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CASOS DE LOUCURA livro

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Histórias da Loucura
D é c i o a m o r i m
J o ã o C a r l o s V e n t u r a
L u c a s F e r r a z
M a t e u s R a b e l o
Histórias 
da Loucura
Belo Horizonte
2006
Décio Amorim
João Carlos Ventura
Lucas Ferraz
Mateus Rabelo
projetomaluco@yahoogrupos.com.br
Ficha Técnica
Capa
Ronaldo Magalhães
Projeto Gráfico
Leonardo Guimarães
Ronaldo Magalhães
Fotos
Décio Amorim
João Carlos Ventura
Mateus Rabelo
Edição de Textos
Eustáquio Trindade
Revisão de Textos
Dalila de Souza Amorim Moura
Em memória a todos aqueles 
que perderam suas vidas 
em um hospital psiquiátrico e não 
conheceram o gosto da liberdade...
Introdução 9
Raul Soares 15
Galba Veloso 35
Barbacena 51
Evoluções 85
Tratamentos substitutivos 97
Considerações finais 113
Sumário
9
Este livro não tem a pretensão de ser um manual ou uma es-pécie de volume de estudo sobre a saúde mental ou a psi-
quiatria. Menos ainda de ser mais um manifesto em favor dos
projetos sobre a luta antimanicomial, em andamento no país e
no mundo. Longe disso. Não há, nas páginas que se seguem, ne-
nhuma revelação bombástica sobre a situação dos doentes men-
tais ou novidades nos tratamentos a que são submetidos, até
porque muito material sobre o assunto já foi publicado. Em vez
disso, pensamos, primeiro, em dar voz a quem raramente é con-
sultado sobre o assunto — as pessoas que são portadoras de so-
frimento mental. Nas casas, nos hospitais, nos centros de trata-
mento, saímos em busca destas vozes. Foi quando nos depara-
mos com um fenômeno que vem, assustadoramente, tomando
corpo no Brasil, e que pode representar, em um futuro muito
próximo, um desafio ainda maior para aqueles que hoje se dedi-
cam a repensar o tratamento do doente mental em nosso país.
Em nossas visitas aos hospitais psiquiátricos, pudemos
constatar uma sutil mudança no perfil dos internos. Negros,
brancos, mulatos, quase sempre sexagenários, vindos dos ex-
tratos mais baixos da população, muitos desses internos são
parte de uma página em vias de fazer parte do passado na his-
tória dos manicômios brasileiros, para dar lugar a uma nova
geração, que começa a ocupar tristemente seu lugar nos hospi-
tais, em decorrência de outro fenômeno urbano, de proporções
cada vez mais alarmantes: a droga. Nesse particular, chama-
mos a atenção para as histórias de Lorraine e Giovane — jo-
vens que ainda não completaram 21 anos, mas que já trazem
no corpo e na alma as marcas mais profundas do sofrimento.
Lorraine, soropositiva, começou cedo nas drogas, que só lhe
Introdução
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acentuaram a esquizofrenia, da mesma forma que Giovane,
que luta contra a dependência do crack. É esse o perfil dos no-
vos internos, um fenômeno tão preocupante, que levou um de
nossos entrevistados, um renomado psiquiatra, a definir o
crack como “a cachaça do século 21”. 
Neste livro, apresentamos relatos sobre anônimos que so-
frem de algum transtorno mental, mas também abrimos espa-
ços para quem compartilha desse sofrimento, os familiares,
como Ana Sílvia, uma prostituta de 60 anos, que até hoje bata-
lha na Rua Guaicurus. Ana teve a mãe internada em um hospí-
cio e, hoje, aos domingos, cumpre religiosamente uma via cru-
cis que passa pelos hospitais Raul Soares e Galba Veloso, onde
vai visitar a irmã mais nova e uma sobrinha, ambas doentes
mentais. Elas trazem histórias de abandono, de desespero e de
impotência. A luta antimanicomial, no Brasil, tem pela frente
um obstáculo que, às vezes, se revela quase intransponível: as
imensas dificuldades das famílias mais pobres, sem recursos de
toda ordem para receber e tratar em casa seus doentes mentais. 
Há também histórias de alcoólatras e drogados, que estão
internados nos hospitais psiquiátricos ou recebem tratamento
nos centros de convivência. Ao mesmo tempo em que revela-
mos alguns dos avanços da luta antimanicomial, reservamos
espaços também para falar dos horrores do passado, de um
tempo em que os hospitais eram verdadeiros campos de con-
centração e o respeito à pessoa humana simplesmente inexis-
tia. Falamos de um tempo em que o corpo morto de um doente
mental era contabilizado como “peça” e vendido para ser dis-
secado nas aulas de anatomia dos cursos de medicina, muitas
vezes sem o conhecimento dos familiares.
Assim, como grande parte das doenças, a mental, mais do
que uma questão médica, representa um grave problema so-
cial. Da mesma maneira que negros, pobres, crianças de ruas e
todos os tipos de marginalizados sofrem preconceito, o louco,
o alienado, historicamente, sempre foi isolado, vivendo à mar-
gem da sociedade. Pensava-se que, assim, ele seria “curado”.
11
Segundo Michel Foucault, autor do clássico A História da Lou-
cura, a remoção dos doentes mentais e a prática de mantê-los
em locais isolados teve origem na cultura árabe. Os alienados
eram recolhidos juntos com outras minorias sociais e encami-
nhados para prédios, geralmente mantidos pelo poder público
ou religioso. Em muitos casos, esses prédios eram leprosários,
emparedados para que ali, o mal se curasse por si só. Longe
dos olhos, longe do coração.
Os primeiros hospícios teriam sido construídos no Oriente:
entre os séculos 7 e 12, no Marrocos, no Iraque e no Egito. A tra-
dição dos redutos destinados para o asilo dos loucos teria se
expandido pela Europa por causa da ocupação árabe na Penín-
sula Ibérica. No Brasil, a psiquiatria teve início na primeira me-
tade do século 19, com a Sociedade de Medicina do Rio de Ja-
neiro clamando pela construção de um hospital psiquiátrico.
Isso se deu por causa de protestos pela situação dos loucos na
Santa Casa de Misericórdia – eles ficavam jogados nos porões
da instituição. Em 1841, o imperador Dom Pedro II assinou de-
creto que dizia: “Desejando assinalar o fausto dia de minha sa-
gração com a criação de um estabelecimento de pública bene-
merência, hei por fundar um hospital destinado privativa-
mente para o tratamento de alienados, com a denominação de
Hospício D. Pedro II”. 
O hospício foi inaugurado em 1852, ano em que também foi
aberto em São Paulo o Hospital Provisório. A partir daí, seguiu-
se a criação de hospitais psiquiátricos em outras partes do Bra-
sil: em 1874, na Bahia; em 1883, no Recife e, cinco anos depois,
outro em São Paulo, o superlotado Juqueri, cujas imagens cho-
caram o mundo, nos anos de 1960 e 1970, pela desumanidade
com que se tratava os internos. Fato que se repetiria quase si-
multaneamente na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.
A história em Minas Gerais, como se verá nas páginas se-
guintes, tem no famoso hospital de Barbacena, criado no iní-
cio do século 20, em 1903, o sucedâneo do Juqueri e da Colô-
nia Juliano Moreira. Antes dele, os doentes mentais, seguindo In
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prática comum dos tempos passados, eram levados para ca-
deias públicas. Alguns iam para o Dom Pedro II, no Rio, outros
para Diamantina ou São João Del Rei, cidades onde haviam
“anexos psiquiátricos” nas Santas Casas. O hospital de Barba-
cena testemunhou coisas terríveis. Entre os anos de 1950 e
1970, a instituição chegou a comportar quase cinco mil inter-
nos. Doentes que se encaminhavam para lá como um conde-
nado à morte ia para a cadeira elétrica. Ou como os judeus, le-
vados durante a Alemanha hitlerista para os campos de con-
centração. Não foi à toa que o psiquiatra italiano Franco Basa-
glia cunhou essa expressão para descrever o Hospital-Colônia,
quando o conheceu no final dos anos de 1970. 
Basaglia, este italiano nascido em Veneza, ajudou a mudar a
história do tratamento psiquiátrico no Brasil. Sua vinda ao país
impulsionou uma série de eventos a favor da humanização do
tratamento nos hospitais, e não só nos mineiros, como também
em outros “campos de concentração” espalhados pelo país. A
repercussão da visita do italiano levou à publicação de várias
matérias, como as produzidas pelo jornalista Hiram Firmino,
no jornal Estado de Minas, que anos depois, originou o livro Nos
Porõesda Loucura, em que descrevia a horripilante situação dos
internos, também divulgadas no documentário Em Nome da Ra-
zão, produzido pelo cineasta mineiro Helvécio Ratton. Há
ainda as histórias do Raul Soares e do Galba Veloso, os dois
hospitais psiquiátricos públicos de Belo Horizonte, e seus in-
ternos, alguns asilados há mais de 40 anos. 
Muita coisa já mudou, mas o preconceito, o descaso e a falta
de amor ainda continuam como os maiores entraves na vida
do doente mental. Já se afirmou também que, em muitos ca-
sos, o bom jornalismo equivale a uma história bem contada.
As histórias que contamos aqui são as que povoam o cotidiano
dos hospitais e de suas personagens. Em alguns casos, os no-
mes de alguns entrevistados foram alterados, a pedido deles
ou dos familiares. Não são histórias alegres ou esperançosas.
Mal se iniciou a luta antimanicomial e um outro desafio
13
enorme já desponta: o aumento dos casos de doença mental
decorrentes do uso e do abuso de drogas. Que nosso livro seja
pelo menos uma contribuição para essa luta, é o que quere-
mos. E que a sinceridade de nosso trabalho possa encontrar
igual receptividade nos leitores.
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Raul Soares
“A unidade em que trabalhava, comportava 40 mulhe-
res, mas havia 80. Como não tinha cama suficiente, es-
palhávamos colchões no chão. Sem falar na comida que
era horrível e a sujeira, que causava outro problema.
Todas as noites, centenas de ratos invadiam o hospital.
Era pavoroso” 
17
OInstituto Raul Soares é um velho e triste antro de excluí-dos. São poucos os internos que ainda gozam do privilé-
gio de receber visitas de familiares e amigos. Mulheres, mari-
dos, filhos estão quase sempre ausentes. Os que permanecem
no velho Raul são asilados e por lá ficam, até que recebam alta,
o que, vagamente, equivale ao direito de ir para casa ou para
as ruas e, de lá, voltar para o Raul Soares. Aí começa o drama:
a maioria não tem mais casa para voltar. Ou, então, não tem pa-
rentes ou não sabe mais deles. A única alternativa possível é ir
ficando por ali, à espera da morte. Mas ainda há quem receba
visitas. Algumas até vão diariamente. Outras, só aos domin-
gos. Há os que passam por lá uma vez por mês. E até os que
vão uma vez por ano, como quem cumpre pesada obrigação.
