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Histórias da Loucura D é c i o a m o r i m J o ã o C a r l o s V e n t u r a L u c a s F e r r a z M a t e u s R a b e l o Histórias da Loucura Belo Horizonte 2006 Décio Amorim João Carlos Ventura Lucas Ferraz Mateus Rabelo projetomaluco@yahoogrupos.com.br Ficha Técnica Capa Ronaldo Magalhães Projeto Gráfico Leonardo Guimarães Ronaldo Magalhães Fotos Décio Amorim João Carlos Ventura Mateus Rabelo Edição de Textos Eustáquio Trindade Revisão de Textos Dalila de Souza Amorim Moura Em memória a todos aqueles que perderam suas vidas em um hospital psiquiátrico e não conheceram o gosto da liberdade... Introdução 9 Raul Soares 15 Galba Veloso 35 Barbacena 51 Evoluções 85 Tratamentos substitutivos 97 Considerações finais 113 Sumário 9 Este livro não tem a pretensão de ser um manual ou uma es-pécie de volume de estudo sobre a saúde mental ou a psi- quiatria. Menos ainda de ser mais um manifesto em favor dos projetos sobre a luta antimanicomial, em andamento no país e no mundo. Longe disso. Não há, nas páginas que se seguem, ne- nhuma revelação bombástica sobre a situação dos doentes men- tais ou novidades nos tratamentos a que são submetidos, até porque muito material sobre o assunto já foi publicado. Em vez disso, pensamos, primeiro, em dar voz a quem raramente é con- sultado sobre o assunto — as pessoas que são portadoras de so- frimento mental. Nas casas, nos hospitais, nos centros de trata- mento, saímos em busca destas vozes. Foi quando nos depara- mos com um fenômeno que vem, assustadoramente, tomando corpo no Brasil, e que pode representar, em um futuro muito próximo, um desafio ainda maior para aqueles que hoje se dedi- cam a repensar o tratamento do doente mental em nosso país. Em nossas visitas aos hospitais psiquiátricos, pudemos constatar uma sutil mudança no perfil dos internos. Negros, brancos, mulatos, quase sempre sexagenários, vindos dos ex- tratos mais baixos da população, muitos desses internos são parte de uma página em vias de fazer parte do passado na his- tória dos manicômios brasileiros, para dar lugar a uma nova geração, que começa a ocupar tristemente seu lugar nos hospi- tais, em decorrência de outro fenômeno urbano, de proporções cada vez mais alarmantes: a droga. Nesse particular, chama- mos a atenção para as histórias de Lorraine e Giovane — jo- vens que ainda não completaram 21 anos, mas que já trazem no corpo e na alma as marcas mais profundas do sofrimento. Lorraine, soropositiva, começou cedo nas drogas, que só lhe Introdução 10 H is t ó r ia s d a L o u c u r a acentuaram a esquizofrenia, da mesma forma que Giovane, que luta contra a dependência do crack. É esse o perfil dos no- vos internos, um fenômeno tão preocupante, que levou um de nossos entrevistados, um renomado psiquiatra, a definir o crack como “a cachaça do século 21”. Neste livro, apresentamos relatos sobre anônimos que so- frem de algum transtorno mental, mas também abrimos espa- ços para quem compartilha desse sofrimento, os familiares, como Ana Sílvia, uma prostituta de 60 anos, que até hoje bata- lha na Rua Guaicurus. Ana teve a mãe internada em um hospí- cio e, hoje, aos domingos, cumpre religiosamente uma via cru- cis que passa pelos hospitais Raul Soares e Galba Veloso, onde vai visitar a irmã mais nova e uma sobrinha, ambas doentes mentais. Elas trazem histórias de abandono, de desespero e de impotência. A luta antimanicomial, no Brasil, tem pela frente um obstáculo que, às vezes, se revela quase intransponível: as imensas dificuldades das famílias mais pobres, sem recursos de toda ordem para receber e tratar em casa seus doentes mentais. Há também histórias de alcoólatras e drogados, que estão internados nos hospitais psiquiátricos ou recebem tratamento nos centros de convivência. Ao mesmo tempo em que revela- mos alguns dos avanços da luta antimanicomial, reservamos espaços também