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Publicação do corpo discente do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto Ano X, n.° 1, Junho de 2015 ISSN: 1980 – 0339 Cadernos de História HISTÓRIA RegIoNAl: TeoRIA, meTodologIA, pRáTIcA. contatos Revista eletrônica cadernos de História http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index cadernosdehistoria@gmail.com Rua do Seminário, s./n.o - mariana - minas gerais cep: 35420-000 ISSN: 1980 – 0339 Cadernos de História conselho editorial Isaias gabriel Franco eduardo mognon Ferreira Kaíque Ruan Rezende Santos Sheila dos Santos Silva Augusto martins Ramires danilo Souza Ferreira polliana gerçossimo Vieira editora de mídias alternativas Augusto martins Ramires (comunicação Social) Kaique Ruan Rezende Santos organizador convidado deste volume durval muniz de Albuquerque Júnior (UFRN) conselho consultivo álvaro Antunes, UFop Andréa lisly gonçalves, UFop Ângelo Alves carrara, UFJF António manuel Hespanha, Universidade Nova de lisboa cláudia maria das graças chaves, UFop christian edward cyril lynch, IeSp-UeRJ cristina meneguello, UNIcAmp Fábio duarte Joly, UFop Fábio Faversani, UFop Fernando Felizardo Nicolazzi, UFRgS Helena miranda mollo, UFop Íris Kantor, USp Jonas marçal de Queiroz, UFV João cézar de castro Rocha, UeRJ João Fábio Bertonha, Uem João paulo garrido pimenta, USp José Arnaldo coêlho de Aguiar lima, UFop marco Antônio Silveira, UFop moema Vergara, mAST pedro Spinola pereira caldas, UNIRIo Renato pinto Venâncio, UFmg Ronaldo pereira de Jesus, UFop Sérgio Ricardo da mata, UFop Sidney chalhoub, UNIcAmp Valdei lopes de Araujo, UFop Virgínia Albuquerque de castro Buarque, UFop Wlamir José da Silva, UFSJ Apresentação 8 Apresentação ao dossiê: Dossiê Temático História Regional: Teoria, metodologia, prática Artigos 15 A demografia do comércio de escravos em santa Catarina: a praça mercantil de laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. André Fernandes Passos 36 ”coronelismo”, cangaço, e a “honra” no romance Angústia de graciliano Ramos Natália Augusta Fontes de Carvalho Ribeiro Rodrigues 55 Arquivo, preservação e memória em Tefé/ Am: registros paroquiais e periódicos (séculos XIX e XX) Luciano Everton Costa Teles, Tenner Inauhiny de Abreu 66 O Conceito Geográfico de Região e sua integração com a História Regional: diálogos possíveis Giam Cupello Miceli Sumário Dossiê Temático História Regional: Teoria, metodologia, prática Artigos 76 “A interlândia ainda era mais profunda do que nos tempos atuais” - “o Alto Sertão e as leituras sobre uma região no interior brasileiro no século XIX. Ana Sara Cortez 93 os itinerários de oswald de Andrade pela paulicéiaValdeci Cunha 119 A formação do colegio de História da Universidade Federal do paraná a Afirmação do debate sobre Região. Mauro Cezar Camargo Seção Livre Artigos livres 124 Relações inter-humanas na descoberta da América: os escritos de colombo e a percepção europeia do outro Erick Bezerra Rodrigues 138 A assistência à alma na irmandade de São Vicente de Braga no século XVIIINorberto Tiago Gonçalves Ferraz 155 Filipe Nunes no universo dos tratatdos artísticos-científico quinhentista Renata Morais 184 A assistência a alma à irmandade de São Vicente de Braga no século XVIIISarah Santos Araujo 202 219 Algumas perspectivas culturais na cidade do Rio de Janeiro como sede do vice- reino de portugal Lia Brusadin As interferências e influencias no altântico português. - RESENHA Isabel Camilo Camargo apresentação 8 Durval Muniz de Albuquerque Júnior Professor da Universidade do Rio Grande do Norte durvalaljr@gmail.com O papel de um periódico científico é servir de veículo para que o estado da arte, em um dado campo do conhecimento, possa se explicitar, possa ser conhecido, debatido, analisado, criticado. Creio que o número da Revista Eletrônica Cadernos de História, que os apresento, cumpre bem esse papel, à medida que reúne, em seu dossiê, um conjunto de artigos que foram agrupados a partir do que seria seu pertencimento a um campo de estudos e pesquisas nomeado de “história regional”. Me parece que a experiência foi bem sucedida à medida que o conjunto de textos assim reunidos tornam explícitos alguns dos dilemas, das questões, dos impasses e das possíveis conquistas feitas a partir da adoção do que seria um recorte regional ou um critério regional para delimitar não apenas um dado recorte no plano da empiria, mas também um recorte que se pretende epistemológico ou teórico- metodológico no campo dos estudos históricos. Esse dossiê repõe a questão sempre repetida quando se trata de praticar, de escrever, de delinear um perfil para o que seria uma “história regional”, ou seja, afinal qual o lugar da “história regional”? O que é uma “ história regional”? Não surpreende que a um chamado para que se enviem artigos considerados de “história regional”, o corpus que se constituiu ao final tenha determinados traços, determinadas características que dizem muito dos dilemas e questões que esse campo de estudos costuma enfrentar e provocar. Não é surpreendente que o dossiê se caracterize pela diversidade temática, pela dispersão temporal e espacial, pela multiplicidade de enfoques e propostas de análise. Isso deixa patente que o conceito de “história regional” é bastante impreciso, que é um conceito que dá margem há Apresentação ao dossiê: Qual o lugar da história regional? Autor convidado Enviado em 25/11/2016 http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 9 diversas leituras, que é um conceito incapaz de delimitar claramente um campo de estudos ou uma dada postura teórica ou metodológica no campo da historiografia. Não é de estranhar, portanto, que, num dossiê como esse, esteja presente um artigo que busca mais uma vez discutir o próprio conceito de região e as implicações de sua utilização nos estudos históricos. A pouca precisão heurística oferecida pelo uso da noção de região aparece de forma clara no corpus composto por esse dossiê. A falta de clareza sobre o que define o que seria o regional, a diversidade de critérios que podem ser aventados para justificar e legitimar o recorte de uma dada regionalidade faz da chamada “história regional” um campo quase sempre amorfo, de difícil delimitação e fundamentação teórica e metodológica. Como é comum os artigos oscilam entre duas posturas bastante distintas quando se trata de delimitar e definir o que seria a região, o regional com o qual trabalham. Alguns tomam a região como um espaço dado, como um espaço definido a partir de sua condição de um recorte político-administrativo inferior e interior ao recorte nacional. A região pode ser, assim, tanto o espaço correspondente a uma província do Império brasileiro, como um estado da República, ou um espaço municipal. Nessa forma de conceber o que seria a região vem se explicitar uma das mais questionáveis posturas e um dos mais problemáticos procedimentos daqueles que se colocam como “historiadores regionais” ou do “regional”: a “história regional” tende a reproduzir uma divisão nacional do trabalho historiográfico em que os historiadores dos estados e espaços considerados centrais no país fazem a “história nacional” e os historiadores dos estados e espaços considerados periféricos fazem a “história regional”. No dossiê que se segue de surpreendente mesmo só o artigo que trata a cidade de São Paulo como um espaço regional, já que esse espaço, junto com o do Rio de Janeiro, costumam ser tomados como espaços privilegiados da “história nacional”. Os demais artigos confirmam a regra: sempre que se fala em “história regional” essa se passa nos espaços que foram historicamentesubordinados econômica e politicamente no processo de construção da nação e do sistema econômico capitalista no país, ou seja, o Nordeste (região que emergiu nesse processo), o Sul e o Norte do país. A naturalização das divisões regionais, definidas, quase sempre, a partir de recortes político-administrativos, muitas vezes não pertinentes ou relevantes para a temática que está sendo tratada, leva a que se cometa, de forma recorrente, anacronismos, ao remeter para dadas épocas delimitações espaciais que não estavam nela presentes. Embora encontrem na documentação outros conceitos espaciais, outras denominações e recortes de espaços, muitas vezes, os ditos Apresentação ao dossiê: História Regional Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015. 