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A loucura como ausencia-páginas-99-108

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A Loucura como Ausência de Cotidiano*
Gilberto Safra
livro Ética e Técnica no Acompanhamento Terapêutico: Andanças com
Dom Quixote e Sancho Pança (Unimarco Editora, 1998) de Kleber Duarte
Barretto foi, originalmente, a sua dissertação de mestrado e aborda uma
modalidade de procedimento clínico, que se utiliza do cotidiano para fazer
as intervenções necessárias para constituir ou transformar aqueles aspec-
tos da vida psíquica do paciente que precisam ser cuidados. Trata-se de um
tipo de trabalho clínico interessante, que sai do consultório e vai para o
espaço da rua, para a experiência do cotidiano.
Por essa razão, parece-me importante poder abordar o lugar do coti-
diano na constituição da subjetividade humana. Tradicionalmente, na Psi-
cologia e também na Psicanálise há uma ênfase no estudo da subjetividade,
do psiquismo, da realidade interna, ou do mundo interno. O comum é con-
ceber o homem independentemente do seu meio e das suas ações no mun-
do. É um tipo de olhar que isola o ser humano e que compreende as diver-
sas manifestações psíquicas sempre a partir de uma problemática subjeti-
va: alguma questão ou conflito que estaria ocorrendo no mundo interno do
paciente.
Esta é uma maneira de refletir decorrente da influência do racionalis-
mo e do iluminismo sobre o pensamento ocidental. A verdade é que com
esse vértice se perdem alguns fenômenos importantes na compreensão da
condição humana.
Recentemente, em um grupo de estudo, uma analista, ao se despedir
dos demais componentes do grupo, fez um comentário, rápido, mas que
permite observar esse tipo de pensamento no entendimento do ser huma-
no. Ela disse: �Gostaria de, na próxima vez, conversar a respeito de um
paciente, só que é um paciente que só fala do cotidiano!� Eu achei esta
frase �só fala do cotidiano� interessante, pois nela está implícita a idéia que
parece considerar o cotidiano como muito pobre. No entanto, muito precisa
acontecer na vida de alguém até que ela possa vir a ter um cotidiano!
A fim de que possamos abordar essa questão, quero colocar lado a
lado duas situações:
1. No norte da Grécia há três braços de terra, que formam uma re-
gião conhecida como Halkidiki. No terceiro braço, já perto da Turquia, exis-
te um lugar chamado Monte Athos.
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Monte Athos é um lugar muito interessante. É considerado um Esta-
do grego sacro, governado pelos monges cristãos ortodoxos que vivem na-
quele lugar. Nesse Estado existem por volta de vinte e cinco mosteiros, que
procuram preservar uma maneira de viver segundo a teologia do mundo
bizantino.
Quando se visita esse lugar vive-se, frequentemente, um forte im-
pacto. É muito interessante!
Só é possível chegar ao Monte Athos por barco. Ao se descer da em-
barcação, pela maneira como tudo acontece naquele lugar, percebe-se que
se está em outro mundo. Por exemplo, existe sempre um monge no cais
esperando os visitantes e peregrinos. Esse monge os leva para conhecer as
diversas partes do mosteiro: a igreja principal, os alojamentos e os encami-
nha para uma construção que é denominada �Casa dos Hóspedes�. Há um
salão de recepção, onde se encontra o monge-anfitrião, que oferece aos
peregrinos água, um pedaço de doce gelatinoso e uma bebida muito estra-
nha, que parece vinagre. Segundo informação dada pelos monges esta be-
bida é feita pela fermentação de maçã.
Em uma das vezes em que estive lá, perguntei ao monge por que eles
ofereciam aquela bebida aos visitantes. Sorrindo, ele respondeu que era
bom para a cabeça. É uma bebida muito rica em potássio; e a gelatina rica
em glicose. Os peregrinos precisam dessas substâncias, porque em Athos
não é comum o transporte rodoviário. Normalmente, o percurso de um
mosteiro ao outro é feito a pé. Isso significa que se caminha por horas entre
um mosteiro e outro.