Não é difícil entender o porquê.
Familiares e amigos, em muitos casos, costumam se afastar
de quem vive com algum transtorno mental, revelando a ex-
trema dificuldade que é conviver com esse tipo de paciente,
principalmente dentro de casa — das crises podem surgir ten-
tativas de suicídio e agressões aos familiares. O pior é que esse
afastamento ocorre justo quando o doente mais precisa de ca-
rinho e conforto, do suporte da família. A luta antimanicomial
revela, assim, um outro lado, bem mais perverso, de sua mo-
eda: o da incapacidade que a maioria das famílias encontra
para fazer sua parte nessa queda de braço com o velho sistema,
preferindo deixar para o governo a tarefa de cuidar dos doentes.
Ana Sílvia, um catalisador de tragédias
Ana Sílvia de Abreu é prostituta e se define assim sem qual-
quer constrangimento — coisa que só faz quem é diplomada
na escola da vida. Ana é das que estão do lado de fora. Nem
por isso é mais feliz. Poucas vezes em sua vida, chegou perto
de saber o que é carinho e conforto. Em vias de completar 60
anos, às vezes, por razões explicitamente profissionais, precisa Ra
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se mostrar carinhosa. Mas reconhece que se trata de uma emo-
ção que se repete mecanicamente, como uma obrigação neces-
sária na dura tarefa de, a esta altura da vida, ter que proporcio-
nar prazer a homens que mal conhece. Na profissão mais an-
tiga do mundo, onde se espera que cada jornada se encerre
pelo menos com alguns momentos de prazer, Ana Sílvia não
contabiliza mais tantas vantagens. Exceto uma: a flexibilidade
para escolher seu horário de trabalho — uma repetição de atos
de submissão, pois não tem mais como selecionar seus aman-
tes. Os clientes quase sempre são mais velhos, como ela pró-
pria. Os mais jovens, ou os que estão dispostos a pagar mais,
preferem as mulheres mais novas e, vá lá, melhores que ela. De
fácil, a vida de Ana Sílvia não tem nada. 
Nascida em Lavras, região do Campo das Vertentes, no in-
terior de Minas Gerais, a descoberta do sexo veio cedo para ela:
logo aos 16 anos. À força. O responsável, um homem já velho,
de mãos grossas, calejadas pela faina diária da roça, que fez
tudo ali mesmo, num desvio de estrada, na zona rural da ci-
dade. Prazer? Não sentiu. Saiu da experiência enojada com a
brutalidade daquele homem. Até aquele trágico fim de tarde
na pacata Lavras, a vida de Ana Sílvia não se diferenciava de
outras jovens criadas nos anos 50 do século passado. Minas vi-
via uma época única, com Juscelino Kubitschek, governador
obcecado com o desenvolvimentismo que, anos mais tarde,
contaminaria todo o Brasil e se consolidaria com a construção
da nova capital federal. A vida de Ana, apesar de simples, era
farta, ao lado de cinco irmãos e dos pais, vivendo em uma fa-
zenda, de onde a família tirava o próprio sustento. 
Depois de perder a virgindade, continuou a se deitar com
outros homens por matas e caminhos nada confortáveis. Teve
que sair de casa. Muito porque, em parte, perseguia o sonho de
ganhar mais dinheiro e viver melhor com o que lhe pagavam
por sexo. Aliás, conta que era tão bonita e desejada por tantos
homens, que pretendentes não lhe faltavam. Alguns, dispostos
a pagar muito por uma coisa que Ana gostava tanto de fazer –
19
apesar das lembranças do estupro. Chegou a Belo Horizonte
em meados dos anos de 1960, quando a metrópole ainda le-
vava a fama de “cidade jardim”, a planejada capital do futuro,
com a Pampulha de Oscar Niemeyer e JK, a Praça da Liber-
dade dos footing de fim de tarde, do Mineirão recém-inaugu-
rado, do Parque Municipal e da TV Itacolomi — um dos pri-
meiros canais de televisão do Brasil, que causava furor na pe-
quena população da cidade, na época com pouco mais de 400
mil habitantes. Aos 19 anos, Ana Sílvia já estava na famosa
Casa da Zezé, o célebre bordel da avenida Francisco Sales, no
bairro Floresta, a poucos passos da Itacolomi, que havia trans-
ferido parte de suas instalações para o Palácio do Rádio, na
avenida Assis Chateaubriand. A Zezé era ponto não só de ar-
tistas de televisão, mas também dos endinheirados da promis-
sora capital mineira: coronéis, políticos, rapazes das mais finas
e tradicionais famílias mineiras e, claro, jogadores de futebol.
Nos anos em que trabalhou lá, Ana teve a oportunidade de
mudar de vida. Não lhe faltavam pedidos de casamento e juras
de amor de homens que prometiam jóias, casa, comida, roupa
lavada, filhos e tudo aquilo que muita mulher gostaria de ter
— um lar. Ana, no entanto, preferiu viver à sua maneira. A úl-
tima coisa que queria era se tornar dona de casa, mulher de ho-
mens que, sabia, não viveriam sem amantes e que, no fundo, só
queriam tomar as rédeas de sua vida. 
Nem na pobreza de hoje ela se arrepende. Nunca se casou,
não teve filhos e mantém a rotina de mais de 43 anos na pros-
tituição. Mas os tempos, agora, são outros. Nada de homens
importantes, figurões da televisão ou jogadores famosos do
Cruzeiro ou do Atlético. Os de agora, que buscam uma mulher
de 60 anos, que traz em seu corpo todas as marcas do tempo,
são brutos, de mãos calejadas, tal e qual o velho que, um dia,
lhe tirou à força, a virgindade. A suntuosidade da Casa da Zezé
também ficou no passado: o atual ponto de trabalho é um pu-
teiro sujo e velho da Rua Guaicurus, tradicional reduto boêmio
de Belo Horizonte, hoje praticamente em ruínas, arrasado pela Ra
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marginalidade, pelo fantasma do tráfico e das doenças vené-
reas, como a aids. Evidentemente, o dinheiro recebido por um
programa também já não é mais o mesmo. Além da concorrên-
cia, cada vez mais jovem e especializada, que surge em cada es-
quina, a ação do tempo foi cruel paracom ela. 
A vida, em alguns casos, é uma roda viva. A de Ana, tam-
bém no aspecto pessoal, girou como um catalisador de tragé-
dias. Enquanto criança, teve que conviver com a doença men-
tal da mãe. Hoje, tem a irmã e uma sobrinha psicóticas, ambas
internadas em hospitais psiquiátricos. A mãe já morreu há al-
guns anos, mas, antes, penou com a doença. Foi internada em
Barbacena, no final dos anos de 1950, em um daqueles perío-
dos de mais horror do Hospital Colônia. Durante o tempo de
internação, passou por momentos terríveis, sem receber aten-
dimento adequado, sufocada pela superlotação do hospício.
Certa vez, teve a cabeça pisoteada pelas colegas de quarto. Mas, teve
pelo menos a sorte de morrer em casa, na fazenda da família. 
Rosilene é uma das irmãs mais novas de Ana. Também é es-
quizofrênica1. Tal e qual a mãe. Já cumpriu um longo roteiro de
internações no Raul Soares. Os sintomas da doença surgiram
ainda na adolescência, quando criava personagens imaginários
e situações tão delirantes quanto inusitadas envolvendo astros
do cinema norte-americano. Certa vez, viu Humphrey Bogart,
astro do clássico Casablanca, entrar em sua casa e pedi-la em ca-
samento. Quase não acreditou quando a irmã o maltratou e o
galã foi embora. A vida de Rosilene, de 51 anos, é um drama sem
fim, com nenhuma perspectiva de final feliz. Divide-se em eter-
nas idas e vindas entre a casa em Lavras e o hospital Raul Soa-
res, em Belo Horizonte. É para onde vai quando tem crises, ge-
ralmente agravadas por não seguir corretamente a medicação —
ela chegou a desenvolver uma técnica para esconder os compri-
1. A esquizofrenia é uma doença mental que se classifica por vários sintomas, entre os
quais alterações no pensamento, alucinações (sobretudo auditivas), delírios, com
perda de contato com a realidade, causando disfuncionamento social crônico. 
21
midos sob a língua. Abre a boca, mostra que, sim, que tomou o
remédio, mas depois o cospe. Algumas vezes, chega até a
guardá-lo dentro do travesseiro. Por isso, quando entra em crise,
ela chega mais forte e a única forma de controlar seus impulsos
é com a internação, quase sempre à força. Uma cena que se re-
pete tanto, que a irmã, Ana Sílvia, diz que já perdeu a conta. 
Rosilene é uma mulher corada, forte, de cabelos loiros e tra-
ços que revelam uma antiga beleza, apesar das drogas ingeri-
das no tratamento psiquiátrico. Está dopada, com aparência
distante. Separada de um casamento bastante complicado,
onde havia muito amor, desejo e pouco respeito, Rosilene teve
uma filha, Lorraine, que também tem transtornos mentais e
freqüentemente passa por internações. Além da hereditarie-
dade, a doença da filha, de 19 anos, traz consigo mais um agra-
vante: está ligada ao uso de drogas. Sem a referência da figura
paterna — Lorraine nem sabe se o pai está vivo — e com a do-
ença da mãe, ela, desde muito nova, embarcou em uma vida
sem freios. Aos 12 anos, enturmou-se com pessoas mais velhas.
Além do hábito de fumar maconha, passava dias dormindo
nas ruas. Logo, experimentou cocaína. Para se viciar no crack
foi um pulo, fechando um ciclo fatal em sua vida: quando foi
internada pela primeira vez em um hospital psiquiátrico, des-
cobriu ser portadora do vírus HIV. Lorraine está no Galba Ve-
loso, longe da mãe, Rosilene, que, no Raul Soares, entre sauda-
des da filha e a vontade de sair, só sabe repetir que tem von-
tade de comer biscoito com requeijão. 
