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Mais um banho de sol - histórias marcadas pelo cárcere

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Mais um 
banho de sol
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marca
das pelo cárcere
Histórias marcadas pelo cárcere
Mais um 
banho de sol
Ana Paula Contado
Isabela Tiritan
Larissa Ventura
Leticia Silva
Renata Ribas
Universidade São Judas Tadeu
Jornalismo
São Paulo, 2021
Livro-reportagem apresentado em 
cumprimento parcial às exigências da disciplina 
Trabalho de Conclusão de Curso, do curso de 
Jornalismo da Universidade São Judas Tadeu, 
para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo.
Orientadora: Prof.ª Dra. Patrícia Paixão
Histórias marcadas pelo cárcere
Mais um 
banho de sol
Orientação: Prof.ª Dra. Patrícia Paixão
Coordenação Regional São Paulo dos cursos de 
Comunicação e Artes: Prof. Dr. José Augusto Lobato. 
Coordenação dos cursos de Comunicação e Artes 
do campus Mooca: Prof.Ms. Danilo Firbida
Reitora da Universidade São Judas: Mônica Orcioli
Chanceler: Dr. Ozires Silva
Equipe
Ana Paula Contado | 818118751
Isabela Tiritan | 818126691
Larissa Ventura | 818127616
Leticia Silva | 818134801
Renata Ribas | 818137787
Colaboradores
Revisão textual:
Ana Paula Contado 
Isabela Tiritan
Projeto gráfico e diagramação:
Denise Tadei
CONTADO. Ana; PEREIRA, Isabela; MONTEIRO, Larissa; SILVA, Letícia; RIBAS, Renata.
Mais um banho de sol - histórias marcadas pelo cárcere
Trabalho de Conclusão de Curso/bacharelado em Jornalismo - Universidade São Judas 
Tadeu/SP (USJT)
Orientadora: Prof.ª Dra. Patrícia Paixão
Encarceramento em massa 2. Violência 3. Superlotação 4. Perfis 5. Livro-reportagem
USJT/SP
São Paulo, 2021-2
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaríamos de agradecer a Deus pelo 
suporte nesses 04 anos de curso, foram diversos momentos de 
desafios, mas Ele nos conduziu em todas as horas, fazendo com 
que chegássemos aqui hoje.
Segundo, aos nossos familiares e amigos, pelos abraços, 
palavras de conforto, amor, incentivo e extrema paciência nos 
dias ruins (que não foram poucos), sendo a nossa base diária para 
continuar buscando esse sonho.
As nossas orientadoras Patrícia Paixão e Maira Mariano, por 
todo apoio prestado, direcionamento, puxadas de orelha e conselhos 
para que fizéssemos o melhor trabalho possível, nossa admiração 
por essa profissão se fortaleceu ainda mais após seus ensinamentos.
E por último, a essa amizade que surgiu no primeiro dia de 
faculdade, formando um grupo muito mais que estudantil. Nós 
dividimos tantas situações nesse tempo, cada uma com uma luta 
diferente, mas sempre nos apoiando entre si, sendo a empatia e 
compreensão o nosso pilar.
O amor pelo jornalismo nos uniu e hoje, com toda felici-
dade do universo, podemos dizer: CONSEGUIMOS!
Eu sou a luz que veio ao mundo
Para que todos aqueles que crêem em mim
Não permaneçam nas trevas
Vai ladrão, abre seu coração
E conquista seu último perdão
INTRODUÇÃO
O universo carcerário vai muito além dos 773 mil detentos 
identificados pelo último Levantamento Nacional de Informa-
ções Penitenciárias (InfoPen). Ser encarcerado no Brasil, o 3º 
país com maior população carcerária no mundo, é ter a certeza 
que sua pena será paga diretamente por você e indiretamente 
pela sua família, que vai ser submetida a situações de humilhação 
nas visitas ao presídio, durante o julgamento, no seu dia a dia e 
até muitas vezes desde o momento da abordagem policial.
Além da superlotação, as péssimas condições estruturais dos 
presídios brasileiros já são conhecidas há muito tempo. De acordo 
com Bruno Ceren Lima, em iniciação científica para CESUMAR, 
nas celas extremamente lotadas, em sua imensa maioria, estão um 
“amontoado” de pessoas que não possuem o mínimo necessário 
para uma vida digna. O Estado, mesmo ciente de todas as condições 
subumanas a que os presos são expostos, continua negligenciando 
a situação do preso, tratando as prisões como um depósito de lixo 
humano e de seres inservíveis para o convívio em sociedade. 
Neste livro, apresentamos uma grande reportagem jor-
nalística sobre encarceramento em massa, explorando todo seu 
Mais um banho de sol 
8
contexto histórico desde os tempos medievais, as principais cau-
sas, consequências, como esse sistema punitivo opera e a resso-
cialização desses presos.
Para intensificar os dados abordados e mostrar como fun-
ciona a situação na pele, as histórias de vida de oito pessoas mar-
cadas pelo cárcere são relatadas no decorrer do livro, cada uma 
com sua particularidade, mas sempre um fato em comum: vidas 
afetadas para sempre pela precariedade do sistema prisional.
Jhonatas, o carcereiro, é o primeiro a ter voz. Com mais 
de 20 anos de profissão, presenciou diversas situações que impac-
taram tanto positivamente, quanto negativamente sua vida. Ho-
micídio, brigas de facções e tentativa de suicidio são alguns dos 
momentos vivenciados por ele dentro da prisão. São contados em 
detalhes a rotina diária de um agente penitenciário, mostrando suas 
maiores dificuldades e impressões durante toda a sua trajetória.
Valdir, um ex-detento do Carandiru, é o nosso primeiro 
presidiário. Um verdadeiro especialista do tráfico, chegou ao ní-
vel em que conseguia realizar processos químicos para compo-
sição da droga, como se fosse um alquimista. Mas nem sempre 
foi assim, veio de uma família humilde e uma infância simples, 
por uma eventualidade tomou rumos errados, envolveu-se cedo 
com ilícitos, quando tinha apenas 14 anos, se tornou viciado em 
maconha e lança perfume. Mas, foram os crimes cometidos por 
assalto que o levaram para a prisão, sendo condenado a cinco 
anos e cinco meses.
Introdução
9
Lilian, mãe de encarcerado, é uma mulher forte que nas-
ceu e cresceu no bairro de Brasilândia, na zona norte de São Pau-
lo. Foi nesse mesmo ambiente que criou seus dois filhos: Bianca, 
uma jovem de 23 anos que lhe deu duas netas lindas, e Ronaldo 
Júnior, que teve sua vida transformada pelo sistema prisional. 
Aqui vemos o dilema de uma mãe que vê seu filho preso e preci-
sa tomar uma decisão: apoiá-lo ou se afastar. Além disso, a per-
sonagem lida com os preços exorbitantes do jumbo e as preocu-
pações acarretadas pela pandemia de Covid-19, principalmente 
por Júnior ser asmático. 
Nosso segundo detento, Jamil, um garoto de família pobre 
que nasceu na periferia do Rio Pequeno e, como muitos da sua 
época, tinha o sonho de se tornar jogador de futebol.
Mas, devido às dificuldades e falta de oportunidades, foi 
em uma ação de roubo de carga que ele buscou ajuda. Desde 
então sua vida nunca mais foi a mesma, além do aspecto econô-
mico, o menino precisou lidar com o encarceramento e o pre-
conceito social.
A vida dos parentes de pessoas privadas de sua liberdade 
são tão difíceis quanto os que estão na prisão. Kelly, esposa de 
um encarcerado, relata sobre as visitas vexatórias e a humilha-
ções vividas desde que seu marido foi preso por formação de 
quadrilha e associação ao tráfico. Ela, como inúmeras mães e 
esposas, se desdobra para dar conta das demandas de ter um 
parente preso.
Mais um banho de sol 
10
Para falar de reintegração, Ronaldo, ex-presidiário, conta 
sua luta diária em busca de um recomeço. Ficou recluso durante 
doze anos e mesmo após ter sua liberdade concedida pela Justi-
ça, ainda sofre com o preconceito de ter seu nome vinculado ao 
sistema prisional brasileiro. Depois de uma abordagem policial 
agressiva, Ronaldo ainda tem as marcas desse encontro doloroso. 
Sem emprego e sem oportunidades de melhorias, seu destino 
encontra-se traçado com o do crime. 
Zana, é mais uma mãe que teve que lidar com a dor de um 
filho encarcerado. Mulher preta e periférica, desde muito cedo 
aprendeu que a vida não seria fácil, precisando lidar com diversos 
problemas, como: uma grávidez na adolescência, racismo, vio-
lência doméstica, alcoolismo e a falta de amparo social. Em meio 
às dificuldades, foi surpreendida mais uma vez negativamente, 
com a prisão de seu filho Caio, que traficava no bairro que reside, 
traçando um destino para ele e sua família.Como ser mulher encarcerada com um filho dentro do 
ventre? Adriana, nossa última voz do livro, responde. Foi na ado-
lescência que o crime entrou na sua vida fazendo um estrago 
que nem ela mesma imaginava, Adriana foi presa aos 20 anos 
grávida de seu primeiro filho. Sem ter como provar sua liberdade 
a tempo, a jovem deu à luz ao seu primogênito ainda acorrentada 
ao sistema carcerário, sabendo que levar seu filho para conhecer 
o mundo era uma das últimas coisas que faria. 
