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CAPÍTULO 2 ORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTI 2.1 Introdução O presente estudo objetiva identificar a origem e evolução do município utilizando o método histórico, investigando dados a ele pertinentes desde a Antiguidade Clássica, bem como analisar o tratamento a ele dispensado nas diversas constituições do país e verificar as perspectivas dessa entidade federativa. 2.2 Origem e evolução histórica do município 2.2.1 O município na Antiguidade Na Antiguidade não havia município na acepção e com a estrutura posteriormente adquirida. Existiam agrupamentos humanos, como famílias, aldeias, tribos, que repre- sentavam “vestígios do que mais tarde se conheceu por Município”.1 Na versão antiga, certo número de famílias formava um grupo, que a língua grega chamava fratria, e, a latina, Curia. Várias Curias ou fratrias uniram-se e formaram a tribo. A aliança de várias tribos levou ao surgimento da cidade, com delineamento de uma confederação de vários grupos constituídos antes, respeitando-se a independência religiosa e civil das tribos, das Curias e das famílias.2 Entre os antigos, cidade e urbe não eram palavras sinônimas. Cidade era a associação religiosa e política das famílias e das tribos; urbe, o lugar de reunião, o 1 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo municipal. 2. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1981. p. 32. 2 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Américas, 1961. p. 165-166; 177-178. v. I. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 43 23/02/2018 09:42:02 44 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL domicílio e, em especial, o santuário dessa associação. A localização de uma cidade sempre foi deixada à escolha dos deuses.3 O culto era o vínculo de toda sociedade.4 Por mais vizinhas que fossem duas cidades, elas sempre formavam sociedades completamente separadas, pois entre elas havia bem mais que a distância que hoje separa duas cidades ou a fronteira que divide dois estados; os deuses, as cerimônias religiosas e as preces não eram os mesmos. O culto de uma cidade era proibido aos habitantes da cidade vizinha. Os deuses de uma cidade rejeitavam as homenagens e as preces de quem não lhes fosse concidadão. Vê-se, aqui, o grande apreço que toda cidade tinha à sua autonomia.5 2.2.2 O município romano O município, como unidade político-administrativa, floresceu em Roma, empe- nhada na dominação pacífica das cidades conquistadas pelos seus exércitos. Ou seja, os romanos instituíram o município como instrumento de dominação.6 Os povos vencidos, desde a derrota, ficavam sujeitos às imposições do Senado e às leis romanas, e àqueles que assim o fizessem pacificamente eram concedidas várias prerrogativas, como o direito de contraírem matrimônio (jus connubium), de continuarem a praticar o comércio (jus commercium) e sua vida civil, de elegerem seus governantes (jus suffragii), e de dirigirem a própria cidade. As comunidades que obtinham esses privilégios eram consideradas municípios (municipium)7 e se dividiam em duas categorias (municipia caeritis e municipia foederata), conforme a maior ou menor autonomia auferida dentro do direito vigente (jus italicum).8 Afirma Edmunho Zenha que “não resta dúvida que a condição de cidadão romano, não importa com que restrições, e a autonomia dos negócios locais, eram aquisições que valiam sacrifícios”. E complementa: “A autonomia destas entidades foi realmente um dos seus mais importantes predicados e efetivamente vigorava debaixo da dominação”.9 Registra José Cretella Jr. que, apesar de não haverem os romanos alcançado no campo do direito público o alto nível de sistematização por eles atingido no âmbito do direito privado, contribuíram de forma significativa no campo do direito público, pois, “sem perfeito sistema de coordenação entre Roma e os povos conquistados, teria sido impossível aos romanos levar adiante a missão que julgavam estar desempenhando sobre a face do Universo”. Reporta-se às aclamações de Virgílius, na Eneida, canto VI, versos 851 a 853 e que evidenciam o espírito romano: 3 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Américas, 1961. p. 185-187. v. I. 4 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Américas, 1961. p. 199. v. I. 5 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: Américas, 1961. p. 270. v. I. 6 MATORANO, Dante. Direito municipal. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 53. 7 Etimologicamente, a expressão municípios, ou munus eris, significa, na linguagem latina, dádivas, privilégios e capere (capio, is, cepi, captum, ere) verbo latino que significa receber. Assim, município corresponde àquela entidade que recebeu privilégios (CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 6). 8 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 33. 9 ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948. p. 9-10. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 44 23/02/2018 09:42:02 45DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL Lembra-te, ó romano, de sujeitar os povos a teu império. Cabe-te a missão de impor a paz e os costumes, poupar os vencidos e dobrar os soberbos (Tu rugere Imperio populos, romane, memento. Hae tibi erunt artes, pacisque imponere morem, parcere subjectis et debellare superbos).10 O governo nessas cidades era eleito pelos homens livres, considerados cidadãos do município (cives municipes), em contraste com os estrangeiros (incolae), sem direito a voto. O regime municipal romano apresentava caráter predominantemente urbano. Compunha o poder administrativo da cidade um colegiado, composto de dois (duumviri juridicundo) ou quatro (quatuorviri juridicundo) magistrados superiores, com plenos poderes, especialmente o de justiça, cujas atribuições, na análise de José Nilo de Castro, equivaliam às dos atuais prefeitos.11 Contavam com o auxílio de magistrados inferiores responsáveis pelas questões administrativas e de polícia (aediles).12 13 Integravam, também, a estrutura municipal um responsável pela arrecadação dos tributos (quaestor ou exactor), um responsável pela fiscalização dos negócios públicos (curator),14 os edis, com amplas funções, algumas delas semelhantes às de outros cargos, podendo ser responsáveis pela preservação da cidade de Roma, pelo abastecimento e o policiamento da população,15 o defensor da cidade (defensor civitatis) – cargo ocupado exclusivamente por plebeus, com mandato de cinco anos, incumbido de defender o povo das arbitrariedades praticadas pelas autoridades romanas, além de vários funcionários subalternos, entre os quais os notários (actuarii) e os escribas – agentes auxiliares dos magistrados (scribae).16 Essa estrutura municipal consolidou-se sob o domínio romano e o município logrou ser reconhecido enquanto instituição. As leis locais (edictus) advinham de um conselho municipal, (curia ou ordo decurionum), composto por cem membros, denominados decuriões, eleitos periodicamente (de cinco em cinco anos) entre os cidadãos do município (cives munícipes) detendo funções legislativas e de fiscalização semelhantes às do Senado romano.17 O cumprimento dessas 10 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo municipal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 32. 11 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 7. 12 Esclarece José Nilo de Castro que as atribuições dos aediles, “eram as funções de polícia em geral, como segurança, higiene nos mercados e banhos; polícia de costumes, como espetáculos, jogos e moralidade pública” (CASTRO, José Nilode. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 7). 13 Informa Alencar Santana Braga que os “magistrados tinham o apoio da Curia, formada pelos decuriões ou senadores, para a governança da cidade. A princípio, qualquer cidadão romano – os municeps – podia compor a Curia e a magistratura, mas, com o tempo, só os decuriões passaram a ser chamados de municeps (BRAGA, Alencar Santana. O poder político do município no Brasil colônia. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 12, p. 169-232, jul./dez. 2008. p. 174). 14 Noticia Alencar Santana Braga que os censores ou curadores, além da censura, “administravam as rendas públicas, sendo que só podiam exercer tal função quem já tivesse exercido os demais cargos eletivos da municipalidade, por isso possuíam maior prestígio em relação aos outros. Sua eleição era de cinco em cinco anos” (BRAGA, Alencar Santana. O poder político do município no Brasil colônia. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 12, p. 169-232, jul./dez. 2008. p. 174). 15 Com o Império, este cargo foi esvaziado pelo pretor da cidade, até ser extinto. 16 V. HERCULANO, Alexandre. História de Portugal. 8. ed. Paris-Lisboa: Livraria Aillaud & Bertrand; Rio de Janeiro- São Paulo-Belo Horizonte: Livrarias Francisco Alves. p. 30-54. t. VII. Disponível em: <http://purl.pt/12112/3/hg- 26089-p/hg-26089-p_item3/index.html#/48>; <http://purl.pt/12112/4/hg-26089-p/hg-26089-p_item4/hg-26089-p_ PDF/hg-26089-p_PDF_24-C-R0150/hg-26089-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf >. Acesso em: 4 ago. 2015. 