10 “historiadores regionais”, como trabalham com uma delimitação espacial prévia, como a região ou o regional é um parti pris de suas análises, não conseguem sequer perceber que a região a que fazem referência não se encontra presente nas fontes trabalhadas. Ao invés de conferir historicidade as categorias espaciais com que trabalham, obrigação primeira de um historiador, terminam por naturalizar e hipostasiar categorias espaciais que tiveram emergência histórica em um dado momento histórico preciso. Essa atitude é recorrente em relação ao conceito de Nordeste, ao recorte regional nordestino, que é, sem pejo, atirado para o período colonial, é remetido para o período monárquico quando só passou historicamente a existir no início do século XX. Essa segunda postura, a de atentar para a historicidade das categorias espaciais que utiliza, é bem mais rara entre aqueles que dizem praticar uma “história regional”. A própria noção de região deve merecer uma abordagem histórica pois ela adquiriu distintos significados ao longo do tempo. Fruto, quase sempre, de embates políticos os recortes regionais adquirem significados cambiantes a medida que são investidos de sentidos políticos distintos, que são construídos através de símbolos, discursos, práticas políticas e de significação. Tomar a região como um mero cenário, como um recorte espacial prévio, onde apenas acontece a história, onde apenas se desenrola um dado processo histórico que não tem nenhuma repercussão sobre a própria elaboração mesma da ideia de região é continuar pensando o espaço como algo estático, como um a priori da experiência humana, como algo que não é fabricado e produzido pelas relações sociais, econômicas e políticas. Tomar o espaço para apenas situar o seu objeto sem que ele seja um elemento que faça parte da própria trama histórica é repor uma visão naturalizada do que seriam os espaços. Pensar que uma história é “regional” apenas porque acontece em uma dada região, definida a priori e que lhe serve apenas de cenário é negligenciar aquilo que faz uma história ser efetivamente “regional”, ou seja, a sua capacidade de dar historicidade, de tratar historicamente como um dado recorte regional emergiu, como uma dada região surgiu historicamente, de analisar como, por que e em que condições um dado recorte regional foi recortado, elaborado, legitimado em dado momento histórico. Para mim só há lugar para a “história regional” quando é a própria noção de região que está implicada num processo de historicização, quando um dado recorte regional está sendo recolocado em sua historicidade. Um dos artigos do dossiê deixa claro como o debate em torno do conceito de região, mas, acima de tudo, a abordagem histórica dos processos de formação, constituição e diferenciação dos espaços regionais é a tarefa de qualquer Durval Muniz http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 11 grupo de historiadores que queira dar consistência epistemológica ao campo da chamada “história regional”. O dossiê que vocês irão ler a seguir, composto de artigos de bom nível acadêmico, marcados pela diversidade de temas, abordagens e localização espacial, tem o mérito, entre outros, de repor a discussão acerca da própria legitimidade do campo de estudos de “história regional”. Numa época marcada pela globalização, em que alguns historiadores propõem a prática de uma “história-mundo”, uma história que abarque grandes recortes espaciais, qual o lugar existente para os estudos regionais? Qual a relevância, qual a pertinência dos estudos regionais? Para um historiador como Marc Bloch, os estudos regionais, como ele definia e praticava, nunca significaram o isolamento do regional em relação a processos mais globais, nunca significaram tomar uma região como um dado prévio, mas tratá-las historicamente em seu processo de invenção, de formação, na relação com o nacional e o internacional, sem que se negligenciasse, costume entre os historiadores, sequer as dimensões físicas, as dimensões ditas naturais dos espaços. Muitos estudos ditos “regionais” sequer se preocupam em delimitar fisicamente o que estão chamando de região, sequer se dedicam ao relato daquilo que seria a sua paisagem, conforme permita a documentação. A região termina por se resumir a seu nome, à sua designação, que serve para localizar espacialmente o objeto, mas nada mais é dito sobre esse espaço, ele não é descrito ou configurado em seus múltiplos aspectos. Espero que esse número da Revista Eletrônica Cadernos de História possa relocar essas questões em debate, possa reacender a problematização do que seja realizar uma “história regional”. Mais do que oferecer certezas ou soluções para qualquer problema ou questão, um periódico científico deve se configurar em matéria para discussão e questionamento. Acolhemos, como organizador do dossiê desse número da revista, artigos de bom nível científico, sem que estejam isentos, no entanto, de figurarem entre aqueles que recaem em alguns dos problemas que foram aqui apontados. Creio que eles servem assim de material para reflexão e para o tratamento dessas e de outras questões afeitas ao campo historiográfico e, mais particularmente, ao campo que se denomina de “história regional”. Apresentação ao dossiê: História Regional Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015. dossiê 15 André Fernandes Passos andrefpassos@msn.com Resumo Esse artigo visa colaborar com a questão demográfica do comércio negreiro em Santa Catarina, especialmente o que seguia até a praça mercantil de Laguna. Analisando o livro de registro de batismos de escravos da paróquia de Santo Antonio dos Anjos de Laguna e os registros dos códices de polícia e despachos de escravos da Corte pretende-se analisar a conjuntura 1809-1830, época de maior desembarque de africanos novos em Santa Catarina. Dessa maneira, procurou-se comparar a entrada de africanos novos em Laguna com as entradas de africanos novos em outras freguesias voltadas para o abastecimento interno para compreender as flutuações dos desembarques de cativos em Laguna; e a partir das características dos escravos, compreender as rotas de abastecimento interno do comércio negreiro. Palavras-Chave Tráfico de escravos; Economia de Abastecimento; Laguna. Abstract This article aims to collaborate with the demographics of the slave trade in Santa Catarina, especially that followed to the Market Square of Laguna. Analyzing the book of baptisms of slaves from Santo Antonio dos Anjos de Laguna and records found in police codices and the slave orders of captives who left the Court, it is intended to analyze the conjuncture 1809-1830, season was the highest landing Africans in Santa Catarina. In this way, an attempt here to compare the Africans input in Laguna with other parishes members of the internal supply, understanding the fluctuations of the slave landings in Laguna; and from the characteristics of slaves, understand the internal supply routes of the slave trade. Key-Words Slave trade; Supply economy; Laguna . A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantilde Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. Enviado em: 26/05/2015 Aprovado em: 02/06/2016 Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 16 Introdução: O comércio de cabotagem que partia do Rio de Janeiro em direção ao sudeste/ sul da colônia se tornou objeto de estudos por autores que passaram a deslocar o foco das exportações e mirar no crescente mercado interno que se desenvolveu no interior da colônia na virada do século XVIII para o XIX, excepcionalmente através da redistribuição dos cativos adquiridos no continente africano por mercadores cariocas no mercado interno. (FRAGOSO, 1998; FRAGOSO & FLORENTINO, 2001) Tal perspectiva de análise considerou o comércio de escravos como essencial para se entender os aspectos econômicos e sociais do Brasil durante o Brasil colônia e império. João Fragoso e Manolo Florentino procuraram demonstrar que a economia colonial possuía uma dinâmica interna que lhe era própria, o que a tornava não tão dependente assim das conjunturas internacionais e passaram a questionar então os primeiros modelos interpretativos da Historia Econômica do Brasil dados por Caio Prado, Celso Furtado e Fernando Novais, os quais juntos insistiam no caráter excessivo do “pacto-colonial” e na impossibilidade de se arregimentar fortunas locais antes da abertura dos portos para as Nações Amigas em 1809. (FRAGOSO, 1998: 57-78; FRAGOSO & FLORENTINO, 2001: 23-59). Considerando o comércio de escravos como o circuito interno de acumulação endógena que mais mobilizava recursos e consequentemente de onde se auferiam os maiores lucros, os defensores do “arcaísmo como projeto” passaram a considerar os mercadores de grosso trato (aqueles que se ocupavam em repor a mão de obra escrava via comércio transatlântico) como o topo da hierarquia econômico e social existente nessa sociedade. Nesse sentido, esses autores demonstraram também que aqueles que pertenciam à elite mercantil, faziam-se senhores de terras, de imóveis e de homens a partir da acumulação de capital advinda da mercancia. O tema proposto por esses autores influenciou novas pesquisas no interior de programas de pós-graduação de diferentes universidades (RIBEIRO, 2005; BERUTE, 2006) e serviram como aporte teórico e metodológico para o estudo da redistribuição do comércio de escravos através da navegação de cabotagem. De acordo com os primeiros modelos interpretativos para a economia colonial catarinense teríamos em Santa Catarina uma área que acarretava enormes prejuízos em suas instalações por não se enquadrar nos modelos prepostos pelas economias de exportação, ou seja, teríamos neste local ausência da superexploração da mão de obra escrava, falta de proximidade dos grandes centros urbanos, tudo isso faria com que os custos inviabilizassem a superação de uma economia de subsistência, André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 17 inviabilizando as tentativas de colonização da área. A exceção a essa regra teria sido o Rio Grande pela possibilidade dos lucros com o apresamento do gado nos pampas. (FURTADO, 1977: 32) Desse modo, parece estar de acordo com Celso Furtado quando Cardoso (2000: 39) afirma que em Santa Catarina: O preço das “peças” era muito alto e a mão de obra escrava tornava-se quase antieconômica nas regiões do Brasil que não podiam concorrer no mercado colonial de exportação. Economicamente não se justificaria, portanto, a utilização do negro na exploração das riquezas do Sul. Ao desconsiderar o uso da mão de obra africana em Santa Catarina, Fernando Henrique Cardoso contribuía de certa forma em dar ênfase à invisibilidade do negro na província, desconsiderando sua contribuição para a formação das primeiras fortunas locais, ao passo que reduzia a significância dos povos africanos e afrodescendentes à qualidade de mão de obra “coisificada”, que deveria servir mais como elemento sustentador de certo status social a quem os possuísse do que efetivamente viriam a contribuir para a formação das primeiras riquezas em Santa Catarina, na produção local voltada ao abastecimento interno, impulsionando as economias locais e contribuindo para um processo de formação econômica e social de Santa Catarina já no início do século XIX. Sendo assim, gostaria de enfatizar nesse artigo as possibilidades de cálculos que se poderia fazer para se obter alguns índices de entrada de africanos novos em freguesias de escassa documentação sobre o comércio de escravos, mas que possam se encontrar índices de batismos paroquiais de africanos novos a partir de 1809. Para esclarecer tal questão, utilizam-se como fonte os registros de batismos de africanos novos de três paróquias de Santa Catarina: Lagoa, Ribeirão e Laguna. Ademais busquei cruzar excepcionalmente os dados referentes aos batismos da paróquia de Santo Antonio dos Anjos de Laguna com os encontrados nos códices de polícia e despachos de escravos da Corte os quais seguiam endereçados até essa mesma praça. Dessa maneira, procurei atentar à demografia escrava vigente em Laguna durante a fase de aceleração do comércio de escravos para o Brasil para assim compor - e até de certa forma “preencher” – a paisagem social da primeira metade do século XIX nessa freguesia bem como a participação de Laguna no mercado colonial. As características dos escravos africanos encontrados nessa região (nação, idade, sexo) serviram para evidenciar algumas rotas comerciais que inseriam A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantil de Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 18 Santa Catarina na economia de abastecimento da Corte e também para entender as características dos escravos preferidas pelos senhores. A seguir, apresento a demografia do comércio de escravos para a vila de Laguna, sacudindo a poeira dos arquivos com dados até então despercebidos e que nos ajudarão a entender um pouco mais sobre a presença africana nessa região. A demografia do comércio de escravos na vila de Laguna O comércio de escravos transferiu centenas de milhares de nativos escravizados no interior do continente africano. Paul Lovejoy estima que o comércio transatlântico de escravos espalhasse cerca de 7.438.000 (sete milhões, quatrocentos e trinta e oito mil) pessoas escravizadas ao longo dos séculos XVIII e XIX (LOVEJOY, 2002: 51). Desses escravos se estima que 675.481 (seiscentos e setenta e cinco mil, quatrocentos e oitenta e um) foram desembarcados no Rio de Janeiro durante todo o transcorrer do século XVIII (CAVALCANTI, 2005: 63-65). Mas se no transcorrer desse século o porto do Rio de Janeiro detinha quase a metade das importações brasileiras, a partir de 1809 sua importância adquiriu níveis sem precedentes na colônia, variando entre 70% e 90% a posse das importações de todo o país. (FLORENTINO, 1997: 66). Alguns autores até tentaram estimar o volume do comércio de escravos desembarcados no Rio de Janeiro desde o início do século XIX até a sua respectiva proibição em 1831(FLORENTINO, 1997: 44-50). Mas de acordo com o método e as fontes empregadas por cada autor, obviamente que chegaram a conclusões diferentes. Entre todos esses estudos os números parecem estar de acordo quando se aproximam da casa de 500.000 (quinhentos mil) africanos o numero de despachados neste século, considerando que o tráfico ilegal pode desembarcar ainda outros 57.800 africanos a partir de 1831. Entre essas estimativas, Manolo Florentino especula que o porto do Rio de Janeiro recebeu entre os anos de 1790 e 1830 o equivalente a 697.945 (seiscentos e noventa e sete mil, novecentos e quarenta e cinco) africanos novos. Suas estimativas têm como fonte as entradas de navios negreiros provenientes da África as quais foram registradas em periódicos locais. Considerando as médias anuais dessas entradase cruzando-as com alguns outros registros navais o autor subdividiu o período em três partes, por achar momentos importantes e distintos que possibilitaram rupturas no comércio de escravos transatlântico para o Rio de Janeiro. São esses momentos: 1) O período que procede a abertura dos portos para as Nações Amigas em 1809. 2) O período posterior a 1826, quando as expectativas pelo o fim do tráfico ganhavam ânimo com o reconhecimento da independência André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 19 brasileira pela Grã-Bretanha que condicionava para a sansão do ato a abolição do tráfico de escravos pelo Atlântico. 3) A própria Lei Feijó, promulgada em 07 de novembro de 1831, que passava a considerar a importação de escravos para o Brasil como atividade ilegal. Sendo assim, “vislumbrando o fim do tráfico, mas ao mesmo tempo, demonstrando grande capacidade de arregimentação de recursos, as elites escravocratas do Sudeste passaram à compra desenfreada de africanos.” (FLORENTINO, 1997: 38). Acompanhando os dados de Manolo Florentino para o comércio transatlântico com o Rio de Janeiro, temos uma relativa estabilidade do comércio negreiro até 1809, quando a partir desse ano o numero de entradas de navios por ano quase que triplica até 1811, sofrendo uma relativa queda até 1815, para então crescer desenfreadamente até 1825, sendo que de finais deste ano até 1830 o índice de escravos desembarcados no Rio atinge patamares jamais vistos na história do tráfico mundial. (FLORENTINO, 1997: 44-69). Considerando esses dois sinais indicadores do trânsito de escravos (abertura dos portos e independência) como fatores econômicos e políticos que desencadearam em um maior volume de cativos desembarcados no Brasil, Manolo Florentino afirma que na primeira fase de estabilidade do tráfico (até 1809) a taxa de crescimento anual para os desembarques de cativos no Rio de Janeiro corresponde a + 0,37% a.a. ao passo que a etapa subsequente (até 1825) apresenta crescimento de + 2,32% a.a. e por fim os últimos cinco anos restantes de legalidade do tráfico apresentaram uma taxa de crescimento de + 3,6% a.a. (FLORENTINO, 1997: 46). De acordo com os dados extraídos da Gazeta do Rio de Janeiro sobre as embarcações que partiram do Rio em 1812, 12% delas tinham como destino o Rio Grande do Sul (principal parceiro comercial do Rio de Janeiro via navegação de cabotagem) e 9% partiam com destino a Santa Catarina, lembrando que o principal local de destinos desses africanos que aportavam no Rio de Janeiro era o caminho que se seguia por terra até as Minas Gerais, onde na segunda metade da década de 1820 “Minas Gerais, com sua economia voltada para o abastecimento (isto é, com a predominância de camponeses donos de pequenos plantéis de cativos), aparecia como polo de absorção de 40% a 60% dos escravos que saíam do Rio de Janeiro.” (FLORENTINO, 1997: 38). Para começar a especular a quantidade de africanos novos que podem ter adentrado em Santa Catarina a partir de 1809 até 1830 pode-se começar na escassez de dados sobre o tema pela análise dos batismos de africanos novos existentes em diferentes freguesias do interior do local. Foram escolhidas para analise as A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantil de Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 20 freguesias localizadas na Ilha de Santa Catarina, Lagoa e Ribeirão e a vila de Laguna, localizada no extremo sul da costa litorânea catarinense. Esses locais são considerados como parte integrante do comércio de abastecimento local e tal análise procura entender as flutuações do comércio de escravos através do registro de africanos novos ao longo do período analisado. Gráfico 1. Batizados de Africanos Novos (1809 – 1830): Fonte: Livro de Batismos de Escravos das Paróquias de Santo Antônio dos Anjos da Laguna, Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão e Nossa Senhora da Lagoa da Conceição.1 Pelo gráfico acima se pode perceber que a importação de africanos novos ocorria em todas as freguesias de forma contínua, anualmente, e no período de 1809 – 1830 todas as paróquias registraram alguns surtos no batizado de africanos pelo menos duas vezes ao longo do período analisado. A Freguesia da Lagoa, por exemplo, na qual se vinham batizando pouco menos de cinco escravos anualmente, batizou em 1811 e 1813 o numero de 14 e 12 escravos respectivamente, voltando a importar a quantidade anterior até 1826, ano em que eleva a importação de africanos aos patamares do surto ocorrido na década anterior, batizando nunca menos de cinco escravos africanos por ano até 1830. Seguindo com a paróquia do Ribeirão, esta mantinha os batismos de africanos regularmente em cerca de até cinco escravos por ano desde 1809 até que em 1817 batiza 