai. E, contudo, andais vós ensoberbecidos e não chegastes a lamentar, para que fosse tirado do vosso meio quem tamanho ultraje praticou? ” (1 Co 5.1-2) Beale destaca que há um paralelo entre a ação descrita no livro de Esdras capítulo 10 e o apóstolo Paulo em 1Coríntios 5. Esdras lamenta a situação de pecado em que se encontravam os judeus que voltaram do exílio, Paulo pede à igreja de Corinto que lamente pelo pecado do homem incestuoso. Esdras exige a separação dos cônjuges para que não haja a excomunhão. Paulo exige a exclusão do pecador caso não se desfaça aquela união ilícita.[66] O conteúdo da denúncia do apóstolo demonstra a sua indignação contra a passividade da igreja de Corinto, que ainda não havia tratado o pecador obstinado e nem tão pouco lamentado por tamanho ultraje que estava ocorrendo entre os membros da igreja. Keener comenta que o fato de existir omissão por parte da igreja corrobora para que ela aprove a imoralidade.[67] Calvino alerta para o fato de que o pecado de um afeta todo o corpo, e eles sequer pranteavam.[68] Kistemaker comenta que o apóstolo Paulo ao usar a expressão “gentio” aponta para a gravidade do pecado e incita a igreja quanto a sua responsabilidade de impedir que o pecado de imoralidade fique sem o tratamento merecido, tendo em vista que a negligência da disciplina pode incorrer em vergonha para toda congregação.[69] Portanto, todas as vezes que a igreja deixa de exercer a disciplina, ela se faz cúmplice do pecado, e se ela permite que o pecado prolifere em seu meio, consequentemente isso afetará a honra do Nome de Cristo. A igreja deve agir de forma corporativa no processo de exclusão: “Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor...” (1 Co 5.3-4). Calvino comenta que o poder da disciplina não repousa sobre uma única pessoa. Portanto, Paulo não sentencia sozinho, mas lembra à igreja do seu sentimento, confirmado pela presença e pela autoridade de Jesus, a fim de que o pecador seja sentenciado. Kistemaker ressalta que a igreja deve se reunir para realizar julgamentos, lembrando sempre da garantia da presença e do auxílio de Jesus quanto ao exercício da disciplina, e efetuar a exclusão do pecador que está causando sérios problemas à igreja. Conforme Kimble afirma “para que a disciplina seja aplicada de maneira adequada e plena de acordo com o ensino de Jesus, a assembleia formal da igreja junto com o poder e autoridade para ligar e desligar deve ser formalmente instigada”.[70] A exclusão visa à restauração: “entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus .” (1Co 5.6) Para Kistemaker, a ordem de Paulo para entregar o pecador incestuoso para Satanás é a exclusão. Ele comenta que o significado da entrega a Satanás para a destruição da carne deve ser compreendido como um processo que o pecador deverá enfrentar antes de sua morte, a fim de que ele chegue ao arrependimento.[71] Kimble corrobora o pensamento de Kistemaker e ressalta que a disciplina deste homem tem como propósito levá-lo ao arrependimento e, consequentemente, à restauração.[72] Para Leeman, na passagem de 1Coríntios 5.1-5, deve-se observar alguns princípios importantes quanto ao exercício da disciplina eclesiástica: 1) expor o pecado que age como um câncer – para que seja retirado o mais breve possível; 2) advertir – pois o julgamento exercido pela igreja aponta para um julgamento escatológico, portanto é uma advertência de amor; 3) salvar – este é o último recurso que a igreja tem para levar o pecador contumaz ao arrependimento, a fim de que ele seja salvo.[73] Keener comenta que no Novo Testamento a exclusão equivalia a sentença de morte, como era previsto para casos de imoralidade sexual no Antigo Testamento. Contudo, ressalta que para que fossem aplicadas penas de morte, os tribunais necessitavam de permissão do império romano, que consentia em julgamentos nas comunidades sobre o seu domínio.[74] Conforme proposto, nesta seção, foram apresentados alguns exemplos de disciplina eclesiástica do Novo Testamento. Conclui-se, portanto, que os exemplos de disciplina na igreja do Novo Testamento ressaltam o compromisso dos apóstolos com a pureza da igreja e a honra do nome de Deus, bem como o propósito de restaurar o irmão faltoso. A AUTORIDADE PARA EXERCER A DISCIPLINA ECLESIÁSTICA Algo tão importantequanto as definições e propósitos da disciplina e sua base bíblica, é compreender o poder espiritual que confere à igreja a capacitação para o desempenho do seu dever, bem como os seus limites. Bannerman ressalta que “o poder disciplinar é um direito conferido a igreja por designação divina positiva”.[75] Ele destaca que há pelo menos três passagens claras no Novo Testamento que tratam acerca desta orientação realizada por Cristo - Mt16.18-19; Mt 18.18-19, Jo 20.21-23. Conforme Bannerman: (..) fica evidente, pelo exame e comparação dessas declarações das Escrituras, que nosso Senhor comunicou à sua Igreja uma permanente dádiva de autoridade e poder para disciplinar que deveria sobreviver ao ministério dos apóstolos. As passagens que citei são, evidentemente, paralelas, e cada uma delas ajuda a interpretar a outra. A frase “as chaves do reino dos céus”, que ocorre na primeira passagem, é paralela ao poder de “ligar e desligar”, de que se fala na segunda; e cada uma dessas duas equivale à autoridade de “remitir e reter pecados”, mencionada na terceira passagem. A expressão “o reino dos céus”, usada na concessão das “chaves” a Pedro, de acordo com o palavreado muito comum do