Os domingos de Ana Sílvia se dividem entre visitas à irmã,
no Raul Soares, e à sobrinha, no Galba Veloso — que ficam bem
distantes um do outro. Mas há um atenuante: suas idas aos
hospitais são condicionadas ao faturamento na zona. Ela só se
desloca de sua casa, no distante bairro de Borba Gato, na peri-
feria de Sabará, região metropolitana de Belo Horizonte, quan-
do sobra algum trocado para passagens, rumo aos bairros Ga-
meleira e Santa Efigênia. Quando vai, leva um mimo especial
às duas parentes: cigarros do Paraguai. Ra
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Muito magra, dentes amarelados, rugas fundas em um rosto
que parece mais velho para os 60 anos que afirma ter, Ana Síl-
via conserva uma leve expressão de malícia, herdada certa-
mente pela prática do sexo em áreas em que se é obrigado a
conviver diariamente com a malandragem. É descolada, ví-
vida, tem pensamento rápido e articula sempre com expressões
do meio, reforçadas por toques no braço do interlocutor e leves
meneios com a cabeça, para trás, quando quer expressar algo
com veemência. Com um gorro preto, da Nike, sobre a cabeça,
cabelos loiros anelados saindo pelos lados, óculos de lentes
grossas, sandálias e jaqueta sobre um vestido igualmente sur-
rado, Ana caminha pelos corredores do Raul Soares como
quem já percorreu tanto aqueles caminhos, que seria capaz de
chegar à ala de sua irmã com os olhos vendados. Adentra pelo
Raul Soares com desenvoltura. Brinca com porteiros e funcio-
nários. E reclama também. Principalmente do Galba Veloso, de
onde acaba de chegar – tinha ido visitar a sobrinha, Lorraine.
Ana o compara a uma cadeia. Portas de aço, janelinhas retan-
gulares, pequenas, único meio de se olhar as alas. Prefere o
Raul Soares — “onde tem muito mais luxo”. E lamenta a sobri-
nha não estar internada no mesmo lugar que a mãe. Acredita
que se as duas estivessem juntas, a situação delas seria dife-
rente. O carinho de mãe e filha seria fundamental para auxiliar
na recuperação de ambas e tornaria suas vidas mais alegres. 
Na “Ala Feminina”, Ana Sílvia é recepcionada por colegas
de Rosilene. A maioria foi internada em estado crítico, o que se
traduz na aparência: todas parecem totalmente alucinadas. Na
verdade, estão chapadas de remédio. Logo, correm para contar
a Rosilene que ela tem visita. Apesar da tristeza do ambiente, o
encontro das duas é comovente. Primeiro, elogios mútuos.
— Como você está linda, minha irmã.
— Que nada, você é que está maravilhosa; olha como seu
cabelo está bonito – retribui Ana Silvia.
23
As mãos se tocam através das grades da porta. Os funcioná-
rios não permitem que uma vá para o lado de lá, ou que a outra
venha para o lado de cá. Ana tira da sacola o esperado pacote de
cigarros. Os olhos da irmã até brilham, implorando por um
trago. É visível a fissura por umas tragadas. Rosilene recebe en-
tão um maço de Carlton, falsificado, é claro. Ana desdenha, pois
fuma Derby. E vai logo se justificando: não teria dinheiro para
comprar de marca, senão a paraguaia. A enfermeira que vigia da
porta, com postura rígida e feroz, que nem um soldado, recebe
o pacote e o pedido para guardá-lo e distribuir para Rosilene, tal
e qual um conta-gotas, aos maços, a pedido de Ana Sílvia: “Se
ela ficar com o pacote, fuma tudo em uma tarde”. 
Sem tempo — ou paciência — para ficar ali muito tempo, e
impedida de entrar na ala para abraçar e beijar a irmã – apesar
de ter implorado à inflexível enfermeira, que, mais uma vez,
nega rispidamente o pedido, Ana se despede de Rosilene. Esta,
ainda fala dos planos da semana. Quer receber alta, voltar a La-
vras. As duas se beijam através das grades, uma acariciando o
rosto da outra. Quando Ana está quase virando o corredor, já
longe da porta, Rosilene grita:
— Você volta amanhã, minha irmã? Quando vier, por favor,
traz biscoito água-e-sal com requeijão, estou com vontade de
comer biscoito com requeijão. 
A única coisa que dá para Ana responder é um “tá bom”. Já
no jardim do Raul Soares, caminhando em direção ao portão
do hospital, logo vem a ressalva: o dinheiro não dá para os dois
— ou tem biscoito ou tem cigarro.
— Mas, para quem está internada, um maço de cigarros vale
bem mais que um pacote de biscoitos. 
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Enquanto os gatos dormem, 
os ratos fazem a festa
Entrar no Raul Soares pela primeira vez é, ainda hoje, quan-
do já se passaram os dias de má fama do hospital, uma experi-
ência assustadora. É difícil acreditar como um lugar destinado
ao tratamento de pessoas com sofrimento mental sejatão feio,
cinza, sem nenhuma vida. As árvores da entrada, que levam ao
pátio central, bem em frente à portaria principal, ajudam ainda
mais a compor o ambiente de terror. Lembram muito o cenário
do filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky, que conta a
história de um rapaz que é internado em um hospital psiquiá-
trico pelo pai, ao descobrir o envolvimento do filho com dro-
gas. O personagem, interpretado pelo ator Rodrigo Santoro,
passa por todos os sofrimentos comuns ao tratamento mental
de décadas atrás — do confinamento aos eletrochoques. 
Criado na década de 1920, por determinação do então pre-
sidente Arthur da Silva Bernardes (1922-1926), denominado
antes como Instituto Neuro-Psychiatrico de Belo Horizonte,
o Raul Soares surgiu como alternativa para o Hospital Colô-
nia de Barbacena, já naquela época considerado um sinô-
nimo do inferno, com as características que o marcariam tris-
temente, anos depois, quando chegou a ser conhecido como
“campo de concentração”. A mensagem do presidente Ber-
nardes, na ocasião, ilustra o panorama do tratamento psi-
quiátrico da época, nos anos de 1920: “Temos que adaptar e
desenvolver a Colônia de Alienados de Barbacena, de sim-
ples depósito de loucos ou asilo prisão, baldo dos mais ele-
mentares recursos terapêuticos”. 
Em Belo Horizonte, o planejamento e a responsabilidade
pela construção do novo hospital couberam ao médico Álvaro
Ribeiro de Barros, escolhido pelo próprio presidente Bernar-
des, por sua atuação já consagrada na psiquiatria mineira — o
médico, inclusive, foi nomeado o primeiro diretor da institui-
ção. A engenharia do prédio central do hospital foi construída
25
propositalmente em forma de círculo, para confundir os inter-
nos, que poderiam andar, andar e andar, chegando sempre ao
mesmo lugar, uma espécie de paço central. A tortura psicoló-
gica, como se vê, era também um dos recursos para domar os
loucos que a sociedade expelia. Não eram apenas os choques
que machucavam os internos. À sua maneira, com sutil eficiên-
cia, o sistema engendrava sua roda viva. 
A inauguração do instituto tinha como principal finalidade
auxiliar no aumento da demanda do tristemente famoso hospi-
tal de Barbacena. Também tinha a de servir como um centro de
triagem, com o objetivo de disciplinar os métodos de interna-
ção — o que, infelizmente, não aconteceu. Os anos se passaram
desde a inauguração e o Instituto Raul Soares, criado para ser
uma nova referência do tratamento psiquiátrico, apresentava,
pouco depois, o mesmo problema do Hospital Colônia de Bar-
bacena: superlotação. Sem falar no aspecto cada vez mais pre-
cário, por não poder contar com a devida manutenção do Es-
tado. Paula Cambraia, ex-enfermeira, que trabalhou no hospi-
tal por onze anos, testemunha que, naqueles terríveis anos, até
camas faltavam aos internos.
— A unidade em que trabalhava, comportava 40 mulheres,
mas havia 80. Como não tinha cama suficiente, espalhávamos
colchões no chão. Sem falar na comida que era horrível e a su-
jeira, que causava outro problema. Todas as noites, centenas de
ratos invadiam o hospital. Era pavoroso. 
Hoje, depois de oitenta anos de sua fundação, o Raul Soa-
res não tem mais o problema de superlotação. É que, de
acordo com as novas diretrizes, agora estabelecidas pela
nova Lei de Saúde Mental, os leitos desocupados devem ser
fechados, o que tende a diminuir, com o tempo, o número de
pacientes fixos do hospital. Esse é um dos passos, aplicados
somente nas instituições públicas, para se chegar ao fim dos
hospitais psiquiátricos. Ra
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Luís Cláudio conhece como ninguém o Raul Soares. Só não
é mais velho que o prédio e as árvores da instituição. Entrou no
hospital pela primeira vez nos anos de 1950, quando Getúlio
Vargas ocupava pela segunda vez a presidência da república.
Enquanto estava no Raul Soares, a situação do Brasil mudou —
a dele, não. No Rio de Janeiro, o incendiário Carlos Lacerda so-
freu o célebre atentado na Rua Toneleiros, episódio que apres-
sou a queda do governo e culminou no suicídio de Vargas, dias
depois. A UDN, partido de Lacerda, sem sucesso, tentou fazer
o presidente da república. Dias de instabilidade, que viriam a
se repetir tempos depois, em 1964, durante o período em que
Luís Cláudio passava seus piores momentos no hospital, sob
efeito de choques-elétricos. Na mesma época, os militares der-
rubavam o governo de João Goulart e iniciavam ali um dos pe-
ríodos de maior arbitrariedade da história do país. 
Quando, em 1979, os exilados já ensaiavam sua voltam ao
Brasil, com festa, beneficiados por uma Anistia que chegou até
mesmo a receber um hino não oficial, que falava no sofri-
mento de Marias e Clarices, e em nuvens que, lá no mata-bor-
rão do céu, chupavam manchas torturadas, continuava Luís
Cláudio, no mesmo Raul Soares. De lá, comemorou a eleição
do primeiro presidente civil depois de mais de 20 anos de re-
gime militar, mas se decepcionou quando soube da notícia que
Tancredo Neves nem chegou a assumir a presidência — deu o
azar de morrer antes. Não sentiu o impacto do neoliberalismo
nos anos 1990, mas ficou feliz quando um operário foi eleito
presidente, o primeiro da esquerda na história do Brasil.
Como em toda sua vida, decepcionou-se de novo: como pode
um político de esquerda governar pela direita? Luís já não en-
tende mais nada desse país “muito doido”. Depois, ele é que
o louco, o alienado. Ouve este rótulo desde os 26 anos, quan-
do foi internado pela primeira vez, no Raul Soares. Hoje, aos
78, faz um assustador balanço de sua vida. Mal consegue acre-
ditar que passou quase dois terços dela internado em hospi-
tais psiquiátricos — a maioria no Raul Soares. Saiu de lá algu-
27
mas vezes: ficou um tempo em Barbacena e na casa de um ir-
mão, mas o destino poucas vezes mudou. Invariavelmente, re-
tornava ao velho hospital. 