Introdução
11
SUMÁRIO
Agradecimentos ........................................................................ 5
Introdução ................................................................................. 7
Capítulo 1 − Sistema penitenciário e 
encarceramento no Brasil: uma história 
de abusos, violência e omissão ........................... 13
O século XX, o “progresso” e as prisões 
com os “avanços da modernidade” ........................................18
Lei de drogas: “a nova lei da vadiagem” ...............................26
De volta às ruas .........................................................................34
Capítulo 2 − O bom carrasco ........................... 43
O começo da jornada ................................................................45
Sangue pela cela .........................................................................47
Uma nova chance .......................................................................49
Capítulo 3 − Alquimista...................................... 53
“Um giro no sistema” ..............................................................54
Seu primeiro assalto .................................................................56
A chegada no Carandiru ..........................................................58
As refeições na Casa de Detenção .........................................63
O quarto andar ...........................................................................65
Quando esquecia de tudo ........................................................66
Agressão .....................................................................................68
Transferência para Tremembé - Rebelião ............................. 69
Ressocialização na sociedade ..................................................70 
Capítulo 4 − Desculpa, mãe ............................... 72
A relação com o caçula da família ..........................................73
Escolhas difíceis .........................................................................75
O dia da prisão ...........................................................................77
O primeiro contato ..................................................................78
Somatização ...............................................................................79
Capítulo 5 − Na trave ........................................ 81
Um convite inesperado que mudou a vida do garoto .......... 84
“Eu dei um giro no sistema, passei por 12 penitenciárias” .86
O sofrimento por trás das grades ............................................88
Segunda passagem: o preconceito da sociedade 
e a prisão injusta ........................................................................90
Capítulo 6 − Telefone sem fio ............................ 93
Linhas cruzadas .........................................................................97
Capítulo 7 − Destino traçado ...........................103
O futuro perdido ....................................................................108
O recomeço .............................................................................110
Capítulo 8 − Um demonio a cada esquina ........ 114
A primeira gravidez .................................................................117
O recomeço ..............................................................................119
Caio ...........................................................................................120
Maioridade ................................................................................123
A prisão .....................................................................................125
De volta para casa ....................................................................128
Capítulo 9 − No ventre do crime .......................130
Grávida sem preferência ........................................................134
O renascimento .......................................................................137
Vida após as grades ................................................................139
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
13
CAPÍTULO 1 
SISTEMA PENITENCIÁRIO 
E ENCARCERAMENTO 
NO BRASIL: UMA 
HISTÓRIA DE ABUSOS, 
VIOLÊNCIA E OMISSÃO
Por Letícia Silva
“Quando eu chego, parece que estou entrando numa mas-
morra. Só quem já esteve numa cadeia sabe o cheiro de lá… tem 
cheiro de dor”. A comparação feita por Miriam Duarte Perei-
ra, mãe de um rapaz em situação de cárcere e cofundadora da 
Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos), não é 
exagerada. As celas de boa parte dos presídios brasileiros no sé-
culo XXI em pouco se diferenciam do ambiente das masmorras 
medievais: possuem condições insalubres, são úmidas, fétidas e 
com pouquíssima iluminação. As acomodações das masmorras 
foram estrategicamente pensadas na chamada “idade das trevas” 
Mais um banho de sol 
14
para serem desconfortáveis e agonizantes até para o mais sereno 
dos homens. Algo comparável ao inferno que Dante Alighieri 
descreve em “A divina comédia”1: “Deixai toda a esperança, vós 
que entrais! O Portal do Inferno não tem portas ou cadeados, 
somente um arco com um aviso que adverte: uma vez dentro, 
deve-se abandonar toda a esperança de rever o céu, pois de lá 
não se pode voltar. A alma só tem livre-arbítrio enquanto viva; 
portanto, decide em vida pelo céu ou inferno.”
Passaram-se séculos e mais séculos e, mesmo com todas 
as denúncias e reivindicações feitas na contemporaneidade pelos 
movimentos que lutam pelo respeito aos direitos humanos, em 
especial os direitos da população carcerária, o regime prisional 
pouco mudou em diversos países. O que era para servir como 
oportunidade de trabalho e reflexão, no sentido de correção dos 
erros passados, acaba violentando, física e psicologicamente, e 
impulsionando sentimentos negativos, como a sensação de aban-
dono e a revolta. 
No Brasil, não passamos por uma Idade Média, com 
masmorras fortificadas, mas as condições inóspitas das nossas 
senzalas, nos períodos colonial e imperial, e as punições seve-
ras impostas à época àqueles que na visão da sociedade da Casa 
Grande tinham errado, atingiram os que foram trazidos forçosa-
mente para o território brasileiro, vindos do continente africano. 
1 Poema épico e teológico publicado pela primeira vez na Itália, em 1472.
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
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Essas pessoas inocentes, que muitas vezes ocupavam em seu país 
de origem posições em famílias reais e tinham uma cultura rica 
e diversificada, tiveram aqui suas histórias solapadas e foram es-
cravizadas, de maneira injusta e cruel, perseguidas por “crimes” 
estabelecidos no período, pela ótica do colonizador. Hoje seus 
descendentes são os que justamente mais sofrem dentro de pri-
sões superlotadas e em péssimas condições. 
Juliana Borges, pesquisadora em Antropologia pela Fun-
dação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FEPSP) e au-
tora do livro “Encarceramento em massa” (editora Pólen, 2019), 
destaca, em uma entrevista ao portal Justificando (plataforma de 
artigos e notícias jurídicas), a diferenciação entre as penas aplica-
das para os escravos e os cidadãos livres, no período do Império 
no Brasil: “com o regime escravocrata em pleno funcionamento 
em 1830, surge a primeira lei criminal, que chancela a violência já 
praticada contrapessoas escravizadas.” Aos escravos eram apli-
cadas a pena de morte e as galés (trabalhos públicos forçados; 
eles ficavam presos uns aos outros com correntes). Seus donos 
impunham a pena, de forma privada. Diferentemente dos ho-
mens livres, que poderiam se livrar dos delitos pagando multas, 
sendo suspensos ou demitidos de seus empregos formais, como 
aponta o arquivo nacional Mapa (Memória da Administração Pú-
blica Brasileira).
A forma atroz como os escravos eram tratados era em-
penhada para “corrigi-los” e fazê-los pensar bem antes de que-
brarem alguma convenção social imposta na época, seja roubar 
Mais um banho de sol 
16
cana ou rapadura para se alimentar ou tentar ceifar a própria vida, 
como forma de se livrar daquelas condições. 
Mas, antes deste primeiro Código Penal² (que pode ser en-
contrado nos arquivos do Senado e da Câmara ser aprovado por 
D. Pedro I e entrar em vigor, seu texto foi discutido por parla-
mentares do período. O então deputado de São Paulo, Francisco 
de Paula Sousa, fez um discurso, na época, à favor da pena de 
morte, discussão que até hoje está presente em nossa sociedade. 
O deputado defendia que somente a prisão não faria com que 
os escravos parassem de cometer delitos, pois as lamúrias e hu-
milhações que passavam nas mãos de seus senhores e o trabalho 
exaustivo os fariam ver a reclusão nas celas como um prêmio, e 
isso os levaria a se entregar à ociosidade e à embriaguez, que ele 
colocava como sendo “a paixão favorita” dos escravos. Teriam 
de haver, portanto, leis mais fortes que os fizessem pensar me-
lhor, antes de cometerem alguma infração.
Em 16 de novembro 1889, o Brasil já estava sob a égide 
do regime republicano (proclamado um dia antes) e, com ele, as 
promessas de uma país “civilizado”, nos moldes de Estados euro-
peus, com oportunidades para todos os cidadãos e com homens 
livres, já que dois anos antes, mais especificamente em 13 de maio 
de 1888, a princesa Isabel havia assinado a Lei Áurea, que aboliu a 
escravidão. Homens brancos com chapéus bonitos e moças com 
seus vestidos de talho fino comemoravam o novo regime, mas a 
população negra continuava sendo punida, sem ter terras para sua 
subsistência e sem trabalho formal. A Lei Áurea não previu ne-
https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/221763
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
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nhum direito ou reparação aos cidadãos recém-libertos. Conforme 
destaca o historiador Luiz Felipe de Alencastro, um dos maiores 
pesquisadores da escravidão no Brasil (em entrevista para a BBC, 
publicada em 13 de maio de 2018), no bojo do movimento aboli-
cionista havia um debate sobre a necessidade de se fazer uma re-
forma agrária. O abolicionista André Rebouças, engenheiro negro 
que tinha grande prestígio na época, apoiado pelo político Joaquim 
Nabuco, propôs criar um imposto sobre fazendas improdutivas e 
distribuir as terras para que os ex-escravos tivessem onde plantar, 
quando fossem libertos. “A maior parte do movimento republica-
no fechou com os latifundiários para não mexer na propriedade 
rural”, explica Alencastro, na entrevista à BBC. Para evitar que fos-
se feita uma distribuição de terras, fazendeiros, republicanos mais 
conservadores e mesmo abolicionistas mais moderados pressiona-
ram para que a Lei Áurea fosse aprovada rapidamente, sem com-
pensações ou alternativas para os escravos.
Além disso, os ex-escravizados não eram vistos como ci-
dadãos pela República. A eles eram negados os principais servi-
ços públicos. Como coloca a pesquisadora Juliana Borges, eles 
não tinham acesso às escolas e ao sistema de saúde. Também não 
conseguiam acessar o trabalho formal, exatamente por não ser 
oferecida a eles qualificação. O que restava era o trabalho como 
quitandeiras às mulheres, que ficavam nas ruas com seus 2tabu-
2 O primeiro código penal foi publicado pela primeira vez em 1830 e pode ser encontrado na 
versão original no site: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/221763
Mais um banho de sol 
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leiros de bolo, leite e fumo e a procura por emprego no setor 
agropecuário pelos homens. 
Intensifica-se a partir desse período a perseguição e o en-
carceramento dessa população. A sociedade brasileira passou a 
criar mecanismos para controlar os novos homens livres. Como 
o racismo já estava entranhado nas suas engrenagens, e era forta-
lecido por teorias eugenistas e racialistas (que viam em todos os 
povos que não tinham a cor branca, um rastro de inferioridade), 
justificava-se toda forma de punição e humilhações. Nem mes-
mo o lazer era permitido. Em 11 de outubro de 1890 foi pro-
mulgada a Lei dos Vadios e Capoeiras (Decreto nº 847)3 contra 
homens negros que estivessem se entregando “habitualmente à 
ociosidade”. O decreto punia com multa ou privação da liberda-
de quem praticasse a dança e a cultura de seu povo. A capoeira 
era vista pelo Estado como uma arte de guerra e permaneceu 
proibida até 1930.