Nesses mosteiros vive-se em um outro tempo. O tempo não é medido
pela maneira convencionada na sociedade ocidental. O relógio é o sol. O
método utilizado é o bizantino, em que o raiar do sol é a primeira hora do
dia. Todas as atividades do mosteiro são marcadas pelo ciclo do sol. É uma
temporalidade cíclica. É o tempo da experiência, onde a história se repete
indefinidamente A temporalidade no mundo ocidental é linear. Concebe-se
um evento ocorrendo após o outro em sucessão. É uma maneira racionalis-
ta de ver a vida.
A arquitetura também é bastante interessante. Por exemplo, a igreja
principal localiza-se em frente do refeitório. Ao sair do refeitório, vai-se
para a igreja. Tudo funciona de forma tal que um espaço é continuidade do
outro. É um tipo de organização espacial que procura sacralizar o cotidiano.
O interior das igrejas é escuro, a iluminação se faz à luz de velas. Não
existe eletricidade. Tudo é iluminado pelo fogo. Fato bastante curioso, pois
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se tomarmos a iluminação pelas velas, pelo fogo, para refletirmos, percebe-
remos que a nossa relação com a luz do fogo é completamente distinta
daquela estabelecida com a luz produzida pela eletricidade. Creio que todos
nós temos a experiência do que significa sentar-se em frente a uma lareira.
Ver e ouvir o crepitar do fogo é um processo relaxante e acolhedor. O fogo
ilumina e tem um movimento rítmico; está sempre em movimento de pul-
sação. É luz viva; que guarda relações com o próprio ritmo da vida...
A grande forma artística em Athos é o ícone. Nos ícones representa-
se o divino por meio de figuras humanas pintadas em madeira com a técni-
ca da têmpera. São sempre figuras estáticas que �olham�, de todos os la-
dos, o peregrino que entra nos recintos. O ícone oferece àquele que o obser-
va um tipo de relação especular.
Em Athos, por toda parte em que se está ou que se olha, se tem
refletida a medida do humano: na organização do tempo, do espaço, e na
arte, em todas as diversas atividades realizadas no dia-a-dia. Trata-se de
um fenômeno orgânico, que se apresenta de forma integrada sempre com a
expressão da medida humana, considerada sagrada.
Evidentemente, estar em um lugar como esse tem efeitos psíquicos
profundos. Assim, pessoas que vivem nesse tipo de ambiente naturalmente
são levadas pela própria organização da situação a um processo de interio-
rização, a um processo de recuperação das medidas do próprio ser.
2. Aqueles que têm mais de 40 anos devem lembrar de uma série de
televisão, que era apresentada na década de 60, ou início de 70, que se
chamava Além da Imaginação.
Em um dos episódios, era narrada a história de um homem que vivia
em uma cidadezinha típica americana. Como psicólogos ou psicanalistas
poderíamos dizer que ele teria um comportamento esquizóide. Era um su-
jeito meio arredio, de pouco trato com as pessoas, de pouca conversa.... Um
dia esse homem encaminha-se para a sua casa a fim de dormir. No dia
seguinte, após acordar, abre a porta da casa e, alegremente, constata que a
rua está vazia, sem ninguém. Sai feliz para a rua e caminha de um lado
para outro. Observa o vento soprar as folhas das árvores. Vai ao bar, vai ao
cinema... Ele encontra o silêncio, encontra as ausências e, à medida que o
tempo passa, enquanto caminha por essa cidade fantasma, fica cada vez
mais desesperado, cada vez mais aflito.
Ao ouvir um ruído ele fica feliz pensando que talvez pudesse ser uma
presença humana. Não é � é só um jornal levado pelo vento. Acaba tendo
uma idéia que ele supõe que poderia livrá-lo daquele sofrimento. Entra em
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uma biblioteca e, feliz, sai com vários livros, com a expectativa de que tal-
vez ele venha a ter a companhia de seres humanos, por meio dos livros.