Ele sabe que continua vivo quase por milagre. Mesmo de-
pois de tantas internações, drogas e choques, que o deixaram
em permanente estado de demência, os momentos de lucidez
são poucos e cada vez mais raros. A velhice torna esse pro-
blema ainda mais agudo. Ele sabe que volta não há mais: ape-
sar do sofrimento mental, é frio e pragmático quando diz que
não tem esperança de deixar o Raul Soares com vida. Confor-
mou-se de que ali passará o resto de seus dias. Apesar de tan-
tos pesares, Luís Cláudio é forte. Está constantemente mal-hu-
morado. Tem cabelos brancos, sobrancelhas grossas, unhas
grandes e sujas, dedos amarelados, de um tom que se espalha
pela palma e pelas costas da mão, herança do compulsivo ato
de fumar, que é motivo também das intermináveis crises de
tosses, que não deixam ninguém dormir em sua ala. Quando
começa a tossir, diz que tem ânsias de vômito que só terminam
com o amparo dos enfermeiros. A única companhia de Luís é a
doença que o segue há décadas. No hospital, está quase sem-
pre sozinho, apesar de ser bastante popular entre os internos.
A família, diz, esta quase toda morta. Não sabe se o irmão, que
não o visita há muito tempo, ainda está vivo. O passado, para
Luís Cláudio, é tortuoso. Parece assunto que lhe incomoda. Por
isso, tenta evitá-lo. O pouco que se sabe é que não se casou nem
teve filhos — não “transmitiu a nenhuma criatura o legado de
sua miséria”, como escreveu Machado de Assis na derradeira
página de Memórias Póstumas de Brás Cubas. 
— Assim foi melhor. Não preciso incomodar ninguém. 
Em um único momento apenas Luís evoca o passado. Para
falar do América, seu time de coração. É quando surgem his-
tórias do valente Siderúrgica, de Sabará, que, em tardes glori-
osas, bateu o Cruzeiro e o Atlético. O mau humor não impede Ra
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que, de vez em quando, Luiz faça o que mais gosta: contar
histórias. Raramente faz perguntas, como se o mundo lá fora
não o interessasse. Em uma longa tarde de conversas e entre-
vistas, só fez esta:
— Você sabe quanto ficou o jogo do América?
“O maior de todos os medos é o
medo de uma recaída”Quando Oswaldo Dimas foi internado pela primeira vez no
Instituto Raul Soares, nem se deu conta de qual era o dia. So-
fria a mais forte crise de abstinência desde que, com a ajuda da
irmã, começou a lutar contra o álcool. Naquela segunda-feira,
11 de setembro, o mundo se lembrava dos cinco anos da fatí-
dica terça-feira de 2001, quando dois aviões atravessaram as
torres do World Trade Center, em Nova York, no maior e mais
audacioso ataque terrorista da história. Assim que chegou ao
hospital, delirando, Oswaldo também sofria o que parecia um
atentado terrorista particular. Não conseguia se firmar em pé,
com todos os músculos do corpo em permanente convulsão. O
quadro era de delirium tremens, um dos sintomas mais graves
da síndrome de abstinência aguda. O paciente, com este tipo
de alucinação alcoólica, apresenta vários surtos de pânico, com
sensações imaginárias de estar sendo atacado por insetos ou al-
gum animal ainda mais estranho. Imagina algo percorrendo
seu corpo e tentava livrar-se dele. Via bichos rodeando a cama,
paredes e teto do quarto, sem contar o sentimento de medo,
cada vez mais crescente. No surto, que pode durar minutos,
horas ou até dias, se nada for feito, o alcoólatra pode tentar se
rasgar. Há ainda os riscos de parada cardíaca ou respiratória.
No passado, pacientes que apresentavam o quadro de deli-
rium tremens recebiam, na maioria das vezes, tratamento duro:
a angustiante camisa-de-força. Hoje, o velho instrumento de
29
tortura foi substituído por sedativos potentes. Foi o que os en-
fermeiros injetaram em Oswaldo para conter seus delírios.
Quando acordou, amarrado e sem forças para sequer mexer os
olhos, conta que passou a noite entre pesados cochilos e pensa-
mentos entrecortados de imagens fragmentadas, desconexas,
em que o medo era o denominador comum, a única coisa que
parecia efetivamente real. Foram, apesar de tudo, momentos
de profunda reflexão, admite. Tanto que, refletir é hoje o que
ele mais faz no Raul Soares.
Nascido em Moeda, no interior de Minas, foi aos 13 anos
que Oswaldo Dimas Silveira começou a beber. Como toda cri-
ança curiosa, começou bebericando cerveja com os amigos. A
partir daí, não parou mais. Foi experimentando a cachaça, que
também se tornou um hábito e, quando se tornou adulto, per-
deu os limites: do vermute Martini ao uísque, da vodka ao rum
e as batidas das mais variadas espécies e teores. Nada esca-
pava. Se o cardápio era grande, a freqüência também. Bebia
compulsivamente. Certa vez, ficou 15 dias entregue ao álcool,
só parando quando perdeu de vez todos os sentidos. No hos-
pital, Oswaldo parece diferente de todos os outros internos.
Não apresenta o olhar dopado da maioria deles. Conversa pau-
sadamente, sem atropelar ou pestanejar. Mas, tem a mesma an-
siedade. Pensativo, confessa ter medo de voltar à “sociedade”,
por não saber o que encontrará do “lado de fora”. Separado da
mulher, tem dois filhos, já criados. Um mora em Portugal; o
outro, em Teófilo Otoni. A única assistência que recebe é da
irmã. É pouco para quem ainda não se reconhece livre da de-
pendência alcoólica, agravada pelas más lembranças do pas-
sado. A separação foi uma delas — só trouxe mais inseguran-
ças. Medos à parte, Oswaldo, pelo menos, tem a esperança em
dias melhores e não abre mão disso. É alfaiate, acredita que tem
trabalho à espera, quando receber alta. Mas, logo, logo, os me-
dos voltam a atacar a esperança, nesse perverso jogo mental,
em que ele é o único perdedor. O maior de todos os medos é o
medo de uma recaída — se isso acontecer, sabe que voltará a Ra
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beber com toda fúria. Mas, aqui também, ressurgindo do nada,
a esperança bailarina volta a se equilibrar na corda bamba da
vida, a lembrá-lo que o Raul Soares também não é seu lugar:
— Não sou tão louco para poder ficar aqui. 
A cachaça do século 21
Era comum encontrar nos hospitais psiquiátricos, há alguns
anos, pacientes que se internavam para tratar de alcoolismo.
Apesar de se tratar apenas de dependência do álcool, muitas
vezes esses internos eram identificados como psicóticos e rece-
biam tratamento condizente com o diagnóstico: medicamentos
errados e pesados, que tornavam ainda mais crônico o quadro
psicológico e não amenizavam em nada a causa da internação.
Ainda hoje, os alcoólatras permanecem, mesmo que em nú-
mero menor, mas, em compensação, dando lugar a um fenô-
meno cada vez mais assustador e que vem, de novo, repovo-
ando os hospitais psiquiátricos de todo o país: são os crackei-
ros. Ou seja, os viciados em crack. 
— O crack, do ponto de vista psiquiátrico, é a cachaça do sé-
culo 21 — explica o psiquiatra Antônio Soares Simone. 
A grande maioria são pessoas com larga convivência com
o clima e os riscos das ruas, sem relações familiares, e não
raro, com forte envolvimento com a delinqüência. No Raul
Soares, dos seis pacientes que o psiquiatra Antônio Soares Si-
mone atende, três são jovens que lutam contra o vício do
crack. Para se ter uma idéia do perigo, segundo o médico, um
psicótico é tratado com menor quantidade de sedativos do
que o dependente químico. 
Giovane Alves Ribeiro, 20 anos, é um dos rapazes que têm
dependência química. É viciado em crack, já esteve internado
31
no hospital mais de 20 vezes. Curiosamente, afirma que pre-
fere o Raul Soares – onde diz “comandar” – do que a própria
casa. É que lá vive o padrasto, que já o espancou várias vezes,
como se fosse um carrasco. Os dois sempre tiveram uma con-
vivência difícil. Giovane não conheceu o pai, que morreu an-
tes dele nascer. Cresceu com os dois irmãos e a irmã, com di-
ficuldades e enciumado com o novo marido da mãe, a quem,
quando fica violento, ameaça de morte. Foi um típico garoto
da periferia brasileira: sem compromisso, mas também sem
oportunidades. E sem freqüentar a escola. Às vezes, ganhava
algum trocado lavando carros.
Na adolescência, começou a usar drogas. Percorreu um cur-
rículo exemplar: cola, maconha, cocaína e, por fim, o que pa-
rece ser hoje o doutorado do vício, o crack. Para ganhar di-
nheiro, encontrou a via mais fácil: vender drogas. “Preto, bran-
co e pedra”. O dinheiro, a princípio, parecia bom. Poderia aju-
dar a mãe, dava para pagar as despesas com a boca de fumo e
ainda sobrava para andar na moda — tinha dinheiro para com-
prar o tênis que quisesse e as bermudas iguais às dos “boyzi-
nhos” os quais ele vendia droga, daquelas que parecem que es-
tão descendo pelo quadril, deixando a cueca à mostra.
Em casa, ficou pouco tempo. Já era independente financei-
ramente, e as constantes brigas com o padrasto aceleraram sua
saída. Foi para as ruas. Depois delas, o Raul Soares, levado pela
mãe, a única da família que ainda o visita. No Raul Soares,
junto com um grupo de internos, ele realmente parece um lí-
der. Ou o comandante-em-chefe. Caminha com desenvoltura
pelo jardim e tem intimidade com a maioria dos internos, ape-
sar de ser um rapaz baixo, magro e de pernas extremamente fi-
nas. O segredo é que Giovane é malandro. E gosta de luta.
Ginga capoeira. Afirma que já foi professor de kung-fu e que,
na mão, bate como ninguém. Não matou com um tiro o pa-
drasto porque preferiu enfrentá-lo como homem. Só que levou
a pior. No hospital — ele mesmo conta — também já arrumou
muita confusão. Ficou de castigo, por mau comportamento, Ra
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uma briga com um companheiro de quarto. A malandragem,
aqui, não dá um tempo. Por isso, nem reclama das punições;
reconhece que, em alguns momentos, passa mesmo dos limi-
tes. Vive entre contrastes. Vai de um extremo ao outro. Não re-
clama da vida, mas chora — e muito! — quando se lembra do
passado ou de algumas pessoas, principalmente da mãe e até
das brigas com o padrasto. A dureza com que a vida lhe bateu
não soterrou o jovem carente que há em Giovane. Quando co-
nhece alguém, tenta criar intimidade, demonstra carinho. Aos
autores deste livro, pediu tudo. Guardou cigarros e mais ci-
garros nos bolsos do pijama do hospital.Queria levar o tênis
de um de nós. Fez encomendas também. Pediu relógio, calça
jeans e uma camisa do Cruzeiro, seu time de coração.