para falar dos horrores do passado, de um tempo em que os hospitais eram verdadeiros campos de con- centração e o respeito à pessoa humana simplesmente inexis- tia. Falamos de um tempo em que o corpo morto de um doente mental era contabilizado como “peça” e vendido para ser dis- secado nas aulas de anatomia dos cursos de medicina, muitas vezes sem o conhecimento dos familiares. Assim, como grande parte das doenças, a mental, mais do que uma questão médica, representa um grave problema so- cial. Da mesma maneira que negros, pobres, crianças de ruas e todos os tipos de marginalizados sofrem preconceito, o louco, o alienado, historicamente, sempre foi isolado, vivendo à mar- gem da sociedade. Pensava-se que, assim, ele seria “curado”. 11 Segundo Michel Foucault, autor do clássico A História da Lou- cura, a remoção dos doentes mentais e a prática de mantê-los em locais isolados teve origem na cultura árabe. Os alienados eram recolhidos juntos com outras minorias sociais e encami- nhados para prédios, geralmente mantidos pelo poder público ou religioso. Em muitos casos, esses prédios eram leprosários, emparedados para que ali, o mal se curasse por si só. Longe dos olhos, longe do coração. Os primeiros hospícios teriam sido construídos no Oriente: entre os séculos 7 e 12, no Marrocos, no Iraque e no Egito. A tra- dição dos redutos destinados para o asilo dos loucos teria se expandido pela Europa por causa da ocupação árabe na Penín- sula Ibérica. No Brasil, a psiquiatria teve início na primeira me- tade do século 19, com a Sociedade de Medicina do Rio de Ja- neiro clamando pela construção de um hospital psiquiátrico. Isso se deu por causa de protestos pela situação dos loucos na Santa Casa de Misericórdia – eles ficavam jogados nos porões da instituição. Em 1841, o imperador Dom Pedro II assinou de- creto que dizia: “Desejando assinalar o fausto dia de minha sa- gração com a criação de um estabelecimento de pública bene- merência, hei por fundar um hospital destinado privativa- mente para o tratamento de alienados, com a denominação de Hospício D. Pedro II”. O hospício foi inaugurado em 1852, ano em que também foi aberto em São Paulo o Hospital Provisório. A partir daí, seguiu- se a criação de hospitais psiquiátricos em outras partes do Bra- sil: em 1874, na Bahia; em 1883, no Recife e, cinco anos depois, outro em São Paulo, o superlotado Juqueri, cujas imagens cho- caram o mundo, nos anos de 1960 e 1970, pela desumanidade com que se tratava os internos. Fato que se repetiria quase si- multaneamente na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. A história em Minas Gerais, como se verá nas páginas se- guintes, tem no famoso hospital de Barbacena, criado no iní- cio do século 20, em 1903, o sucedâneo do Juqueri e da Colô- nia Juliano Moreira. Antes dele, os doentes mentais, seguindo In t r o d u ç ã o 12 H is t ó r ia s d a L o u c u r a prática comum dos tempos passados, eram levados para ca- deias públicas. Alguns iam para o Dom Pedro II, no Rio, outros para Diamantina ou São João Del Rei, cidades onde haviam “anexos psiquiátricos” nas Santas Casas. O hospital de Barba- cena testemunhou coisas terríveis. Entre os anos de 1950 e 1970, a instituição chegou a comportar quase cinco mil inter- nos. Doentes que se encaminhavam para lá como um conde- nado à morte ia para a cadeira elétrica. Ou como os judeus, le- vados durante a Alemanha hitlerista para os campos de con- centração. Não foi à toa que o psiquiatra italiano Franco Basa- glia cunhou essa expressão para descrever o Hospital-Colônia, quando o conheceu no final dos anos de 1970. Basaglia, este italiano nascido em Veneza, ajudou a mudar a história do tratamento psiquiátrico no Brasil. Sua vinda ao país impulsionou uma série de eventos a favor da humanização do tratamento nos hospitais, e não só nos mineiros, como também em outros “campos de concentração” espalhados pelo país. A