Senta-se nas escadas da biblioteca com grande quantidade de livros. Por
ser míope, usava óculos com lentes muito grossas. Afoitamente, começa a
ler e, repentinamente,os seus óculos caem e as lentes se quebram. O filme
termina. É um filme de suspense e de horror.
Falando de horror, uma garota de cinco anos veio à consulta psicana-
lítica porque tinha muitos medos. Ela me dizia que tinha muitos temores,
mas o maior era ir ao seu quarto sozinha. Perguntei-lhe porque era tão
aterrador estar em seu quarto sozinha. Ela respondeu-me dizendo que ti-
nha medo de fantasma. Ficou em silêncio e, em seguida, afirmou que não
era verdade, não tinha medo de fantasma. Disse que o fantasma tinha sido
criado por ela. Explicou-me que se dizia que tinha medo de fantasma, pelo
menos sabia do que tinha medo. Olhando-me afirmou que tinha medo puro.
Esse é o horror. Uma coisa é temer fantasmas, bichos hediondos, outra é a
ausência total de um reflexo humano. É o não-ser.
Winnicott continuamente assinala em seus trabalhos, que não há sub-
jetividade, não há a possibilidade da emergência de alguém, do acontecer
do ser, do desenvolvimento de uma personalidade sem a presença de outro
ser humano.
O desenvolvimento do ser humano necessita da presença de um ou-
tro. As primeiras manifestações psíquicas do bebê só ganham forma, só
ganham contorno pela presença da mãe ou seu substituto. É ela que, nesse
primeiro momento, reflete um pouco das características desse bebê e que
possibilita a emergência de uma subjetividade.
Esse encontro, que dá origem então a uma subjetividade, é o ponto
focal de inúmeros outros desenvolvimentos, que acontecerão ao longo da
vida do indivíduo. É o que permite a entrada no sentido de tempo. Muitos
são os sentidos de tempo que acontecem ao longo da vida.
Há um sentido de tempo que é um tempo de presenças contínuas; há
sentido de tempo fruto de inter-jogos entre presenças e ausências; há sen-
tido de tempo que é um tempo de ilusões; há o sentido de tempo que é o
convencional; há o sentido do tempo concebido como eternidade. Vários
são os sentidos do tempo!
É interessante perceber que todos nós só podemos nos organizar como
seres humanos, na medida em que tivermos alcançado uma temporaliza-
ção, o que só ocorre com a presença do outro. Por influência racionalista
costuma-se pensar o tempo como uma abstração, mas o tempo, o espaço, a
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coisa, cada um desses elementos, sempre nos refere ao humano; sempre
nos refere à presença de outros.
Hanna Arendt afirma que o ser humano só pode acontecer no mundo,
que esse já é preexistente ao indivíduo. O mundo é construção de muitos, é
construção de gerações. É só nesse mundo que um novo ser humano pode
acontecer.
Ela faz colocações bem interessantes, pelas quais mostra que toda a
possibilidade de um ser humano sentir-se vivo depende do fato de se sentir
existente e acontecendo no mundo humano. A morte é apresentada como o
desaparecimento de um indivíduo deste mundo humano.
Com a contribuição winnicottiana pode-se afirmar que, sem dúvida, é
preciso entrar no mundo, mas de uma forma que seja singular e pessoal.
Não basta que desde o nascimento da criança o mundo esteja pronto com os
seus códigos de significação, ou com os seus códigos de relações, se ela não
conseguir transformá-lo em si mesma, por meio de sua criatividade. É pre-
ciso que o mundo, inicialmente, seja ela mesma para que, gradualmente,
ela possa apropriar-se desse mundo compartilhando-o com um outro.
Hanna Arendt assinala que a realidade é construção de muitos; é
campo em que existe a coincidência do olhar de muitos. Isso possibilita que
o mundo tenha duração, uma condição fundamental para que algo tenha
permanência no mundo compartilhado. Esse tipo de concepção é também
um elemento importante no pensamento de Winnicott, já que para ele a
realidade é sempre realidade compartilhada, é realidade construída por
muitos. A realidade é construída pelo olhar de muitos. Mas há algo que
precisamos nos perguntar: que mundo é esse? Qual é a qualidade desse
mundo?