Quando percebeu que não ia ganhar nada mais que cigarros,
saiu-se com essa:
— Não precisam me dar nada. Apenas venham me visitar.
Giovane nos guiou em um tour pelas dependências do hos-
pital, nos apresentou aos colegas de ala e funcionários que en-
controu pelo caminho. Mostrou o quarto e a cama. O próximo
destino foi à cozinha, local limpo, com todas as cozinheiras
usando gorros de proteção sobre os cabelos. Giovane e os inter-
nos com quem conversamos nos garantiram que a comida é
boa. Mas há um lugar que parece ser ainda mais especial. Gio-
vane nos levou ao “Túnel do Amor”, que vem a ser um corre-
dor, com as paredes estranhamente pintadas de rosa, que rece-
beu este nome por ser isolado das dependências do hospital, e
onde os internos fazem sexo, segundo conta Giovane. O psi-
quiatra Antônio Soares Simone desconhece o “Túnel do
Amor”, mas não nega que internos mantenham relações lá
dentro, citando, inclusive, o caso de um psicótico homossexual,
internado no hospital há vários anos, que não esconde de nin-
guém seus relacionamentos com outros internos, a quem con-
vida a passar a noite em sua cama. O pior de tudo é que, de-
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pois, sai contando todos os detalhes de suas aventuras amoro-
sas para os enfermeiros e médicos. 
Aliás, esta parece ser uma prática das mais comuns no hos-
pital. Giovane também não nega fogo quando quer contar de-
talhes de suas aventuras sexuais no Raul Soares. Uma delas
fala de um romântico encontro que teve com uma namorada
sua, que foi visitá-lo e acabou passando uma tarde inteira com
ele, no ardente “Túnel do Amor”. Giovane só lamentou que
nesse dia não pôde fumar maconha antes da transa. 
— O sexo fica muito mais gostoso sob efeito da maconha;
ele evolui —, receita Giovane, deitado em um dos bancos do
jardim do Raul Soares. 
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Galba Veloso
A surpresa veio junto com a suspeita de que ele já estava
com algum transtorno mental — o que foi confirmado
logo a seguir. Izadora conta que tomou um susto quan-
do entrou na cadeia: com vários hematomas, marcas do
espancamento que sofreu da polícia e dos outros presos,
Carlos, com a roupa toda rasgada, esfregava fezes por
todo o corpo, inclusive no rosto. 
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Ele se apresenta como Macaulay Culkin. Cabelos encaraco-lados, olhos extremamente azuis, físico atlético. Boa apa-
rência. É falador; não dá espaço para o interlocutor. Concor-
dando ou não com o assunto, é sempre quem tem a palavra. Na
mão, o caderninho com seus manuscritos, pois também é escri-
tor. Antes de qualquer pergunta a respeito do que escreve, ex-
plica que já contatou duas editoras e que logo vai lançar um li-
vro — o primeiro de muitos. Não será um romance, um livro
de poesias ou de contos. Na verdade, ele nem sabe definir o
que será. Carlos virou escritor há pouco tempo — umas qua-
tro internações atrás. Quando morava com a família, em Itabi-
rito, sua cidade natal, não demonstrava qualquer interesse por
atividades intelectuais — trabalhava em uma loja de peças au-
tomotivas. Depois disso, mudou-se para Porto Seguro, onde foi
vendedor de CDs piratas na praia e chegou a trabalhar em um
bar. Paralelamente, nunca deixou de lado as atividades espor-
tivas — nadava, andava de bicicleta, corria. Mens sana in cor-
pore sane. Mas, foi exatamente aí, quando se mudou para o Sul
da Bahia, que a vida de Carlos começou a se modificar. Radi-
calmente. Ao tentar transformar em realidade o sonho de tra-
balhar com esporte na cidade mais antiga do Brasil, cheia de
sol e praias, em um cenário perfeito, mal sabia ele que ali co-
meçaria seu sofrimento. 
Carlos foi morar na pensão de uma senhora que, além de
lhe oferecer um lugar para comer e dormir, também lhe arran-
jou emprego em um bar. Carlos até que ralava muito. Nas ho-
ras vagas, percorria as praias vendendo CDs a R$ 5 para turis-
tas que, o ano todo, lotam as praias de Porto Seguro. Mas, an-
tes de terminar a aventura de Carlos na Bahia, vale a pena con-
tar uma outra história.
Seus pais, em Itabirito, casaram-se ainda jovens. Alzira, a
mãe, tinha 16 anos quando resolveu se juntar com o único ho-
mem que “conhecera” na vida. Nem importava ele ser um
pouco mais velho que ela. Contra a vontade das famílias, se ca-
saram e foram viver em um barracão alugado. Passados os en-
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cantos da lua de mel, começou a fase de sofrimento: Alzira era
constantemente espancada pelo marido. Quando ele bebia, a
coisa piorava. Nem durante a gravidez do primogênito, ele ali-
viou a mão. Todos os seis filhos de Alzira nasceram e cresceram
nesse ambiente de pura hostilidade, vendo a mãe ser agredida
pelo pai. Carlos foi o quarto filho a nascer. Junto com a irmã e
o irmão mais novos, foi dos que mais sofreram. Ninguém da
família sabe explicar, mas a fúria do pai redobrava contra os
três mais novos. O pai, no entanto, ainda desejava Alzira, a
queria como mulher. 
— Ele me aceitava, mas não queria as crianças.
Alzira chegou a ser expulsa de casa com os seis filhos. O
marido, quando enlouquecia, mandava todos para a rua.
Quando voltavam, entravam por uma porta lateral da casa e
iam dormir em um pequeno banheiro no quintal. Enquanto foi
possível agüentar, ninguém jamais pensou em denunciar o
pai. Até que, certo dia, Izadora, a filha mais nova, pediu a uma
vizinha que chamasse a polícia: temia que a mãe não resistisse
mais às crescentes agressões. O pai foi preso, mas logo deixou
a cadeia, por influência de um irmão advogado. Apesar de se
afastar da família, o pai ainda morava na mesma casa e conti-
nuava a atacar os filhos. Não importava o motivo: que abris-
sem a geladeira, falassem mais alto, rissem ou ligassem a tele-
visão. Carlos nunca perdoou o pai por um corte em sua ca-
beça. Só alguns anos depois, o pai foi obrigado a deixar defi-
nitivamente o lar. E em circunstâncias trágicas: tentou matar
Roberto, o caçula. Foi no seio dessa família que Carlos viveu
sua infância e adolescência. 
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“Tô à toa, aqui só entra gente boa!”
A família notou mudanças no comportamento de Carlos,
enquanto ele ainda estava em Porto Seguro. Sempre que telefo-
nava para a irmã, questionava, indignado, o porquê de o Bra-
sil ser um país tão desigual, com má distribuição de renda, res-
ponsável pela quantidade de crianças pobres que via nas ruas,
sem comida, amparo ou qualquer atenção. Via as ruas da ci-
dade, o ano inteiro repletas de turistas que desfrutavam do
bom e do melhor e se perguntava sobre as injustiças. E decidiu
que era hora de solucioná-las sozinho, à sua maneira. À noite,
quando voltava para a pensão, passou a recolher as crianças
que perambulavam pelo centro histórico de Porto Seguro ou
pelo famoso Corredor do Álcool, um dos pontos mais movi-
mentados da cidade, em busca de trocados. Levava todos para
a pensão onde morava — ali, garantia que teriam teto e co-
mida. Carlos não fazia isso todos os dias, mas a freqüência com
que ele entrava na pensão com a procissão de desvalidos não
passou despercebida e logo chamou a atenção de um desavi-
sado vizinho, que o denunciou à polícia, acusando-o de pedofilia. 
Só dois dias depois que ele estava preso é que a família, em
Itabirito, foi avisada. Mas, eles só chegariam a Porto Seguro
uma semana depois. Para viajar, precisaram de dinheiro e
carro. Lá, se assustaram ao ver que a situação de Carlos era de-
plorável. A surpresa veio junto com a suspeita de que ele já es-
tava com algum transtorno mental — o que foi confirmado
logo a seguir. Izadora conta que tomou um susto quando en-
trou na cadeia: com vários hematomas, marcas do espanca-
mento que sofreu da polícia e dos outros presos, Carlos, com a
roupa toda rasgada, esfregava fezes por todo o corpo, inclusive
no rosto. 
Na volta a Minas, os sinais do desvio se acentuaram. Nos
quase 900 km até Itabirito, Carlos não parou de falar uma única
vez. Estava insuportável, tentando, do banco de trás, pegaro vo-
lante. Foi difícil controlá-lo. Ele importunava o motorista, os G
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passageiros e se levantava dentro do carro. O descontrole era
tanto que, várias vezes, eles precisaram parar pelo caminho para
que Carlos extravasasse as energias no acostamento. As crises só
aumentaram. Em sua cidade natal, a situação ficou ainda pior.
Na televisão, na época, era exibida a novela Uga Uga, na Rede
Globo, com o ator Cláudio Heinrich interpretando um índio
aculturado e idiota, chamado Tatuapu. Eis que Carlos, talvez até
por sua semelhança física com o ator da televisão, se apresen-
tava e agia como o índio burro da novela: andava com pouca
roupa, esmurrava o peito e vivia gritando “uga-uga” para qual-
quer um que passasse. Resolveu adotar a moda indígena, com
largos cordões e pulseiras. E pôs anéis em quase todos os dedos. 
A mãe só percebeu que o filho precisava de ajuda quando ele
interrompeu, em plena Semana Santa, o cortejo da procissão
que levava o Cristo crucificado à Matriz da Boa Viagem. Mo-
rando ao lado da igreja, Carlos espreitava a procissão que des-
cia a Rua dos Rosários. A cantoria das beatas ecoava pela rua,
quando o cortejo foi interrompido por ele, que saltou da janela,
parou no meio da procissão e, com os braços abertos, gritou:
— Eu sou Jesus Cristo! Eu sou Jesus Cristo!