Novo Testamento, deve ser entendida como a igreja visível de Cristo; e o poder das chaves é o poder de abrir ou fechar a porta dessa igreja, no caso das pessoas que buscam admissão ou que merecem exclusão. Exatamente equivalente a esse poder das chaves é a autoridade de ligar e desligar; ou a autoridade de vincular aos homens os seus pecados, de modo que eles sejam afastados da igreja, ou de desligá-los dos seus pecados, de modo que estejam aptos para serem admitidos na igreja. E, nesse mesmo sentido, devemos entender a terceira forma de expressão usada por nosso Senhor para com os representantes da sua Igreja, quando ele lhes concedeu o direito de “reter ou remitir pecado”, — linguagem que não deve ser entendida literalmente, como se fosse um poder da parte de Cristo para perdoar a culpa, ou de visitá-la com eterna condenação, investida na sua Igreja, mas deve ser compreendida como a concessão de autoridade à igreja unicamente com referência aos privilégios exteriores e punições da transgressão, que, como sociedade visível, ela tem direito de conceder e de remover. As três passagens em que nosso Senhor concede à igreja esse notável poder devem ser interpretadas em conexão umas com as outras; e embora elas não concedam, quando corretamente entendidas, apoio à ideia de um poder de perdoar pecados ou absolver das suas consequências eternas, elas fornecem uma prova mais do que satisfatória da autoridade que a igreja possui de exercer um poder de disciplina na aplicação e remoção judicial de censuras eclesiásticas para os seus membros.[76] A primeira ocorrência, a de que a capacitação para o desempenho da disciplina é uma designação divina e encontra-se em Mateus 16.18-19: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus”. Bannerman comenta que a expressão “chaves do Reino dos céus” é usada como símbolo do poder espiritual da Igreja e, portanto, essa autoridade se difere da autoridade do Estado que tem como símbolo a “espada”. Por essa razão, ele destaca que o padrão disciplinar da Igreja não é a força, mas as admoestações privadas e públicas por meio da persuasão como medidas espirituais.[77] A CFW afirma que o “poder das chaves” se refere tanto a pregação do evangelho quanto a disciplina eclesiástica. CFW. XXX, II. “A esses oficiais estão entregues as chaves do Reino do Céu. Em virtude disso eles têm respectivamente o poder de reter ou remitir pecados; fechar esse reino a impenitentes, tanto pela palavra como pelas censuras; abri-lo aos pecadores penitentes, pelo ministério do Evangelho e pela absolvição das censuras, quando as circunstâncias o exigirem.”[78] A segunda ocorrência encontra-se em Mateus 18.18-19: “Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus. Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus.” Conforme observado neste trabalho, o texto de Mateus 18, trata da instituição da disciplina por Cristo. Torna-se evidente que o poder espiritual da Igreja é concedido e está sujeito as determinações ensinadas por Jesus aos seus discípulos. Jeffrey destaca que a disciplina eclesiástica não pode ser considerada uma invenção humana, pois ela é autorizada e estabelecida por Jesus Cristo, sendo eficaz para a igreja quando ela segue as suas prescrições.[79] Hendriksen comenta que a expressão “em verdade” é usada para dar ênfase de que a disciplina é uma questão importante que não deve ser negligenciada. Outro aspecto que ele destaca é a necessidade de uma harmonia entre o que é realizado na terra pela Igreja em obediência ao padrão autorizado por Jesus e que também recebe o apoio do céu.[80] Isso implica dizer que, quando uma igreja segue a prescrição divina, o que ela realiza na terra, já foi reconhecido no céu. O comentário de Adams ressalta que esta passagem apresenta três incentivos relativos à autoridade da igreja no exercício da disciplina: 1) A presença de Cristo – Em uma das fases mais difíceis do exercício da disciplina, a saber, a excomunhão. Cristo promete estar junto à igreja, abençoando e encorajando os seus líderes a cumprirem plenamente os padrões estabelecidos para disciplinar o pecador obstinado; 2) A oração respondida – Jesus encoraja sua igreja ao dizer que responderá suas orações para capacitar os envolvidos no processo disciplinar, produzindo resultados corretos em um dos momentos mais difíceis do julgamento; 3) O poder de ligar e desligar – Jesus confere autoridade à igreja. O poder de ligar e desligar garante o apoio do céu e autoridade deCristo, demonstrando que a disciplina não é uma invenção humana, mas uma designação divina.[81] A terceira ocorrência encontra-se no Evangelho de João 20.21-23: “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E, havendo dito isto, soprou sobre eles e disse- lhes: Recebei o Espírito Santo. Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos.” Para Packer: Jesus instituiu a disciplina autorizando os apóstolos a ligarem e desligarem (isto é, proibirem e permitirem, Mt 18.18) e a declararem os pecados perdoados ou retidos (Jo 20.23). As “chaves do reino”, dadas primeiramente a Pedro e definidas como o poder para ligar e desligar (Mt 16.19), tem sido comumente entendidas para formular doutrinas e impor a disciplina, autoridade dada presentemente por Cristo à igreja em geral e, em particular, a pastores investidos.