Winnicott conta em um de seus artigos, que ele conversava com um
amigo arquiteto. Dizia a ele que havia uma rua em Londres, por onde ele
apreciava muito caminhar. Mas havia uma segunda rua, pela qual ele não
suportava passar. Costumava perguntar-se qual o motivo disso. O seu ami-
go lhe disse que essa rua que ele tanto apreciava era uma rua onde os
prédios tinham um tipo de arquitetura que guardava proporção com o cor-
po humano. E a rua por onde não suportava passar não possuía nenhum
tipo de relação nas suas medidas, na sua arquitetura, com o corpo humano.
Pelo contrário, era um tipo de construção que procurava desconstruir a
proporção do corpo humano. Ou seja, o tipo de construção, o tipo de arqui-
tetura, tem influência na maneira como o indivíduo se sente em um deter-
minado espaço!
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Recentemente, em uma banca de mestrado discutia-se a função do
tempo para a subjetividade e falava-se sobre o novo tempo que surge por
causa da informática e nos jogos de computador. Algo que merece ser pen-
sado.
É interessante comparar os últimos filmes produzidos pela Disney
com os seus primeiros filmes. Se tomarmos por exemplo, Branca de Neve,
ou Bambi; e compararmos com Aladim, observaremos que são feitos com
organizações de tempo bastante diferentes. Em Aladim é utilizada uma lin-
guagem de video-clipe. É estonteante! Os filmes anteriores têm outro tipo
de organização do tempo. Um tempo em que se pode respirar. Nos filmes
atuais o espectador é carregado pelo rápido fluxo e pela quantidade de ima-
gens. O homem parece acostumar-se com as novas formas de temporalida-
de. Na verdade, isto ocorre dentro de limites, porque o homem ainda tem
um corpo.
Esse corpo possui um ritmo próprio. Nós não conseguimos respirar no
ritmo da linguagem de video-clipe. Não é possível. Há aí um limite na pos-
sibilidade de adaptação humana a esses diferentes estados de tempo. Eles
instalam situações que invadem os princípios organizadores do ser huma-
no.
Há inúmeras pesquisas e inúmeros autores refletindo sobre o tipo de
cultura que temos na atualidade, no mundo ocidental. Nela o tempo já não
reflete o organismo humano. Não é o tempo cíclico � nem mesmo o tempo
sequencial, o tempo do relógio. Trata-se de outro tempo, que certamente
afeta a subjetividade humana. Se no Monte Athos temos todos os objetos
culturais voltados para a proporção humana, na cultura ocidental faz-se
exatamente o oposto. É uma cultura que fragmenta o ser humano, descor-
porificando-o em seu sentido de realidade, e em seu sentido de tempo,
desconectando-o de suas origens. Esse é um fenômeno que produz uma
vivência de abandono, que não é só decorrente da ausência de um objeto,
mas sim da perda de si mesmo.
No recente e belíssimo filme de Walter Salles, Central do Brasil, te-
mos uma bonita metáfora do abandono, do desencontro e da busca do que
é fundamental. O que é ser brasileiro? Temos representada no filme não só
a orfandade do menino ou da escritora de cartas, mas o abandono e a orfan-
dade de todo um povo, perdido de suas origens e de si mesmo. No entanto,
isso acontece não só no Brasil, mas nos diversos cantos do mundo em que
existe esse processo de fragmentação do ser humano.
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Não é à toa que o quadro clínico mais frequente em nossos consultó-
rios seja o borderline, o indivíduo que não consegue encontrar uma organi-
zação de si mesmo que lhe dê inserção no mundo.
O homem tem necessidade de outros, desde o início da vida. Tem a
necessidade de poder encontrar elementos e proporções de seu ser, em sua
cultura, em seu campo social, nos diversos acontecimentos humanos.