17 Ivo D’Aquino entende que “não se pode ter uma noção exata da organização, da vida social e administrativa e das crises do Município romano, sem a apreciação e o estudo da ordo decuriones”. Acrescenta que “em torno dos decuriões gravitaram todos os interesses municipais: – refletem eles a dignidade, a importância e a autonomia do Município; mas também as suas vicissitudes, a sua decadência e a sua agonia política”, constituindo-se nas “engrenagens-mestras” da máquina municipal. Esclarece que “apesar de serem os duúmviros, ou quatuórviros, CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 45 23/02/2018 09:42:02 46 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL leis era determinado pelos magistrados superiores e, a sua execução, pelos magistrados inferiores. Tal procedimento foi utilizado pelo Império romano, quando uma lei de Júlio César, editada aproximadamente em 40 a.C. – Lex Julia Municipalis – estabelecendo as diretrizes da organização municipal, expandiu esse regime a todas as Colônias da Itália, e, mais tarde, nas invasões de Sylla, foi adotado nas províncias conquistadas da Grécia, Gália e Península Ibérica.18 A instituição municipal não manteve durante todos os períodos da história romana a mesma estrutura, ou tampouco usufruiu da mesma consideração de Roma. Após ter chegado a seu apogeu, já no fim do império, a importância do município romano decaiu à medida que grande parte de suas atribuições foi absorvida paulatinamente pelo Imperador Constantino.19 A pressão exercida pelo Império sobre os municípios retira-lhes, aos poucos as prerrogativas adquiridas e leva-os a ingressar “naquela uniformidade administrativa que avassalou todo o mundo romano”. A influência e a interferência do imperador eram constantes em todos os organismos do Estado. “Os municípios foram atingidos em cheio”. A ordem curial enfrentou grande declínio “e o seu estado avançando os séculos imperiais, era o mais lamentável possível”,20 sua agonia acompanhando a dissolução do Império. A desmoralização da Curia mostrou-se fatal à restituição do prestígio do município. Explicita Ivo D’Aquino: “O Município ficou reduzido a um corpo abúlico, mesquinha imagem de um passado, em que o Estado Romano, sem se desvestir da sua majestade, permitia, entretanto, sentissem todos o calor e a influência do seu poder, sem que este os esmagasse”.21 Em função do seu profundo desvirtuamento, o imperador Leão, o Filósofo, no século IX, o extinguiu por um edito, confirmando por lei o que ocorria na realidade.22 os magistrados incumbidos da superintendência dos negócios administrativos municipais, descarregavam, em geral, quase todas as suas funções sobre os decuriões”. Discorrendo sobre as suas atribuições, enfatiza que, “de todos os encargos, era a percepção dos impostos o mais pesado, pelas responsabilidades que lhes acarretava. [...] Os decuriões eram solidariamente responsáveis pela arrecadação. Em casos de déficit, respondiam pelos insolventes e pelos agentes infiéis”. Dessa forma, à medida que aumentava a pressão imperial sobre os decuriões, estes procuravam ausentar-se dos seus postos, apesar da existência de leis e editos proibitivos desse abandono. Assim, os que não podiam isentar-se dos cargos municipais pela lei, tentavam fazê-lo pelo suborno, prática comum no Império. “Os cargos municipais, que outrora honravam os cidadãos mais ilustres, passaram a ser desempenhados pela escória social” (D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico- constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 22-24; 27-28). 18 MAYNS. Droit Romain. Paris: [s.n.], 1870. v. I apud MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 34. 19 Convertido ao cristianismo, Constantino passou a canalizar para a Igreja os bens e rendas advindas do município, e para os bispos a autoridade subtraída dos magistrados. “Assim, no mesmo passo em que crescia o poder da Igreja, minguava a autoridade da Curia e, por conseguinte, a do Município” (D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 26). 20 ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948. p. 11. Acrescenta o autor, na mesma página: “pelos meados do século IV, consolida-se um funcionário – o defensor, – que, pela influência que se lhe vai aumentando, modifica fortemente a organização municipal e a Curia, ficando ele o centro de todo o organismo”. 21 D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 30. 22 GUIZOT. Histoire des origines du governement reprèsentatif. [s.l.]: [s.n.], 1880 apud D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 30-31. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 46 23/02/2018 09:42:02 47DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL Não obstante, a presença do município na sociedade romana foi tão significativa que nem as numerosas modificações de poder e de organização vivenciadas pelo Império romano e pela República romana, ou o edito imperial foram capazes de determinar a sua extinção. Alternaram-se períodos de enfraquecimento e de fortalecimento, porém prevaleceu a sua tradição como mecanismo de organização política, inclusive para outros povos.23 Observa Alexandre Herculano: O municipalismo, esse princípio vivificador, essa pedra angular da república, que, embora revolvida pela base, mutilada e convertida em instrumento de servidão pelo despotismo, resistira à dissolução política e social do império, não só sobreviveu à conquista, mas também adquiriu, até certo ponto, nova importância com o domínio dos bárbaros.24 2.2.3 O município na Idade Média A queda do Império Romano Ocidental em 476 d.C., marcada pela invasão de Roma pelos bárbaros, assinalou o início da Idade Média, longo período que se estendeu até 1453, com a tomada de Constantinopla e a queda do Império Romano Oriental, comumente denominado Império Bizantino. Esse período foi palco de inúmeros fatos históricos,que ocasionaram profundas transformações sociais, políticas e econômicas, as quais resultaram no feudalismo, que se estendeu até o Renascimento. Sob o prisma administrativo, a Idade Média divide-se em dois grandes períodos: o feudal e o comunal. No primeiro, o regime era o da concentração do poder nas mãos dos senhores feudais, marcado pela ausência do aparelhamento administrativo ou de um sistema de leis administrativas.25 Os municípios foram absorvidos pelos feudos. A propósito, anota Mayr Câmara Godoy: “Ao findar-se o século XI, não havia sobrevivido nenhuma instituição, nenhum agente com função destinada aos cuidados da cite, da vici, ou dos caminhos da ville. A cidade antiga, melancolicamente, desaparecera”.26 Nesse período ocorreu a formação de um governo eclesiástico, hierarquicamente constituído. As dioceses e as paróquias passaram a catalisar os interesses espirituais e sociais da população das cidades, operando-se, assim, “uma lenta transição entre o município e a Diocese”, como ressalta Ivo D’Aquino, concluindo que “no regime da Igreja política, o município sofreu um colapso. Dele despertou somente vários séculos depois”.27 23 BRAGA, Alencar Santana. O poder político do município no Brasil colônia. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 12, p. 169-232, jul./dez. 2008. p. 174. 24 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal. 8. ed. Paris-Lisboa: Livraria Aillaud & Bertrand; Rio de Janeiro- São Paulo-Belo Horizonte: Livrarias Francisco Alves. p. 30-54. t. VII. Disponível em: <http://purl.pt/12112/3/hg- 26089-p/hg-26089-p_item3/index.html#/48>; <http://purl.pt/12112/4/hg-26089-p/hg-26089-p_item4/hg-26089-p_ PDF/hg-26089-p_PDF_24-C-R0150/hg-26089-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf >. Acesso em: 4 ago. 2015. 25 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo municipal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 34-35. 26 GODOY, Mayr. Câmara Municipal: uma estrutura política do Poder Legislativo na ordem local brasileira. 144 p. 1978. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1978. p. 21. 27 D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 43. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 47 23/02/2018 09:42:02 48 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL A fase comunal, por sua vez, contribuiu para o direito público com “a percepção da organização administrativa, que se impunha e se respeitava”.28 José Nilo de Castro, reportando-se a Rafael Bielsa, atribui o declínio das antigas cidades, como núcleos de população, ao estilo de vida dos germanos, voltados para o campo, alojando-se longe das cidades em acampamentos militares.29 A dominação bárbara, embasada em um modo de vida silvestre e não citadino, propiciou a preservação da organização dos municípios e sua sobrevivência, na medida em que, relegando as cidades aos vencidos, respeitou as suas leis e costumes, e permitiu- lhes a prática da liberdade municipal como mecanismo de organização. Relata Alexandre Herculano: Assim o Município escapou no meio daquela grande convulsão política, não só porque os conquistadores deixaram por via de regra os vencidos governarem-se pelas suas leis e costumes, continuando eles a seguir as próprias usanças, mas também porque, em geral, as duas raças ficaram materialmente divididas, e porque a aglomeração dos hispanos-romanos tornava natural a conservação das instituições populares ou municipais.30 Durante o período comunal o município, como instituição romana, é absorvido pelos bárbaros, procedendo-se à substituição do Conselho dos Magistrados pelo Colégio dos Homens Livres, instituição germânica, por eles denominada Assembleia Pública de Vizinhos (Conventus Publicus Vicinorum), composta de homens livres desempenhando, concomitantemente, funções administrativas, policiais e judiciais. Importa citar-se a Lex Romana Visigothorum, compilação de leis romanas em vigor no reino visigodo de Tolosa, durante o reinado de Alarico II (487-507 d.C.), em que há referência à Curia responsável pela eleição dos magistrados, pelos atos civis e pela repartição de tributos na cidade.31 A seu turno, os árabes, pondo fim à dominação gótica, subjugaram Roma.32 Embora tênues, restaram vestígios que atestam a manutenção do elemento municipal entre os sarracenos, sendo impossível desconhecer que, sob seu jugo, as cidades hispânicas conservaram a sua organização municipal.33 Destaque-se que algumas modificações foram inseridas pelos visigodos e árabes nas então chamadas comunas (municípios): pagamento de tributos (chamados monera) pelos munícipes e criação dos cargos de 28 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 8. 