[82] É a partir desse contexto que devemos considerar o poder espiritual da igreja e sua capacitação para o desempenho de seu dever. Cristo estabeleceu o padrão, bem como conferiu autoridade a sua igreja, garantindo a sua presença e, consequentemente a sua bênção, desde que os limites por ele estabelecidos fossem observados, a fim de garantir que os pecadores obstinados fossem corrigidos, concedendo-lhes a oportunidade de arrependimento e restauração. Portanto, a igreja que deseja ser fiel aos ensinos de Jesus deve exercer a disciplina de seus membros que vivem na prática do pecado, tendo em vista que a disciplina não é opcional, mas uma designação positiva de Deus a sua igreja. Ao concluir o primeiro capítulo deste livro, faz-se necessário destacar que a disciplina eclesiástica deve ser entendida como uma benção para o povo de Deus (Hb 12.10,11). Foi possível observar por meio das definições e conceitos que a disciplina é composta de dois aspectos que se complementam. Ressalta-se,contudo, que o foco aqui se refere à disciplina em seu sentido mais restrito, a saber, a disciplina corretiva. Além disso, foi destacado o propósito da disciplina eclesiástica, da disciplina nas Escrituras, enfatizando a correlação dos textos do Antigo e do Novo Testamento acerca do assunto e o padrão disciplinar a partir de Mateus 18 e 1 Coríntios 5. Por fim, o reconhecimento da autoridade para o exercício da disciplina como designação positiva de Deus a sua Igreja. O próximo capítulo se ocupará em demonstrar como a igreja abandonou o vigor doutrinário e, consequentemente, corrompeu-se em todos os sentidos. Questões caras à igreja primitiva, como a disciplina, ganharam outro sentido, o que fez com que a corrupção adentrasse na igreja, implicando sua total descaracterização. Segue-se, portanto, o caminho trilhado pelos reformadores, para resgatar os princípios bíblicos acerca da disciplina eclesiástica. A DISCIPLINA ECLESIÁSTICA NA REFORMA Neste capítulo será apresentado um breve relato dos principais fatos que ocorreram no contexto da Reforma Protestante e como a disciplina eclesiástica foi reconhecida pelos teólogos reformados como uma marca da Igreja verdadeira. O contexto da Reforma Protestante é importante, considerando que um dos assuntos mais caros para os reformadores foi a eclesiologia. Havia um claro interesse dos reformadores pelos assuntos que envolviam a igreja. Eles foram responsáveis pela organização de um sistema de marcas para a distinção entre a verdadeira e a falsa igreja, marcas que, ao mesmo tempo, serviriam como proteção para manter a pureza da igreja. Dentre essas marcas, a disciplina eclesiástica, conforme o desfecho deste capítulo demonstrará, passou a ser considerada um distintivo da igreja verdadeira. Portanto, considera-se necessária uma abordagem dos aspectos contextuais da Reforma a fim de se obter uma melhor compreensão do desenvolvimento desta importante característica da Igreja. Ressalta-se, contudo, que o primeiro objetivo deste capítulo é apontar para os aspectos contextuais que contribuíram para a formulação dessa doutrina. CONTEXTO HISTÓRICO DA REFORMA A Reforma Protestante alcançou seu ponto mais alto no século XVI. Esse foi um processo histórico com diversos desdobramentos políticos, econômicos, sociais e culturais. Entretanto, nessa seção ressalta-se que a Reforma foi um movimento originalmente de natureza religiosa. Homens como Lutero na Alemanha, Calvino na Suíça, John Knox na Grã-Bretanha, entre outros, foram os responsáveis pela reforma da igreja. Ao analisar o contexto histórico do final da Idade Média, observa-se a necessidade de reformas e da renovação espiritual dentro da igreja cristã.[83] Conforme Cairns: Com os olhos presos ao passado, tanto clássico quanto pagão, e indiferentes às forças dinâmicas que estavam formando uma nova sociedade, a sociedade italiana, da qual o papado fazia parte, adotou uma forma de vida corrupta, sensual e imoral, embora culta e refinada.[84] Cairns destaca três perspectivas pelas quais os historiadores podem analisar a Reforma Protestante: o historiador católico a vê como uma insubordinação protestante à Igreja Universal; o historiador protestante a considera uma volta às Escrituras e uma restauração do padrão da Igreja do Novo Testamento e; o historiador secular vê a Reforma Protestante como um movimento revolucionário.[85] É importante destacar que os reformadores e aqueles que os antecederam buscavam reformar a antiga Igreja Romana Medieval, mas foram expulsos e tiveram que se retirar dela.[86] Os reformadores não desejavam criar um movimento religioso e novas igrejas nacionais, antes de tudo, buscavam o resgaste dos princípios das Escrituras observados pela Igreja do Novo Testamento.[87] Segundo Lindberg: ... a Reforma mostrou-se um gigante dentre os movimentos internacionais dos tempos modernos. Apoiados nos ombros da Reforma, conseguimos olhar com mais profundidade para ambas as direções: podemos sondar tanto o mundo medieval quanto o contemporâneo.[88] A Reforma Protestante obteve resultados expressivos em diversas áreas, contudo, é importante reafirmar que originalmente a Reforma foi um movimento religioso. A Reforma foi, de fato, um divisor de águas na história da igreja e, portanto, entende-se que as informações relacionadas ao seu contexto são importantes para o desenvolvimento deste trabalho. O DECLÍNIO DA DISCIPLINA NA IGREJA MEDIEVAL O declínio da disciplina na Igreja Medieval aconteceu quando ela abandonou o vigor doutrinário.