Para espanto geral da platéia, Carlos continuou com a per-
formance. Estirou-se no chão, com o corpo quase no formato
de uma estrela, braços e pernas abertas, lembrando o famoso
desenho Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, sussurrando
que era o filho de Deus. A procissão, estupefata, observava a
atuação de Carlos, que foi logo retirado da rua para que o cor-
tejo entrasse na igreja, carregando a imagem de Cristo. Mas,
Carlos também deu um jeito de entrar e, do altar, novamente se
autoconclamou o Filho de Deus. Quando um dos fiéis veio re-
tirá-lo, indignou-se:
— Como pode você tirar Jesus da casa do Senhor? É um pe-
cado. Sou eu, Jesus!
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Ao retornar a Itabirito, depois de um longo período de in-
ternação em Belo Horizonte, Carlos viveu momentos distintos,
ora deprimido, ora extremamente feliz. Na depressão, tran-
cava-se em seu quarto, anexo à casa (o mesmo que o pai usou
nos seus últimos anos em que lá viveu), não saindo para nada.
Por gostar da natureza, plantou no quarto mudas de várias
plantas. Colocou também, na porta, uma placa com a inscrição
“Tô à toa, aqui só entra gente boa”. Segundo ele, uma referên-
cia ao nome da loja de CDs que ainda pretende montar. 
Ele alterna momentos de alegria e extroversão. Pratica es-
portes freneticamente — não fuma nem bebe, as únicas drogas
que toma são as do tratamento psiquiátrico. Corre, nada, en-
fim, faz todo o tipo de exercício físico. Certa vez, foi e voltou a
pé, de Itabirito a Belo Horizonte, andando 110 km. A mãe ficou
chocada quando viu o filho chegar em casa, com todas as
unhas do pé estouradas. Quando não está no hospital e fica
sem tomar os remédios regularmente, sob a alegação de que já
está bom, as crises voltam. E a nova internação também passa
a ser uma necessidade. 
Quando Carlos internou-se pela primeira vez no Galba Ve-
loso, em 2000, o hospital já se livrara, algumas décadas antes,
de parte da prática das atrocidades que reduziam os pacientes
a um nada terrivelmente assustador e que o tornavam triste-
mente famoso. No entanto, apesar de todas as mudanças apli-
cadas ao tratamento psiquiátrico, os resquícios do passado
ainda são encontrados no hospital — hoje, o que tem o maior
número de pacientes em Belo Horizonte. 
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Doente mental é tudo igual
Durante o governo Bias Fortes (1956-1961) decidiu-se pela
construção de um novo hospital psiquiátrico em Belo Hori-
zonte, para assumir parte da demanda que abarrotava o Raul
Soares, que seria reformado e ajustado para funcionar como
hospital de adolescentes com “problemas de ajustamento” —
idéia que não foi adiante, como se veria depois. O novo hospi-
tal foi planejado e concebido pelo então secretário de saúde
Austregésilo Ribeiro de Mendonça, que havia sido psiquiatra
no Instituto Raul Soares e era conhecedor das deficiências no
tratamento da doença mental. 
Escolheu-se o local para erguer o hospital: uma área de
12.000 metros quadrados no bairro Gameleira, região oeste de
Belo Horizonte. Além do dinheiro do Estado, foram usados
também recursos do governo federal para a construção do
Galba Veloso, que recebeu este nome em homenagem ao psi-
quiatra mineiro que muito atuou na área durante a primeira
metade do século 20. Inaugurado em 1961, no ano seguinte fo-
ram transferidas para o novíssimo Galba Veloso os primeiros
pacientes, 34, todos egressos do velho Raul Soares. 
Irmã Aparecida foi uma das primeiras pessoas a ocupar as
dependências do novo hospital, mas não como interna: fazia
parte da congregação Franciscana Alcantarina, braço da igreja
católica que trabalha na assistência social. Em novembro de
1963, ela entrou no Galba Veloso, e só deixaria de trabalhar
com doentes mentais quase 30 anos depois. 
Nascida em Nova Era, no interior de Minas, o sonho de Ma-
ria Regina de Carvalho — seu nome de batismo —, desde
nova, era ingressar em uma congregação religiosa. Como o pai
não a deixou sair de casa muito nova, precisou esperar: só em
1961, aos 32 anos, pôde se mudar para o Rio de Janeiro, onde
foi estudar na congregação e tornou-se Irmã Aparecida. Dois
anos depois, foi enviada, junto com outras religiosas, para o re-
cém-criado hospital psiquiátrico. 
43
Durante os nove anos em que trabalhou no Galba, Irmã Apa-
recida presenciou muitas atrocidades a que os pacientes eram
submetidos. Lembra do horror das seções de eletrochoques e de
como os médicos não tinham a menor preocupação em exami-
nar detalhadamente cada paciente. Segundo ela, todos que en-
travam no hospital eram esquizofrênicos — mesmo sofrendo de
outro mal, o paciente era medicado com remédios para a esqui-
zofrenia. Além disso, o tratamento com eletrochoque era feito
sem nenhum tipo de controle, o que causava ainda mais danos
à saúde dos internos. Bastava o paciente se rebelar ou sofrer al-
gum tipo de crise para que fosse usado o ECT (electroconvul-
sive therapy). Havia também o tratamento a base de insulina,
que era injetado em doses cavalares para acalmar os doentes. 
Mesmo com todos os problemas e desumanidades, Irmã
Aparecida se lembra que alguns profissionais tentaram huma-
nizar o tratamento no Galba Veloso. Isso no final dos anos de
1960. Em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde, que dis-
ponibilizou 20 profissionais, foram criados salão de beleza, que
existe até hoje, e salas para que os internos trabalhassem com
massas, pintura, artesanato e música. Já naquela época, havia a
preocupação de proporcionar aos doentes atividades terapêu-
ticas. Mas, as maiores mudanças só aconteceriam na próxima
década, com a criação do serviço de urgência, antes usado ape-
nas como meio de triagem de pacientes.
O Galba, por ele mesmo
Um jardim florido na frente. Uma seqüência de pátios
ensolarados, tipo alçapões de cimento, ao fundo. Muros
acinzentados de até cinco metros de altura. Nenhuma
área verde no interior, nenhuma sombra, uma banco
para se assentar. Sequer uma peteca, uma bola, um ci-
garro para fumar. Apenas uma única salinha, de praxi-
terapia. Enfermarias escuras e fétidas. Homens e mulhe- G
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res transmutando seus problemas, piorando da doença.
Neuroses, psicoses e ausência de amor reunidas em dor-
mitórios comuns (...).
A descrição do Hospital Galba Veloso feita pelo jornalista
Hiram Firmino no primeiro capítulo do livro Nos Porões da Lou-
cura, que reúne várias reportagens feitas por ele para o jornal
Estado de Minas, e publicadas no final dos anos de 1970 e início
de 1980, mostram que as tentativas de humanização, contadas
por Irmã Aparecida, pouco ajudaram na evolução do trata-
mento e, principalmente,na condição dos internos. O HGV
continuava sendo um depósito de excluídos. O verbo no pas-
sado está impreciso — a situação ainda é deprimente.
Começamos pelos quatro “consultórios” sombrios, anexos à
portaria, onde os pacientes são examinados em tempo re-
corde. Depois, pelo “Posto de Sedação”, onde são sumaria-
mente drogados para internamentos. Tudo escuro. Sem ar,
sem verde. Uma mesinha de metal, muita seringa, ampolas
de injeção. Um corredor comprido e, logo à direita, a “Ala
dos Neuróticos”, a primeira enfermaria. Um dormitório,
espécie de copa-e-sala acoplada a um quartinho de remédios
e um pátio horrível. Quinze pacientes homens caídos pelo
chão, encostados nos muros, andando a esmo, no mesmo lu-
gar. Um ambiente pequeno, desolado. Nenhum banco para
se assentar.
O Galba Veloso continua a ser um lugar sombrio. As salas
continuam sem ar. Os pacientes ainda parecem desolados. 
O mesmo ritual de tocar a campainha, esperar uma aten-
dente olhar pela janelinha e abrir a porta. Entramos e,
num instante, umas duas dezenas de homens, de todas
as idades e modos, começaram a caminhar em nossa di-
reção. Os menos drogados vieram rapidamente. Os ou-
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tros, em câmera lenta. Nada de terror. A maioria deles
ainda queria simplesmente apertar as nossas mãos, se
identificar como “fulano”, “beltrano” e “siclano”. Ao
perceberem que éramos repórteres, e não médicos, come-
çaram a dizer, mais descontraídos:
— Zero! Zero! Nota zero vezes zero pra tudo isso aqui.
(...)
— Por favor — continuaram — ajudem a gente. Aqui
tem briga toda hora e não vem ninguém para separar a
gente. O mais fraco é arrebentado.
Outro: 
— Somos nós que lavamos tudo aqui. Um lava o outro.
As privadas, os quartos, tudo.
E outro:
— O médico de plantão não aparece aqui. Quando vem,
não conversa com ninguém. Ele diz que não conversa
com gente doida.
A prostituta Ana Sílvia, tia de Lorraine, uma das internas da
“Ala Feminina”, reclama do “aspecto prisional” do hospital. A
portinha para identificar o visitante e, dependendo das cir-
cunstâncias, liberar a entrada. A sobrinha de Ana Sílvia, como
a maioria dos internos, passa quase todo o dia nas alas. Lor-
raine fica rezando, para espantar os “capetas que estão no
corpo”1. No pátio não gosta de ir, porque vê a rua e começa a
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1. Nos poemas de Homero, escritos mais ou menos em 1000 a.C., acreditava-se que as
pessoas que sofriam de insanidade mental haviam ofendidos os deuses, que as castiga-
vam fazendo com que se comportasse de maneira estranha. Primitivamente, a associa-
ção entre perturbação mental e influências malignas levou o homem a atribuir ao sobre-
natural a causa da manifestação das enfermidades mentais.
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chorar, com vontade de ir embora. Uma vez por semana parti-
cipa de atividades com pintura. Ela fica ali, esperando a sua
hora. Não sabe ao certo que hora é essa, nem qual o seu sen-
tido. Mas, na falta do que fazer, continua ali, a esperar. 
De uma maneira geral, parte do ambiente de horror descrito
no livro Nos Porões da Loucura, felizmente, não existe mais. As
alas superlotadas e muitas das atrocidades foram banidas do
hospital, além de maior preocupação das autoridades médicas
com as questões higiênicas.
— O Galba Veloso é fiscalizado regularmente, e isso vale
para todas as instituições de saúde. A Vigilância Sanitária é res-
ponsável por manter as condições sanitárias dos lugares que
prestam serviços de saúde. Se alguma irregularidade for cons-
tatada, somos autuados e multados. Nesse aspecto, o Galba
melhorou muito, ainda que muita coisa tenha que melhorar.