29 BIELSA, Rafael. Principios de regimen municipal. [s.l.]: [s.n.], [s.d.]. p. 39-40 apud CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 8. 30 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal. 8. ed. Paris-Lisboa: Livraria Aillaud & Bertrand; Rio de Janeiro- São Paulo-Belo Horizonte: Livrarias Francisco Alves. p. 30-54. t. VII. Disponível em: <http://purl.pt/12112/3/hg- 26089-p/hg-26089-p_item3/index.html#/48>; <http://purl.pt/12112/4/hg-26089-p/hg-26089-p_item4/hg-26089-p_ PDF/hg-26089-p_PDF_24-C-R0150/hg-26089-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf >. Acesso em: 4 ago. 2015. 31 CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo municipal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 36. 32 A invasão islâmica da Península Ibérica refere-se a uma série de deslocamentos militares e populacionais ocorridos a partir de 711, quando tropas islâmicas oriundas do Norte de África, sob o comando do general Tárique, cruzaram o estreito de Gibraltar, penetraram na península Ibérica, e venceram Rodrigo, o último rei dos visigodos da Hispânia, na batalha de Guadalete. Após a vitória, termina o Reino Visigótico. 33 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal. 8. ed. Paris-Lisboa: Livraria Aillaud & Bertrand; Rio de Janeiro- São Paulo-Belo Horizonte: Livrarias Francisco Alves. p. 30-54. t. VII. Disponível em: <http://purl.pt/12112/3/hg- 26089-p/hg-26089-p_item3/index.html#/48>; <http://purl.pt/12112/4/hg-26089-p/hg-26089-p_item4/hg-26089-p_ PDF/hg-26089-p_PDF_24-C-R0150/hg-26089-p_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf >. Acesso em: 4 ago. 2015. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 48 23/02/2018 09:42:02 49DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL alcaide (oficial de justiça), de alvazil (vereador, camarista) e de almotacé (inspetor de pesos e medidas, encarregado de taxar mercadorias). Nos séculos XI e XII, o feudalismo entra em transformação: o renascimento do comércio e consequente aumento da circulação monetária reabilita a importância social das cidades e suas comunas.34 Com as Cruzadas, esboça-se uma abertura para o mundo, quebrando-se o isolamento do feudo.35 O “espírito comunal” começou a renascer, cabendo à cidade francesa de Mans a primazia de ser a primeira a se revoltar contra o jugo dos barões e restabelecer sua autonomia. Outras cidades na França, na Itália, na Alemanha e nos Países Baixos seguem o exemplo. Assim, o municipalismo europeu foi se solidificando. José Nilo de Castro aponta como suas grandes características “o fato de serem agrupamentos humanos naturais, localizados e em grande número”.36 O municipalismo também encontrou terreno fecundo na Espanha, com os ajuntamientos, e, em Portugal, com os “conselhos de homens bons”, que correspondiam a assembleias que governavam as cidades.37 Assim é que, da crescente reação ao regime feudal, sob patrocínio da realeza, ressurgiu o municipalismo no continente europeu como consequência da união da monarquia, do clero e da burguesia contra a ameaça comum: o feudo. Observa Ivo D’Aquino: “o feudo era, para o Estado, umquisto; para a diocese, uma sombra; para a plebe, um instrumento de opressão”.38 Esse ressurgimento foi motivado e incentivado “pela necessidade da expansão comercial e do exercício desembaraçado dos ofícios, fundamentos sobre os quais a burguesia procurava consolidar a sua emancipação do regime feudal”.39 Nesse período, tendo em vista essa oposição generalizada manifestada contra o regime feudal, os soberanos, as ordens eclesiásticas e os militares passaram a reconhecer e atribuir às populações e aglomerações urbanas os fueros municipais (forais), ou seja, cartas de garantias municipais, pelas quais eram-lhes concedidas independência e autonomia. Assim, as instituições municipais desempenharam papel relevantíssimo para a consolidação do poder real.40 O Renascimento (1450) deu novo impulso ao municipalismo, principalmente na Inglaterra, após 1540, mediante o governo local dos juízes de paz.41 Leciona Paulino Jacques: “os reis, unindo-se aos ‘municípios’, acabaram aniquilando o poder feudal, e, já no século XVI, consolidava-se a autoridade real, sem prejuízo da autonomia municipal”. E acrescenta: “a França também desenvolveu o seu ‘sistema comunal’, apesar da centralização política”.42 34 BURNS, Edward Macnall. História da civilização ocidental. Porto Alegre: Globo, 1979. v. 1. 35 PIRENNE, H. História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1964. 36 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 9. 37 JACQUES, Paulino. Curso de direito constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 106. 38 D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 46. 39 D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 47. 40 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 9. 41 Ressalta José Nilo de Castro que, na Inglaterra, “a variedade e o particularismo eram, também, características desses Municípios” (CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 9). 42 JACQUES, Paulino. Curso de direito constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 106. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 49 23/02/2018 09:42:02 50 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL Celso Ribeiro Bastos assim sintetiza a visão do município durante a Idade Média: O período da Idade Média representou, ao menos nos seus primeiros séculos, um recuo da vida das cidades. O homem volta a dispersar-se pelo campo, fazendo surgir os intrincados laços do feudalismo. As vilas e cidades, todavia, não desaparecem de todo. Passam a ser repositório dos sinais e das materializações das civilizações precedentes. As cidades livres, ao correr dos tempos, vão se tornando os focos dos movimentos tendentes a abolir a organização dos feudos e suas respectivas estruturas sociais.43 2.2.4 O município português Na Península Ibérica o município restou organizado segundo os moldes romanos, até ter suas instituições desarticuladas pela invasão dos suevos, alanos e vândalos. Com sua expulsão no século V pelos visigodos comandados por Alarico, o direito romano voltou a ser utilizado como mecanismo de governo. A estrutura do município romano ficou resguardada no Breviário de Alarico (Lex Romana Visigothorum) que, não só a reproduziu, como alargou o seu campo de atuação. Três fatores contribuíram para a sobrevivência do município no período visigótico, assim enunciados por Ivo D’Aquino: a) a preferência que os conquistadores davam à vida rural, fazendo refluir para as cidades as populações vencidas, temerosas das violências e dos desmandos da soldadesca, disseminada pelos campos; b) a distinção de classes, constituindo os conquistadores uma nobreza feudal, enquanto os vencidos, nas cidades, foram assumindo o aspecto de uma burguesia, em que se acentuava o espírito cada vez maior de união e colaboração, favoráveis à estrutura da coletividade municipal; c) a separação entre o direito romano, que governava os vencidos, e o direito costumeiro, por que se regiam os vencedores, distinção essa que só desapareceu com a promulgação do Código Visigótico,44 no século VII.45 Sob a dominação árabe, o regime municipal não se alterou fundamentalmente na Península Ibérica, apesar de ter recebido influência nos cargos cuja denominação recebeu contornos árabes – alcaides, almotacés e alvazis. Sob a monarquia leonesa, assistiu-se à criação de um município peculiar à Penín- sula Ibérica, misto de instituições marcadas pela herança árabe e de normas predomi- nantemente advindas do direito romano.46 43 BASTOS, Celso Ribeiro. O município: sua evolução histórica e suas atuais competências. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, n. 1, p. 54-58, out./dez. 1992. p. 54-55. 44 No Código Visigótico aparece citado o cargo de “defensores”, instituídos pelos bispos e pelo povo. Também conservaram, com a denominação de “numerários”, os antigos “questores”, com a função de arrecadarem não só as rendas municipais, como também as eclesiásticas. Após a promulgação desse Código, aumentou consideravelmente a influência das autoridades eclesiásticas no regime municipal (D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 119-120). 45 D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 118. 46 Observa Marcelo Caetano que “Em Portugal pode dizer-se que os termos Concelho e Município têm sido considerados sinónimos: o Concelho é a autarquia local que tem por base territorial a circunscrição municipal. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 50 23/02/2018 09:42:02 51DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL Nesse período estabeleceram-se duas formas de concelhos: os “perfeitos”47 e os “imperfeitos” caracterizados, respectivamente, pela existência ou não de magistratura jurisdicional. Leciona Nelson Nery da Costa que tais concelhos, assim como os outros magis- trados, eram escolhidos por um corpo eleitoral formado pelos homens bons, presididos pelos alcaides, como representantes reais, inclusive na área militar, com alçada para nomearem alcaides-mirins, em cidades sob sua jurisdição, sem que nelas tivessem residência.48 O Reino de Portugal, fundado em 1139 a partir do Condado Portucalense, que se tornara autônomo do reino de Leão, herdou a organização municipal existente na Península Ibérica e, através da outorga dos forais ou cartas forais, a monarquia, como forma de fortalecimento do seu poder, passou a autorizar a criação de autogovernos locais. Destaca Alencar Santana Braga que não havia legislação que disciplinasse sua concessão, ressaltando que ela era “fruto da conquista do povo e não mera liberalidade real”. Acrescenta que “foram estas concessões contratuais entre o rei e o povo, nas quais a força popular influía na obtenção de sua carta de liberdade, que fizeram aparecer Concelhos diferenciados em Portugal”.49 No novo reino, os primeiros concelhos (concilium), órgãos locais de governo, surgiram no século XII. À semelhança da antiga Curia romana, eram compostos por um alcaide, representante da autoridade real no concelho com funções administra tivas, judiciais e militares, cabendo-lhe o comando dos castelos e fortalezas;50 juízes (alcaldes, ou alvasís), geralmente em número de dois – embora houvesse magistraturas com quatro ou mais – com funções judiciárias cíveis e criminais, que se aproximavam das Mas, em rigor, tratam-se de noções distintas, pois que há instituições municipais sempre que os próprios vizinhos seremdirectamente, ou por órgãos que os representem, em regra eleitos, os interesses locais. Podem, pois, admitir- se dois conceitos de Municípios: o conceito lato, que identifica o Município com qualquer núcleo populacional em que os órgãos autárquicos sejam constituídos por pessoas que façam parte do respectivo agregado; e o conceito restrito, que limita a designação de Município ao conselho, isto é, à autarquia local cujo território é a circunscrição municipal. É duvidoso porém que o actual Concelho possa ser considerado directo sucessor do Município medieval” (CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina, 1991. p. 316). Acrescenta José Cretella Júnior que o concelho português, por sua vez, classifica-se em urbano, rural e misto, conforme, respectivamente, a maior parte da população esteja concentrada num mesmo centro residencial, aí desempenhando as diferentes espécies de profissões, se dedique ao cultivo do solo ou se distribua entre interesses urbanos e agrários. Explicita, ainda, que “os órgãos da Administração municipal são o Conselho Municipal, a Câmara e o Presidente da Câmara, bem como as Juntas e Comissões Municipais de Turismo, as Comissões de Assistência e os Órgãos Consultivos” (CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo municipal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 39-40). 47 Informa Ivo D’Aquino que “modelaram-se os Concelhos perfeitos, em regra, aos forais de Lisboa ou Santarém. Salamanca e Ávila, mas sem simetria, ou uniformidade, diversificando-se as instituições, de foral a foral (D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 121). Por sua vez, Alencar Santana Braga ressalta que “os Municípios perfeitos foram os que mais resgataram as tradições romanas de organização local” (BRAGA, Alencar Santana. O poder político do município no Brasil colônia. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 12, p. 169- 232, jul./dez. 2008. p. 180). 48 COSTA, Nelson Nery da. História do município no Brasil. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 347, p. 217-230, jul./ set. 1999. p. 217. 49 BRAGA, Alencar Santana. O poder político do município no Brasil colônia. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 12, p. 169-232, jul./dez. 2008. p. 179. 50 A projeção e importância do alcaide dentro da estrutura municipal foram tão significativas que, quando da sua ausência da vila, era nomeado o alcaide-menor ou vice-pretor, substituindo-o, assumindo todas as suas funções em nome do rei (BRAGA, Alencar Santana. O poder político do município no Brasil colônia. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n. 12, p. 169-232, jul./dez. 2008. p. 181). CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 51 23/02/2018 09:42:02 52 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL exercidas no município romano, selecionados entre os homens bons, que deliberavam e julgavam juntamente com o alcaide;51 os homens bons, órgão consultivo do concelho, que deliberavam as questões municipais, selecionavam os magistrados eletivos, participavam do julgamento de determinados casos submetidos ao concelho, colaborando efetiva e ativamente da vida do município; os almotacés (do árabe: almuhtasib – mestre de aferição), que, semelhantes aos edis municipais, desempenhavam funções de policiamento, de fiscalização “de pesos e medidas, conservação de estradas, edificações e de tributos (monera); a reunião dos almotacés, almotaçaria, era um tribunal local, esclarecendo dúvidas fiscais; procuradores, representantes – dois homens bons – do Concelho junto à Corte”.52 Os municípios floresceram nos primórdios da vida portuguesa, na medida em que o rei, envolto em lutas pela hegemonia do poder, não dispunha de meios para fazer valer a sua autoridade em todo o reino. Nessa fase, em que a instituição foi levada ao “seu mais alto padrão funcional”, coube ao município “a tarefa de fixar o povo e manter o território em mãos portuguesas”.53 Seguindo a tendência dos Estados contemporâneos, a autonomia municipal começa a ceder lugar ao centralismo monárquico. Embora as primeiras manifestações de interferência nos negócios locais datem de 1211, com as leis gerais promulgadas por Afonso II, essa tendência se acentuou no século XIV, com a nomeação dos juízes de fora, representantes da Coroa nos concelhos, a quem é atribuída a função de aplicar as leis uniformemente, diminuindo, dessa forma, a jurisdição municipal e provocando, debalde, forte reação popular contra a figura desse agente. A criação desse cargo personalizou o centralismo e o controle do monarca sobre as instituições municipais. Nesse cenário, as ordenações surgem como o desfecho vitorioso do grande embate político travado pelo estado português a fim de obter um regime jurídico geral, “sobrepondo a homogeneidade de um corpo de leis tão completo quanto possível à heterogeneidade do direito local, consuetudinário e lacunoso”.54 As Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446,55 assumindo as feições de um código compilador de leis gerais e esparsas e não de um código reformador, introduziram significativas modificações no regime português, alterando a estrutura e competência dos municípios. Essas alterações, já consagradas pelo uso, encontraram nas Ordenações Afonsinas o amparo necessário ao novo contexto. 51 Ivo D’Aquino alerta para a necessidade de não se confundir “alcaides” com “alcaldes”. Os primeiros eram magistrados com funções civis, tendo jurisdição no município, como delegados do rei, tomando parte nos concelhos, nos quais exerciam a autoridade civil e a militar. Competia-lhes a execução das sentenças dos tribunais locais. Já os “alcaldes” exerciam a magistratura municipal, “assistidos quase sempre pelos alcaides e, em alguns casos pelos ‘homens bons’; tinham competência criminal, para o julgamento de delitos entre vizinhos do mesmo Concelho e competência civil, nas questões de propriedades não privilegiadas”. Competia-lhes o cumprimento das “deliberações dos Concelhos, relativas à administração e economia interna das cidades e vilas” (D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 122-123). 52 FERRARI, Célson. Curso de planejamento municipal integrado. São Paulo: Pioneira, 1977. p. 279-280 apud CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 10. V. também D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 121-122. 53 ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948. p. 16. 54 ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948. p. 17. 55 Promulgada durante o reinado de D. Afonso V, a elaboração das Ordenações Afonsinas iniciou-se no governo D. João I e atravessou o de D. Duarte. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 52 23/02/2018 09:42:02 53DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL Em seus títulos 26 e 29 foi compendiada a legislação destinada a reger as Câmaras, que passaram a ser compostas pelos vereadores, pelos juízes ordinários e pelos procuradores do concelho, todos eleitos pelo povo, através do concelho de homens bons. Nessa estrutura, a figura dos vereadores assumiu inúmeras funções antes da alçada dos homens bons. Assim, substituiu-se a participação direta do povo nas questões do concelho, até então efetivada através da atuação dos homens bons na administração e nas reuniões importantes para a vida local, pela indireta. Os almotacés tiveram sua importância reduzida dentro do quadro de magistrados municipais. Aos juízes passou a competir a jurisdiçãocontenciosa, embora limitada pelos funcionários do poder central; aos vereadores, a função administrativa; e aos homens bons, a função “de votar, de organizar róis, de assistir com a sabedoria de sua experiência nas questões mais pesadas”, não mais vigorando “o costume de assembleias populares para todas as reuniões nas quais os homens bons tinham o voto de importância, de decisão”.56 Outro efeito produzido pelas Ordenações Afonsinas diz respeito à uniformização do município para todo o reino. Se antes cada concelho tinha seu foral, que disciplinava seus direitos e garantias de maneira distinta uma da outra, acarretando a existência de diversos tipos de municípios, as Ordenações vieram pôr termo a essa diversidade. A esse respeito, se expressa João Martins de Carvalho Mourão: à parte a substituição do Concelho dos homens bons pelo Concelho dos vereadores – seus representantes – e a redução de todos os Municípios do reino a um tipo uniforme, a organização era em substância a mesma que vigorava para os Concelhos de Santarém, Ávila e Salamanca.57 As Ordenações Afonsinas perduraram do século XII ao início do século XVI, quando, reformuladas durante o reinado de D. Manuel (1495-1521), deram origem às Ordenações Manuelinas, publicadas em 1521 e mantidas em vigor até 1603, quando passaram a viger as Ordenações Filipinas. As Ordenações Manuelinas, sem produzir expressivas modificações na organização municipal estabelecida nas Afonsinas, limitaram as competências municipais, jungindo os concelhos ao poder central, impedindo-os de dispor sobre seus bens ou, sequer, aforá-los. As Ordenações Filipinas, de 1595, deram “nova feição às municipalidades portu- guesas e brasileiras, que passaram a ter caráter eminentemente administrativo”.58 59 Prosseguindo no processo de centralização, as funções judiciais ficaram reduzidas aos casos de menor importância, usualmente destinados aos tribunais locais, ou seja, coube às Câmaras a competência primária para julgar casos de pequenos furtos criminais e de injúrias verbais. 56 ZENHA, Edmundo. O município no Brasil: 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948. p. 18. 57 MOURÃO, João Martins de Carvalho. Os municípios: sua importância política no Brasil Colonial e no Brasil Reino. Situação em que ficaram no Brasil Império pela Constituição de 1824 e pelo Ato Adicional. Rio de Janeiro: IHGB, 1914. p. 307. v. 3. 58 D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p.124. 59 Nas Ordenações Filipinas, o Concelho é objeto do Título LXV, no qual vem disciplinada a atividade dos juízes ordinários e de fora, até o Título LXXII, destinado ao escrivão da almotaceria. Disponível em: <http://www1.ci.uc. pt/ihti/proj/filipinas/l1ind.htm>. Acesso em: 10 ago. 2015. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 53 23/02/2018 09:42:02 54 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL As Câmaras eram constituídas por um presidente, cargo ocupado pelo juiz de fora, nas municipalidades em que este tinha sede; três vereadores (em alguns concelhos, quatro) com atribuição administrativa e mandato imperativo de três anos; um procurador, que tinha atribuições fiscalizadoras dos assuntos administrativos; dois almotacéis, com funções de polícia local, inclusive zelando pela higiene, segurança, pesos e medidas e outras; e um escrivão. Em certas Câmaras havia ainda dois juízes ordinários, escolhidos por esta, além de tesoureiro, síndico e outros funcionários nominados “oficiais da Câmara”.60 Assim, em Portugal, as instituições municipais sofreram o impacto das trans- formações dos documentos legislativos portugueses. Sentencia José Nilo de Castro: As Ordenações Afonsinas (1446), absorvendo a figura dos juízes de fora nos Conselhos, foram, na matéria de enfraquecimento, senão desprestígio, da instituição municipal seguidas pelas Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), perdendo as Comunas sua vitalidade e vigor, com reduzidas ações administrativas e escassas funções judiciais, senão sua retirada, rapidamente.61 2.3 O município no ordenamento jurídico brasileiro 2.3.1 Período colonial O modelo municipal português, regido pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, foi implantado no Brasil-Colônia e manteve-se nos mesmos moldes e com as mesmas atribuições políticas, administrativas e judiciais vigentes na Metrópole até a Constituição de 1824, primeira após a independência do país. A estrutura municipal portuguesa transposta para o Brasil neste período colonial era fundada nos concelhos62 que, já no início da colonização, foram transformados em Câmaras, as quais tinham, na sua composição, um presidente, três vereadores, dois almotacéis e um escrivão como encarregados administrativos. Serviam ainda junto à Câmara um juiz de fora vitalício e dois juízes comuns, eleitos com os vereadores.63 Assim, tendo como motivação os interesses colonialistas da Metrópole, e sua origem nas comunas portuguesas, nasceu a administração da primeira vila brasileira, a de São Vicente, em 1532, seguida por Olinda, Santos, Salvador, Santo André de Borda do Campo, São Paulo e Rio de Janeiro. A Vila de São Vicente marcou o início da República Municipal Brasileira, formando “o primeiro governo local autônomo das Américas”.64 Visando garantir a dependência da Colônia, adotou-se a descentralização como política de colonização, o que justificou a instituição das capitanias, cujo caráter cen tra- lizador restringiu a expansão municipalista produzida inicialmente. Entretanto, mesmo 60 COSTA, Nelson Nery da. História do município no Brasil. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 347, p. 217-230, jul./ set. 1999. p. 218. Ver também D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 124-125. 61 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 10. 62 Organização política das comunidades locais em Portugal. 63 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 36. 64 GODOY, Mayr. A câmara municipal. 2. ed. São Paulo: Leud, 1989. p. 10. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 54 23/02/2018 09:42:02 55DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL assim, os municípios, através de suas Câmaras, buscando autonomia e independência administrativa da Metrópole e apoiados pela Igreja, desenvolveram-se e lograram ter decisiva participação na transformação política da época, através da realização de im- portantes obras e do desempenho de “relevantes atribuições de governo, de adminis- tração e de justiça”.65 Complementa Hely Lopes Meirelles: Realizavam obras públicas, estabeleciam posturas, fixavam taxas, nomeavam juízes- almotacéis, recebedores de tributos, depositários públicos, avaliadores de bens penhorados, alcaides-quadrilheiros, capitães-mores de ordenanças, sargentos-mores, capitães-mores de estradas, juízes da vintena e tesoureiros-menores. Julgavam injúrias verbais e, não raras vezes, num incontido extravasamento de poder, chegaram essas Câmaras a decretar a criação de arraiais, a convocar ‘Juntas do Povo’ para discutir e deliberar sobre interesses da Capitania, a exigir que governadores comparecessem aos seus povoados para tratar de negócios públicos de âmbito estritamente local, a suspender governadores de suas funções e até mesmo depô-los, como fez a Câmara do Rio de Janeiro com Salvador Correia de Sá e Benevides, substituído por Agostinho Barbalho Bezerra. Essa situação perdurou até a Independência, quando a Constituição Imperial de 1824 deu novas diretrizes às Municipalidades brasileiras.66 Vale ressaltar que, num país de vasto território e com baixíssima densidade demo- gráfica, o município representavaa congregação de várias microssociedades constituídas pelas fazendas de produção agropecuária e de plantação de cana-de-açúcar e de café. A pouca população existente dispersa na área rural buscava nas Câmaras, dominadas pelos senhores dos latifúndios, a proteção de seus direitos e interesses. Dessa forma, as Câmaras em muito extrapolavam as atribuições que lhes fixavam as Ordenações. Pondera Andreas Joachim Krell: A vastidão do país e as dificuldades para o transporte e a comunicação daí resultantes levaram necessariamente a uma concentração do poder político fático nos governos municipais. Eles constituíam verdadeiros centros de autoridade local, subordinados, em tese, ao governo-geral da capitania, mas, no decorrer do tempo, a maioria deles acabou se tornando praticamente autônomo, perfeitamente independente do poder central. Foi por isso que o Imperador Dom Pedro I fez questão que as Câmaras Municipais aprovassem solenemente a primeira Constituição do Brasil de 1824, para que a Magna Carta da Independência ganhasse mais legitimidade política. A base do Município brasileiro, portanto, não é a cidade, como foi na Europa, mas a propriedade rural.67 65 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. 66 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. 67 KRELL, Andreas Joachim. Autonomia municipal no Brasil e na Alemanha: uma visão comparativa. Revista Jus Navigandi, Teresina, n. 37, dez. 1999. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/1557>. Acesso em: 13 jul. 2015. Grifos no original. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 55 23/02/2018 09:42:02 56 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL 2.3.2 Constituição de 1824 (Brasil Império) 68 Com a Constituição do Império, datada de 25.3.1824, a instituição municipal passou a ter foro constitucional. A prévia aprovação das Câmaras municipais brasileiras à Carta de 1824, ante- cedendo a outorga imperial, foi valorizada no seu preâmbulo como representativa das aspirações do povo,69 constituindo-se, possivelmente, no fator que motivou as disposições genéricas e amplas acerca das Câmaras constantes no Título 7º, Capítulo II, arts. 167 a 169 da Constituição do Império. Assim é que, sinalizando no sentido de valorização dos municípios e de fortalecimento da instância local, foi destinado trata mento especial às Câmaras municipais, estabelecendo-se, em seu art. 167, que “em todas as cidades e vilas ora existentes, e nas mais que para o futuro se criarem, haverá Câmaras, às quais compete o governo econômico e municipal das cidades e vilas”.70 O Texto Constitucional procurou resguardar o caráter eletivo das Câmaras, ficando a presidência delas nas mãos do vereador detentor do maior número de votos (art. 168).71 Determinou, por fim, que lei regulamentar decretaria “o exercício de suas funções muni cipais, formação das suas posturas policiais, aplicação das suas rendas, e todas as suas particulares e úteis atribuições” (art. 169). Via de consequência, foi expedida em 1º.10.1828 a Lei Regulamentar nº 28, denominada Regimento das Câmaras Municipais, que veio dar nova forma às Câmaras municipais, delimitando suas atribuições e delineando o processo pelo qual eram eleitos os vereadores e os juízes de paz. José Nilo de Castro sintetiza o teor desse diploma legal: Com 90 artigos, a Lei n. 28 é o documento legislativo, primeiro e básico, no qual se organizou a Administração Municipal no Brasil-Império, quanto à formação política das Câmaras (Título I, arts. 1º a 23), suas funções (Título II, arts. 24 a 65), como corporações meramente administrativas, não exercendo jurisdição contenciosa alguma, o que lhes descaracterizou a autonomia; as posturas municipais (Título III, arts. 66 a 73), incidindo sobre o respeito à polícia (administrativa) e à economia das povoações. Economia aqui significa a exata compreensão etimológica, aikos + nomos, do grego, que quer dizer, lei da casa, interesse peculiar das povoações, não a economia com o significado que tem hoje. A versão constitucional “governo econômico” (art. 167) traduzia essa acepção. O elenco dos encargos, sob o título de Posturas municipais, não era despiciendo; aliás, significativo. A aplicação das rendas (Título IV, arts, 74 a 78), destinadas pelo Conselho Geral da Província às Câmaras, 68 A Assembleia Constituinte para a elaboração da Constituição de 1824 não conseguiu levar a bom termo seus trabalhos em função de desavenças com o Imperador D. Pedro I, que acabou por dissolvê-la. Criou-se um Conselho de Estado que foi incumbido de elaborar um novo projeto. A dissolução da Constituinte provocou movimentos revolucionários, em especial em Pernambuco, onde se proclamou a Confederação do Equador (em 2.7.1824), e no Rio Grande do Sul, onde se proclamou a República Piratinim, ambas derrotadas. A Carta foi outorgada e fortaleceu sobremaneira o poder imperial: estabeleceu o Poder Moderador como quarto poder e conferiu amplos poderes ao Rio de Janeiro, em detrimento das províncias (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002. p. 157 e ss.). 69 PACHECO, Cláudio. Tratado da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965. p. 227. v. III apud COSTA, Nelson Nery da. História do município no Brasil. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 347, p. 217-230, jul./ set. 1999. p. 220. 70 CONSTITUIÇÃO política do império do Brasil: carta de lei de 25 de março de 1824. Casa Imperial do Brasil. Disponível em: <http://www.monarquia.org.br/pdfs/constituicaodoimperio.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2015. 71 “Art. 168. As câmaras serão eletivas e compostas do número de vereadores que a lei designar, e o que obtiver maior número de votos será presidente”. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 56 23/02/2018 09:42:02 57DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL situação esta que lhes negava autonomia também, e, por fim, a estrutura funcional de seu pessoal, chamado empregados (Título V, arts. 79 a 90), como o procurador (afiançado por si mesmo ou por pessoa idônea na proporção de suas rendas), para diversas atribuições (art. 81), como as de arrecadar e aplicar as rendas do Conselho, demandar perante os Juízes de Paz a execução das posturas e a imposição das penas, defender os direitos da Câmara perante a Justiça ordinária, recebendo seis por cento de tudo quanto arrecadasse. Outros empregados, nomeados pela Câmara: fiscais e suplentes, secretário e porteiro.72 Observa também que, entre os “vários defeitos da Lei n. 28, destacava-se a falta de separação das funções deliberativas das executivas”.73 Salienta Victor Nunes Leal que a separação do exercício das atribuições admi- nistrativas e judiciais representava um avanço técnico, no sentido de uma melhor organização das funções do serviço público. Contudo, a subtração de funções das Câmaras promovida por essa lei limitava sua autonomia e contribuía para a diminuição da ativi dade política nos municípios. As Câmaras, pelo diploma de 1828, ficaram subme- tidas a um rígido controle exercido pelos conselhos gerais, pelos presidentes de província e pelo Governo Geral, controle esse denominado “doutrina da tutela”.74 Esclarece Hely Lopes Mereilles: Nem assim ficaram as Municipalidades aptas a uma boa administração, porque a Lei Regulamentar de 1828, que uniformizara toda a organização dos Municípios, não lhes dava órgãos adequados às suas funções. Não havia um agente executivo próprio do Município; exercia parcialmente essas atribuições o procurador, que era mero empregado da Câmara (art. 80). Afora o procurador, cuja atribuição principal era a de arrecadar e aplicar as rendas do Conselho e postular em nome da Câmara perante os juízes de paz (art. 81), integravam- na nove vereadores,um porteiro e um ou mais fiscais de suas posturas, e respectivos suplentes (arts. 82 e 83).75 Configurada a fragilidade da autonomia dos municípios durante o período do 1º Império, sucedeu-se um período de tentativas de descentralização. A primeira figurou no Código de Processo Criminal, de 1832, que, ao atribuir funções relevantes aos juízes de paz, eleitos pelos munícipes, elevou a importância da esfera municipal no Império. A segunda traduziu-se no Ato Adicional de 1834,76 lei de influxo federalista em nível provincial, que, ao reformar a Constituição Imperial de 1824, gerou efeitos des- centralizadores em relação às províncias, porém, relativamente aos municípios, produziu efeito contrário, pois, ao subordinar as municipalidades às assembleias legislativas provinciais em questões de exclusivo interesse local (art. 10),77 transferiu a tutela antes 72 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p.13-14. 73 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 14. 74 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 46. Disponível em: <http://pt.slideshare.net/LuizrodriguesRodrigues/ victor-nunes-leal-coronelismo-enxada-e-voto>. Acesso em: 14 jul. 2015. Deu-se o nome de doutrina da tutela à concepção pela qual os municípios eram comparados às pessoas civis de capacidade limitada e, por conseguinte, deveriam ter competência limitada. 75 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 38. 76 Lei nº 16, de 12.8.1834. 77 “Art. 10. Compete às mesmas Assembleias legislar: CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 57 23/02/2018 09:42:03 58 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL exercida pelos presidentes, conselhos gerais, ministro do Império e Parlamento para as assembleias provinciais então criadas.78 Assim, por força do Ato Adicional as municipalidades viram-se reduzidas a meras circunscrições administrativas,79 simples executoras das deliberações das assembleias provinciais e dos presidentes das províncias agentes do Poder Central. Registre-se que, na organização dos municípios, inexistia o cargo de prefeito, cargo esse criado apenas em 11.4.1835, na Província de São Paulo, através da Lei nº 18, “com o caráter de delegado do Executivo, e de nomeação do presidente da Província”.80 Esse sistema foi bem aceito pela Regência que, através do decreto de 9.12.1835, estendeu-o às demais províncias do Império. Na tentativa de minimizar os efeitos advindos do Ato Adicional, foi editada a Lei nº 105, de 12.5.1840, conhecida como “Lei Interpretativa”, com normas que procuravam dar uma interpretação mais ampla a artigos do Ato Adicional, de modo a restituir alguma autonomia ao município.81 1º) Sobre a divisão civil, judiciária e eclesiástica da respectiva Província e mesmo sobre a mudança da sua Capital, para o lugar que mais convier. 2º) Sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, não compreendendo as faculdades de medicina, os cursos jurídicos, academias atualmente existentes e outros quaisquer estabelecimentos de instrução que, para o futuro, forem criados por lei geral. 3º) Sobre os casos e a forma por que pode ter lugar a desapropriação por utilidade municipal ou provincial. 4º) Sobre a polícia e economia municipal, precedendo propostas das Câmaras. 5º) Sobre a fixação das despesas municipais e provinciais, e os impostos para elas necessários, contanto que estes não prejudiquem as imposições gerais do Estado. As Câmaras poderão propor os meios de ocorrer às despesas, dos seus Municípios. 6º) Sobre a repartição da contribuição direta pelos Municípios da Província, e sobre a fiscalização do emprego das rendas públicas provinciais e municipais, e das contas de sua receita e despesa. As despesas provinciais serão fixadas sobre orçamento do Presidente da Província, e as municipais sobre orçamento das respectivas Câmaras. 