[89] É possível observar através de uma análise histórica que assuntos tão importantes para Igreja Primitiva como a administração dos sacramentos, a pregação fiel das Escrituras e o fiel exercício da disciplina eclesiástica receberam um novo significado na Igreja Medieval que, consequentemente, resultaram na sua degradação neste período sombrio. Tudo isso teve início com Gregório I até o Concílio de Trento.[90] Gregório ampliou o poder dos bispos e assim tornou o episcopado de Roma um dos mais ricos do seu tempo.[91] Com Gregório I, a Igreja estabeleceu um sistema de penitências; a confissão de pecados ao sacerdote; o purgatório, que passou a ser entendido como uma forma de disciplina após a morte; a venda de indulgências, que estava vinculada ao sistema de penitências e; a excomunhão. Todas essas práticas foram monetizadas, estabelecendo a possibilidade de pagamento para o abrandamento da pena e, até mesmo, garantindo a entrada das almas pecadoras no céu.[92] Dentre as ideias de Gregório I, Shelley destaca que: A penitência envolve arrependimento, o qual deve ser sincero e de coração, bem como confissão e obras meritórias. As obras meritórias, sem as quais a penitência não está completa, são atos que envolvem sacrifício ou sofrimento, tais como caridade, práticas ascéticas e orações em todas as horas do dia. Quanto maiores forem os pecados, mais é preciso fazer para compensá-los e mais cuidado se deve ter para evitá-los no futuro. Somente após a morte é que as pessoas descobriam se haviam feito o suficiente para expiá-los.[93] Kimble comenta que a aproximação de Carlos Magno com a Igreja também contribuiu para a corrupção dela. A proximidade do Imperador com o papa Leão III possibilitou o retorno do velho Império Romano. A partir daí surge um novo tempo em que Igreja e Estado dominariam a eclesiologia da Idade Média. Por essa razão, a membresia da igreja passou a ser determinada por sua posição geográfica, o que fez com que o fiel exercício da disciplina eclesiástica se tornasse um grande desafio para Igreja.[94] A teologia escolástica da Idade Média arrogou para si e para a igreja uma grande autoridade. O papa Inocêncio III afirmou que o papa é o juiz do mundo entre Deus e o homem, abaixo de Deus e acima do homem. O poder papal conferia aos sacerdotes a capacidade de reter a graça de Deus. Nesse sentido, observa-se que, esse sistema levado às últimas consequências, conduziu a Igreja a um desfecho trágico, com uma série de ensinos contrários às Escrituras, muito distante do padrão encontrado na Igreja do Novo Testamento.[95] A Igreja Romana, com o papa Inocêncio III, chega ao ponto mais intenso de elevação da figura do papa, concedendo aos sacerdotes o poder de mediarem a graça de Deus aos pecadores, através do sacrifício bendito e das orações pelos mortos e, também através da prática de ministrar no túmulo das almas sofredoras,[96] a fim de oferecer o perdão dos pecados e libertação do purgatório. Conforme Kimble: O processo de disciplina pública estrita definhou nas igrejas de língua latina do Ocidente, assim como aconteceu nas igrejas do Oriente de língua grega. Em seu lugar surgiu um sistema de confissão privada e penitência individual. Essa ênfase final na penitência transformou a disciplina da igreja em grande parte em um assunto privado entre o sacerdote e o leigo e, como tal, o papel comunitário da disciplina da igreja se dissipou. Assim, a disciplina da igreja foi amplamente dissipada e, em vez disso, confissões privadas e obras de méritoeram comuns nos dias que antecederam a Reforma.[97] O declínio da disciplina na Igreja se deve ao seu afastamento da Palavra de Deus, ao abuso de sua autoridade e, consequentemente, ao sistema adotado na aplicação da disciplina eclesiástica. A disciplina que deveria servir como meio estabelecido por Deus para levar pecadores ao arrependimento e para manter à pureza da Igreja perdeu o seu espaço para o sistema de penitências, possibilitando uma série de erros e abusos por parte dos sacerdotes, conduzindo ao declínio da moralidade da igreja em todos os níveis. O sistema de penitências, por sua vez, tornou-se o fio condutor para as obras meritórias e para a venda das indulgências. Por essa razão, o sacramento da penitência adquiriu muita importância para os objetivos sórdidos dos sacerdotes. A penitência deveria ser repetida durante toda a vida cristã com o objetivo de se obter o perdão dos pecados cometidos após o batismo. Sendo assim, somente o verdadeiro penitente poderia ser admitido na comunhão, ou seja, participar da eucaristia.[98] A necessidade da penitência para se obter o perdão levou os teólogos a compilação de listas de pecados veniais e mortais. Os pecados foram associados a um ato específico de penitência, recebendo sua justa punição ou castigo, a fim de que se alcançasse o perdão. Os sacerdotes estipulavam a punição e, também, observava se o penitente havia cumprido o seu castigo satisfatoriamente.[99] Barret comenta que: Com o tempo, essa estrutura de penitência e obras de super-rogação se tornou um fardo tanto para a Igreja quanto para os penitentes. Dizer às pessoas para ficarem descalças na neve segurando uma vela acesa por horas a fio, por exemplo, logo passou a ser visto como um exercício inútil. Isso não resultava em nada positivo para a Igreja, além de sobrecarregarem as pessoas pela realização de atos humilhantes, algo quase intolerável no caso de serem membros proeminentes de sua comunidade local. O problema era que, ao perderem o respeito dos demais, corriam o risco de perder também sua autoridade, e a ordem social poderia ruir.