O SÉCULO XX, O “PROGRESSO” 
E AS PRISÕES COM OS 
“AVANÇOS DA MODERNIDADE”
O filósofo francês Michael Foucault, que fazia parte do 
movimento anti-prisional na década de 1970, analisa em sua obra 
3 Ídem
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
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“Vigiar e punir: O nascimento da prisão” (publicada original-
mente em 1975) as duras penas que eram aplicadas aos conde-
nados até o século XVIII, além de oferecer uma reflexão sobre 
a evolução do sistema prisional e sua efetividade. Ele destaca 
que “a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e 
a crueldade” é um “fenômeno inexplicável”. A criatividade do 
ser humano em criar maquinários e mil e uma formas de causar 
dor e punir pessoas que de alguma maneira quebraram um pacto 
social, cometendo um delito, impressionava o filósofo. Foucault 
já apontava que muitas dessas pessoas são, no processo de cum-
primento da pena, colocadas à margem da sociedade, tendo seus 
direitos e corpos violados. 
Será que as prisões, as penas e as tecnologias de tortura 
são, de fato, funcionais? 
Foucault acreditava que não. Para ele, a função do sistema 
punitivista é exclusivamente “docilizar” os corpos daqueles que 
não se adaptaram à lógica capitalista, que são enquadrados como 
delinquentes ou que são considerados incômodos, por questio-
narem as normas sociais.
 A partir do século XVIII surgem as prisões com um sis-
tema parecido com o qual conhecemos hoje, com a proposta de, 
além de punir e torturar, reprogramar e recolocar essas pessoas 
de volta ao convívio social. Mas, para Foucault, a função corre-
cional das prisões era uma mera utopia. As chances de reincidên-
cia dos egressos ao sistema prisional, estatisticamente, eram altas. 
Mais um banho de sol 
20
O foco, mais que a ressocialização, continuou sendo a pu-
nição. As prisões, o sistema carcerário e as tecnologias de tortura 
foram se modernizando ao longo dos séculos, e a forma retró-
grada de escolher e julgar quem será encarcerado persiste. Os 
“selecionados” na maioria das vezes são aqueles já alijados na so-
ciedade. A advogada e abolicionista Dina Alves chama a atenção 
para a militarização de territórios periféricos, um dos quadros 
que marcam a nossa realidade, contribuindo para o encarcera-
mento. “O sistema mantém em funcionamento a sua engrena-
gem pela criminalização, pelo controle e pela vigilância ostensiva 
desses territórios”, explica. 
Dina acredita que a militarização se trata de um projeto 
maior para militarizar a vida de todos segmentos comumente ig-
norados e violentados, como as comunidades indígenas e os qui-
lombolas. O objetivo é fazer com que essas pessoas sejam atingi-
das pelas redes de captura do sistema prisional, essa maquinaria 
que vai desde o fuzil ao caveirão. “Isso acontece desde a hora que 
a mulher chega na audiência e é ridicularizada pela voz do juiz.Ali ela já sofre violência. É uma visão patológica do sistema de 
Justiça, dos juízes e seus operadores. Eles atacam essas mulheres, 
reduzindo-as a mães parideiras”, destaca. Dina se refere à frase 
usada pelo ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em 
entrevista ao portal G1, em 2007. Na ocasião, o político, que 
hoje se encontra detido no Complexo Penitenciário de Gericinó, 
acusado de liderar um esquema de propina com diversas em-
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
21
preiteiras duarante o mandato, disse ser favorável ao aborto por 
acreditar que essa “tática” diminuiria os índices de violência, pois 
essas mães eram “fábricas de produzir marginais”. 
Além da violência policial que aumenta exponencialmente 
a cada ano, o sistema penitenciário e seu braço mais adjacente, 
a polícia, vêm sofrendo uma crise que afeta toda a sociedade, a 
crise de segurança pública. Segundo pesquisa do FBSP (Fórum 
Brasileiro de Segurança Pública), 2020 teve o maior índice de 
mortes por intervenção da Polícia Militar no Brasil, desde que a 
entidade iniciou a pesquisa anual em 2013. Foram 6.416 mortes 
em 2020, um crescimento de 190% em relação ao ano de 2013. 
O levantamento também constatou que esse aumento vitimou 
em larga diferença a população negra, com 78,9% contra 20,9% 
de mortes de pessoas brancas.
Dentre essas 6.416 pessoas assassinadas, 290 eram das pe-
riferias do Rio de Janeiro, como resultado das operações policiais 
feitas nas favelas. Um dos casos mais recentes foi a morte do 
adolescente de 14 anos, João Pedro Matos Pinto, que foi atingido 
em 18 de maio de 2021 por uma bala na barriga, enquanto os 
agentes alvejavam a casa do menino. No total foram disparados 
70 tiros contra a residência do garoto. A operação foi realizada 
pela polícia federal em conjunto com a polícia civil, com o obje-
tivo de cumprir uma ordem de mandado de busca e apreensão 
contra líderes de uma facção criminosa. Os tiros teriam sido dis-
parados diante de granadas que os criminosos estavam jogando, 
Mais um banho de sol 
22
segundo a PCERJ (Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro). Na 
época, em entrevista à reportagem do jornal El País, testemunhas 
afirmaram que as granadas teriam vindo dos próprios policiais. 
A crise do nosso sistema penitenciário não é recente e, 
mesmo com a Constituição de 1988, que avançou bastante na ga-
rantia dos direitos dos cidadãos brasileiros, a realidade permane-
ce cada dia mais assoladora. Para Guilherme Macedo, advogado 
e secretário da Comissão de Igualdade Racial da OAB (Ordem 
dos Advogados do Brasil), a história do nosso sistema prisional 
não pode ser dissociada da história do nosso país. Por isso, trata-
-se de um sistema branco e elitista. “A maioria dos presos é preto 
e pobre. O sistema funciona para controlar as massas, mas não a 
elite. A elite faz o que bem entende. Um filho de desembargador 
é pego com mais de 200 kg de cocaína e não é preso. A gente tem 
senadores envolvidos em crimes e eles não são detidos. A polícia 
e o Judiciário trabalham dessa forma na nossa sociedade.”
Segundo dados de 2019 do Levantamento Nacional de 
Informações Penitenciárias (InfoPen), estamos em 3° lugar no 
ranking de países com maior população carcerária do mundo, 
com 726.712 presos, sendo que 64% dessa população é negra; 
26% dos presos estão no sistema por tráfico de drogas e 40,1% 
estão em situação provisória, ou seja, sem julgamento e/ou as-
sistência jurídica. “Mais de 40% dos nossos presos não tiveram 
o início de um julgamento, estão presos por um inquérito fraco, 
por achismo do Judiciário”, denuncia Guilherme. 
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
23
De acordo com a mesma pesquisa, 55% da população car-
cerária é formada por jovens. Já no sistema prisional feminino, 
entre 2006 e 2014 tivemos um aumento de 567,4% no número 
de detentas. Existem 37.380 mulheres encarceradas, sendo que 
67% delas são negras. 
Se o sistema mantiver esse ritmo de aprisionamento em 
massa, no ano de 2075 uma a cada 10 pessoas estará em situação 
de cárcere.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em 2015 o Su-
premo Tribunal Federal, através de uma ADPF (Arguição de 
Descumprimento de Preceito Fundamental: Esta ação, serve 
para defender alguma lei ou código que seja ameaçado por ato 
do poder público), definiu a situação do sistema prisional brasi-
leiro como um “estado de coisas inconstitucional”, por conta da 
violação dos direitos fundamentais da população carcerária, por 
omissão do poder público. 
Dina Alves salienta que a “revelação” feita pelo STF só em 
2015 já era denunciada pela população carcerária e as entidades 
de direitos humanos há décadas. “A tuberculose, por exemplo, 
é uma doença que atinge a maioria da população prisional. Por 
quê? Porque essas pessoas estão vivendo em um lugar pequeno, 
inóspito, sem sequer ter sol. Dormem no chão, no frio. Quem 
oferece o mínimo de dignidade aos detentos são suas famílias, 
quando conseguem entrar na penitenciária. Mesmo assim, muitas 
vezes os familiares são impedidos”, completa.
Mais um banho de sol 
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A advogada nos detalha um caso que teve a oportunidade 
de acompanhar. Uma mãe que precisava levar Cataflan (remé-
dio anti-inflamatório) para uma infecção dentária que seu filho 
adquiriu na cadeia. Ela teve seu pedido negado pelo diretor do 
presídio. O diretor disse que ela teria de ir até o Fórum da Barra 
Funda, na zona oeste de São Paulo, para pegar uma autorização 
do juiz. “Nisso, ela levou meses. Ela mora na zona leste, na região 
do Itaim Paulista. A Barra Funda tá ali na zona oeste. São lugares 
totalmente diferentes, e ela depende do transporte público. E o 
papel [autorização] não sai na hora. Você tem que fazer um re-
querimento, você não fala com o juiz no mesmo dia. Além disso, 
quem vai te atender é um funcionário que vai olhar torto para 
você, porque você vem do sistema. Então tem todo um trata-
mento diferenciado, articulado e racialmente definido pelo olhar 
dessas pessoas. Essa mulher, depois de muita burocracia, conse-
guiu finalmente levar o remédio para o filho. Ele tomou o medi-
camento, melhorou da infecção dentária, mas aí teve um proble-
ma no estômago. E ela teve que fazer toda a trajetória de novo. Ir 
lá pedir para o juiz liberar, porque o sistema não tinha o remédio 
para a nova infecção que ele contraiu. O que vemos, portanto, é 
o negligenciamento e a precariedade da vida”, conclui.
O ex-detento Marcelo de Almeida Silva confirma a falta 
de assistência na realidade das celas. “O atendimento é precário 
mesmo. Eu peguei um começo de pneumonia e sabe como eu 
tratei? Com paracetamol.”, relata, com um sorriso irônico. Mar-
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
25
celo começou a tossir demasiadamente e o procedimento toma-
do, dentro do presídio, foi fazer exames para descartar a possi-
bilidade de tuberculose, doença que até hoje é a mais comum e 
também a mais letal dentre os presos. Mesmo assim, não deram 
remédios adequados para tratá-lo. 