7º) Sobre a criação, supressão e nomeação para os empregos municipais e provinciais, e estabelecimentos dos seu ordenados. São empregos municipais e provinciais todos os que existirem nos Municípios e Províncias, à exceção dos que dizem respeito à arrecadação e dispêndio das rendas gerais, à administração da guerra e marinha e dos correios gerais; dos cargos de Presidente de Província, bispo, comandante superior da guarda nacional, membro das relações e tribunais superiores e empregados das faculdades de medicina, cursos jurídicos e academias, em conformidade da doutrina do §2º deste artigo. 8º) Sobre obras públicas, estradas e navegação no interior da respectiva Província, que não pertençam à administração geral do Estado. 9º) Sobre construção de casas de prisão, trabalho, correição e regime delas. 10) Sobre casas de socorros públicos, conventos e quaisquer associações políticas ou religiosas. 11) Sobre os casos e a forma por que poderão os Presidentes das Províncias nomear, suspender e ainda mesmo demitir os empregados provinciais”. 78 PREDIGER, Carin. O município brasileiro e seu papel até 1988. Disponível em: <http://www.amdjus.com.br/ doutrina/administrativo/165.htm>. Acesso em: 14 jul. 2015. 79 PIRES, Maria Coeli Simões. Autonomia municipal no Estado brasileiro. Revista de Informação Legislativa Brasília, ano 36, n. 142, abr./jun. 1999. p. 146. 80 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 38. 81 A partir de então, ficou esclarecido que a possibilidade de as assembleias legislarem acerca da polícia administrativa e da economia municipais teria como necessário precedente proposta das Câmaras (art. 1º). O art. 2º daquele diploma, por sua vez, tratou de limitar a faculdade das assembleias de criar e suprimir cargos municipais (§7º do art. 10 do Ato Adicional de 1834) somente no que dizia respeito ao seu número (PREDIGER, Carin. O município brasileiro e seu papel até 1988. Disponível em: <http://www.amdjus.com.br/doutrina/administrativo/165.htm>. Acesso em: 14 jul. 2015). A íntegra da Lei Interpretativa pode ser obtida em: <http://www2.camara.leg.br/legin/ fed/lei/1824-1899/lei-105-12-maio-1840-532610-publicacaooriginal-14882-pl.html>. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 58 23/02/2018 09:42:03 59DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL Embora tenham sido elaborados muitos projetos “de reforma da administração municipal, com ampliação de órgãos e concessão de franquias aos governos locais”,82 o regulamento de 1828 seguiu em vigor até 1889 de forma que, durante o período do Brasil Império, o país “não chegou a ter governo municipal autônomo, pois toda a evolução política e jurídica na questão direcionou-se para as Províncias”, como pontifica José Nilo de Castro.83 2.3.3 Constituição de 1891 (Brasil República) As discussões da Assembleia Constituinte, convocada pelo Marechal Deodoro ao assumir o governo provisório,84 culminaram com a promulgação da nova Constituição em 24.2.1891, com o estabelecimento da forma de governo republicana, sistema de governo presidencial e forma de Estado federal. Dedicou o seu Título III à instituição municipal (Do Município), prescrevendo que os estados deveriam se organizar de forma a que ficasse assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeitasse ao seu peculiar interesse (art. 68), constituindo o primeiro registro, em texto constitucional, do princípio da autonomia municipal.85 86 Assinala Carin Prediger: O projeto original, formulado pela comissão de juristas, continha, em seu art. 81, norma segundo a qual o regime municipal seria organizado por lei do Estado, assegurada a sua autonomia em assuntos de seu peculiar interesse, e a eleição de seus funcionários. As emendaspropostas por Rui Barbosa, cuja formulação praticamente foi repetida pelo projeto do governo provisório, retiraram a determinação da organização do Município segundo lei do Estado. Estabelecia, assim, que os Estados se organizariam por suas leis, sob o regime municipal, com base na autonomia municipal, eletividade da administração local e organização do Município no Distrito Federal, mediante lei do Congresso. Percebe-se daí que o texto definitivo foi bem mais enxuto, assegurando expressamente a autonomia, fazendo uso de conceito jurídico indeterminado (“peculiar interesse”), e deixando de nele fazer constar a eletividade da administração local. 82 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 38. 83 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 15. 84 A família imperial partiu para o exílio, a Assembleia do Império foi dissolvida, os governantes das províncias depostos. 85 CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 15. 86 Segundo Nelson Nery da Costa, “o Governo Provisório procurou fundar a autonomia municipal em bases efetivas, através do Decreto nº 510, de 22 de julho de 1890, ao determinar que os Estados se organizassem por suas leis, sob o regime municipal, baseada na sua autonomia, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse e na eletividade da administração local. Houve forte reação da bancada positivista, na Assembleia Constituinte, conclamando pela liberdade que os Estados-membros deveriam ter para se organizarem como melhor lhes aprouvesse. Disto resultou a econômica solução adotada no texto constitucional, de 1891, através da emenda Lauro Sodré, que dispunha apenas que ‘os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse’ (art. 68)” (COSTA, Nelson Nery da. História do município no Brasil. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 347, p. 217-230, jul./set. 1999. p. 222-223). Reza o art. 67: “Os Estados organizar-se-ão por leis suas, sob o regime municipal, com estas bases: 1º. Autonomia do Município, em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse; 2º Electividade da administração local. Parágrafo único. Uma lei do Congresso organizará o município no Distrito Federal”. Estatui o art. 68: “Nas eleições municipais serão eleitores e elegíveis os estrangeiros residentes, segundo as condições que a lei de cada Estado prescrever”. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 59 23/02/2018 09:42:03 60 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL A exceção à autonomia local constava no art. 67, combinado com o art. 34, nº 30, tendo em vista a atribuição de competência privativa do Congresso Nacional para legislar sobre a organização municipal do Distrito Federal, e sobre serviços nele reservados para o governo da União.87 Plasmadas na Constituição Federal, para garantir aos municípios a autonomia, as constituições estaduais concederam aos respectivos municípios uma maior ou menor amplitude na administração. As leis orgânicas reafirmaram o princípio e discriminaram as atribuições municipais, porém, tal autonomia não passou do plano teórico, revestindo- se de um caráter meramente nominal, pois, na prática, o centralismo político, tendo como contrapartida o coronelismo, que transformava os municípios em feudos privados, vigorou de forma inconteste,88 como demonstra Hely Lopes Meirelles: “Os prefeitos eram eleitos ou nomeados de acordo com o Governo estadual, como o representante do coronel local. O resultado das eleições expressava o desejo dos ‘coronéis’, num contexto de completa ausência de garantias democráticas”.89 Ainda assim, esse período revestiu-se de importância para os municípios, pois é ao final do século XIX e início do XX, que se observa um significativo crescimento urbano acompanhado de um considerável aumento populacional, que passaram a exercer pressão sobre o poder constituído a fim de que ele reconhecesse o papel dos municípios e desse uma resposta às frequentes demandas advindas do aumento populacional nas cidades e da complexidade das relações sociais, econômicas e políticas decorrentes desse novo contexto. A resposta veio sob a capa da Reforma Constitucional de 1926 (emenda consti- tucional de 3.9.1926) que, ao alterar o art. 6º da Constituição vigente, acerca da intervenção federal nos estados-membros, erigiu a autonomia municipal a princípio constitucional. Reza esse dispositivo: Substitua-se o art. 6º da Constituição pelo seguinte: O Governo federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo: [...] II - para assegurar a integridade nacional e o respeito aos seguintes princípios consti- tucionais: [...] f) a autonomia dos Municípios. Na sequência, o Governo Provisório instaurado após a Revolução de 1930, através do Decreto nº 19.398, de 11.11.1930, “suspendeu a autonomia municipal, em 87 PREDIGER, Carin. O município brasileiro e seu papel até 1988. Disponível em: <http://www.amdjus.com.br/ doutrina/administrativo/165.htm>. Acesso em: 14 jul. 2015 88 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 39. Ressalta o autor: “Durante os 40 anos em que vigorou a Constituição de 1891 não houve autonomia municipal no Brasil. O hábito do centralismo, a opressão do coronelismo e a incultura do povo transformaram os Municípios em feudos de políticos truculentos, que mandavam e desmandavam nos ‘seus’ Distritos de influência, como se o Município fosse propriedade particular e o eleitorado um rebanho dócil ao seu poder” (MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 39). 89 A esse respeito v. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Disponível em: <http://pt.slideshare.net/LuizrodriguesRodrigues/ victor-nunes-leal-coronelismo-enxada-e-voto>. Acesso em: 14 jul. 2015. Grifos no original. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 60 23/02/2018 09:42:03 61DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL relação à eletividade dos cargos políticos, tornando os prefeitos de livre nomeação dos interventores federais nos Estados-membros e dissolvendo as Câmaras, para substituí- las por um conselho consultivo”.90 91 2.3.4 Constituição de 1934 (Segunda República) A crise política e econômica mundial – como a de 1929 – que antecedera a entrada em vigor da Constituição Federal de 1934, repercutiu intensamente no Brasil em face da queda do preço do café. O mundo assistia à ascensão de sistemas totalitários de governo, como o fascismo e o nacional-socialismo. No Brasil a “política do café com leite”, que garantia a São Paulo e Minas Gerais a alternância no poder, foi desrespeitada quando, em 1930, o Presidente Washington Luís escolheu mais um paulista, Júlio Prestes, para sucedê-lo. A oligarquia mineira se insurgiu, aliando-se aos fluminenses, gaúchos e a políticos de outros estados do Nordeste, formando a Aliança Liberal em torno da candidatura de Getúlio Vargas. A derrota da Aliança Liberal, aliada à persistência da desordem no país em meio à grave situação econômica instaurada, culminou na Revolução de 1930, que depôs o Presidente Washington Luís em 24.10.1930, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e pôs fim à República Velha, assumindo a chefia do “Governo Provisório” (1930- 1934) Getúlio Vargas, em 3 de novembro do mesmo ano. Através do Decreto nº 19.398, de 11.11.1930, Getúlio Vargas, utilizando-se de métodos arbitrários e antidemocráticos, assumiu o exercício dos poderes Executivo e Legislativo, instalou interventorias estaduais,92 que passaram a controlaros governos estaduais, pondo fim à nascente democracia brasileira. Frente a esse contexto, surgiram, a partir de São Paulo, focos de resistência em favor da redemocratização do país, desembocando na Revolução Constitucionalista, que, apesar do insucesso militar, sagrou-se vencedora do ponto de vista político, pois compeliu Getúlio Vargas a assentir na elaboração de uma nova Constituição, promulgada em 16.7.1934.93 90 O Decreto nº 19.398, de 11.11.30, dispunha: “Art. 11. O Governo Provisório nomeará um interventor federal para cada Estado, salvo para aqueles já organizados; em os quais ficarão os respectivos presidentes investidos dos Poderes aqui mencionados. [...] §4º O interventor nomeará um prefeito para cada Município, que exercerá aí todas as funções executivas e legislativas, podendo o interventor exonerá-lo quando entenda conveniente, revogar ou modificar qualquer dos seus atos ou resoluções e dar-lhe instruções para o bom desempenho dos cargos respectivos e regularização e eficiência dos serviços municipais” (DECRETO nº 19.398, de 11.11.30. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11- novembro-1930-517605-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 15 jul. 2015). 91 COSTA, Nelson Nery da. História do município no Brasil. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 347, p. 217-230, jul./ set. 1999. p. 223-224. 92 Todos os governadores de estado foram destituídos e substituídos por interventores federais, escolhidos, preponderantemente, entre os tenentes que apoiaram o Golpe de Estado e seguiam incondicionalmente as determinações de Getúlio Vargas. 93 Referida Constituição “era analítica, contendo mais do dobro das disposições presentes na de 1891. Foi ela fortemente influenciada pela Constituição de Weimar, alemã, e pelo fascismo, conquanto trouxesse, à época, um grande avanço do País para o chamado Estado Social” (MASCARENHAS, Paulo. Manual de direito constitucional. Salvador, 2010. p. 35. Disponível em: <http://www.paulomascarenhas.com.br/ManualdeDireitoConstitucional. pdf>. Acesso em: 22 jul. 2015). CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 61 23/02/2018 09:42:03 62 CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, GILMAR FERREIRA MENDES (COORDS.)TRATADO DE DIREITO MUNICIPAL Tal Constituição “teve para o Municipalismo o sentido de um renascimento”.94 Anticentralizadora, resgatou o princípio federativo e reinstaurou a autonomia dos estados e municípios. Ao amparo do Poder Central, alicerçada no critério do peculiar interesse e rati- ficada constitucionalmente, pretendeu restabelecer e ampliar a autonomia municipal95 nas esferas política, econômica-tributária e administrativa: no plano político, pela garantia da eletividade do prefeito e dos vereadores; no âmbito financeiro, por meio da previsão de rendas próprias para o município através da outorga de competência tributária para decretação de seus impostos e, por fim, pela capacidade organizatória de seus serviços, intensamente resguardada contra a interferência do Estado (art. 13).96 O texto constitucional reflete a certeza de que ao município não bastava a auto- nomia política relacionada à elegibilidade dos representantes locais, conforme precei- tuava a Constituição de 1891, mas impunha-se acrescentar-lhe a autonomia financeira, as receitas próprias, de modo a ampliar a substância da autonomia.97 A Carta Política de 1934 pormenorizou, em matéria tributária, as rendas perten- centes às municipalidades, assim especificando-as: imposto de licenças; imposto predial e territorial urbano; imposto sobre diversões públicas; imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais; taxas sobre serviços municipais (art. 13, §2º, I a V). Definiu, ainda, a parte dos impostos arrecadados pela União e estados cabível aos municípios, conforme arts. 8º, §2º, e 10, parágrafo único.98 Ressalta Hely Lopes Meirelles que “pela primeira vez uma Constituição descia a tais minúcias para resguardar um princípio tão decantado na teoria quanto esquecido na prática dos governos anteriores”.99 O princípio da autonomia municipal também pode ser observado no contido no art. 116, que resguardava “os serviços municipalizados ou de competência dos Poderes locais” da ação monopolizadora da União de certas atividades, mesmo quando envolto o interesse público. Prescreve o art. 116: Por motivo de interesse público e autorizada em lei especial, a União poderá monopolizar determinada indústria ou atividade econômica, asseguradas as indenizações devidas, conforme o art. 112, nº 17, e ressalvados os serviços municipalizados ou de competência dos Poderes locais. 94 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 40. 95 Ivo D’Aquino observa que, apesar de ter sido consagrada como princípio constitucional na Constituição de 1934 (art. 7º, inc. I, “d”), a autonomia municipal não era política, mas “apenas administrativa e condicionada às regras constitucionais e aos limites que lhe impusessem os Estados, respeitadas aquelas normas” (D’AQUINO, Ivo. O município: sua conceituação histórica e jurídico-constitucional. Florianópolis: Imp. Oficial do Estado de Santa Catarina, 1940. p. 154). 96 Registre-se, que, excetuando o contido no art. 13, referida Constituição já previa a nomeação do prefeito das capitais e das estâncias hidrominerais pelo governo do estado. “Art. 13 [...] §1º. O Prefeito poderá ser de nomeação do Governo do Estado no Município da Capital e nas estâncias hidrominerais”. 97 SILVA, André Carlos da. Estado federal e poder municipal. Prismas: direito, políticas públicas e mundialização, Brasília, v. 6, n. 2, p. 351-378, jul./dez. 2009. p. 358. 98 Nos termos do §2º do art. 8º, “o imposto de indústrias e profissões será lançado pelo Estado e arrecadado por este e pelo Município em partes iguais”; e, de acordo com o parágrafo único do art. 10, “a arrecadação dos impostos a que se refere o número VII será feita pelos Estados, que entregarão, dentro do primeiro trimestre do exercício seguinte, trinta por cento à União, e vinte por cento aos Municípios de onde tenham provindo. Se o Estado faltar ao pagamento das cotas devidas à União ou aos Municípios, o lançamento e a arrecadação passarão a ser feitos pelo Governo federal, que atribuirá, nesse caso, trinta por cento ao Estado e vinte por cento aos Municípios”. 99 MEIRELLES, Hely Lopes; DALLARI, Adilson Abreu (Coord.). Direito municipal brasileiro. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 40. CarlosValder_TratadoDeDireitoMunicipal_MIOLO.indd 62 23/02/2018 09:42:03 63DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTIORIGEM E EVOLUÇÃO DO MUNICÍPIO NO BRASIL Não obstante, a autonomia municipal restava limitada nos §§1º, 3º e 4º do art. 13. Apesar da previsão de eleições, havia a hipótese de nomeação do prefeito no município da capital e das estâncias hidrominerais pelo governador do estado (§1º). O §3º, ao facultar ao estado a criação de um órgão que prestasse assistência técnica à Administração municipal e fiscalizasse as suas finanças, colocava esta em situação de dependência em relação àquele. A previsão de intervenção do estado nos municípios para regularizar suas finanças em caso de atraso nos empréstimos que tivessem a garantia do estado, ou em caso de “falta de pagamento da sua dívida fundada por dois anos consecutivos” (§4º), veio reforçar referida limitação. Victor Nunes Leal observa que a atribuição fiscalizadora contida no §3º, do art. 13 provocou acesos debates na Assembleia, trazendo à colação a posição do constituinte Daniel de Carvalho: “denominado de assistência técnica e fiscalização financeira”, reduziria “a nada” o Município, que daí por diante não poderia dar um passo sem consultar o centro e aguardar suas decisões. Em sua opinião, a medida proposta visava (sic) “entregar os Municípios submissos ao governo do Estado”. Sujeitos não a um tribunal de contas, dotado de garantias, “mas a uma
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