[100] O medo de perder o controle da situação fez com que a Igreja buscasse uma nova alternativa para satisfação dos seus membros. Diante deste grande desafio, a Igreja Medieval encontrou na cobrança das indulgências uma forma de conciliar essa questão, pois ao adquirir uma indulgência mediante o pagamento, o fiel eliminava a necessidade de fazer a penitência.[101] Deve-se ressaltar que uma nova questão também ocupou a preocupação da Igreja Medieval:[102] e quanto aos que não foram bons o suficiente nesta vida? O purgatório surge como uma resposta para atender aqueles que não foram capazes de realizar suas obras meritórias de forma satisfatória. Uma oportunidade de oferecer esperança aos que morreram e não foram capazes de cumprir perfeitamente as penitências estipuladas pelos sacerdotes. Através das indulgências, portanto, era possível reduzir o tempo de sofrimento no purgatório. O sacramento da penitência estava estritamente ligado às indulgências. O sacerdote era capaz de garantir a absolvição dos pecados, isso somente mediante o pagamento. A indulgência era um documento adquirido através de dinheiro, que livrava aquele que o comprara.[103] Conforme Cairns: Isso foi formulado primeiramente por Alexandre de Hale no século XIII. Clemente VI declarou o dogma em 1343. Um a bula papal de Sisto IV, em 1476, estenderia esse privilégio às almas no purgatório, desde que seus parentes comprassem indulgências por eles. Foi o protesto de Lutero nas 95 Teses contra o abuso das indulgências que precipitou na avalanche de acontecimentos que resultaram na Reforma na Alemanha, que daí se espalhou por todo o norte e oeste da Europa.[104] Neste contexto de declínio da Igreja e insatisfação, surge a Reforma Protestante que, em primeiro lugar, foi um retorno às Escrituras e ao padrão doutrinário da Igreja do Novo Testamento. As igrejas nacionais que nasceram como fruto da Reforma Protestante relegaram todas as práticas que estavam em desacordo com o padrão encontrado na Igreja do Novo Testamento, assumiram a Bíblia como autoridade final e restauraram o vigor doutrinário e os preceitos bíblicos para a manutenção da pureza da Igreja, o que inclui o resgaste do padrão disciplinar da Igreja do Novo Testamento. FATORES CATALIZADORES DA REFORMA O contexto da Reforma é amplo e não é possível retratá-lo sem abordar os fatores que contribuíram direta ou indiretamente para seu desenvolvimento. Os fatores econômicos, sociais e políticos compunham o cenário e contribuíram para o processo da Reforma, mas além desses, outros devem ser observados. Conforme afirma Cairns,[105] há pelo menos outros três fatores que foram importantes catalizadores da Reforma: o intelectual, o moral e o teológico. O fator intelectual, no século XVI, foi impulsionado pelo Humanismo da Renascença, provocando um retorno aos clássicos. McGrath comenta que o Humanismo da Renascença pode ser resumido como “ad fontes”, ou seja, “de volta às fontes”.[106] Os impactos dessa nova postura refletiram diretamente por meio de críticas feitas por homens preparados intelectualmente em relação ao padrão de vida religiosa proposto pela Igreja Romana Medieval. O interesse pelo retorno “às fontes” despertou um espírito intelectual, aumentando o desejo por comparações em relação à sociedade em que eles viviam com liberdade intelectual e o secularismo da sociedade grega em relação ao princípio de liberdade das Escrituras, levantando questionamentos quanto à postura e às pretensões da Igreja Romana.[107] O fator moral está intimamente conectado ao fator intelectual.[108] O retorno aos clássicos também foi um retorno aos textos bíblicos do Novo Testamento. Sendo assim, os humanistas logo perceberam as diferenças gritantes entre a Igreja Romana e a Igreja descrita no Novo Testamento. Por meio do retorno aos clássicos, foi possível a análise da realidade e, assim, a constatação de uma série de corrupções na Igreja, tais como: a imoralidade do clero, a corrupção da justiça nas cortes eclesiásticas, a negligência dos sacerdotes, a venda de indulgências e as penitências.[109] Portanto, considerando que o Clero estava visivelmente corrompido pela imoralidade e era o responsável pela disciplina dos outros, então, o sistema naturalmente estava corrompido por si só. A degradação moral da Igreja Romana era visível ao ser comparada a Igreja do Novo Testamento e, inevitavelmente, os humanistas tornaram-se críticos quanto às inconsistências doutrinárias e práticas que a Igreja Romana Medieval oferecia aos seus seguidores. Em relação ao fator teológico, Cairns comenta sobre o resultado da influência da teologia de Tomás de Aquino sobre a Igreja Romana Medieval. A filosofia tomista compreende que o pecado não corrompeu totalmente a vontade do homem. Sendo assim, pela fé e pelo uso dos meios de graça, o homem pode alcançar a salvação.[110] Os reformadores através do retorno aos clássicos se opuseram às ideias filosóficas tomistas e, ao considerar o ensino das Escrituras, eles refutaram os ensinos de Tomás de Aquino, que conferiam à Igreja o poder da salvação, visto que administração dos meios de graça estava em suas mãos.[111] Segundo McGrath: Havia uma ampla insatisfação popular com a ausência dos clérigos e bispos de suas paróquias e dioceses, com a questionável moralidade da vida clerical, com os baixos padrões da educação clerical, com a aparente indiferença da Igreja frente às condições econômicas e sociais do começo do século 16 e com aparente ausência de direção espiritual dentro da Igreja. Havia endurecimento das artérias eclesiásticas devido ao que era amplamente considerado como excesso de envolvimento em questões seculares. Embora se proclamasse a guardiã dos valores da Cidade de Deus, a Igreja dava sinais de estar profundamente envolvida com as necessidades, ambições, desejos, prazeres e riquezas deste mundo.