A afirmação é de Luz Marina Morello, diretora-clínica do
hospital. Segundo ela, o serviço de nutrição e dietética do hos-
pital, que é terceirizado, é inadequado. A causa seria uma he-
rança do passado. Mas, esse não é o principal problema do
Galba Veloso, e sim a solidão e a falta de humanidade. Pacien-
tes caminham pelos corredores do Galba, alguns com outros
problemas além da doença mental. Um dos internos, por exem-
plo, andava pelos corredores do hospital com bastante dificul-
dade, se arrastando pelos corrimões com ferimentos expostos
na perna e a aparência muito frágil. Enfermeiros e outros pro-
fissionais cruzavam o paciente sem prestar nenhum tipo de
amparo. Nenhuma cadeira de rodas ou muletas. Sequer um sorriso.
Nas enfermarias, a situação chega a ser pior. Na “Ala F”, é
nítido a carência e a solidão dos pacientes – cerca de 20. Entrar
no local é motivo de alegria para os alienados, que, por um
tempo, parecem esquecer a solidão e querem conversar. Falam
todos ao mesmo tempo, desde amenidades até as más condi-
ções dos leitos. Abraçam o visitante, reclamam da solidão e fa-
47
zem pedidos, quase sempre o mesmo: querem sair dali. Ou, o
que é mais comovedor, pedem um pouco de atenção.
— Então pelo menos vem me visitar de novo...
As quatro enfermarias da ala são limpas, muito diferente do
banheiro, com cheiro impregnado de urina e fezes. Da “F” é
possível sair em um pátio no fundo do hospital, onde os inter-
nos tomam banho de sol — qualquer semelhança com uma pri-
são não é mera coincidência. O pátio é cercado por grades e
muros altíssimos, herança dos remotos tempos dos “campos de
concentração psiquiátricos”. A própria diretora reconhece que
não faz sentido manter aquele tipo de ambiente:
— Já passou da hora de acabarmos com esse pátio, a ima-
gem é muito pesada. 
O que mais impressiona, no entanto, é o clima de ociosi-
dade. Os internos passam os dias entre os quartos e o pátio,
muitos deitados seminus no chão frio. Não há sequer uma ca-
deira na ala, nada para distraí-los. São os loucos afastados, in-
ternados em uma “jaula”, sem assistência adequada e simples-
mente sendo medicados e alimentados, o que já é uma evolu-
ção, pois, nas décadas passadas, os pacientes eram medicados
em jejum. O jornalista Hiram Firmino relata que os internos
eram obrigados a tomar remédios logo que acordassem, sem
ingerir uma gota de café, um biscoito, um pão, nada. 
A comida, dizem os internos, é farta. Carlos, nas tempora-
das que passa no Galba Veloso, sempre volta para casa, em Ita-
birito, acima do peso. Impressiona a mãe com o apetite. Com-
pra tudo em excesso, e tem a estranha mania de dividir toda a
comida até com os quatro cachorros da casa. 
Outro ambiente assustador é a cozinha, onde os internos fa-
zem as refeições. A comida não é mais preparada pelo hospital,
mas por uma empresa terceirizada. O ambiente é terrível: ins- G
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talações escuras, com as paredes estragadas, mesas e cadeiras
de concreto, sem um mínimo de conforto e higiene. Na área
onde está a cozinha — se é que pode ser chamada de cozinha
—, o que se vê é muito mofo e mais abandono. Além disso, o
caminho que leva a esse lugar é no mínimo inadequado para
um hospital psiquiátrico: entra-se por outra cozinha, já desati-
vada, com vários pedaços de concreto, ferros e outros objetos
espalhados no chão. 
Esse desalentador cenário, contudo, é totalmente diferente
da área destinada aos funcionários da instituição, principal-
mente dos diretores. Eles têm à disposição um refeitório infini-
tamente superior, sem conforto, mas com paredes pintadas,
mesas e cadeiras decentes, sem o abafamento da cozinha dos
loucos. As salas da diretoria também contrastam com todos as
outras dependências do Galba Veloso — tem-se a impressão de
estar em outro lugar. As paredes são pintadas, as janelas não
têm grades, os assentos são macios e confortáveis e os banhei-
ros estão em ótimas condições de higiene. 
É difícil precisar o número exato de pacientes no hospital,
pois a rotatividade é muito grande. Segundo Luz Marina Mo-
rello, a média de internação é de 18 dias. A taxa de ocupação é
de 100%, todos os 145 leitos — há três anos, 15 leitos estão de-
sativados, por falta de funcionários — estão em uso, mas ela
afirma que trabalhar com essa taxa de internação não é muito
seguro, e que é imprescindível ter leitos disponíveispara os
que estão chegando. Luz Marina também reconhece outros
problemas:
— Na saúde mental, o principal é ter recurso humano ade-
quado, uma área física melhor do que temos hoje, porque o
hospital é antigo e não passou por grandes reformas. Tem
problemas arquitetônicos sérios, que precisam ser sanados.
Mas, essa é uma questão que não vai ser resolvida da noite
para o dia. 
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Na “Ala E”, José Adão está internado há quatro anos — e ele
não cometeu nenhum tipo de delito, fora ter nascido com pro-
blemas mentais. Dopado, falando com muita dificuldade, a
única coisa que consegue dizer é que é do interior, de Itabira.
Apenas sabe que “está preso”. Com as roupas sujas, descalço,
caminha com dificuldades, apoiando-se nas paredes. Um en-
fermeiro que passa pelo local, nos fala sobre José Adão.
— Esse aí já está com a gente há muito tempo. Foi largado
aqui, não sabemos nada sobre ele ou sua família. 
E agora, José? Como a personagem angustiada e perdida do
famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, o José do
hospício não tem respostas. Ele é, como seu homônimo, apenas
uma interrogação. 
(...)
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia,
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou
e agora, José?
(...)
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Rafael Izaías de Queiroz não chegou a comer bosta para
acabar com a fome ou a beber urina para matar a sede.
Morreu antes, cinco dias depois de ser internado, em 1º
de agosto de 1966. Assim como Rafael, vários morreram
depois de dias, semanas ou meses da internação, o que
reforça o rótulo de o hospital de Barbacena ter sido o
Auschwitz brasileiro. 
Barbacena
53
Oapelido Cabo ficou por causa de uma jaqueta, com essainscrição, presenteado pela Aeronáutica a alguns internos
que prestavam serviço à corporação, de dentro do hospital.
Quase ninguém o conhece ou o trata como Antônio Gomes da
Silva. Aliás, nem precisava, pois Cabo não é dado a formalida-
des. Prefere o silêncio. A reflexão. Antônio, ou Cabo, é um ne-
gro forte, muito forte para os seus 61 anos. Conserva um bi-
gode fino, à moda antiga. A fisionomia é sempre séria. Tem
poucos fios brancos no cabelo, que é cortado de forma a ficar
um leve topete. Não tem os dentes superiores, quase nunca dá
uma risada e tem uma das mais impressionantes histórias de
todos àqueles que já passaram pelo CPHB, o Centro Psiquiá-
trico Hospitalar de Barbacena.
Cabo nasceu em Congonhas, em 1945. Cresceu rápido. Sem-
pre ajudou os pais, que perdeu aos 16 anos, no sustento da
casa. A ausência deles pouco mudou na rotina do jovem, acos-
tumado desde novo ao trabalho. Começou na roça, transfe-
rindo-se depois para a exploração mineral, segmento que dava
os primeiros passos na cidade eternizada pelas obras de Aleija-
dinho. Já era um homem sério e trabalhador quando se casou
com Dalva. Meses depois de casado, com a mulher grávida do
primogênito, Cabo levou o primeiro golpe: Dalva, súbita e mis-
teriosamente, partiu. Sem deixar nenhum recado ou carta de
despedida. Simplesmente sumiu. Cabo suspeita que a esposa o
abandonou por causa das dificuldades que eles enfrentavam
na época. Nunca mais a veria — nem receberia notícias.
O período logo após o abandono da mulher foi o pior na
vida de Cabo. Era alvo de brincadeiras dos mais diversos ti-
pos. Em uma noite, não agüentou a provocação num bar e par-
tiu para cima do caluniador. Foi preso. O delegado de Congo-
nhas, seguindo uma prática comum naqueles tempos, o enca-
minhou ao hospital psiquiátrico de Barbacena. O cidadão An-
tônio Gomes da Silva não estava em perfeita condição mental,
tanto que sua mulher, Dalva, foi embora com um filho no ven-
tre — foi a justificativa para a internação, que durou pouco Ba
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tempo. Cabo, depois, voltou a Congonhas, mas não demoraria
e estava de novo em Barbacena — precisava tratar a esquizo-
frenia, agora diagnosticada. Em seu retorno ao hospital psi-
quiátrico, Cabo percorreu os 88 quilômetros que separam
Congonhas de Barbacena a pé.
O ano era 1966, e não havia época pior para Cabo ser inter-
nado em um hospital psiquiátrico do que aquele. O hospital de
Barbacena passava por seu pior momento — comportava cerca
de cinco mil internos, com um número de óbitos assustador. A
primeira reação de Cabo foi retroceder ainda mais em sua timi-
dez. Não fez amigos nem falava com ninguém. Tomava os re-
médios, alimentava-se, ainda que precariamente, e dormia —
seu universo, já restrito, se fechou por completo. Mudou a ro-
tina quando os funcionários perceberam a disposição de Cabo
para o trabalho. Começou ajudando na limpeza do gramado
externo do pátio. Logo estaria na olaria, fabricando tijolos.
Chegou até tirar areia de um rio que cortava o fundo do hospi-
tal. Assim seria a vida de Cabo nos 25 anos seguintes — calado
e dedicado ao trabalho. 
Internos, médicos e funcionários do hospital, todos pensa-
vam que Cabo era mudo. Nunca o viram falar nada — nem
para reclamar da terrível comida, do frio das noites de inverno
ou das intermináveis sessões de eletrochoques. Era sempre a
mesma postura quieta, conformada e resignada. O rosto se-
reno, calmo; o olhar tranqüilo. Até que em um sábado de 1991,
um caminhão carregado de telhas iria mudar sua vida.
Jairo Toledo era o diretor do Centro Hospital Psiquiátrico de
Barbacena e construía na cidade sua casa. Naquele sábado,
chegaria do interior de São Paulo um caminhão com um carrega-
mento de telhas, para finalizar o teto. Jairo ligou para o hospi-
tal, à tarde, à procura de algum funcionário que pudesse ajudá-
lo a descarregar o material. Não encontrou ninguém — todos,
provavelmente, estavam em algum buteco, onde se reuniam
nos fins de semana. A alternativa foi chamar um interno. E não
havia ninguém melhor do que Cabo, reconhecido como ho-
55
mem trabalhador. Cabo ajudou no descarregamento das telhas.