repercussão da visita do italiano levou à publicação de várias matérias, como as produzidas pelo jornalista Hiram Firmino, no jornal Estado de Minas, que anos depois, originou o livro Nos Porõesda Loucura, em que descrevia a horripilante situação dos internos, também divulgadas no documentário Em Nome da Ra- zão, produzido pelo cineasta mineiro Helvécio Ratton. Há ainda as histórias do Raul Soares e do Galba Veloso, os dois hospitais psiquiátricos públicos de Belo Horizonte, e seus in- ternos, alguns asilados há mais de 40 anos. Muita coisa já mudou, mas o preconceito, o descaso e a falta de amor ainda continuam como os maiores entraves na vida do doente mental. Já se afirmou também que, em muitos ca- sos, o bom jornalismo equivale a uma história bem contada. As histórias que contamos aqui são as que povoam o cotidiano dos hospitais e de suas personagens. Em alguns casos, os no- mes de alguns entrevistados foram alterados, a pedido deles ou dos familiares. Não são histórias alegres ou esperançosas. Mal se iniciou a luta antimanicomial e um outro desafio 13 enorme já desponta: o aumento dos casos de doença mental decorrentes do uso e do abuso de drogas. Que nosso livro seja pelo menos uma contribuição para essa luta, é o que quere- mos. E que a sinceridade de nosso trabalho possa encontrar igual receptividade nos leitores. In t r o d u ç ã o Raul Soares “A unidade em que trabalhava, comportava 40 mulhe- res, mas havia 80. Como não tinha cama suficiente, es- palhávamos colchões no chão. Sem falar na comida que era horrível e a sujeira, que causava outro problema. Todas as noites, centenas de ratos invadiam o hospital. Era pavoroso” 17 OInstituto Raul Soares é um velho e triste antro de excluí-dos. São poucos os internos que ainda gozam do privilé- gio de receber visitas de familiares e amigos. Mulheres, mari- dos, filhos estão quase sempre ausentes. Os que permanecem no velho Raul são asilados e por lá ficam, até que recebam alta, o que, vagamente, equivale ao direito de ir para casa ou para as ruas e, de lá, voltar para o Raul Soares. Aí começa o drama: a maioria não tem mais casa para voltar. Ou, então, não tem pa- rentes ou não sabe mais deles. A única alternativa possível é ir ficando por ali, à espera da morte. Mas ainda há quem receba visitas. Algumas até vão diariamente. Outras, só aos domin- gos. Há os que passam por lá uma vez por mês. E até os que vão uma vez por ano, como quem cumpre pesada obrigação. Não é difícil entender o porquê. Familiares e amigos, em muitos casos, costumam se afastar de quem vive com algum transtorno mental, revelando a ex- trema dificuldade que é conviver com esse tipo de paciente, principalmente dentro de casa — das crises podem surgir ten- tativas de suicídio e agressões aos familiares. O pior é que esse afastamento ocorre justo quando o doente mais precisa de ca- rinho e conforto, do suporte da família. A luta antimanicomial revela, assim, um outro lado, bem mais perverso, de sua mo- eda: o da incapacidade que a maioria das famílias encontra para fazer sua parte nessa queda de braço com o velho sistema, preferindo deixar para o governo a tarefa de cuidar dos doentes. Ana Sílvia, um catalisador de tragédias Ana Sílvia de Abreu é prostituta e se define assim sem qual- quer constrangimento — coisa que só faz quem é diplomada na escola da vida. Ana é das que estão do lado de fora. Nem por isso é mais feliz. Poucas vezes em sua vida, chegou perto de saber o que é carinho e conforto. Em vias de completar 60 anos, às vezes, por razões explicitamente profissionais, precisa Ra u l So a r e s 18 H is t ó r ia s d a L o u c u r a se mostrar carinhosa. Mas reconhece que se trata de uma emo- ção que se repete mecanicamente, como uma obrigação neces- sária na dura tarefa de, a esta altura da vida, ter que proporcio- nar prazer a homens que mal conhece. Na profissão mais an- tiga do mundo, onde se espera