 De acordo com pesquisa da médica pneumologista da 
Secretaria de Administração Penitenciária do estado do Rio de 
Janeiro, Alexandra Roma Sánchez, a incidência da doença nas 
prisões do Rio de Janeiro é 30 vezes maior do que na população 
do estado. Um estudo feito em 2017 em conjunto pela Fundação 
Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Federal de Mato Gros-
so do Sul (UFMS) e um grupo de pesquisadores internacionais 
mostrou que os casos de tuberculose na população carcerária da 
América Latina cresceram 269% entre 2011 e 2017. No Brasil 
houve um aumento de 45%.
“Devido ao espaço ser pequeno e uma pessoa ser o su-
ficiente para contaminar outras 50, eles te fazem o exame. Mas 
nem sempre dá para nos deixar isolados,não tem como. Só cos-
tumam deixar, quando é um caso avançado. Aí sim você fica no 
isolamento, mas também é coisa de dois, três meses no máximo, 
sendo que o tratamento ideal seria você ficar isolado uns seis 
meses.”, conta Marcelo.
Marcelo, vulgo Sabotage, foi enquadrado em 1998 no arti-
go 157 do Decreto Lei n° 2.848 por cometer roubos em prédios 
comerciais. Ele ficou preso por seis meses na Casa de Deten-
Mais um banho de sol 
26
ção de São Paulo, o famoso Carandiru, onde em 2 de outubro 
de 1992, após uma desastrosa intervenção da Polícia Militar do 
Estado de São Paulo, 111 detentos foram assassinados. A ação 
foi condenada por organismos internacionais, como a Comissão 
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Es-
tados Americanos (OEA). No Pavilhão 8 do Carandiru, Marce-
lo conheceu o rapper Sabotage, que deu origem ao seu apelido 
(também pela semelhança com o artista). A última vez em que foi 
detido, em 2017, foi condenado a 14 anos de reclusão. Cumpriu 
4 anos e 9 meses e teve a apelação de regime aberto aceita por 
bom comportamento.
LEI DE DROGAS: “A NOVA 
LEI DA VADIAGEM” 
Em 23 de agosto de 2006 foi promulgada a Lei n° 11.343, 
conhecida como “Lei de Drogas”, que instituiu o Sistema Nacio-
nal de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), prevendo, dentre 
outras coisas, normas para repressão à produção não autorizada 
e ao tráfico ilícito de drogas. Somada à criação em 2008 das Uni-
dades de Polícia Pacificadoras (UPPs), que começaram a ser ins-
taladas nas comunidades para combater o tráfico e, supostamen-
te, estabelecer uma nova relação com os moradores, a legislação 
acabou oficializando a militarização dos territórios periféricos, 
causando impactos no sistema penitenciário.
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
27
“Essa lei é um braço da necropolítica4. Com as UPPs, por 
exemplo, o que chega na comunidade é a militarização, o Exér-
cito. Não há nenhuma melhoria, não tem escola, não tem sanea-
mento básico, postos de saúde. A comunidade continua na pre-
cariedade, mas com uma base militar. E aí acontecem os abusos 
por parte da força policial, como vimos no Jacarezinho”, destaca 
Guilherme Macedo.
No dia 6 de maio de 2021 a polícia civil invadiu a favela 
do Jacarezinho, na zona norte do Rio, para mais uma operação 
contra o tráfico de drogas que, segundo o Grupo de Estudos dos 
Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense 
(UFF), foi a mais letal da história do estado. Foram 28 mortes 
no total, 13 não tinham ligação com a investigação da polícia, se-
gundo a Ordem Brasileira dos Advogados (OAB). Em entrevista 
coletiva em Genebra, na Suíça, na época da chacina, o porta-voz 
dos direitos humanos da ONU, Rupert Colville, afirmou, em tom 
de denúncia, existir um histórico, no Brasil, do uso da força poli-
cial de maneira desproporcional e desnecessária.
De acordo com pesquisas do Geni, 85% das operações 
das forças de segurança nas regiões metropolitanas do Rio de 
Janeiro entre 2007 e 2020 tiveram como razões mandados de 
prisão e/ou busca e apreensão, repressão ao tráfico de drogas e 
armas e elas foram pouco eficientes, ineficientes ou desastrosas.
4 Necropolítica é o termo utilizado pelo filósofo camaronês, Achille Mbembe, para explicar a 
política dos Estados de quem deve morrer e quem deve viver, dentro do contexto racial. ( Necro-
política, Achille Mbembe - publicado em 31 de março de 2011) 
Mais um banho de sol 
28
 Em março de 2018, Marielle Franco, na época vereadora 
pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) do Rio, foi assas-
sinada. Os autores ainda não foram identificados pela Justiça. 
Ela estudava a militarização das comunidades, seja por conta da 
instalação de UPPs ou por operações policiais, e lutava contra 
essa realidade. Marielle destacou: “Algo relevante a ser conside-
rado são as políticas de controle social implicadas nas propostas 
administrativas da organização democrática. Estas viabilizam ou 
forjam as dimensões do Estado. Projetos institucionais de enqua-
dramento do ‘anormal’, nos termos impostos por uma espécie de 
controle da ‘saúde coletiva e individual’, transmutam na base das 
estratégias do Estado para lidar com o novo problema: o paradig-
ma da participação da gestão da população favelada”, salientou 
Marielle, em sua dissertação de mestrado “UPP - a redução da 
favela a três letras: uma análise da política de segurança pública 
do Estado do Rio de Janeiro”, defendida em 2016, na Universi-
dade Federal Fluminense. 
As UPPs foram implantadas no ano de 2008 com o ob-
jetivo de ocupar as favelas do estado para combater o domínio 
do tráfico de drogas e a violência, porém, dados levantados pela 
própria polícia civil mostram que o crime organizado tem atua-
ção em 1.413 favelas do Rio, sendo que o tráfico domina 81% 
desses territórios e a milícia 19%.
Além disso, cabe o questionamento: para o Estado e para seus 
braços - a polícia e o Judiciário - quem é traficante e quem não é?
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
29
Em novembro de 2018, o governador do Rio, Wilson Wit-
zel disse em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo: “O correto 
é matar bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: 
vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”. No mesmo 
ano, dois meses antes da entrevista do governador, a PM do Rio 
matou um homem na favela Chapéu Mangueira ao confundir um 
guarda-chuva preto com um fuzil e o canguru (suporte que ele 
usava para carregar o filho de 10 meses) com um colete à prova 
de balas. Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, 26 anos, casado, 
pai de dois filhos, homem negro, descia a ladeira da favela para 
encontrar sua esposa, quando, de repente, sentiu os disparos. 
Foram três tiros. Ele não resistiu. Em 2010, em Andaraí, zona 
norte do estado, o cabo Leonardo Albarello do Bope (Batalhão 
de operações especiais) matou o morador Hélio Ribeiro, após 
confundir uma furadeira com uma arma. O cabo foi absolvido 
pelo homicídio.
Assim como Guilherme Macedo e Marielle Franco, Dina 
Alves não acredita que a ocupação feita pela polícia nas regiões 
periféricas seja uma solução.
“A gente precisa entender que a militarização dos territó-
rios é a militarização da vida das pessoas, porque é o direito de 
ir e vir que é tolhido. A pessoa não pode andar sossegada na sua 
comunidade, sem ser parada e revistada. A qualquer momento 
pode levar um tiro de fuzil. Imagine o que é ver o caveirão o 
tempo inteiro parado perto da sua casa, de forma ofensiva, crian-
Mais um banho de sol 
30
do terror? O trauma imposto é muito grande, ainda mais porque 
essas pessoas veem os seus sendo assassinados e não podem aju-
dar. Não podem chamar a ambulância, porque é proibido. Tudo 
isso é muito perverso”, diz.
Para a pesquisadora Juliana Borges, a criação da Lei de 
Drogas é um dos “principais argumentos no qual se baseia e se 
legitima o superencarceramento”. Os dados confirmam. Segun-
do levantamento do Infopen, em 1990, a população carcerária no 
país era de aproximadamente 90 mil presos. Em 2019, quando a 
pesquisa foi realizada, pode-se constatar um aumento de 70% 
dessa população, com 726 mil pessoas encarceradas. A mesma 
pesquisa aponta que o tráfico lidera o ranking dos motivos que 
levam ao encarceramento. Dentre a população carcerária mas-
culina, 26% dos presos foram autuados por tráfico e 62% das 
mulheres cumprem pena pelo mesmo artigo.
Guilherme acredita que deveríamos ter sim uma Lei que 
regularizasse e controlasse o acesso às drogas, mas não uma le-
gislação que seja análoga à antiga Lei da Vadiagem. “Essa lei que 
a gente tem aí deveria ser extirpada do mapa. Ela transforma o 
Judiciário em uma mera extensão do camburão, porque a polícia 
vai prender o preto pobre com a droga e o juiz, com a discricio-
nariedadeque tem, decide quem vai ser o traficante ou não. Ele 
só chancela o que a polícia fez. Se for uma pessoa branca, uma 
pessoa da elite, ela nem vai ser presa, e, caso ela seja, o Judiciário 
vai dar permissão para ela voltar para a sociedade, sem ser tratada 
como criminosa”, explica.
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
31
O estigma que se criou a partir da guerra às drogas a res-
peito de pessoas negras e periféricas é estudado por diversos 
pesquisadores e ativistas e, também, pelo Tribunal de Justiça de 
São Paulo, que realizou uma pesquisa que comprova a forma ar-
bitrária que a polícia e o Judiciário enquadram e condenam essa 
população. O estudo apontou que pessoas negras são proporcio-
nalmente mais condenadas por tráfico do que pessoas brancas, 
71% contra 67% respectivamente, sendo que somente 5,2% dos 
casos entre os negros têm classificação como “usuário” e 7,7% 
entre os brancos, ao passo que os réus negros foram mais con-
denados portando quantidades inferiores de ilicitos, em casos de 
apreensões de um tipo de droga. 71% dos negros foram con-
denados portando 145 gramas de maconha e 64% dos brancos 
foram condenados com 1,14 quilos, uma diferença nada irrisória. 
A Lei também atinge de forma significativa as mulheres, 
como vimos na pesquisa realizada pela Infopen. Mas, de acordo com 
o estudo “Amor bandido: as teias afetivas que envolvem a mulher ao 
tráfico de drogas”5, feito por Elaine Cristina Pimentel Costa , são 
diversos os motivos que levam ao encarceramento dessas mulheres. 