35 africanos, retornando a importar a quantidade em torno de cinco africanos até 1822, quando no ano seguinte eleva o numero para 23 africanos importados e 1 As transcrições dos batismos da paróquia de Nossa Senhora da Lagoa e de Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão foram realizadas por Fernanda Zimmermann e por Maria Helena Schweitzer e integram o acervo do Laboratório de História Social do Trabalho e da Cultura da UFSC. André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 21 a partir do ano de 1826 eleva consideravelmente a importação regular anual de africanos. Apesar da lacuna existente para a paróquia de Laguna entre 1818 e 1828, as quais não existem mais os livros de batismos, pode-se admitir um maior índice na elevação dos batismos no período 1811-1815, onde provavelmente por uma saturação do mercado, tem nos anos seguintes uma retração nos desembarques. Compondo o crescimento percentual anual dos batismos de africanos novos de acordo com a faixa de tempo sugerida por Manolo Florentino, temos então para cada freguesia, o valor da incidência dos batismos e consequentemente do aumento da população de origem africana. Tendo como base os três momentos de rupturas no comércio de escravos propostos por Manolo Florentino (abertura dos portos, independência e proibição do tráfico) os batismos foram organizados para que se enquadrassem nessas conjunturas. Portanto, ao analisar os batismos temos em todas as freguesias três momentos distintos que podemos caracterizar como de ruptura na navegação costeira: 1) do processo de abertura dos portos até o primeiro surto de africanos novos em cada freguesia; 2) do primeiro surto de africanos novos até 1826, data da proclamação da república e 3) da proclamação a Lei Feijó. Sendo assim, para a freguesia da Lagoa esse fato acarretaria a melhor escolha o período 1809-181. Para a freguesia do Ribeirão esse período de maior entrada de africanos se daria só em 1817. Já para Laguna temos um alto índice de desembarque a partir de 1814, mas se comparado à freguesia de Lagoa e Ribeirão, podemos considerar uma maior movimentação de africanos novos no interior da freguesia de Laguna mesmo a partir de 1811. Como para Laguna há um espaço de tempo de dez anos sobre os quais as fontes de batismos se perderam, vamos cruzar esses dados com os códices de polícia e despachos de cativos da Corte para compor esses desembarques na vila de Laguna. Suponhamos que entre o espaço geográfico de que tratam nossas fontes é o local desde abaixo da freguesia de Vila Nova, local onde possuía uma pequena armação baleeira e as freguesias de Mirim e Maruim localizadas as margens da mesma lagoa onde fica a cidade de Laguna, além das freguesias de Tubarão e Araranguá localizadas na costa litorânea de onde seguia até o rio Mapituva, fronteira com o Rio Grande. Mapa 1. A cidade de Laguna, 1864: A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantil de Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas doséculo XIX. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 22 TEFÉ, Antonio Luis von Hoonholtz. Planta hydrographica da Laguna. [S.l.: s.n.], 1864. 1 mapa, pb, 59,5 x 74,5. Disponível em: http://bndigital.bn.br Acesso em: 3 jul. 2015. Quanto aos registros de batismos, eles referem-se à paróquia de Laguna, portanto a região que circuncidava a cidade ou freguesia como era chamada essa região no início do século XIX. Há poucos batismos de escravos que envolvem moradores de freguesias mais próximas nos batismos da paróquia de Nosso Senhor dos Anjos da Laguna. Tais africanos poderiam ser batizados em capelas próximas do lugar André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index http://bndigital.bn.br 23 de onde deveriam exercer seus ofícios - considerando que a finalidade última da compra do escravo é a mão de obra e não o batismo - pode-se pensar então, que em locais distantes dos centros urbanos, eles fossem registrados em capelas locais, como o casamento de Antonio Benguela e Maria Benguela, registrado pelo Vigário Francisco Xavier Sá Andrade e Almeida, na capela da Fazenda da Tapera, freguesia do Ribeirão da Ilha de Santa Catarina2 Podemos admitir que os batismos passassem a ser registrados com maior frequência a partir de 1809 não somente pelo aumento dos desembarques, mas também pela mudança no novo quadro social onde teremos uma crescente da população de origem africana, sendo necessário também aos olhos dos senhores possuírem certo registro do mando que exerciam sobre seus escravos frente ao aumento dessa população. Dessa maneira, a pia batismal não era só o local de arranjar os padrinhos para confortar a chegada do africano novo, mas também o local de registrar uma determinada legalidade sobre a posse cativa. Gráfico 2. Batismos, despachos e estimativas de desembarque de africanos novos na vila de Laguna (1809-1831): Fonte: Diocese de Tubarão. Livro de registro de batismos da paróquia de Santo Antonio dos Anjos de Laguna: 1790-1818 e 1828 – 1838. Códice 390: Receita dos direitos de despacho de escravos para os portos do Sul (1815-1826), volumes 1, 2, 3, 4, 5 e 6. Códice 411: Termos de fiança, ajuste, obrigação, lanço, etc. (1822-1834), volumes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 11, 12, 13 e 19. Códice 421: Passaportes: registro de pessoas que partem ou despacham escravos. (1829-1832). Volumes: 1, 2, 9 e 18. Códice 424: Lançamento de atestados e remessa de escravos para várias localidades (1826- 1833), volumes 1, 2, 3, 4, 5, 8 e 9. Códice 425: Passaportes: registros de pessoas que partem ou despacham escravos (1822-1833), volume: 1. 2 (AHESC) Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina. Livro de Batismos de escravos da Paróquia de Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão. (1807- 1852) p. 31. A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantil de Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 24 Através do gráfico acima podemos perceber que os despachos até Laguna, quando comparado com os batismos, não se igualam diretamente no mesmo numero de africanos. Isto se deve ao fato de que poderia haver eventuais baixas durante o trajeto de redistribuição dos escravos, lembrando que a navegação de cabotagem ceifava em média a vida de mais de 11% da escravaria despachada (MELLO, 1983: 172-173), ainda que os africanos remetidos até Laguna poderiam ainda ser negociados durante a viagem em algum outro porto em troca de abastecimento da nau negreira ou serem batizados nas próprias freguesias do interior de Laguna. Para calcular a porcentagem do desembarque anual de escravos nessas freguesias, pode-se de acordo com o período de tempo, pensar alguns métodos para analise. Com os limites e a escassez de fontes para se efetivar o registro de entrada desses cativos no interior da colônia e posteriormente império do Brasil, podem- se iniciar os cálculos para a obtenção do índice de entrada de africanos novos tendo como base a chega desses africanos desde 1809 até o primeiro surto de entrada de africanos como vimos anteriormente, e a partir daí, seguir ao marco de independência de 1826, quando as sucessivas entradas de africanos novos passam a serem regularmente de maior volume e menos oscilantes para todo o império aparentemente. Por exemplo: a freguesia do Ribeirão, a partir do inicio de 1817 até finais de 1825 incorpora + 20,33% a.a. de cativos do que vinha batizando desde o inicio de 1809 até finais de 1816. Já para o ano de 1826-1830 a taxa de crescimento anual se reduz a + 7,73% a.a., mas batizando bem mais escravos regularmente do que o período que antecede o primeiro surto de africanos em 1817. Para calcular tal índice para a freguesia de Laguna é um pouco mais complicado, pois as fontes nos fogem quando precisamos de dados acerca de determinado ano, apresentando certos limites para a formação de um cálculo mais conciso. As próprias fontes com quais trabalhamos são uma antítese: enquanto os batismos podem registrar somente alguns dos locais da freguesia, as remessas de cativos podem nos indicar o volume destinado a uma região maior que a freguesia, que seria a vila de Laguna. Mas ao mesmo tempo, os dados referentes aos despachos de cativos da Corte estão condicionados a algumas variáveis como vimos. Então mesmo sabendo do risco de tais armadilhas, vamos calcular o índice com base nos dados que nos estão propostos, sem alterar os valores de batismos para mais com base no índice de despacho. Para Laguna, o período 1811-1825 coincide, quando comparado com outras freguesias, como o período de maior entrada de africanos novos para Santa André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 25 Catarina. Mas considerando apenas o primeiro surto de africanos que ocorreu no interior da própria freguesia, pode-se considerar como o primeiro surto de africanos que ocorreu na própria freguesia como sendo nos anos que seguem 1814. Sendo assim, entre 1814 e 1825 o índice de entrada de africanos em Laguna comparado com o período anterior é de + 31,54% a.a, onde o período 1826-1831 segue-se a um índice de + 2,5% a.a. Portanto, podemos afirmar que a maior parte dos africanos reconduzidos até Santa Catarina foram despachados, sobretudo, a partir do processo de abertura dos portos, nos anos entre 1811 e 1826 e apesar de que a partir de 1826 tenha crescido em