que cada jornada se encerre pelo menos com alguns momentos de prazer, Ana Sílvia não contabiliza mais tantas vantagens. Exceto uma: a flexibilidade para escolher seu horário de trabalho — uma repetição de atos de submissão, pois não tem mais como selecionar seus aman- tes. Os clientes quase sempre são mais velhos, como ela pró- pria. Os mais jovens, ou os que estão dispostos a pagar mais, preferem as mulheres mais novas e, vá lá, melhores que ela. De fácil, a vida de Ana Sílvia não tem nada. Nascida em Lavras, região do Campo das Vertentes, no in- terior de Minas Gerais, a descoberta do sexo veio cedo para ela: logo aos 16 anos. À força. O responsável, um homem já velho, de mãos grossas, calejadas pela faina diária da roça, que fez tudo ali mesmo, num desvio de estrada, na zona rural da ci- dade. Prazer? Não sentiu. Saiu da experiência enojada com a brutalidade daquele homem. Até aquele trágico fim de tarde na pacata Lavras, a vida de Ana Sílvia não se diferenciava de outras jovens criadas nos anos 50 do século passado. Minas vi- via uma época única, com Juscelino Kubitschek, governador obcecado com o desenvolvimentismo que, anos mais tarde, contaminaria todo o Brasil e se consolidaria com a construção da nova capital federal. A vida de Ana, apesar de simples, era farta, ao lado de cinco irmãos e dos pais, vivendo em uma fa- zenda, de onde a família tirava o próprio sustento. Depois de perder a virgindade, continuou a se deitar com outros homens por matas e caminhos nada confortáveis. Teve que sair de casa. Muito porque, em parte, perseguia o sonho de ganhar mais dinheiro e viver melhor com o que lhe pagavam por sexo. Aliás, conta que era tão bonita e desejada por tantos homens, que pretendentes não lhe faltavam. Alguns, dispostos a pagar muito por uma coisa que Ana gostava tanto de fazer – 19 apesar das lembranças do estupro. Chegou a Belo Horizonte em meados dos anos de 1960, quando a metrópole ainda le- vava a fama de “cidade jardim”, a planejada capital do futuro, com a Pampulha de Oscar Niemeyer e JK, a Praça da Liber- dade dos footing de fim de tarde, do Mineirão recém-inaugu- rado, do Parque Municipal e da TV Itacolomi — um dos pri- meiros canais de televisão do Brasil, que causava furor na pe- quena população da cidade, na época com pouco mais de 400 mil habitantes. Aos 19 anos, Ana Sílvia já estava na famosa Casa da Zezé, o célebre bordel da avenida Francisco Sales, no bairro Floresta, a poucos passos da Itacolomi, que havia trans- ferido parte de suas instalações para o Palácio do Rádio, na avenida Assis Chateaubriand. A Zezé era ponto não só de ar- tistas de televisão, mas também dos endinheirados da promis- sora capital mineira: coronéis, políticos, rapazes das mais finas e tradicionais famílias mineiras e, claro, jogadores de futebol. Nos anos em que trabalhou lá, Ana teve a oportunidade de mudar de vida. Não lhe faltavam pedidos de casamento e juras de amor de homens que prometiam jóias, casa, comida, roupa lavada, filhos e tudo aquilo que muita mulher gostaria de ter — um lar. Ana, no entanto, preferiu viver à sua maneira. A úl- tima coisa que queria era se tornar dona de casa, mulher de ho- mens que, sabia, não viveriam sem amantes e que, no fundo, só queriam tomar as rédeas de sua vida. Nem na pobreza de hoje ela se arrepende. Nunca se casou, não teve filhos e mantém a rotina de mais de 43 anos na pros- tituição. Mas os tempos, agora, são outros. Nada de homens importantes, figurões da televisão ou jogadores famosos do Cruzeiro ou do Atlético. Os de agora, que buscam uma mulher de 60 anos, que traz em seu corpo todas as marcas do tempo, são brutos, de mãos calejadas, tal e qual o velho que, um dia, lhe tirou à força, a virgindade. A suntuosidade da Casa da Zezé também ficou no passado: o atual ponto de trabalho é um pu- teiro sujo e velho da Rua Guaicurus, tradicional reduto boêmio de Belo Horizonte, hoje praticamente