Um deles são relações íntimo-afetivas entre pais e filhas ou marido 
e mulher, fazendo com que elas atuem como co-autoras dos crimes.
Ainda que coadjuvantes e em posições subalternas, essas 
mulheres são as que ficam na linha de frente, as primeiras a serem 
5 Publicado em 2008 pela Universidade Federal de Alagoas (P.16)
Mais um banho de sol 
32
encarceradas, pois exercem função de “vapor” (encarregadas de 
embalar o produto), mulas ou “aviõezinhos” (realizando o trans-
porte da droga). Há também um perfil característico de mulheres 
que recorrem a esse caminho. De acordo com o Infopen, a maio-
ria delas é negra (62%) e sem escolaridade (50%).
Para Dina Alves, tudo isso faz parte de uma simbiose 
mortal que coloca as mulheres em uma posição de alta vulne-
rabilidade. Segundo ela, o que motiva essa situação é a própria 
lei de drogas, que deixa brechas para que a polícia escolha quem 
deve ser visto como traficante ou usuário e dá discricionariedade 
ao juiz na hora do julgamento, por haver termos subjetivos em 
relação à quantidade que qualifica um usuário ou não.
“Tudo isso faz parte de um pacote para que elas sejam de 
fato as presas, as laranjas do sistema prisional, para que sejam 
capturadas por essas agências de controle. Essas mulheres são 
mães, o que acaba revelando a violência que é perder a guarda 
dos filhos ou deixá-los com alguém da família, que normalmente 
é a avó ou tia”, explica.
Dina ainda ressalta que essas mulheres, em sua maioria, 
são as únicas provedoras do lar, trabalhando como faxineiras, 
babás, empregadas domésticas ou vendendo frutas nos grandes 
centros urbanos para sobreviver. “E aí tem outro lado perverso. 
Elas também acabam sofrendo esculacho da polícia como ven-
dedoras ambulantes, então existe todo um repertório de violên-
cia, inclusive que antecede o sistema prisional.”
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
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O aumento exponencial das prisões por tráfico de drogas 
está diretamente ligado ao encarceramento em massa. “Um dado 
interessante sobre o impacto direto da nova Lei de Drogas no 
superencarceramento é o tempo de funcionamento das unidades 
prisionais. São 1.424 unidades prisionais no país. Quatro em cada 
dez dessas unidades têm menos de dez anos de existência. O que 
quero dizer é que se antes havia um crescimento estável, e por di-
versos fatores que, não tenho dúvidas, também se impregnava de 
racismo, a reordenação sistêmica e de pleno funcionamento da 
lógica racista ocorre neste março de 2006 [com a lei de drogas]”, 
argumenta Juliana Borges, em seu livro,
Outro fator que tem levado à superlotação das penitenciá-
rias está relacionado aos presos em situação provisória ou que já 
cumpriram pena e ainda estão no presídio por falta de assistência 
jurídica. Guilherme Macedo, secretário da Comissão de Igualda-
de Racial da OAB, diz ser possível fazer um trabalho de mapea-
mento, assim como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e 
Estatísticas) faz nas ruas, para identificar e verificar por que as 
pessoas estão presas e quais são seus processos, mas que essa 
pesquisa não ocorre por falta de interesse. “A gente tinha que 
otimizar o Judiciário, cadastrar todo mundo, ver quem já passou 
pela pena, averiguar quanto tempo a pessoa está presa. Esse seria 
o caminho. Há casos de detentos que não constam no sistema. 
Então é muito difícil. O mapeamento é muito importante. Hoje, 
com a tecnologia, não é impossível fazê-lo. Basta uma vontade 
Mais um banho de sol 
34
legítima por parte do poder público e dos setores envolvidos no 
sistema penitenciário.”
A superlotação deixa as penitenciárias à beira da crise, 
causando rebeliões letais como aconteceu em 1992 no Carandiru 
ou em 2013 no complexo penitenciário Pedrinhas, no Maranhão, 
quando aproximadamente 60 presos morreram. Essas tragédias 
acabam impulsionando as discussões que apontam a privatiza-
ção dos presídios, como solução. “Alguém tá ganhando com 
isso, alguém tá ganhando vendendo algema, alguém tá ganhando 
vendendo arma e outros mais tantos estão ganhando fazendo 
prisões particulares. E aí você vê os detentos, de fato, sendo tra-
tados como bichos, porque o cara vai ganhar por quantas cabeças 
tiver dentro da prisão”, destaca Guilherme. 
Para o secretário da Comissão de Igualdade Racial da 
OAB, diante da falta de condições básicas para a população bra-
sileira, investir em modernização das cadeias é um contrassenso. 
“A gente tá falando sobre privatização de prisões, num país que 
mais da metade da população não tem saneamento básico, não 
tem o mínimo”, reforça.
DE VOLTA ÀS RUAS 
 
Fábio Pereira Campos se tornou membro da Amparar 
(Associação de Amigos e Familiares de Presos) após passar pelo 
sistema penitenciário entre 2004 e 2006. Sua mãe (não quis se 
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
35
identificar), hoje uma senhora de 81 anos, cruzava diversas vezes 
com outras progenitoras na fila da penitenciária nos dias de visi-
ta, até que conheceu duas mulheres que seriam fundamentais na 
história de Fábio: Mirian Duarte Campos e Maria Railda Silva.
Mirian e Railda tinham um movimento chamado Mães da 
Febem, que nasceu em 1998, um grupo de mulheres que tinham 
seus filhos em situação de cárcere na Fundação Estadual para o 
Bem Estar do Menor. Elas se juntaram para denunciar e evitar 
que os direitos de seus filhos fossem violados e que os corpos 
deles fossem torturados. “Não existia Defensoria Pública. Na 
época, o que tinha era o PAJ [Processo de Assistência Jurídica]. 
Começamos a nos vincular ao Fórum da Infância e da Juventude 
do Brás, nos aproximamos dos advogados de lá. Logo começa-
ram a ver que as denúncias que fazíamos eram verdadeiras. Eles 
iam lá fazer inspeção e conseguiam achar tudo aquilo que nossos 
filhos falavam dos instrumentos de tortura”, explica Miriam.
Ela destaca que a unidade da Febem do Tatuapé era o lo-
cal onde mais ocorriam abusos contra os adolescentes. As mães 
juntaram-se à promotoria do Fórum do Brás, para conseguir dar 
andamento às denúncias. “Eram três promotores naquela época. 
Eles escutavam as famílias e isso fazia diferença”, destaca.
Miriam destaca que os jovens adultos que saíam da Fe-
bem acabam sendodirecionados para o sistema prisional. “En-
tão a Febem não funcionou de forma alguma! Assim como 
hoje não funciona a Fundação Casa [entidade que substituiu a 
Mais um banho de sol 
36
Febem]. Os jovens adultos ingressam no sistema prisional e as 
violações persistem.”
 Com o mesmo propósito das Mães da Febem, a Amparar 
surgiu para que pais e irmãos possam acompanhar seu familiar de-
tento que migrou para o sistema prisional adulto. A mãe de Fábio 
uniu-se a essas mulheres para ajudar seu filho nessa passagem.
Hoje a associação tem grande importância para os presos 
e seus familiares, tanto no cumprimento da pena quanto no pro-
cesso de ressocialização. 
Fábio diz que, para o preso, o processo de remição da 
pena (abatimento dos dias e horas trabalhadas, diminuindo o 
tempo de condenação) é marcado por sonhos e planos. Muitos 
desejam ter a oportunidade de estudar e/ou trabalhar dentro 
das penitenciárias, para colocarem seus objetivos em prática. A 
cada três dias trabalhados ou de estudo, o detento tem um dia 
a menos de pena. Só que diferentemente do que acontecia nos 
anos 1990, hoje essas concessões não são dadas facilmente a to-
dos, em mais uma negação de direitos. “Se você tem realmente 
um projeto de reabilitação, reeducação, ressocialização como o 
Estado diz ter, é importante pensar na possibilidade de cons-
truir isso de dentro para fora, porque não faz sentido nenhum 
construir um sistema que não cria nenhuma possibilidade para 
pessoa estudar, trabalhar. Não dá pra você exigir uma reeduca-
ção da pessoa quando ela está fora do presídio, se lá dentro do 
sistema ela não teve a oportunidade de mudar. Como você vai 
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
37
ser um reeducando, se não estuda? Vai se reeducar na base da 
pancada?”, questiona.
Como Foucault (citado no início deste texto) apontou há 
décadas, a ideia de um sistema prisional meramente punitivista, 
em que todos esforços e energias são concentrados em endu-
recer as penas, não funciona, fazendo aumentar a reincidência 
dessas pessoas no crime.
De acordo com o relatório “Reentradas e reiterações infra-
cionais - Um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional 
brasileiros”, realizado pelo Departamento de Pesquisas Jurídicas 
do Conselho Nacional de Justiça e publicado em março de 2020, 
pode-se observar que 42,5% dos egressos maiores de 18 anos 
com processos registrados no ano de 2015, retornaram ao sistema 
carcerário até pelo menos 2019. A pesquisa também revela que o 
fato das reentradas de adultos serem duas vezes maiores que a de 
adolescentes torna possível a “maior capacidade de interromper a 
trajetória dos ilegalismos”, pelo fato dos centros de detenção de 
jovens infratores utilizarem métodos socioeducativos, revelando 
também a ineficácia da redução da maioridade penal.
Dina Alves faz um paralelo entre os métodos de ressocia-
lização do sistema adulto e o caso de Lázaro Barbosa de Sousa, 
o serial killer de Ceilândia, Brasília, que ganhou notoriedade após 
assassinar quatro pessoas da mesma família em junho de 2021, 
e protagonizar uma caçada histórica que durou 20 dias. “O caso 
do Lázaro é interessante para pensarmos no programa de resso-
Mais um banho de sol 
38
cialização do nosso sistema prisional. O que deu errado nos pro-
gramas de ressocialização do governo que não conseguiu trazer 
o Lázaro de volta para sociedade, já que ele ficou tanto tempo 
preso?”, indaga.