Estamos acostumados, como psicólogos e como psicanalistas, a en-
tender o fenômeno de loucura como fruto de uma perturbação de origem
pulsional, mas essa é só uma possibilidade. A questão não é tão simples;
existem vários outros níveis de entendimento do fenômeno da loucura,por
exemplo, a desorganização psíquica não nasce da subjetividade do indiví-
duo, mas sim do desencontro com o outro, com a cultura e com o campo
social.
É um problema complexo, que demanda muita discussão. Só irei assi-
nalar aqui alguns pontos desta questão.
a) Há o esgarçamento da subjetividade, se o indivíduo não pode en-
contrar um outro que lhe tenha dado a possibilidade de emergir. Este é um
tipo de acontecimento que pode levar a uma experiência de loucura.
b) Há a impossibilidade que uma pessoa tem de encontrar, no campo
social, referências proporcionadas por um tecido simbólico dentro do qual
ela possa se inserir. Já tive pacientes que viviam uma experiência de desa-
lojamento de si mesmos, nos quais a questão fundamental não era o fato de
terem alguma desorganização de ordem do pulsional, mas de terem histó-
rias familiares em que existia uma exclusão social do grupo familiar de
geração após geração.
Algumas pesquisas sobre os excluídos em nossa sociedade mostram
que estes apresentam sintomatologia semelhante à encontrada nos qua-
dros psicóticos, mas trata-se de um processo de desorganização psíquica
que tem origem na exclusão social. E será necessário um outro tipo de
intervenção terapêutica para um bom andamento do caso. Todos precisam
de inserção social. Mesmo os eremitas, só podem ser eremitas porque exis-
te um campo social que lhes dá lugar de inserção.
c) Há outro tipo de manifestação de loucura, decorrente do desen-
raizamento cultural. Aqui estaríamos ultrapassando a questão do fenôme-
no social propriamente dito. A questão é a inserção que o indivíduo tem na
história das gerações.
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Frequentemente, em um processo de imigração, onde o contato com
a cultura de origem foi perdida, o indivíduo perde também os elementos
fundantes da sua subjetividade; o que dava a ele o reconhecimento de si no
mundo.
A intervenção terapêutica, aqui, já não pode mais ser restrita a uma
elaboração do campo pulsional, mas será um tipo de trabalho mais relacio-
nado a uma psicanálise antropológica. O paciente precisará ser situado e
recolocado frente à ruptura cultural que sofreu.
Como vemos, são diferentes níveis de intervenção psicanalítica.
Parece-me fundamental que se possa compreender o ser humano sem-
pre acontecendo no mundo. Com o outro, no campo social, no campo cultu-
ral, nos diversos registros da experiência humana. É muito complicado quan-
do esses registros se confundem para o analista; quando ele trabalha como
se todos esses níveis pudessem ser reduzidos ao fenômeno psíquico de ori-
gem pulsional. Observa-se que um tipo de trabalho com estas característi-
cas costuma levar o paciente a um estado de maior confusão. É preciso
diagnosticar o nível em que a desorganização psíquica tem a sua origem.
Outro ponto importante é o destino que o indivíduo dá à vivência de
loucura, à perda de si mesmo. O que depende das possibilidades que uma
pessoa terá de lidar com a questão. Frequentemente, o indivíduo dá à sua
experiência de loucura uma organização psicótica. A organização psicótica
é um movimento defensivo frente a uma vivência de loucura: é uma organi-
zação defensiva utilizada pelo indivíduo frente às angústias impensadas;
ele tenta evitar viver desalojamentos de si do mundo e de si mesmo. São
experiências em que o indivíduo é atravessado pelo infinito, o que o leva à
dispersão de si.
Outro destino possível é a loucura organizada como um fenômeno de
genialidade. Winnicott tinha uma grande admiração por Jung, pela geniali-
dade de Jung. Ele assinala que Jung viveu a experiência de loucura, mas
pôde dar um destino genial à sua loucura. A genialidade é também decor-
rente de um processo de desalojamento de si mesmo.