em ruínas, arrasado pela Ra u l So a r e s 20 H is t ó r ia s d a L o u c u r a marginalidade, pelo fantasma do tráfico e das doenças vené- reas, como a aids. Evidentemente, o dinheiro recebido por um programa também já não é mais o mesmo. Além da concorrên- cia, cada vez mais jovem e especializada, que surge em cada es- quina, a ação do tempo foi cruel paracom ela. A vida, em alguns casos, é uma roda viva. A de Ana, tam- bém no aspecto pessoal, girou como um catalisador de tragé- dias. Enquanto criança, teve que conviver com a doença men- tal da mãe. Hoje, tem a irmã e uma sobrinha psicóticas, ambas internadas em hospitais psiquiátricos. A mãe já morreu há al- guns anos, mas, antes, penou com a doença. Foi internada em Barbacena, no final dos anos de 1950, em um daqueles perío- dos de mais horror do Hospital Colônia. Durante o tempo de internação, passou por momentos terríveis, sem receber aten- dimento adequado, sufocada pela superlotação do hospício. Certa vez, teve a cabeça pisoteada pelas colegas de quarto. Mas, teve pelo menos a sorte de morrer em casa, na fazenda da família. Rosilene é uma das irmãs mais novas de Ana. Também é es- quizofrênica1. Tal e qual a mãe. Já cumpriu um longo roteiro de internações no Raul Soares. Os sintomas da doença surgiram ainda na adolescência, quando criava personagens imaginários e situações tão delirantes quanto inusitadas envolvendo astros do cinema norte-americano. Certa vez, viu Humphrey Bogart, astro do clássico Casablanca, entrar em sua casa e pedi-la em ca- samento. Quase não acreditou quando a irmã o maltratou e o galã foi embora. A vida de Rosilene, de 51 anos, é um drama sem fim, com nenhuma perspectiva de final feliz. Divide-se em eter- nas idas e vindas entre a casa em Lavras e o hospital Raul Soa- res, em Belo Horizonte. É para onde vai quando tem crises, ge- ralmente agravadas por não seguir corretamente a medicação — ela chegou a desenvolver uma técnica para esconder os compri- 1. A esquizofrenia é uma doença mental que se classifica por vários sintomas, entre os quais alterações no pensamento, alucinações (sobretudo auditivas), delírios, com perda de contato com a realidade, causando disfuncionamento social crônico. 21 midos sob a língua. Abre a boca, mostra que, sim, que tomou o remédio, mas depois o cospe. Algumas vezes, chega até a guardá-lo dentro do travesseiro. Por isso, quando entra em crise, ela chega mais forte e a única forma de controlar seus impulsos é com a internação, quase sempre à força. Uma cena que se re- pete tanto, que a irmã, Ana Sílvia, diz que já perdeu a conta. Rosilene é uma mulher corada, forte, de cabelos loiros e tra- ços que revelam uma antiga beleza, apesar das drogas ingeri- das no tratamento psiquiátrico. Está dopada, com aparência distante. Separada de um casamento bastante complicado, onde havia muito amor, desejo e pouco respeito, Rosilene teve uma filha, Lorraine, que também tem transtornos mentais e freqüentemente passa por internações. Além da hereditarie- dade, a doença da filha, de 19 anos, traz consigo mais um agra- vante: está ligada ao uso de drogas. Sem a referência da figura paterna — Lorraine nem sabe se o pai está vivo — e com a do- ença da mãe, ela, desde muito nova, embarcou em uma vida sem freios. Aos 12 anos, enturmou-se com pessoas mais velhas. Além do hábito de fumar maconha, passava dias dormindo nas ruas. Logo, experimentou cocaína. Para se viciar no crack foi um pulo, fechando um ciclo fatal em sua vida: quando foi internada pela primeira vez em um hospital psiquiátrico, des- cobriu ser portadora do vírus HIV. Lorraine está no Galba Ve- loso, longe da mãe, Rosilene, que, no Raul Soares, entre sauda- des da filha e a vontade de sair, só sabe repetir que tem von- tade de comer biscoito com requeijão. Os domingos de Ana Sílvia se dividem entre visitas à irmã, no Raul Soares, e à sobrinha, no Galba Veloso — que ficam bem