[112] Aqui estão alguns dos fatores catalizadores da Reforma. Contudo, vale destacar que ainda existemoutros componentes que foram importantes e que contribuíram para o desenvolvimento da Reforma. Observa-se, portanto, que diante do cenário e das fortes pressões, tornou- se inevitável a reforma da Igreja. O retorno “às fontes”, ou seja, aos clássicos, contribuiu para a exposição da corrupção e da sujeira da Igreja Medieval, possibilitando a confrontação como o modelo de Igreja encontrado no Novo Testamento. Conforme Lindberg: Sem os Reformadores, não haveria Reforma. Fatores sociais e políticos guiaram, aceleraram (e também impediram) a divulgação e os efeitos públicos da pregação protestante. Entretanto, em uma pesquisa da época como um todo, não podemos superestimá-los, vendo-os como a causa da Reforma, nem como sua precondição fundamental.[113] É neste contexto que Deus levanta homens para que seus propósitos sejam estabelecidos na História. No próximo ponto, será destacado o que pensavam os homens que foram usados por Deus para a restauração dos padrões bíblicos da Igreja e, consequentemente, da disciplina eclesiástica. Conforme Cairns: Historiadores protestantes como Schaff, Grimm e Bainton interpretam a reforma amplamente como um movimento religioso que procurou redescobrir a pureza do cristianismo primitivo como descrito no Novo Testamento. Essa interpretação tende a ignorar os fatores econômicos, políticos e sociais que ajudaram a promover a Reforma. Segundo essa interpretação, a Providência Divina é o fator primordial que precede a todos os outros fatores.[114] O RESGASTE DA DISCIPLINA ECLESIÁSTICA NA REFORMA A disciplina eclesiástica é considerada uma ferramenta fundamental para manutenção da pureza da Igreja. Ao lado da pregação fiel das Escrituras e da correta administração dos sacramentos, o fiel exercício da disciplina eclesiástica é apresentado como uma das marcas distintivas da igreja verdadeira e, diante do exposto, os reformadores foram os grandes responsáveis. Na Reforma Protestante, a disciplina eclesiástica recebeu grande ênfase por parte dos reformadores que condenavam o modelo disciplinar adotado pela igreja Medieval. Os reformadores consideravam ineficaz o atual modelo disciplinar da Igreja Medieval, pois ele não cumpria os objetivos determinados pela Palavra de Deus. Observa-se, portanto, que o ponto de principal discórdia para os reformadores era a exclusão ou excomunhão, tendo em vista que as penitências e indulgências se tornaram os fios condutores para um sistema corrupto com um propósito muito distante do padrão bíblico, impedindo que o propósito da excomunhão fosse alcançado, a saber, o arrependimento do pecador obstinado. John Wycliffe[115] e John Huss[116] prepararam o caminho para a Reforma. Eles se destacam entre aqueles que antecederam os reformadores. As queixas dos reformadores giravam em torno do sistema penitencial que estava ligado intimamente às indulgências e ao sacramento da excomunhão. Wycliffe conhecido como a “Estrela da manhã da Reforma”, em suas primeiras críticas a Igreja questionou a autoridade papal e o sistema de penitências que garantia a libertação das almas do purgatório.[117] Huss chegou a comprar uma indulgência, mas depois de 20 anos protestou argumentando que apenas Deus perdoa pecadores por sua graça e, que ninguém pode vender aquilo que procede exclusivamente de Deus.[118] Aos sacerdotes foi conferido o direito de absolvição dos pecados mediante pagamento do pecador o que potencializou a corrupção por meio do sistema penitencial ao abrir as portas para a mercantilização da graça, permitindo que abusos fossem cometidos a todo instante. Os pré-reformadores, Wycliffe e Huss, influenciaram aqueles que posteriormente concretizariam a Reforma e que seriam os responsáveis por iniciar o trabalho de resgaste do padrão disciplinar da Igreja Primitiva. Conforme observa Kimble, a razão pela qual Lutero escreveu três documentos acerca da natureza e a prática da disciplina na igreja se deve ao fato de que ele experimentou o sistema penitencial e, para o reformador, esse sistema funcionava como entrave para o arrependimento verdadeiro. Os reformadores perceberam que a excomunhão, padrão disciplinar instituído por Cristo, havia sido corrompido pela igreja medieval e, dessa forma, teria perdido seu propósito.[119] Nas palavras de Kimble[120], Lutero não via a disciplina apenas como punição, conforme o entendimento da Igreja da Igreja Medieval, mas compreendia a disciplina como restauradora e como um instrumento que serviria de exemplo para que outros perseverassem na fé. Com os reformadores, houve um rompimento total com o antigo sistema penitencial e, isso aconteceu não apenas para se fazer distinção entre a verdadeira e a falsa igreja, mas foi uma volta às Escrituras e, consequentemente, ao padrão doutrinário estabelecido pela Igreja do Novo Testamento. Gregg ressalta que o exercício da disciplina eclesiástica nas igrejas reformadas era de grande importância, principalmente pelo fato de ser considerado uma das marcas que distinguia a igreja verdadeira da falsa igreja.[121] Ele ainda comenta que “para Lutero, a igreja verdadeira aplica a disciplina corretamente, a fim de trazer de volta os pecadores punidos”.