Ela destaca que o próprio sistema soltou notas informan-
do que Lázaro havia participado de grupos terapêuticos e outras 
reuniões, voltadas a ressocializá-lo. “Tudo isso é uma bobagem, 
faz parte do sistema prisional de controle de extermínio. Na ver-
dade, não existe uma política de ressocialização, uma política efe-
tiva que realmente garanta à pessoa que sai do sistema todo tipo 
de reparação por conta de violência que ela sofreu lá dentro. E 
não só a violência física. É preciso considerar a violência psico-
lógica e a espiritual. São várias interseccionalidades de violência.”
As declarações de Julio Cesar Floriano, diretor do Pro-
grama de Atenção ao Egresso e Família da Secretária de Reinte-
gração Social, destoam da visão de Dina. Ele afirma haver uma 
preocupação com a reparação ao egresso tanto no âmbito social 
quanto em lesões psicológicas deixadas pela reclusão. Julio diz 
que a partir do momento que o egresso sai do sistema prisional, 
ele é entendido enquanto cidadão em vulnerabilidade, dado que 
durante o período em que estava cumprindo pena teve seus vín-
culos sociais alterados. 
“Quando o detento sai, há uma necessidade de se obser-
var alguns pontos importantes: a saúde, a questão da orientação 
jurídica, a questão da educação, do trabalho, tendo em vista que 
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
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o tempo recluso passa diferente de quem está aqui fora. A Cen-
tral ao Egresso e Família procura atender o ex-preso com base 
nesses fatores”, defende.
 Ele diz haver uma preparação da pessoa para a inserção 
no mercado de trabalho e, dentre as ações oferecidas estão uma 
oficina de currículo e de empregabilidade. O ex-detento também 
passa por um atendimento com uma assistente social e uma psi-
cóloga, para identificar experiências profissionais e saber como 
se portar em uma entrevista de emprego.
“A gente faz a conversa com eles e encaminha para a en-
trevista, não necessariamente para a vaga. E também temos uma 
ponte com empresas, fazemos um encaminhamento. Muitas ve-
zes as empresas entram em contato conosco no sentido de solici-
tar um auxílio, com relação a empregabilidade”, pontua.
Mas a realidade se distancia desse quadro. Além de muitas 
vezes receberem uma negativa das empresas, a grande demanda 
por empregos num cenário de crise econômica retarda as chances 
do egresso conseguir uma vaga. O ex-detento Marcelo de Almeida 
explica a situação delicada de um egresso do sistema ao procu-
rar novas oportunidades de trabalho. O estigma de “presidiário” 
permanece com ele. “Faz três meses que eu saí. Eu já fui lá umas 
quatro, cinco vezes procurar uma vaga de colocação no mercado 
de emprego, porque eu sou chefe de cozinha, formado pelo Se-
nai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial]. Eu tenho uma 
profissão. Cometi meus erros, cometi. Mas paguei e não deveria 
Mais um banho de sol 
40
sofrer consequências. Só que quando eu saí e tentei me reintegrar 
com a sociedade, não me deram oportunidade”, desabafa.
A falta de trabalho acarreta outras dificuldades. Cada preso de-
manda um gasto do Estado, tanto pela alimentação como por um 
defensor público, se isso for requerido. Esse gasto se torna uma dívida, 
que é calculada de acordo com o tempo em que a pessoa esteve presa. 
Sem emprego e sem dinheiro, essa dívida se acumula e 
acaba por “sujar” o nome do egresso. “E se porventura você não 
pagar essa multa e for preso em outro BO, eles revertem a sua 
multa em penas carcerárias, você passa a ter uns dias a mais da 
sua pena. Por exemplo, você foi condenado a 5 anos e 4 meses 
e ficou devendo 20 mil, desses vinte mil, eles fazem um cálculo 
para ver quantos dias dá de pena. Aí esses dias são revertidos em 
penas prisionais, eles não te liberam”, explica.
Em relação à assistência psicológica, Julio Floriano diz que 
existe um acompanhamento social-assistencial, não é um acom-
panhamento terapêutico, mas é um acompanhamento orientado. 
Ao ter alguma dúvida ou alguma necessidade, o detento retorna 
ao atendimento da Central ao Egresso e Família. Muitas vezes 
a própria empresa em que o egresso está trabalhando, encami-
nha ele para o atendimento, se houver uma demanda simples. 
“O nosso agente técnico da assistência saúde faz o atendimento. 
Caso seja uma situação que demande um acompanhamento mais 
demorado ou mais complexo, temos parceirosna rede de atendi-
mento para dar auxílio ao atendido.”
Capítulo 1 – Sistema penitenciário e encarceramento no Brasil: uma história de abusos, violência e omissão
41
Mas o atendimento psicológico dentro do sistema prisio-
nal, algo tão importante para os presos, já que as unidades penais 
e seu funcionamento não dialogam com o mundo fora delas, se 
faz ausente. Marcelo diz que todo preso deveria ter ao menos 
uma avaliação psicológica por mês, mas que isso existe somente 
no papel. Nos cinco anos em que esteve cumprindo pena, nunca 
se consultou com uma psicóloga. 
“Eu falei apenas uma vez com a assistente social. Foi 
quando eu soube que meu filho foi preso. Aí eu precisei telefonar 
pra mãe dele. Psicóloga eu só vi o nome dela na folha. É raro, é 
um ou outro de vez em quando que consegue esse atendimento. 
Só quando a situação está muito ruim mesmo.”, assegura.
Fábio Pereira diz o quanto é importante uma rede de 
apoio a um detento e o quão letal pode ser o abandono do Esta-
do e dos familiares. “Nada deixa um homem mais doente, que o 
abandono dos parentes”, já diz a letra da canção “ Diário de um 
detento”, do grupo de rap Racionais Mcs.
Fábio nunca se esquece de um caso que aconteceu em 
2006 e chocou ele e todos os colegas da unidade em que ele es-
tava, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. “Era um dia de 
visita foi aquela festa. Todos estavam felizes. As famílias estavam 
saindo da cadeia e tinha um amigo nosso que era barraqueiro. 
Ele cuidava do esportivo da cadeia. Era um cara legal, parceiro 
nosso. Só que ele estava preso há quase 20 anos e tinha sido 
abandonado pela esposa e pela família. Naquele dia de visita, ele 
Mais um banho de sol 
42
se suicidou, pegou um Prestobarba, quebrou a parte de cima e 
passou na jugular. Ele tirou a própria vida, porque não aguentava 
mais aquilo. A não condição humana pode levar as pessoas à 
loucura”, relembra.
O advogado Guilherme Macedo se diz pessimista ao pen-
sar numa solução para o problema do superencarceramento que 
temos em nosso país: “A gente caminha a passos largos para a 
decadência, então eu não tenho como ficar otimista. Com as leis 
que temos, com o que a gente tá discutindo no Congresso, com 
esse crescimento gigantesco desse movimento neopentecostal, 
com um discurso totalmente moralista e conservador… Como 
vou pensar positivo diante de tudo isso? Então, eu não consigo 
olhar e ver um cenário de melhora”.
Ainda que seja uma responsabilidade do Estado, toda a 
sociedade deve se preocupar e se posicionar contra o problema 
do encarceramento em massa, antes mesmo de ser uma respon-
sabilidade jurídica, deve ser social. 
Como destaca Emanuel Queiroz, coordenador de Defe-
sa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro 
(DPRJ), no lançamento do caderno de propostas contra o supe-
rencarceramento em 2017, a sociedade deve assumir a responsa-
bilidade da forma “irracional” como responsabiliza as pessoas, 
usando a prisão de forma “natural” e “cotidiana”. 
Capítulo 2 – O bom carrasco
43
CAPÍTULO 1 1 
O BOM 
CARRASCO
Por Isabela Tiritan
- De onde surgiu a vontade de ser carcereiro?
- Não foi vontade. Foi necessidade. Eu precisava sustentar 
meus filhos e essa foi a oportunidade que apareceu na época.
Assim Jhonatas Francisco de Souza, um homem negro de 
57 anos, nascido e residente na cidade de Guarulhos, município 
da Região Metropolitana de São Paulo, começa nossa conversa, 
explicando-me sua decisão profissional .
Criado por pais cristãos, Jhonatas teve uma infância dife-
rente de seus amigos do bairro. Em vez de jogar bola aos fins de 
tarde, precisava finalizar a tarefa escolar. Logo que chegava em 
casa era cobrado pela família. Depois de cumprir seus deveres, 
Mais um banho de sol 
44
ficava livre para se sentar ao lado da mãe na leitura da liturgia do 
dia. O conservadorismo de sua família durou anos a fio. Não po-
dia ter amigos fora da igreja (eram cristãos). Os finais de semana 
eram dedicados somente a eventos religiosos ou familiares. Mas 
ele foi se adaptando a essa rotina e, no fundo, gostava da religião.
Com o passar do tempo, os pais começaram a ficar mais ma-
leáveis e Jonathas foi em busca de sua independência. Aos 14 anos, 
já trabalhava como carteiro na empresa dos Correios e Telégrafos, 
onde ficou até completar a maioridade. Assim que completou os 18, 
foi convocado para o Exército brasileiro, prestando serviço por um 
ano na base aérea de Cumbica, na Aeronáutica. “Aquele ano foi um 
divisor de águas pra mim, aprendi muita coisa. Bati muito a cabeça 
também, mas, com certeza, não era o que eu queria pra minha vida.”
Logo após cumprir seu ano de serviço obrigatório, conheceu 
Luciana, a atual esposa e mãe de seus dois filhos: Letícia e Marcos. Já 
casado e com a responsabilidade de administrar uma casa, foi em bus-
ca de um novo emprego, mas as oportunidades naquela época eram 
poucas. Para tentar contornar a situação, decidiu prestar concurso pú-
blico em sua cidade, como agente penitenciário, cargo que não era 
muito concorrido. Teve sua aprovação e foi convocado em seguida, 
sendo necessário fazer um curso intensivo antes de começar efetiva-
mente. “Esse curso durou somente um mês, a penitenciária precisava 
ser inaugurada, então, tivemos uma formação muito rápida, devido a 
essa demanda e à falta de funcionários. Lá basicamente foi explicado 
que você responde civilmente e criminalmente por qualquer ato seu. 