distantes um do outro. Mas há um atenuante: suas idas aos hospitais são condicionadas ao faturamento na zona. Ela só se desloca de sua casa, no distante bairro de Borba Gato, na peri- feria de Sabará, região metropolitana de Belo Horizonte, quan- do sobra algum trocado para passagens, rumo aos bairros Ga- meleira e Santa Efigênia. Quando vai, leva um mimo especial às duas parentes: cigarros do Paraguai. Ra u l So a r e s 22 H is t ó r ia s d a L o u c u r a Muito magra, dentes amarelados, rugas fundas em um rosto que parece mais velho para os 60 anos que afirma ter, Ana Síl- via conserva uma leve expressão de malícia, herdada certa- mente pela prática do sexo em áreas em que se é obrigado a conviver diariamente com a malandragem. É descolada, ví- vida, tem pensamento rápido e articula sempre com expressões do meio, reforçadas por toques no braço do interlocutor e leves meneios com a cabeça, para trás, quando quer expressar algo com veemência. Com um gorro preto, da Nike, sobre a cabeça, cabelos loiros anelados saindo pelos lados, óculos de lentes grossas, sandálias e jaqueta sobre um vestido igualmente sur- rado, Ana caminha pelos corredores do Raul Soares como quem já percorreu tanto aqueles caminhos, que seria capaz de chegar à ala de sua irmã com os olhos vendados. Adentra pelo Raul Soares com desenvoltura. Brinca com porteiros e funcio- nários. E reclama também. Principalmente do Galba Veloso, de onde acaba de chegar – tinha ido visitar a sobrinha, Lorraine. Ana o compara a uma cadeia. Portas de aço, janelinhas retan- gulares, pequenas, único meio de se olhar as alas. Prefere o Raul Soares — “onde tem muito mais luxo”. E lamenta a sobri- nha não estar internada no mesmo lugar que a mãe. Acredita que se as duas estivessem juntas, a situação delas seria dife- rente. O carinho de mãe e filha seria fundamental para auxiliar na recuperação de ambas e tornaria suas vidas mais alegres. Na “Ala Feminina”, Ana Sílvia é recepcionada por colegas de Rosilene. A maioria foi internada em estado crítico, o que se traduz na aparência: todas parecem totalmente alucinadas. Na verdade, estão chapadas de remédio. Logo, correm para contar a Rosilene que ela tem visita. Apesar da tristeza do ambiente, o encontro das duas é comovente. Primeiro, elogios mútuos. — Como você está linda, minha irmã. — Que nada, você é que está maravilhosa; olha como seu cabelo está bonito – retribui Ana Silvia. 23 As mãos se tocam através das grades da porta. Os funcioná- rios não permitem que uma vá para o lado de lá, ou que a outra venha para o lado de cá. Ana tira da sacola o esperado pacote de cigarros. Os olhos da irmã até brilham, implorando por um trago. É visível a fissura por umas tragadas. Rosilene recebe en- tão um maço de Carlton, falsificado, é claro. Ana desdenha, pois fuma Derby. E vai logo se justificando: não teria dinheiro para comprar de marca, senão a paraguaia. A enfermeira que vigia da porta, com postura rígida e feroz, que nem um soldado, recebe o pacote e o pedido para guardá-lo e distribuir para Rosilene, tal e qual um conta-gotas, aos maços, a pedido de Ana Sílvia: “Se ela ficar com o pacote, fuma tudo em uma tarde”. Sem tempo — ou paciência — para ficar ali muito tempo, e impedida de entrar na ala para abraçar e beijar a irmã – apesar de ter implorado à inflexível enfermeira, que, mais uma vez, nega rispidamente o pedido, Ana se despede de Rosilene. Esta, ainda fala dos planos da semana. Quer receber alta, voltar a La- vras. As duas se beijam através das grades, uma acariciando o rosto da outra. Quando Ana está quase virando o corredor, já longe da porta, Rosilene grita: — Você volta amanhã, minha irmã? Quando vier, por favor, traz biscoito água-e-sal com requeijão, estou com vontade de comer biscoito com requeijão. A única coisa que dá para Ana responder é um “tá bom”. Já no jardim do Raul Soares, caminhando em direção ao portão do hospital, logo