Santa Catarina o numero do desembarque médio anual de cativos em relação ao período que corresponde de 1809 até o primeiro surto de batismo da freguesia, o maior numero de africanos desembarcados na província de Santa Catarina ocorreu mesmo entre os anos de 1811 e 1824. Tabela 1. Distribuição anual de escravos enviados a Santa Catarina (1809 – 1832), por códices de despacho: Anos Cód. 390 Cód. 411 Cód. 421 Cód. 424 Cód. 425 Total 1809 - - 36 - - 36 1811 - - 62 - - 62 1815 1 - - - - 1 1816 26 - - - - 26 1817 24 - - - - 24 1818 12 - - - - 12 1819 27 - - - - 27 1820 43 - - - - 43 1821 19 - - - - 19 1822 282 6 30 - - 318 1823 395 4 160 - - 559 1824 350 24 169 290 29 572 1825 - 9 - - - 9 1826 381 7 - 83 - 471 1827 - 21 - 79 - 100 1828 - 1 - 52 - 53 1829 - 3 - 83 - 86 1830 - 1 - 98 - 99 1831 - 1 - 7 - 8 1832 - 2 - 11 - 13 1833 - - - 1 - 1 Total 1560 79 457 414 29 2539 Fonte: Códice 390: Receita dos direitos de despacho de escravos para os portos do Sul (1815-1826), volumes 1, 2, 3, 4, 5 e 6. Códice 411: Termos de fiança, ajuste, obrigação, lanço, etc. (1822-1834), volumes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 11, 12, 13 e 19. Códice 421: Passaportes: registro de pessoas que partem ou despacham escravos. (1829-1832). Volumes: 1, 2, 9 e 18. Códice 424: Lançamento de atestados e remessa de escravos para várias localidades (1826-1833), volumes 1, 2, 3, 4, 5, 8 e 9. Códice 425: Passaportes: registros de pessoas que partem ou despachamescravos (1822-1833), volume: 1. Feitos os cálculos para a importação de africanos novos para a vila de Laguna, pode- se agora tentar completar os anos que nos faltam para enfim compor a demografia do tráfico de escravos que partia em direção a esta vila durante a fase de aceleração do comércio de escravos para Santa Catarina. Para compor os anos que restavam A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantil de Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 26 (1819 e 1820) utilizamos o coeficiente de + 31,54% a.a. de entrada de africanos novos na vila de Laguna. Para os anos 1825 e 1826, utilizamos o coeficiente de + 2,5%, índice que obtivemos de entrada anual de africanos a partir de 1825. Como a partir de 1825 as importações de africanos já estão em todas as freguesias em declínio em relação ao período antecedente (1824-1809), opta-se neste caso por fazer o caminho inverno para obter estimativa dos anos 1825 e 1826, partindo do total de cativos que encontramos em 1826 e contabilizando - 2,5% para o período antecessor e somando 2,5% para o período que o procede. Assim concluímos ter chegado até Laguna, na fase de aceleração do comércio de escravos para Santa Catarina (1809 – 1830) um total de 799 escravos de origem africana. Pari passu, precisa-se compor a paisagem populacional da vila de Laguna para traçar o impacto do comércio de escravos na população local. Utilizaremos como ponto de partida o relato de Paulo Miguel José de Brito, ajudante de ordens do governo da capitania de Santa Catarina. Segundo Brito, (1829: 44) em 1816: A Villa de Laguna e seu terreno contêm huma população de 5.983 almas; a saber: homens brancos 2.251, mulheres 2.669; libertos de cor, de ambos os sexos, 86; escravos, homens 887, mulheres 490. O primeiro problema para o relato acima consiste em que de acordo com as informações de Paulo Miguel de Brito, somando-se suas contas, teríamos um total de 6.383 habitantes e não 5.983. Pode ser que houve efetivamente erro de digitação da obra original, erro contábil ou até mesmo que o significado de “almas” estivesse restrito a alguma exigência quanto à fé católica; mas o fato é que 400 almas parecem penar ao calcular-se o total de pessoas moradoras na vila de Laguna. Para a freguesia do Ribeirão, seguindo com o mesmo exemplo, o numero diverge em apenas quatro “almas”. Já para a freguesia da Lagoa os dados populacionais correspondem à soma de 2.430 habitantes/almas. Mas na falta de maior especificação do erro acometido, ou melhor, dos limites da fonte, optei por fazer o calculo baseado na soma dos números em separados, e não sobre o cálculo chegado pelo autor. O segundo problema ao analisar os relatos de época baseado em dados censitários é que muitas pessoas podiam evitar os recenseadores temendo recrutamento forçado para períodos de guerra. Confundindo a presença do recenseador com a do recrutador algumas famílias poderiam até mesmo omitir algum ou outro indivíduo. De qualquer maneira, temos assim registrado em 1816 na vila de Laguna André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 27 uma população escrava que perfazia 21,57% do total da população local. Mas essa população de origem africana, como está sendo demonstrado, não tinha quantitativamente alcançado seu clímax. Ainda que se possa considerar que Paulo Miguel José de Brito tenha somado em suas contas os escravos que chegaram até finais de 1815, tem-se assim, um total de pelo menos mais 644 escravos de origem africana que entrariam até 1831. Considerando apenas uma década (até 1825) em vista de manter o máximo possível inalterado o numero informado por Brito, desconsiderando o numero de nascimento de crioulos, luso-brasileiros e de possíveis novos imigrantes, podemos ter para Laguna no ano de 1826 um total de cerca de 30% da população como de origem africana, admitindo que a grande maioria dos escravos despachados da Corte até 1826 até o porto de Laguna permanecesse nas imediações do local. Gustavo Marangoni Costa, ao analisar os aspectos que antecederam a República Juliana (incluindo aí sua população) observou as proporções entre os extratos sociais de Laguna, que por vezes se confunde na documentação ao deixar de especificar se nos estão remetendo à cidade/freguesia ou à vila. Dessa maneira, com base em um senso de 1833, observa que nesse momento, Laguna contava com uma população escrava que perfazia 21,35% de sua população. (COSTA, 2006: 16). Interessante notar que o numero de livres de cor passa de 86 escravos em 1816 para 346 no ano de 1823, ou seja, cresce o numero de libertos em 174% ao passo que a população livre cresce 43,64% no respectivo espaço de tempo. Pode ser que o índice de alforrias, a redistribuição dos cativos para outros locais e a imigração de pessoas livres mantivesse a população escrava em pouco mais de 20% da população total na vila de Laguna, ao passo que a descendência de indivíduos de origem africana e a incorporação de africanos novos na sociedade local passavam a aumentar. As conexões mercantis e a origem dos africanos em Laguna Seguindo com o propósito de analisar a demografia do comércio de escravos para a vila de Laguna, passam-se agora às rotas do comércio de escravos e à composição étnica da população africana. Com relação às rotas utilizadas por esses mercadores pode-se afirmar que poucos foram os registros guardados de viagens transatlânticas que retornaram com escravos e que diretamente foram despachados em Santa Catarina. O caso do navio Boa Armonia (FLORENTINO, 1997: 79) e o do bergantim Nova Aventura são raros exemplos dessa rota comercial pouco explorada. Nova Aventura, comandado A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantil de Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 28 pelo capitão Domingos Manoel Rodrigues Maia partiu do Rio de Janeiro em 08 de março de 1823 aportando primeiro em Benguela na África Central. Tal rota sugere, primeiramente, a existência de uma relação estreita dos mercadores das praças de Desterro e Laguna com os mercadores e donos de naus cariocas. Podemos imaginar que por essa rota comercial haveria a possibilidade, mesmo que remotas, de adiantamentos por parte de mercadores locais, que procuravam melhores preços financiando uma nau suficientemente grande que partia da Corte. Em seguida, podemos pensar que as mortalidades dos africanos na travessia atlântica eram frequentes e por causa delas alguns navios chegavam a perder até 34% de seus escravos. (FLORENTINO, 1997: 144). O descobrimento de novas rotas que pudessem minimizar a quantidade de africanos perdidas nas longas travessias, poderia de imediato reduzir as mortalidades dos cativos durante a viagem em que uma grande quantidade desses escravos já estaria consignada ou comprometida com mercadores em Santa Catarina, fato que talvez tenha feito os capitães de navios e sua tripulação a garantirem a menor perda de vidas nessa longa viagem entre os dois continentes e a mudar a posição de suas velas e as rotinas de suas viagens negreiras no ultramar. Na África, o capitão Domingos Manoel Rodrigues Maia embarcou 390 escravos dos quais chegaram vivos 353, ou seja, sua carga desembarcou em Santa Catarina com 90,51% de seu investimento realizado em cativos.3 O mais comum para o comércio de abastecimento de escravos em Santa Catarina era mesmo o comercio bilateral com o Rio de Janeiro envolvendo quase sempre mercadores situados em ambas às praças. No Rio de Janeiro o comerciante se dirigia ao porto toda vez que uma nau negreira chegava. Ofertados os respectivos cativos, ou recebidos os seus encomendados, a etapa seguinte se daria na redistribuição desses cativos no interior da própria colôniade acordo com a praça de atuação de cada comerciante, já que o mercado do século XIX não estava dominado pelo mercador especializado em determinado segmento de mercado (escravos, farinha, açúcar, etc.), mas