Incansável, deu várias viagens, beneficiado pelos ombros lar-
gos e mãos grandes, que o ajudavam a carregar grandes quan-
tidades de uma só vez. Na segunda-feira, sem que ninguém o
chamasse, Cabo apareceu novamente na construção. Queria
trabalhar. Foi admitido como ajudante de obras, com as reco-
mendações do diretor do hospital de que precisava manter-se
medicado, o que nunca foi problema para Cabo, que sempre
aceitou tomar os remédios para controlar a doença. 
Na obra, a postura de Cabo era a mesma. Ouvia a instrução
do mestre-de-obras e a executava com o zelo e a dedicação de
sempre. Não pronunciava nenhuma palavra, até que em uma
bela tarde, já no final do expediente, um carro de som passou
em frente à obra, tocando uma música alta, e Cabo começou a
cantar. Os pedreiros se assustaram com a cena: ele não era
mudo, como pensavam. Em oito meses de trabalho juntos, era
a primeira vez que Cabo abria a boca, para acompanhar algu-
mas estrofes da música que ninguém lembra mais qual é. O
mestre-de-obras comentou com Jairo o ocorrido, e ouviu deste
que eles deveriam instigá-lo a falar. Assim fizeram os colegas
da obra. Jairo, certo dia, perguntou a Cabo por que nunca ele
havia falado, depois de décadas de internação no Hospital-
Colônia. A resposta foi simples:
— Ninguém nunca conversou comigo, nunca me pergunta-
ram nada. Eu fiquei na minha.
Aos poucos o tímido Cabo começou a se soltar, porém sem
nunca se exceder. Participava dos papos e comentários comuns
em toda obra ou no meio operário, mas, sempre provocado pe-
los companheiros. A casa do diretor ficou pronta. Cabo recebeu
e voltou aos serviços do hospital, até que foi indicado para
uma vaga na Turquete Gonçalves, empresa terceirizada que
presta serviços de manutenção ao hospital psiquiátrico. Mas aí,
outra surpresa: Cabo havia perdido todos os documentos Ba
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quando foi preso em Congonhas, em 1966. Passou os anos se-
guintes sem nada que o identificasse. Trinta anos depois,tirou
todos: carteira de identidade, CPF, título de eleitor e carteira de
trabalho, agora assinada. Antônio Gomes da Silva, negro, es-
quizofrênico e interno do hospital de Barbacena, tornava-se fi-
nalmente um cidadão. Dois anos mais tarde, em 1998, ele vo-
tou pela primeira vez, como relatou Gustavo Werneck em ma-
téria no jornal Estado de Minas. Após oito anos exercendo sua ci-
dadania, Cabo não se esquece das vezes que votou:
— Até agora foram cinco eleições — declara timidamente,
contando com o pleito de 2006 e sem revelar em quem votou. 
Só em 2003, Cabo deixou o hospital, depois de quase 40
anos de internação. Foi para um dos lares terapêuticos, manti-
dos pela prefeitura de Barbacena. Vai à instituição diariamente,
onde trabalha e encontra antigos colegas, alguns até de quarto.
O mais velho entre os companheiros de trabalho, Cabo é res-
peitado por todos — chega a ser quase uma admiração, pela
sua história, que teve um final feliz, apesar das décadas de iso-
lamento. Antônio Gomes da Silva é um exemplo de que os do-
entes mentais não são menos capazes, que podem, sim, viver
junto dos “normais”. Podem trabalhar, ter uma vida decente e
até escolher os governantes, que, muitas vezes, são os mantene-
dores desse sistema que ainda insiste em afastar “os alienados”
do convívio social.
Do delator da Inconfidência 
aos loucos despidos 
No início do século 20, em 16 de agosto de 1900, o governa-
dor de Minas, Silviano Brandão, assinou a Lei nº 290, criando a
“Assistência de Alienados”, que seria capaz de tratar de todos
os doentes mentais do Estado. Decidiu-se, três anos depois,
57
que a sede da nova instituição seria em Barbacena. Na cidade
havia um prédio que poderia ser adaptado à nova função. Esse
prédio era a antiga sede da Fazenda da Caveira de Baixo, que
pertenceu ao português Joaquim Silvério dos Reis, delator da
Inconfidência Mineira. No local, funcionava um serviço de
atendimento a doenças pulmonares, principalmente tubercu-
lose. A localização do terreno, no alto de um morro, era propí-
cio ao tratamento desses males. A história, no entanto, também
conta outra coisa. A cidade teria sido escolhida a sede do mani-
cômio por decisão política, ou melhor, como “prêmio de conso-
lação”, pois no início do século Barbacena disputou com Belo
Horizonte o título de capital de Minas. Como a última foi esco-
lhida, coube a primeira o hospital psiquiátrico. Vale lembrar
que Barbacena é cidade de clãs políticos influentes, como os
Bias Fortes e os Andradas, o que pesou na decisão e, claro, ren-
deu dividendos eleitorais para ambos, que sempre foram ri-
vais. Ninguém poderia imaginar que esse prêmio de consola-
ção iria eternizar Barbacena como a “cidade dos loucos”. 
No final do século 19, os doentes mentais em Minas eram re-
colhidos às cadeias públicas ou, em menor número, transferi-
dos para o Hospício Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, o pri-
meiro do país. Em Diamantina e São João Del Rei, os pacientes
eram tratados e hospedados nos “anexos psiquiátricos” das
Santas Casas. Na verdade, eram porões onde eram jogados.
Daí a necessidade de criar um ambiente próprio para o acolhi-
mento e tratamento dos alienados. E a criação do hospital psi-
quiátrico em Barbacena foi de grande importância para o de-
senvolvimento do município, tanto que o primeiro telefone da
cidade foi instalado no manicômio.
Até a década de 1930, o “Azylo Central de Barbacena”, seu
primeiro nome, funcionou em “boas” condições. Tinha um nú-
mero controlado de internos, entre 150 e 200. Apesar de não
haver tratamento adequado, os doentes faziam atividades te-
rapêuticas. Já nessa época, trabalhavam. Esse, acreditavam os
especialistas, era o único remédio para a insanidade mental: Ba
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faziam tijolos, cortavam grama e cultivavam hortas. Mas, já
em seus primórdios, o hospital foi estigmatizado como um lu-
gar sem volta. A possibilidade de que alguém saísse dali com
vida, era pequena. 
Francisco Gonçalves Lamas foi o primeiro a ser internado
na instituição, ainda em 1903, no dia 27 de dezembro. E, se-
gundo os registros do hospital, foi o primeiro a morrer lá den-
tro. Francisco era solteiro, tinha 27 anos e nasceu em Rio
Pomba, na zona da mata mineira. Assim ele está descrito nos
velhos papéis do Azylo Central:
Signaes physicos e physionomicos: cabelos castanhos,
barba loura, estatura regular, magro e bons dentes. 
Diagnóstico: inquietação maníaca.
OBS: Recolhido a requerimento por ordem de seu pai,
curador, o cidadão Joaquim Gonçalves.
Durante o tempo em que esteve internado, Francisco teve
tratamento de indigente. Não é mentira: Francisco Gonçalves
Lamas, o primeiro interno de Barbacena, faleceu em 1º de abril
de 1905, pouco mais de um ano depois de chegar à instituição.
A causa: gripe intestinal. 
Há ainda, nos primeiros anos do hospital, o registro de vá-
rios estrangeiros internados. Como a italiana Maria Armoni,
internada no dia 13 de maio de 1908. De cor branca, tinha 40
anos. Morava em Sabará e era casada. Diagnóstico: loucura
maníaca e depressiva (depressão melancólica e idéias religio-
sas). Deixou o hospital em 21 de agosto de 1908, sempre re-
zando e com referências a Deus. Ou o alemão William Schsiack,
internado em 14 de julho de 1904. Tinha 55 anos e era viúvo.
Diagnóstico: melancolia (depressiva e gemedora). O Estado,
responsável por sua internação, era seu tutor. Faleceu meses
depois, em 11 de dezembro, por problemas cardíacos. Não
59
veria sua Alemanha dominada pelos nazistas. William está en-
terrado em um cemitério da cidade, que era usado para sepul-
tar os mortos do hospital. 
Na década de 1950, a situação do manicômio começa a mu-
dar. E para pior. O asilo psiquiátrico de Barbacena tinha se po-
pularizado em Minas e por todo o país. Recebia não só doentes
vindos de cidades mineiras, mas também de estados como Ba-
hia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Além desses, ha-
via a triagem de pacientes dos hospitais Raul Soares e Galba
Veloso. Quem completava 11 dias de internação e não voltava
para casa, era encaminhado a Barbacena. Toda semana, saía de
Belo Horizonte um ônibus lotado, o famoso “Lelé Tur”. Em ge-
ral, eram pessoas que perdiam o vínculo social e familiar, esta-
vam abandonadas e que encontravam nos hospitais psiquiátri-
cos o último refúgio. Mas, havia também os doentes crônicos,
que as famílias não tinham condições de cuidar e eram até co-
niventes com a internação. 
— Era confortável para as famílias que, após a internação
em Belo Horizonte, os parentes não voltassem mais para casa.
A transferência para Barbacena era até um alívio — conta o psi-
quiatra Antônio Soares Simone. 
A famosa expressão “trem de doido” também remonta à
época. Um grande número de pacientes chegava a Barbacena
transportado pelas linhas férreas, vindo de várias partes do
Brasil. Assim, rapidamente o manicômio ficou superlotado.
Ainda na década de 1950, abrigava quase cinco mil alienados,
vivendo em condições subumanas, jogados pelos pátios e
sem nenhum tipo de atenção. A condição era tão degradante
que a grande maioria não tinha onde dormir; passava as noi-
tes no chão ou dormia sobre pilhas de capim que eram impro-
visadas como cama. A maioria ficava sem roupas, o que era
crucial para o desenvolvimento de outros males, como conta
Antônio Soares Simone: Ba
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— Ninguém morre de loucura. Era morte natural combi-
nada com desnutrição: a comida, às vezes, era única e exclusi-
vamente água com fubá, ou uma sopa rala de canjiquinha, sem
nenhuma gordura ou proteína. Ficavam nus e chegavam a per-
der os movimentos. Barbacena faz um frio terrível. Uma vez
despidos, já desnutridos, sem nenhuma defesa, pegavam uma
gripe, que depois virava pneumonia, porque eles também não
eram medicados. E assim, todas às manhãs, eram recolhidos
cadáveres nas enfermarias. 
Os mortos de Barbacena tornaram-se mais conhecidos do
que os internos. O ano de 1966 foi um dos que contabilizaram
maior

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