[122] Na obra de Gregg encontra-se a seguinte declaração de Lutero: O povo de Deus, ou cristãos santos, é reconhecido pelo ofício das chaves exercido publicamente. Isto é, como Cristo decreta em Mateus, se um cristão pecar, deve ser repreendido. Se não mudar de conduta, deve ser ligado ao pecado e lançado fora. Se mudar de conduta, deve ser absolvido. Esse é o ofício das chaves.[123] Embora Calvino não tenha cunhado ou apresentado a disciplina eclesiástica como uma das marcas da igreja verdadeira, é possível observar que no desenvolvimento de seu pensamento, a disciplina eclesiástica era considerada de suma importância para manutenção da ordem na igreja. Segundo Calvino: Pois não há sociedade alguma, nem mesmo a doméstica, por pequena que seja, que mantem-se em bom estado sem alguma disciplina; por isso, com mais razão ainda, a disciplina é necessária a igreja, cuja condição convém ser a mais ordenada possível. Portanto, se a doutrina salvífica de Cristo é a alma da Igreja, a disciplina lhe serve de nervos, ligando os membros entre si, e mantendo-os no devido lugar. Por isso todos que desejam a supressão da disciplina, ou impedem sua restauração, quer estejam agindo por conhecimento de causa ou inadvertência, com certeza conduzirão a Igreja à mais completa devastação.[124] Conforme o comentário do reformador, a disciplina assume um papel preponderante para o desenvolvimento e manutenção da ordem na igreja. Para tanto, ele usa o exemplo de uma casa, ressaltando a inviabilidade de se viver sem a disciplina, tornando-se inquestionável o seu valor para sustentação da ordem de qualquer sociedade. O reformador exemplifica a importância da disciplina ao compará-la aos nervos que servem para firmar e dar sustentação ao corpo. Conforme Lopes: Calvino lista apenas duas marcas na Confissão de Genebra, de sua autoria (Art. 18), que são a pregação da Palavra e a ministração dos sacramentos. Todavia, ele considerava a disciplina essencial para que uma verdadeira igreja pudesse existir, conforme escreveu ao Cardeal Sadoleto: “Existem três coisas sobre as quais a segurança da igreja está fundamentada e apoiada: doutrina, disciplina e os sacramentos”. Para ele, remover ou impedir o exercício da disciplina “contribui para a dissolução final da igreja”. Para Calvino, a igreja podia existir por um tempo sem disciplina, como a igreja de Corinto, que era uma igreja cujos membros – ou a maioria – precisavam de disciplina, mas que foi tratada por Paulo como uma legítima igreja cristã (1Co 1.1- 2). Mas, conforme Calvino, a falta de disciplina não assegura a continuidade da igreja por muito tempo.[125] Galardi comenta que o desenvolvimento do pensamento de Calvino quanto à displina corretiva aconteceu concomitante com o período em que o reformador esteve em Genebra.[126] Segundo Galardi: Em 1536, ele recebeu responsabilidades pastorais de WillianFarel, que serviu como líder da comunidade protestante em Genebra. Em 1538, ele e Farel foram forçados a deixar a cidade porque se recusaram a obedecer ao governo civil, já que os oficiais da cidade exigiam que eles aceitassem a liturgia de Berna e permaneceram teimosos quanto ao uso da disciplina eclesiástica. [127] Poirier corrobora o comentário de Galardi ao afirmar que um dos motivos do retorno de Calvino a Genebra foi o fato dos líderes de acatarem dois pontos apresentados por ele, a saber, o catecismo e a disciplina.[128] Calvino entendia a disciplina como necessária à vida da igreja quando ele diz: Portanto, assim como a doutrina salvífica de Cristo é a alma da Igreja, também a disciplina é como que sua nervatura, em virtude da qual sucede que os membros do corpo entre si se liguem, cada um em seu lugar. Portanto, todos quantos desejam que seja eliminada a disciplina, ou impedem o restabelecimento, quer façam isto deliberadamente, quer por irreflexão, realmente buscam a total subversão da Igreja.[129] Kimble destaca três pontos em que Calvino entende a disciplina como necessária: 1) para a honra do nome de Deus; 2) para a pureza da igreja e santidade do povo de Deus; 3) como um corretivo para os faltosos, a fim de que cheguem ao arrependimento.[130] John Knox[131] foi o responsável pelo reconhecimento mais claro da disciplina eclesiástica como uma marca da Igreja verdadeira. Assim como Calvino, Knox teve que enfrentar oposição quanto à disciplina e à supervisão pastoral. Ele, que havia passado um tempo de exílio em Genebra ao lado de Calvino[132], foi responsável pela Confissão de Fé Escocesa (1560): Portanto, nós cremos, confessamos e declaramos que as marcas da verdadeira Igreja são, primeiro e antes de tudo, a verdadeira pregação da Palavra de Deus, na qual Deus mesmo se revelou a nós, como nos declaram os escritos dos profetas e apóstolos; segundo, a correta administração dos sacramentos de Jesus Cristo, os quais devem ser associados à Palavra e à promessa de Deus para selá-las e confirmá- las em nossos corações; e, finalmente, a disciplina eclesiástica corretamente administrada, como prescreve a Palavra de Deus, para reprimir o vício e estimular a virtude. Onde quer que essas marcas se encontrem e continuem por algum tempo - ainda que o número de pessoas não exceda de duas ou três - ali, sem dúvida alguma, está a verdadeira Igreja de Cristo, o qual, segundo a sua promessa, está no meio dela. Isto não se refere à Igreja universal de que falamos antes, mas às igrejas particulares, tais como as que havia em Corinto, na Galácia, em Éfeso e noutros lugares onde o ministério foi implantado.