sim por aquele especializado no comércio com determinada região (Portos do Sul, Rio Grande, Santa Catarina, etc.) (FRAGOSO, 1998: 207). Analisando as rotas transatlânticas dos navios que aportavam no Rio de Janeiro entre os anos 1796-1830 Manolo Florentino observa que havia basicamente três macrorregiões de compra dos sujeitos escravizados na África: Ocidental, Oriental 3 IHGB: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro, Brasil) Lata 82, pasta 1, Vários ofícios sobre negócios do reino de Angola (1797-1828). Disponível em: http://www. slavevoyages.org/tast/database. Acesso em: 26/05/2015. André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index http://www.slavevoyages.org/tast/database http://www.slavevoyages.org/tast/database 29 e Central Atlântica. A participação da África Ocidental já pequena entre 1796-1811 correspondendo a 3% do total decresce em termos relativos até desaparecer por completo depois de 1816. Segundo o autor, todos os cativos provenientes dessa região batizados no Rio de Janeiro posteriormente a 1816 foram adquiridos via a província da Bahia, a qual sempre manteve um comércio intenso com essa região. A África Oriental se consolidou como grande fonte abastecedora do porto do Rio de Janeiro depois de 1811. De apenas quinze expedições a Moçambique entre 1795- 1811 passou-se para 235 a partir desse último ano. Nesse processo de consolidação dos portos da África Oriental como fonte abastecedora de escravos do Atlântico, consolidou-se a posição de Moçambique e dos portos ao sul, em especial o de Quilimane, os quais juntos exportaram 93% dos escravos provenientes dessa região. Partia da África Central Atlântica a grande maioria dos negreiros que aportavam no Rio de Janeiro, oito em cada dez navios aportados, considerando todo o período de 1795-1830. As maiores fontes foram os portos de Congo, Angola e Benguela até 1811, e a partir de então, portos da região setentrional como Cabinda passaram a deter mais de 50% dos cativos provenientes dessa região. (FLORENTINO, 1997: 72-82). Voltando nossa atenção para os africanos batizados na freguesia de Laguna e agora passando a compor o quadro referente ao lugar de origem dos africanos novos batizados na paróquia de Santo Antonio dos Anjos, considerando apenas os locais nos quais conseguimos identificar a procedência enquanto nações situadas na África Oriental, Ocidental, e Central Atlântica, sendo assim 271 batismos dos 308 existentes, pode-se perceber que à África Ocidental perfizeram-se 6% dos batizados e todos foram classificados através do termo “mina”, sendo considerados assim os africanos que tinham como ponto de embarque da travessia transatlântica a região denominada como “Costa da Mina”. Mas se o Rio de Janeiro obtinha índices cada vez menores de desembarque de cativos provenientes dessa região a partir de viagens transatlânticas, como poderiam aumentar o numero desses cativos na vila de Laguna? Pode-se até considerar o incremento de alguma outra rota existente entre Santa Catarina e a África em decorrência da abertura dos portos, mas o que se pode acreditar é que haveria de ter algum fluxo interno de redistribuição desses cativos que não exatamente fosse o comércio existente entre África – Rio de Janeiro – Santa Catarina. Pode ser possível que em alguns momentos tivéssemos algumas rotas comerciais extraordinárias até a Bahia, local onde estes escravos eram majoritários, ou mesmo comerciantes cariocas encontrando escravos nessa província e redistribuindo-os A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantil de Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 30 ao sul. Chegados a uma nova localidade, esses cativos poderiam ser inclusive rebatizados para que lhe fosse assegurado algum registro de sua posse. Da África Oriental, mais precisamente de Moçambique e do Quelimane, provinha 13% dos cativos que foram batizados em Laguna e seus batismos tornaram-se mais frequentes a partir de 1809. Na verdade o numero de cativos proveniente dessa região a partir da abertura dos portos é de 74% maior do que nos anos subsequentes. A grande maioria dos escravos encontrados sendo batizados na paróquia de Santo Antonio dos Anjos de Laguna foram os de nação Congo, os quais representaram juntos 43% dos escravos batizados. Os escravos provenientes da África Central Atlântica somaram-se todos 80% dos africanos batizados. Os escravos tidos como “Costa” não se sabe informar se eram provenientes da Costa da Mina ou da Costa da Guiné e por isso não compõem a base de dados quando distinguimos as principais macrorregiões do comércio de escravos na África. Tabela 2. Nações dos africanos batizados em Laguna (1794-1851): Ano/Nação 1794-1808 1809-1818 1828-1830 1831-1851 Total Angola 1 2 3 2 8 Benguela 3 5 2 2 12 Cabinda - 25 1 6 32 Cassange - 3 1 3 7 Congo - 115 4 13 132 Monjolo - 14 1 3 18 Costa - 9 9 2 20 Mina 1 13 1 2 17 Moçambique 7 11 4 5 27 Rebolo - 4 - 3 7 Outros - 6 7 10 23 S.I 1 1 3 - 5 Total 13 208 36 51 308 Fonte: Diocese de Tubarão. Livro de registro de batismos da paróquia de Santo Antonio dos Anjos de Laguna: 1790-1818; 1828 – 1838 e 1838 – 1851. Compondo as características demográficas dos escravos da vila de Laguna tem-se que do total de africanos batizados nessa paróquia 78,6% eram homens e 21,4% eram mulheres o que daria uma média de 3,6 homens para cada mulher. Os mesmos números indicam ainda que boa parte dos africanos que desembarcaram em Laguna estava em idade produtiva, considerando como crianças os escravos entre 0-14 e adultos aqueles que possuíam 15 anos ou mais, distinção que não implica outras questões para além do preparo com as atividades que lhes eram atribuídas no período. Além de que, na falta de registros, os proprietários de escravos poderiam manipular a idade de sua propriedade com vistas a atribuir ao escravo um valor superior no mercado. Assim temos a idade dos africanos batizados como sendo de 63,7% composta por adultos se somados os que assim foram informados. André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 31 Tabela 3. Idade dos africanos batizados: Idade/Sexo Masculino Feminino Abs % Abs % 04-14 62 20,1 18 5,9 15-30 142 46,1 35 11,4 Adulto 14 4,6 5 1,6 Moleque 7 2,3 0 0 S. I. 17 5,5 8 2,5 Total 242 78,6 66 21,4 Fonte: Diocese de Tubarão. Livro de registro de batismos da paróquia de Santo Antonio dos Anjos de Laguna: 1790-1818; 1828 – 1838 e 1838 – 1851. Quando deixamos de lado 16,5% dos africanos os quais não foi possível identificar com precisão sua idade por estarem batizados segundo uma “idade descritiva” e não de forma numérica, passando a contar então com 257 dos 308 batismos existentes, observa-se que era pequena a porcentagem de escravos com menos de dez anos, os infantes corresponderam a 0,8% dos africanos identificados. O maior grupo etário correspondia aos escravos e escravas que possuíam de 14 a 30 anos e que juntos somavam 79,3% desses mesmos batismos. Homens e mulheres raramente foram encontrados em equilíbrio mesmo quando de acordo com a faixa etária mais próxima de suas idades o que pode dificultar o crescimento natural da população escrava. Os dados até aqui analisados possibilitaram o avanço na questão da demografia escrava atribuída às diversas freguesias de Santa Catarina. Analisando em especial a região denominada como Laguna que ora se apresentanas fontes enquanto a denominação de uma freguesia ora como vila, percebe-se nos registros da paróquia de Santo Antonio dos Anjos da Laguna o deslocamento de proprietários de escravos de freguesias vizinhas para registrar os seus escravos, e por vezes, o deslocamento do vigário responsável pela paróquia ao interior da vila em dias denominados como “quaresma”: época em que o vigário peregrinava as cidades vizinhas registrando os batismos de pessoas livres, libertas e escravos de todas as localidades sem acesso mais próximo a algum livro de notas. Podemos então concluir que os dados desta paróquia abrangiam uma região além da portuária e poderiam se estender para todos os moradores que habitavam a região desde o porto até o rio Mapituva, fronteira com o Rio Grande, onde se encerrava os limites geográficos do território catarinense ao lado sul, denominada toda essa região da fronteira sul catarinense como vila de Laguna. Conclusão: Considerando o período que procede a transferência da Corte para o Rio de Janeiro A demografia do comércio de escravos em Santa Catarina: a praça mercantil de Laguna e o comércio negreiro de cabotagem, primeiras décadas do século XIX. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 32 e a posterior abertura dos portos em 1809 como o marco inicial de uma aceleração no ritmo das economias de abastecimento no interior da colônia, procurei demonstrar que o fato de haverem-se intensificado essas trocas comerciais já existentes entre Santa Catarina e o Rio de Janeiro acarretou em uma maior compra de cativos por parte de proprietários de escravos localizados em Laguna. Tais produtores investiam, sobretudo, na cultura da farinha de mandioca, milho, feijão, óleo de baleia, etc. Alguns ainda colocavam seus cativos para trabalhar em torno das regiões portuárias como escravos carregadores de mercadorias, vendedores ambulantes, carga e descarga, etc. (MAMIGONIAN & VIDAL, 2003). Entre os cativos que foram despachados para a praça mercantil de Laguna, pode- se considerar que eles poderiam não ficar próximos a região portuária onde eram desembarcados, mas que pudessem também seguir um caminho maior até o interior da própria vila. Teríamos então nas primeiras décadas do século XIX uma vasta rede de comerciantes que se estendia da Corte em direção as freguesias mais distantes do grande centro da redistribuição. Ao mesmo tempo em que os portos locais funcionavam como importadores de mão de obra funcionavam também como centro redistribuidores de mercadorias produzidas localmente para que chegassem até Desterro, ou para que fossem remetidos esses produtos para mercados até mais distantes. Na escassez de dados que permitam rastrear a evolução da população africana em Laguna e na falta de alternativa para os embaraços de muitos censos da época, tentei calcular a evolução dos desembarques de africanos na vila de Laguna mesmo sabendo dos limites que teria de enfrentar para tentar uma aproximação da demografia escrava em épocas de aceleração do comércio de escravos para Santa Catarina. De acordo com os resultados obtidos, pode-se perceber que o dinamismo econômico aumentava o índice da população escrava, mas que também atraiu inúmeras pessoas livres interessadas em ocupar as terras locais. A evolução da população livre em geral foi bem menor da dita liberta entre 1809 e 1831 fato que ajudava a manter a população escrava em torno dos 20% da população, mas que esta pode ter chegado ao cume de ser cerca de 30% da população em 1826. Por último, verificamos as características dos escravos encontrados nos livros de registros de batismos da paróquia de Santo Antonio dos Anjos. Atentamos às nações dos africanos e as suas idades. Através das nações podemos evidenciar os principais locais de embarques desses cativos na costa do continente africano e a semelhança quando comparado com a população escrava do Rio de Janeiro. Esses dados periodizam a inserção da presença africana em Santa Catarina e revelaram André Fernandes Passos http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 33 o impacto que o advento da mercancia causava sobre os aspectos demográficos da população em Laguna durante a primeira metade do século XIX. Fontes impressas, manuscritas e banco de dados: Diocese de Tubarão. Livros da Paróquia de Santo Antonio dos Anjos de Laguna. Livro de Batismos de Escravos 1790-1818; 1828-1838 e 1838-1851. BRITO, Paulo Miguel Jozé de. Memória Política sobre a Capitania de Santa Catharina. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1829. FRAGOSO, João Luís; FERREIRA, Roberto Guedes. 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R. nataliaribeiro.rodrigues@yahoo.com.br Resumo Neste artigo são analisadas as temáticas da dominação “coronelista” e da relação entre “coronéis” e cangaceiros em romances sociais nordestinos brasileiros, com ênfase na averiguação destes elementos na obra Angústia de Graciliano Ramos. Os discursos acerca de tradição e modernização, associados respectivamente ao interior rural e à cidade, são constantes no romance da década de 1930 que se pretende estudar neste texto. Estas questõessão tratadas tendo em vista a conexão entre as esferas de saber da história e da literatura. Palavras-Chave Graciliano Ramos; Romance Angústia; relações “coronelistas”. Abstract This article analyzes the themes of political domination and the relationship between “colonels” and “cangaceiros” in Brazilian northeastern social novels, with emphasis on investigation of these elements in the novel Angústia of Graciliano Ramos. The discourses about “tradition” and “modernization”, respectively associated to the “country” (rural area) and the “city”, are constant in the novels of the 1930’s that are studied here. These issues are addressed considering the connection between the spheres of knowledge of History and Literature. Key-Words Graciliano Ramos; the novel Angústia; “coronelismo” as political domination Coronelismo, cangaço e a “honra” no romance Angústia de Graciliano Ramos Enviado em: 26/05/2015 Aprovado em: 02/06/2016 http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 37 Introdução: História, Letras e o regional Este artigo versa sobre a terceira obra do escritor alagoano Graciliano Ramos, o romance Angústia, publicado em 1936. Ademais, buscar-se-á relacioná- lo a outras crônicas e romances sociais nordestinos. O romance Angústia é narrado em primeira pessoa pelo protagonista Luís da Silva, um funcionário público de trinta e cinco anos de idade, frustrado com a carreira de escritor e com a vida amorosa. A trama se passa em Maceió, porém, recorrentemente, é rememorada a infância do personagem vivida no sertão alagoano. Ao longo da narrativa as temporalidades e espacialidades intercalam-se, ora se situa nos anos iniciais do século XX no sertão, ora em 1930 na capital alagoana. Passado e presente imbricam-se. O meio urbano transmuta-se em rural. Além dos planos presente e passado, Antonio Candido destaca uma terceira dimensão em Angústia, a dos devaneios de Luís da Silva. A proposta deste artigo é tecer algumas considerações acerca das memórias sertanejas do protagonista de Angústia. Na explanação do narrador repara-se uma característica comum em registros de memórias, a junção de eventos que não ocorreram concomitantemente. Sinha1 Germana surge xingando as escravas inexistentes e, poucos parágrafos adiante, já estava morta fazia um ano. A memória do narrador encontrava-se debilitada, assim como a de seus avós deslocados no tempo. Os lapsos nas memórias indicam saudosismo de uma velha ordem que deixou de existir. Para Luís da Silva feneceu a força e despotismo do avô que de certa forma lhe conferia segurança. Para a avó findou a exploração das escravas que lhe davam conforto. E para o avô pereceu a mulher silenciosa que cumpria todas suas ordens. Estas questões são tratadas através da conexão entre as esferas de saber da história e da literatura, pois se compreende a língua enquanto fenômeno histórico em constante processo de transformação realizada por aqueles que dela se utilizam. Como observou o linguista Mikhail Bakhtin: “A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.” (BAKHTIN, 2014:42). Deste modo, as formas como se constituem os discursos escritos indicam-nos sinais de determinadas épocas e experiências. A forma interposta de enunciações acerca de um passado e um presente no romance Angústia nos sugere a noção de transformação ocorrida ao longo do tempo e no espaço. Além da interpolação temporal há também oposição entre cidade e interior rural, tônica comum à literatura considerada “regionalista”. A temática dos costumes sertanejos na literatura é comumente designada por “regionalista”, esta habitual qualificação nos remete a distinção entre “centro” e “região”. Na concepção do historiador Raymond Williams a discriminação de 1 Belmira Magalhães afirma sobre a grafia da palavra sinha: “Com a abolição da escravatura e o posterior desenvolvimento das relações de trabalho capitalistas, o termo sinhá adquire uma corruptela que designa as mulheres casadas, pobres, mas que merecem respeito. Para as damas da sociedade continua- se usando o pronome de tratamento com letra maiúscula e com a tônica na última sílaba (si – nhá). Para as mulheres pobres, casadas e de respeito, a tonicidade está na penúltima sílaba e se escreve sempre com letra minúscula (sí – nha).” (MAGALHÃES, 2001:121). Esta forma de designar a personagem é mais uma evidência do empobrecimento da família do protagonista. “Coronelismo”, cangaço, e a “honra” no romance Angústia de Graciliano Ramos Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 38 literatura regional e literatura universal consiste na “expressão da dominação cultural centralizada”, ou seja, as obras em que as narrativas se passam em áreas tidas como “centrais”, em geral grandes metrópoles, atribui-se o caráter normativo de costumes; já as composições sobre as áreas “rurais” são identificadas como “exóticas”, características de determinadas “regiões” (Cf. WILLIAMS, 2014: 299-313). A crítica literária Lígia Chiappini constatou a insuficiência de definir as literaturas regionalistas por obras em que haja “cor local” em oposição às obras universalistas, pois estes elementos estão presentes, de certa forma, em todo obra literária. Segundo Chiappini o que distingue as obras regionalistas das demais no Brasil é a resistência à homogeneização promovida pela estandardização da sociedade industrial do século XIX (Cf. CHIAPPINI, 1995: 153-159). Algumas obras e autores brasileiros foram reputados regionalistas já no século XIX, porém somente na década de 1930 ocorreu a descentralização da produção literária - até então predominante no Sudeste -, avultando o fenômeno da “regionalização” da literatura nacional2. Neste período, dentre outras produções literárias consideradas “regionalistas”, desenvolve-se o romance social nordestino3 no qual se encontra constantemente a dicotomia litoral versus interior rural, sendo o interior geralmente associado à “tradição” e o meio urbano à “modernidade”. Alguns dos autores destes romances foram o supracitado Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, Jorge de Lima, todos estes vivenciaram experiências no campo durante a infância e na fase adulta mudaram- se para capitais. À época desta produção literária a população rural no Brasil era majoritária, e a migração para o meio urbano tornou-se um fenômeno comum 2 Alfredo Bosi observou que durante o século XIX José de Alencar explorou, dentre outros filões, o “regionalismo”, gênero também desenvolvido por Bernardo Guimarães, Alfredo Taunay e Franklin Távora. Porém, o marco destacado por Bosi, para a expansão da produção literária brasileira para além das regiões consideradas “centrais” é a publicação em 1928 do romance A bagaceira de José Américo. Cf. BOSI, 2006:140; 395. Cabe mencionar que estes marcos são apenas indicativos da difusão de obras produzidas fora da região Sudeste. Não se intenta restringir a produção literária das regiões brasileiras a apenas alguns autores situados em um determinado período histórico, mas registrar que esta geração de 1930 conquistou maior visibilidade no meio cultural nacional. 