Porém, sobre o trabalho mesmo você só aprende na prática.”
Capítulo 2 – O bom carrasco
45
O COMEÇO DA JORNADA
Em 16 de junho de 1991, Jhonatas teve seu primeiro dia 
como carcereiro. O ingresso na função ocorreu na penitenciária 
José Parada Neto, hoje conhecida como penitenciária de Gua-
rulhos. A rotina daquele dia ainda é a mesma de hoje. O relógio 
desperta às cinco horas da manhã, ele levanta, toma seu banho e 
veste o uniforme que está separado na cadeira ao lado da cama. 
Dá um beijo de despedida em Luciana e vai até o seu carro. O 
caminho não é muito longo, são aproximadamente 12 minutos 
de viagem até o local. O rádio toca as notícias do dia e ele chega 
pontualmente às seis da manhã.
Ao assumir um plantão, a primeira coisa que ele faz é 
tomar seu café da manhã, que é feito pelos próprios presos que 
trabalham na cozinha. Às 6h20, inicia-se a contagem de reclu-
sos por cela, de pavilhão a pavilhão. Se o número de presos 
contados forem iguais à tabela do sistema, é acionado o Setor 
de Vigilância da prisão, que designa o chefe de plantão para 
conferir o número informado e liberar o agente responsável 
pelo turno anterior.
Após a contagem, os detentos são divididos em dois gru-
pos: os que prestam algum serviço ali dentro e os que não tiveram 
a oportunidade para fazer algo a mais do que cumprir sua pena. Às 
8 horas toca a primeira sirene, que libera aqueles que trabalham. Já 
o restante só é liberado na segunda sirene, às 9 horas, para o banho 
de sol, que se encerra pontualmente às 10 horas.
Mais um banho de sol 
46
Jhonatas relata que o banho de sol é o momento mais 
tranquilo de todo seu expediente. É nessa hora que os reclusos 
conseguem ter um espaço mínimo para respirar, conversar e es-
quecer um pouco da condição que ali estão inseridos. 
Mas, quando a sirene toca para retorno às celas, a rea-
lidade do encarceramento em massa afeta todos os lados en-
volvidos. A capacidade máxima da Penitenciária de Guaru-
lhos é de 900 presos, porém, atualmente eles possuem cerca 
de 2500 encarcerados. 
“Uma cela que cabem seis e chega a ter 20, 21, até 25 
presos. Na cela que cabem três, tem 12, 15, 20 pessoas uma 
em cima da outra. Isso afeta totalmente a rotina e a conta-
gem, pois o preso fica irritado, insubordinado e não conse-
guimos convencê-lo, afinal, é uma condição subumana que 
ele está inserido.”
Infelizmente, esse não é um problema exclusivo da Peni-
tenciária de Guarulhos. 
Além das condições insalubres, a faltade atendimento 
médico e suprimentos deixa os ali inseridos sem nenhum supor-
te, dependendo muitas vezes da ajuda dos próprios agentes.
“Até mesmo um Paracetamol ou um Diclofenaco não tem 
disponível. O dentista vai lá apenas uma vez por semana e, nesse 
meio tempo, tentamos amenizar com os remédios, mas já teve 
caso de preso que peguei chorando por conta da dor de dente. 
Eu acabei levando medicamento de casa, mesmo não sendo per-
mitido, e dei pra ele tomar.”
Capítulo 2 – O bom carrasco
47
Brigas, fortalecimento das facções, adoecimento, assassinatos 
e até suicídio. Esses são alguns dos reflexos que Jhonatas vê em seu 
dia a dia, por conta da precariedade do sistema. O “acerto de con-
tas” feito pelos próprios presos normalmente acontece de forma 
oculta, eles entram dentro da cela quando está aberta, ou abrem de 
alguma maneira, de madrugada. Mas isso não é uma regra.
SANGUE PELA CELA
Em meados de 1992, ao assumir mais um plantão, foi sur-
preendido com um assassinato na sua frente, a poucos metros de 
distância, momento que destaca como um dos mais difíceis em 
todos os anos de profissão. Deusdete, conhecido como “Coe-
lho”, era um dos detentos mais próximos de Jhonatas. Por um 
deslize, confiou em pessoas erradas.
Alguns dias antes do ocorrido, o preso recebeu uma pipa, 
objeto que é muito utilizado como forma de bilhete para enviar 
recados ali dentro. A mensagem era clara: você será morto. Mas 
Deusdete não levou a sério.
Jho, esquece isso aí. É brincadeira, os cara são meus par-
ceiro, não vai dar nada, não. - falou o preso descontraidamente, 
enquanto tomava seu banho de sol.
Coelho, toma cuidado, não confia na sorte aqui! Eu vou 
avisar a diretora, é melhor… - respondeu Jhonatas, preocupado.
Após a diretoria ser acionada, ele foi colocado em um se-
tor separado. Passou o final de semana em segurança. Ficou bem, 
Mais um banho de sol 
48
tinha certeza que nada lhe aconteceria e informou que gostaria 
de retornar. Devido à alta demanda, na segunda-feira voltou para 
sua cela, em paz, sem imaginar que em poucos minutos teria seu 
destino traçado.
Jhonatas iniciou a contagem dos presos como em todos 
os dias. Era começo do expediente, outros carcereiros ainda 
não tinham chegado. Então, ele acabou fazendo o serviço sozi-
nho. Ao chegar no pavilhão 03, próximo à cela de Deusdete, foi 
abordado por cinco presos armados com facas, que o fizeram 
de refém, segurando-o pelo pescoço. Ele pediu reforços, mas o 
tempo não estava a favor. Só foi preciso alguns segundos para 
que o corpo de Coelho fosse jogado ao chão, com um corte 
profundo no pescoço e uma facada na barriga.
A segurança chegou cerca de dois minutos depois. Houve 
agressão de todos os lados. Os assassinos foram contidos, mas 
a vida de Deusdete já havia sido tirada. Até hoje, não foi desco-
berto como os presos conseguiram as facas e nem explicado o 
motivo da execução.
“Eu tinha uma uma relação de muito respeito com to-
dos, principalmente pelo Deusdete. Não dá pra justificar, mas 
o ser humano naquela situação vira bicho, nada é feito de 
forma racional.”
Depois desse dia, Jhonatas nunca mais foi o mesmo. Só 
falava o básico com os reclusos, por medo que qualquer intera-
ção a mais fosse motivo para algum tipo de represália. O respeito 
se manteve o mesmo, mas o olhar crítico foi necessário para que 
Capítulo 2 – O bom carrasco
49
uma situação parecida não acontecesse. Ele não dormia bem, os 
pesadelos com a cena eram recorrentes e o medo de ser aborda-
do novamente também lhe assombrava.
Ele relata que pensou em desistir do emprego, mas sentia 
que tinha um propósito a cumprir. Aprendeu a lidar com o ser 
humano e a entender que pessoas dentro de uma situação tão 
destrutiva como o cárcere nem sempre conseguirão ver alguma 
coisa além do seu dia a dia ali dentro.
UMA NOVA CHANCE
O agente estava certo com relação ao seu propósito, al-
guns anos após o ocorrido, viu mais uma vez a marca do encar-
ceramento e precisou salvar a vida de uma alma desiludida. Era 
verão de 2006, ele não se recorda exatamente da data, mas tem 
com clareza em sua mente que era uma noite de muito calor, 
havia entrado no período da tarde nesse dia. Era a hora da janta, 
mas seu amigo Sérgio, parceiro da época, disse que estava sem 
fome, então, os dois ficaram sentados na sala ao lado do corredor 
do pavilhão 01.
Estavam conversando sobre a tabela do Brasileirão que 
passava na TV, quando escutaram um barulho forte vindo da sala 
de atendimento, que ficava atrás do local em que estavam. 
 — Você escutou isso, Jho?
 — Ouvi, alguém caiu. Melhor a gente ver. 
 — Não, fica aí, eu vou lá ver rapidão!
Mais um banho de sol 
50
 — Jhonatas ficou esperando e como a sala era próxima, 
não demorou nem um minuto para ver seu amigo re-
tornar com os olhos arregalados:
 — TEM UM PRESO SE ENFORCANDO!
Ambos correram para a sala, a cena era terrível: um 
homem pendurado no suporte da lâmpada, com a camisa 
enrolada no pescoço, balançando as pernas. O choque per-
correu pelo corpo dos agentes na mesma hora, pegaram a 
cadeira que estava próxima e colocaram embaixo do detento. 
Jhonatas ficou segurando o preso, enquanto Sérgio cortava a 
camiseta. Enquanto isso, ele gritava “EMERGÊNCIA” sem 
parar. O pedido foi ouvido, já que o atendimento chegou 
em seguida. Assim que o corte foi finalizado, colocaram o 
homem no chão e o enfermeiro de plantão começou a fazer 
massagem cardíaca. Foram minutos de desespero, mas o ar 
voltou àquele pulmão.
O preso foi levado para o hospital mais próximo da peni-
tenciária e depois transferido. Jhonatas nunca mais o viu, mas o 
leva na memória todos os dias. 
“Foram tantas mortes nesses anos, tantas coisas que eu 
não pude impedir. Mas me orgulho daquele homem que salvei, 
de fazer alguma diferença na vida dessas pessoas.”
Segundo pesquisa realizada pela Jusbrasil em 2015, os de-
tentos são 4 vezes mais propensos a cometer suicídio do que o 
total da população brasileira. Neste estudo, foi notado que a taxa 
de 5,5 suicídios para cada cem mil habitantes virava uma taxa de 
Capítulo 2 – O bom carrasco
51
22,2 para cem mil presos, sendo o encarceramento em massa um 
dos principais motivos para esse resultado.
Não são todos os carcerários que pensam nos detentos com 
igualdade. Jhonatas conta que não chegou a presenciar agressões, 
até por já conhecerem seu posicionamento quanto a esse tipo de 
atitude, mas já ouviu falar muitas vezes sobre casos, informação 
que veio da boca dos próprios agressores. A maior justificativa é 
gerar medo entre os detentos, usar a força como forma de domi-
nação e humilhação, mostrando, assim, quem é superior.