[133] Frame comenta que os reformadores logo perceberam a necessidade de realizar a distinção entre a igreja verdadeira e a falsa. Para tanto, eles adotaram uma sistema de marcas, no qual a disciplina ganhou destaque.[134] Segundo Frame: a terceira marca é a disciplina eclesiástica, considerando que, tanto a fiel pregação das Escrituras quanto a correta administração dos sacramentos ficariam sem proteção caso não houvesse o fiel exercício da disciplina.[135] O mesmo entendimento quanto a disciplina eclesiástica postula na Confissão Belga de 1561 (Artigo 29). As marcas para conhecer a verdadeira igreja são estas: ela mantém a pura pregação do Evangelho, a pura administração dos sacramentos como Cristo os instituiu, e o exercício da disciplina eclesiástica para castigar os pecados. Em resumo: ela se orienta segundo a pura Palavra de Deus, rejeitando todo o contrário a esta Palavra e reconhecendo Jesus Cristo como o único Cabeça. Assim, com certeza, se pode conhecer a verdadeira igreja; e a ninguém convém separar- se dela.[136] Berkhof destaca que os reformadores perceberam a necessidade de estabelecer as marcas entre a igreja verdadeira e a falsa. Entretanto, ele observa que entre os reformadores não era consenso o reconhecimento da disciplina como uma marca da igreja verdadeira. Alguns reconheciam apenas uma marca, a saber, a fiel pregação da Palavra de Deus. Outros reconheciam duas marcas: a fiel pregação da Palavra de Deus e a correta administração dos sacramentos.[137] Contudo, Berkhof destaca que: O fiel exercício da disciplina é deveras essencial para a manutenção da pureza da doutrina e para salvaguardar santidade dos sacramentos. As igrejas que relaxarem na disciplina, descobrirão mais cedo ou mais tarde em sua esfera de influência um eclipse da luz da verdade e dos abusos nas coisas santas. Daí a Igreja que quiser permanecer fiel ao seu ideal, na medida em que isso é possível aqui na terra, deverá ser diligente e conscienciosa no exercício da disciplina cristã. A Palavra de Deus insiste na adequada disciplina exercida pela Igreja de Cristo, Mt 18.18; 1Co 5.1- 5; 13; 14.33,40; At. 2.42; Ap 2.14,15,20.[138] O trabalho dos reformadores resultou no reconhecimento da disciplina como uma das marcas da igreja verdadeira e, consequentemente, influenciou na formulação de várias confissões reformadas conforme observa-se, também, na Confissão de Fé de Westminster, XXX.III. III. As censuras eclesiásticas são necessárias para chamar e ganhar para Cristo os irmãos ofensores para impedir que outros pratiquem ofensas semelhantes, para purgar o velho fermento que poderia corromper a massa inteira, para vindicar a honra de Cristo e a santa profissão do Evangelho e para evitar a ira de Deus, a qual com justiça poderia cair sobre a Igreja, se ela permitisse que o pacto divino e os seios dele fossem profanados por ofensores notórios e obstinados. A Reforma Protestante foi responsável por grandes mudanças no século XVI, sobretudo em mudanças no conceito do que é a igreja. Os reformadores, inconformados com os abusos realizados pela Igreja Medieval, observaram a necessidade de uma reforma na vida eclesiástica que se iniciou com a volta às Escrituras. O retorno às Escrituras foi o caminho para a reforma, portanto, o trabalho dos reformadores contribuiu muito a essa discussão, e ainda contribui, pois aponta o caminho que deve ser trilhado pela igreja atual, a fim de que haja um resgate do padrão de disciplina eclesiástica da Igreja Primitiva. NECESSIDADE DA DISCIPLINA PARA A PUREZA DA IGREJA Deus tem um propósito bem definido para a sua igreja, a saber, a santidade e a pureza, que faz do seu povo distinto do restante do mundo. A CFW. XXV, IV. afirma que “esta igreja Católica tem sido ora mais ora menos visível. As igrejas particulares, que são membros dela, são mais ou menos puras conforme nelas é, com mais ou menos pureza, ensinado e abraçado o Evangelho, administradas as ordenanças e celebrado o culto público.”[139] Segundo a CFW é possível observar que a pureza da igreja depende de sua fidelidade na aplicação das ordenanças. Como a disciplina eclesiástica é uma ordenação divina, ela deve ser reconhecida como um instrumento para a purificação da igreja. Calvino aponta a disciplina como o remédio de Deus e diz que aqueles que acham que uma igreja pode permanecer firme sem ela, estão enganados, rejeitando algo imprescindível que Deus nos deixou.[140] Como vimos na citação da CFW anteriormente, entende-se que, se Deus conferiu autoridade para a igreja, bem como estabeleceu o padrão disciplinar com o propósito não apenas de restaurar o faltoso, mas manter a igreja pura e a honra do nome de Cristo, ou seja, a igreja deve exercer a disciplina a fim de proteger a sua pureza. A proposta desta seção é demonstrar em que áreas a disciplina protege a pureza da igreja. O FIEL EXERCÍCIO DA DISCIPLINA PROTEGE A PUREZA DA IGREJA Esta seção tem por objetivo apresentar três áreas que o fiel exercício da disciplina protege a igreja, a saber, a honra do nome de Cristo, a doutrina e a unidade do corpo. A honra do nome do Cristo A igreja que exerce a disciplina sobre o pecador obstinado defende a honra do nome de Cristo. Calvino observa que a igreja não deve permitir que pecadores obstinados permaneçam sendo contados como povo, pois isso seria uma grande afronta a Deus. Ele argumenta que, se a Igreja é o corpo
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