3 Adota-se neste trabalho a noção de romance social nordestino como o fazem Antonio Candido, Alfredo Bosi e Luís Bueno, para especificar os romances produzidos no Nordeste brasileiro durante a década de 1930. CANDIDO, 2006; BOSI, 2006; BUENO, 2007. Natalia Augusta Rodrigues http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 39 devido à procura por melhores condições de vida nas cidades.4 Pode- se observar, portanto, uma convergência entre as temáticas dos romances, as trajetórias dos autores, e fenômenos sociais comuns no período. O linguista Luís Bueno destacou que é comum ao romance de 1930 a presença de protagonistas “deslocados”, inadequados tanto à cidade quanto ao campo. Estabelece-se uma relaçãoconflitante de um não lugar ocupado pelos protagonistas nestas obras (Cf. BUENO, 2007). No romance Angústia é pungente esta inadequação do protagonista no meio social em que vivia na cidade, contudo as lembranças do município sertanejo - não denominado - do qual era oriundo, também o consternavam demasiadamente, como veremos ao longo deste texto. O “coronel” Trajano e os “coronéis” no romance social nordestino No romance Angústia o personagem Camilo Pereira da Silva, estimulado pela narrativa da aventura de Carlos Magno, devaneava com o partido de padre Inácio elevado à situação no quadro político estadual. O “coronel” Trajano, pai de Camilo, encontrava-se em estado senil, seu domínio esvaia-se junto a sua lucidez, em franca decadência o “coronel” desempenhava o papel de oposição política ao governo estadual. Durante a Primeira República o “coronel”, que galgava a condição de situação política, dispunha da designação de diversos cargos de funcionários públicos, e o investimento de verbas era direcionado a sua área de influência. O declínio do prestígio político repercutia na decadência material de um “coronel”. Na fazenda de Trajano: o cupim consumia a casa e o curral, a pecuária - principal atividade econômica da fazenda - encontrava-se debilitada, os agregados estavam reduzidos a apenas três pessoas (o capanga José Baía, Amaro vaqueiro 4 Outros fatores que influenciaram o êxodo rural desde a década de 1920 foram a diminuição do fluxo imigratório europeu e o emprego do trabalhador nacional na indústria, que passa atuar como substituto da mão de obra europeia. Contudo, a emigração nordestina já era uma prática constante desde o final do século XIX no Brasil devido à evasão por conta do jugo latifundiário, e no polígono das secas a flutuação climática também se constituiu enquanto um agravante. A migração de pessoas da região Nordeste para a Sudeste também é temática tratada em Angústia: “Sabia onde ficavam o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, lugares que me atraiam, que atraem a minha raça vagabunda e queimada pela seca. Resolvi desertar para uma dessas terras distantes.” RAMOS,1975:22. “Coronelismo”, cangaço, e a “honra” no romance Angústia de Graciliano Ramos Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 10, n.° 1, junho de 2015 40 e a parteira Sinha Terta5). A vitória de padre Inácio possibilitaria a retomada do domínio político ao grupo do “coronel” 6 e a melhoria da fazenda. Como se nota no fragmento a seguir. Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do partido que padre Inácio chefiava. Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato e na varejeira, envergavam espinhaço e comiam mandacaru que Amaro vaqueiro cortava nos cestos. (RAMOS, 1975: 11- Grifos meus) O personagem Camilo, filho do “coronel” Trajano, sonha com a vitória do partido de padre Inácio, como destacado no fragmento acima. Ora, se um personagem fantasia e anseia a ascensão política de determinado grupo, isto indigita que no momento este partido opõe-se ao governo vigente. A aliança entre o clã de Trajano e o partido do padre Inácio poderia reverter o ostracismo dos negócios da fazenda. O narrador após expressar o desejo de Camilo, fala do perecimento do gado de Trajano que já não tinha mais pasto para se alimentar. O definhamento do gado era um dos principais indícios materiais de que o “coronel” estava em derrocada, pois era o bem mais valioso no sertão. Não sem razão há esta associação no romance, pois se elencavam párocos nas juntas eleitorais. Durante a Primeira República a junta - formada por um Juiz 5 A categoria de agregação é definida por Margarida Moura como “[...] a relação de morada de uma família na fazenda, implicando o desempenho de tarefas para o fazendeiro e a produção direta dos meios de vida para o agregado”. Moura admite também que esta categoria é familiar e masculina. MOURA, 1988:81. Apesar da definição de Moura da agregação ser masculina, admite-se no presente trabalho a personagem Sinha Terta enquanto agregada, pois no romance esta não é referida enquanto companheira de um agregado e também não é mencionada como criada na casa do “coronel”. A personagem é mencionada enquanto moradora da fazenda assim como o capanga e o vaqueiro. 6 A designação do título de “coronel” era concedida pela Guarda Nacional entre os anos de 1831 e 1870 aos chefes políticos locais, geralmente, os homens mais abastados dos municípios. Além do status conferido aos que possuíam o título de “coronel”, estes eram privados do encarceramento comum, caso fossem condenados em um processo criminal, possuíam largas funções policiais nos municípios, além de autonomia extralegal. Com a proclamação da República a Guarda Nacional fora extinta, no entanto, os títulos continuaram a ser empregados mesmo sem prerrogativas legais, e em muitos casos utilizado por chefes locais que jamais haviam possuído tal patente. Segundo o sociólogo Victor Nunes Leal o “coronelismo” foi um sistema de reciprocidade entre os chefes locais e os respectivos governos estaduais e federal. A Primeira República foi o período de derrocada política e material destes chefes, por isso houve a necessidade da manutenção de um sistema de apoio mútuo entre as esferas políticas locais, regionais e nacional (Cf. LEAL, 2012). Natalia Augusta Rodrigues http://www.ichs2.ufop.br/cadernosdehistoria/ojs/index.php/cadernosdehistoria/index 41 de paz, uma autoridade policial e por um pároco - nomeava a composição da mesa eleitoral e apurava os votos. A lista de votantes era formada pela mesa eleitoral, esta também tinha por prática comum a fraudulência do processo. A adulteração das atas de votação era praxe através do voto de bico de pena que consistia em falsificar assinaturas de eleitores ausentes e até mesmo já mortos.7 Em Infância no conto “Padre João Inácio” o pároco de atitudes “despóticas”, cuidava de variolosos, chamava-se Albuquerque, e, assim como no romance Angústia, dirigia partido político e dizia o despropósito de que o povo era “raça de cachorro com porco” (RAMOS, 1975:15). Até mesmo Padre Cícero, de quem Padre Inácio fora condiscípulo, era mencionado pelo pároco de forma tímida, porque não era um Albuquerque. Pertencer a uma parentela de nome nobilitado além de conferir status também era um dos critérios para exercer chefia política. O acumulo de sobrenomes do personagem Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva indica-nos seu prestígio como “coronel”. Dentre os sobrenomes do “coronel” está o da família Cavalcante, de tão afamado domínio na região Nordeste que até mesmo compõe o adágio “Quem não é Cavalcante, é cavalgado”. As gerações descentes no romance Angústia têm os sobrenomes reduzidos, e o neto do “coronel” era apenas “um Luís da Silva qualquer” (RAMOS, 1975:20) com somente um sobrenome, e o mais popular de todos. Aos que não possuíam terras e sobrenome restava a subordinação aos “coronéis”. Os “coronéis” encarnavam o papel de “benfeitores” aos quais os agregados submetiam-se por coação ou para serem auxiliados por medidas paternalistas. O acesso aos escassos recursos pelos agregados eram mediados pelo “coronel”. Esta mediação torna o acesso a direitos básicos como assistência médica, construção de escola, fornecimento de água, dentre outros serviços, enquanto “favores”. Estes serviços tornam-se objetos de barganha de voto. Até mesmo as eleições são feitas de forma a coagir os trabalhadores rurais a votarem no candidato do “coronel” – correndo o risco, caso não votassem, de serem expulsos da terra onde viviam e trabalhavam. Este tipo de coação era predominante no país, sobretudo nas áreas rurais8. A relação estabelecida entre “coronéis”
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