Por conta dessa diferença de opinião, o agente não está inse-
rido nas “panelinhas” do presídio e não tem o privilégio que alguns 
possuem, como folgas em finais de semana ou emendas de feriados. 
A diretoria o deixa sempre como o “faz tudo” do local, ele é respon-
sável por cobrir qualquer ausência, seja do seu turno ou não.
Além dos problemas internos, precisa lidar com o pre-
conceito externo, que apesar de ter melhorado nos últimos anos, 
ainda resiste.
“A falta de reconhecimento da categoria é gigante, muitos 
subestimam a nossa profissão, a própria segurança pública nos 
discrimina. Hoje a nossa realidade está mudando, mas ainda lido 
muito com a discriminação, por cuidar de presos. Já teve ocasião 
que não fui chamado para o aniversário de um amigo da minha 
filha, porque a família dela tinha receio. Falaram que eu trabalha-
va com bandido, não dava pra confiar.”
Jhonatas tem ensino superior incompleto. Estudou Psi-
cologia por dois semestres até que, por motivos financeiros, 
Mais um banho de sol 
52
precisou trancar a faculdade. Começou a fazer hora extra no 
presídio para pagar as contas de casa, ação que durou anos, até 
que os filhos cresceram e começaram sua própria vida. Hoje 
em dia não tem mais vontade de terminar o estudo. Afirmaque 
ser agente carcerário, apesar das dificuldades, é uma das moti-
vações de sua vida.
“Um detento me disse uma vez que eu tinha um brilho 
nos olhos, que os outros presos me respeitam, pois eu converso 
com eles de igual para igual e faço o possível para ajudar. E é isso 
que faz valer a pena, ser diferente dos outros, ver quem “tá” ali 
dentro como pessoa. Se a maioria fizesse isso, a prisão seria um 
pouco melhor.”
Capítulo 3 – Alquimista
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CAPÍTULO 1 1 1
ALQUIMISTA
Por Renata Ribas
O famoso e respeitado grupo musical de rap Racionais 
MC ‘s lançou a música “Diário de um detento”, no ano de 1997. 
A letra aborda a rebelião ocorrida no presídio do Carandiru, em 
2 de outubro de 1992, após uma intervenção da Polícia Militar do 
Estado de São Paulo. A ação, condenada por organismos interna-
cionais que lutam a favor dos direitos humanos, foi marcada pelo 
cruel assassinato de 111 detentos, chocando o mundo. 
A emblemática canção, que se tornou um clássico do rap 
nacional, foi escrita por Mano Brown e Josemir Prado, ex-deten-
to que sobreviveu ao massacre.
Cada detento uma mãe, uma crença 
Cada crime uma sentença 
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima 
Mais um banho de sol 
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Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio 
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo 
Misture bem essa química 
Pronto, eis um novo detento 
Lamentos no corredor, na cela, no pátio 
Ao redor do campo, em todos os cantos 
Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã 
Aqui não tem santo. 
(Diário de um detento, 1997) 
As palavras fortes e sinceras de Josemir procuram expres-
sar a realidade da população de encarcerados, fazendo com que as 
pessoas que escutam a canção possam ser transportadas para o dia 
a dia dos detentos. Contudo, quem verdadeiramente viveu aquela 
experiência, sentindo na pele cada violência proferida pelo Estado 
dentro do Carandiru, certamente escuta a música com sentimentos 
que vão muito além da empatia. O paulistano Valdir Ressurreição 
do Santos, de 53 anos de idade, é uma dessas pessoas. 
“UM GIRO NO SISTEMA” 
Nascido em 1968, Valdir veio de uma família humilde. Sua 
mãe, a Sra. Aurelina, e seu pai, Sr. Geraldo, trabalhavam para 
garantir o sustento dele e de seus irmãos (três deles mulheres). 
Sua infância foi simples, da mesma forma que a de tantas outras 
crianças da época, brincando na rua para passar o tempo. Infeliz-
Capítulo 3 – Alquimista
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mente, a vida não foi muito gentil com eles, como Valdir mesmo 
relata. Apesar das dificuldades diárias encontradas, mantiveram-
-se firmes e conseguiram superá-las, com muita força e amor. 
Passaram-se os anos e, durante a pré-adolescência, por uma 
casualidade, Valdir foi tomando rumos tortos. Envolveu-se cedo 
com o mundo das drogas, quando tinha apenas 14 anos. “Comecei 
usando a maconha, cheirando lança perfume, logo já passei para a 
cocaína e, a partir disso, tudo foi desandando”, confessa. 
O caminho no vício acabou direcionando Valdir para o 
trabalho no mundo do tráfico. Quando completou seus 17 anos, 
começou a vender maconha, lança perfume e chegou até mesmo 
a plantar mudas de maconha para uso próprio. Assim, conseguia 
sustentar o vício. “Era aquela loucura, ficava o dia inteiro usando 
drogas, fumava uns dez baseados em um dia. Só andava doido, 
armado, não estava nem aí.”
Tornando-se um verdadeiro especialista na área, che-
gou ao nível em que já era capaz de realizar processos quími-
cos para composição da droga, exibindo-se como se fosse um 
químico formado: “Pra você ver, não só usava como proces-
sava. Fazia o crack, o lança perfume. Conheço a química para 
fazer essas drogas.” 
Sua mãe ainda não sabia que ele tinha iniciado o consumo 
de drogas e muito menos que havia adentrado o mundo do trá-
fico. Nenhuma mãe espera que seu filho se torne um viciado, de 
modo que dona Aurelina teve uma grande surpresa, quando pes-
soas do bairro relataram o que estava acontecendo. Ela não que-
Mais um banho de sol 
56
ria acreditar, mas um dia, chegando em casa, pode ver com seus 
próprios olhos que Valdir estava fazendo o uso de entorpecentes 
no seu quarto. “Os pais são os últimos a saber, e quando minha 
mãe descobriu foi aquela decepção. Depois desse dia nunca mais 
ela me viu da mesma forma.”
Apesar de todas as tormentas, Valdir conseguiu concluir 
o segundo grau do ensino escolar e, ao se formar, começou a 
trabalhar para ajudar a sua família. Conquistava trabalhos em um 
emprego formal, embora eles não fossem o suficiente para que 
pudesse suprir as necessidades da casa e os seus anseios. “Foi aí 
que eu comecei a manter uma vida dupla. Me aproximei cada vez 
mais do mundo do crime”, conta. 
No ano de 1986, aos 18 anos de idade, trabalhou na Uni-
versidade de São Paulo (USP) pelo período de um ano e meio, 
na área de jardinagem, obtendo um ótimo salário. Só que em de-
corrência da vida dupla, como criminoso e trabalhador, acabou 
perdendo seu emprego. 
Continuou praticando roubos e vendendo drogas. As-
sim seguiu sua vida até o dia em que foi preso em flagrante 
pela polícia. 
SEU PRIMEIRO ASSALTO 
Em 1987, aos 18 anos, participou de seu primeiro assalto 
na casa de um armeiro, um homem que vendia e confeccionava 
armas. Nesse dia, na casa do sujeito, acontecia uma festa que 
Capítulo 3 – Alquimista
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afetou os planos de Valdir. “O meu negócio era armamento. Eu 
queria entrar na casa do cara para pegar as armas. Só que não deu 
pra eu tomar essa casa, porque tinha muita gente naquele dia, por 
conta da festa. O que eu fiz? Chegamos lá, assaltamos as pessoas 
e foi aquela correria, aquela loucura”, explica. 
Logo em seguida a polícia foi acionada. Valdir tentou fu-
gir do local, contudo, os policiais conseguiram capturá-lo. Após 
ser detido, relatou que apanhou dos policiais até ser levado para 
delegacia. “As agressões foram da meia-noite até às cinco da ma-
nhã. Os caras batiam com socos, chutes. Quando terminou, eu 
estava sangrando, todo roxo.” 
Valdir chegou a ser preso cinco vezes. As passagens foram 
em razão dos crimes de assalto, porte ilegal de arma de fogo e 
drogas ilícitas. 
Devido aos crimes cometidos por assalto à mão armada, 
foi condenado a cinco anos e cinco meses de prisão. Cumpriu sua 
pena passando por alguns presídios brasileiros de alta periculosi-
dade, dando o que os detentos chamam de “um giro no sistema”. 
“Estive no Carandiru, na cidade de Cotia, em Tremembé 
(no interior de São Paulo), em Perdizes, no 23º DP (Distrito Po-
licial), no 51º DP do Butantã e no CDP do Belenzinho. Mas foi 
no Tremembé que meu tempo foi longo. Fiquei um ano e cinco 
meses lá”, explica. 
Valdir conta que sofreu muito quando passou pelos distritos. 
As celas eram extremamente lotadas, o calor era insuportável e os 
presos dormiam todos juntos. Alguns chegavam a dormir sentados.
Mais um banho de sol 
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“Nós chamamos essa coisa de dormir no chão de ‘dormir 
na praia’. E dizemos também ‘dormir de valete’. O que é valete? 
É um para cada lado, um pé para cá, a cabeça para lá, um dorme 
para o lado de cá, outro dorme para o lado de lá. É dessa forma 
que acontece”, explica. 
Os presos que dormem sentados ficam esperando algum 
detento que está dormindo deitado levantar, para fazer uso do 
banheiro. Nesse momento é possível ocupar o lugar dele. “Por 
exemplo, se você vai ao banheiro, você perde o seu lugar. Essa é 
a regra”, conta. 
A CHEGADA NO CARANDIRU 
Você já deve ter ouvido falar na Casa de Detenção de São 
Paulo, ou Carandiru, como ela ficou conhecida. Inaugurada no 
dia 21 de abril de 1920, pelo engenheiro-arquiteto Samuel das 
Neves, estava localizada na zona norte de São Paulo, onde hoje 
se encontra o Parque da Juventude, complexo cultural, recreativo 
e esportivo. 
O Carandiru já abrigou mais de 8.000 presos, chegando a 
ser considerado o maior presídio da América Latina. Conforme 
destacado no início deste trabalho, o local foi palco de um dos 
maiores

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