São os paradoxos da vida. Se alguém fica excessivamente inserido no
mundo, excessivamente inserido no campo social, fica um tanto achatado.
É preciso um certo desalojamento para que ele tenha originalidade, e, quem
sabe, uma genialidade.
Nessa perspectiva, com Winnicott, podemos afirmar que não ter sin-
tomas pode ser saúde mas não é vida. E que viver em um mundo só com
pessoas sem neurose seria um tédio. Horrível! Um inferno!
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O desencontro pode levar a uma organização psicótica. Por outro lado,
esse mesmo fenômeno pode possibilitar o surgimento da genialidade. Ou-
tro destino possível para a loucura, próximo da genialidade, é o nascimento
de um poeta. Um poeta tem a capacidade de colocar em linguagem compar-
tilhada experiências a que, de outra forma, grande parte das pessoas que
não têm a mesma possibilidade, não teriam acesso.
Há uma quarta possibilidade. Quando o indivíduo dá um destino mís-
tico à sua loucura. Dessa forma, ele poderá, por meio da loucura, vivenciar
estados com pouca organização sensorial, e fazer uma relação com experi-
ências do infinito e do sagrado.
Quero enfatizar dois pontos importantes: é importante ter claro que o
fenômeno de loucura surge de diversas formas, não só do mundo pulsional,
mas também de diferentes tipos de desenraizamento, que podem aconte-
cer na vida de um ser humano. Algo extremamente facilitado pelas caracte-
rísticas de nossa época.
O segundo ponto relevante é que a loucura em si não é nem ruim
nem boa. Dependerá de quais condições o indivíduo encontrará na sua re-
lação com os outros para que consiga encontrar um destino satisfatório
para ela.
Isso significa que a clínica desses estados psíquicos exigirá do analis-
ta não só a possibilidade de que ele possa diagnosticar cada uma das nuan-
ças etiológicas desses quadros, mas também que ele realize as suas inter-
venções no registro em que elas são necessárias. Algumas vezes teremos
de realizar intervenções segundo o padrão tradicional � que são as inter-
pretações realizadas segundo os princípios técnicos clássicos. Outras vezes
teremos de conduzir um processo que facilite ao indivíduo caminhar em
seu desenvolvimento o suficiente para encontrar inserção no campo social,
e construir uma rede de sentidos e significações que expressem sua manei-
ra de ser. Algumas vezes o analista precisará funcionar como um antropó-
logo, para poder recolocar as questões da cultura pertinentes ao seu paci-
ente.
Gostaria de finalizar com parte de um dos diálogos entre os anjos,
personagens do filme do diretor Win Wenders � Asas do Desejo. Este é um
filme interessante, que, de certa forma, ilustra as questões que procurei
abordar. O filme pode ser compreendido como uma metáfora desses desen-
raizamento e da situação de pessoas que não estão, de fato, no mundo, que
não encontram o cotidiano que lhes dê forma, e que lhes dê sentido de ser.
Um anjo diz:
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�Às vezes estou cansado de minha existência. Não quero pairar eternamente
em cima. Quero sentir um peso crescendo em mim. Finalizar a eternidade e
me atar ao chão. Gostaria de poder dizer agora, a cada passo, a cada rajada
de vento::::: agora, agora e não mais para sempre e eternamente. Sentar no
lugar vazio de uma mesa de jogos e ser cumprimentado�.
Este é o anseio que se encontra cada vez mais intensificado na fala de
nossos pacientes. É o anseio pelo agora e por ser uma pessoa que possa ser
cumprimentada, uma pessoa que existe no mundo com outros.
Nota
* Palestra proferida na Universidade São Marcos em maio de 1998.
Gilberto SafraGilberto SafraGilberto SafraGilberto SafraGilberto Safra
Psicanalista, Prof. Dr. do Instituto de Psicologia da USP e da Pós-Graduação da PUC-SP.

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