vem a ressalva: o dinheiro não dá para os dois — ou tem biscoito ou tem cigarro. — Mas, para quem está internada, um maço de cigarros vale bem mais que um pacote de biscoitos. R a u l So a r e s 24 H is t ó r ia s d a L o u c u r a Enquanto os gatos dormem, os ratos fazem a festa Entrar no Raul Soares pela primeira vez é, ainda hoje, quan- do já se passaram os dias de má fama do hospital, uma experi- ência assustadora. É difícil acreditar como um lugar destinado ao tratamento de pessoas com sofrimento mental sejatão feio, cinza, sem nenhuma vida. As árvores da entrada, que levam ao pátio central, bem em frente à portaria principal, ajudam ainda mais a compor o ambiente de terror. Lembram muito o cenário do filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky, que conta a história de um rapaz que é internado em um hospital psiquiá- trico pelo pai, ao descobrir o envolvimento do filho com dro- gas. O personagem, interpretado pelo ator Rodrigo Santoro, passa por todos os sofrimentos comuns ao tratamento mental de décadas atrás — do confinamento aos eletrochoques. Criado na década de 1920, por determinação do então pre- sidente Arthur da Silva Bernardes (1922-1926), denominado antes como Instituto Neuro-Psychiatrico de Belo Horizonte, o Raul Soares surgiu como alternativa para o Hospital Colô- nia de Barbacena, já naquela época considerado um sinô- nimo do inferno, com as características que o marcariam tris- temente, anos depois, quando chegou a ser conhecido como “campo de concentração”. A mensagem do presidente Ber- nardes, na ocasião, ilustra o panorama do tratamento psi- quiátrico da época, nos anos de 1920: “Temos que adaptar e desenvolver a Colônia de Alienados de Barbacena, de sim- ples depósito de loucos ou asilo prisão, baldo dos mais ele- mentares recursos terapêuticos”. Em Belo Horizonte, o planejamento e a responsabilidade pela construção do novo hospital couberam ao médico Álvaro Ribeiro de Barros, escolhido pelo próprio presidente Bernar- des, por sua atuação já consagrada na psiquiatria mineira — o médico, inclusive, foi nomeado o primeiro diretor da institui- ção. A engenharia do prédio central do hospital foi construída 25 propositalmente em forma de círculo, para confundir os inter- nos, que poderiam andar, andar e andar, chegando sempre ao mesmo lugar, uma espécie de paço central. A tortura psicoló- gica, como se vê, era também um dos recursos para domar os loucos que a sociedade expelia. Não eram apenas os choques que machucavam os internos. À sua maneira, com sutil eficiên- cia, o sistema engendrava sua roda viva. A inauguração do instituto tinha como principal finalidade auxiliar no aumento da demanda do tristemente famoso hospi- tal de Barbacena. Também tinha a de servir como um centro de triagem, com o objetivo de disciplinar os métodos de interna- ção — o que, infelizmente, não aconteceu. Os anos se passaram desde a inauguração e o Instituto Raul Soares, criado para ser uma nova referência do tratamento psiquiátrico, apresentava, pouco depois, o mesmo problema do Hospital Colônia de Bar- bacena: superlotação. Sem falar no aspecto cada vez mais pre- cário, por não poder contar com a devida manutenção do Es- tado. Paula Cambraia, ex-enfermeira, que trabalhou no hospi- tal por onze anos, testemunha que, naqueles terríveis anos, até camas faltavam aos internos. — A unidade em que trabalhava, comportava 40 mulheres, mas havia 80. Como não tinha cama suficiente, espalhávamos colchões no chão. Sem falar na comida que era horrível e a su- jeira, que causava outro problema. Todas as noites, centenas de ratos invadiam o hospital. Era pavoroso. Hoje, depois de oitenta anos de sua fundação, o Raul Soa- res não tem mais o problema de superlotação. É que, de acordo com as novas diretrizes, agora estabelecidas pela nova Lei de Saúde Mental, os leitos desocupados devem ser fechados, o que tende a diminuir, com o tempo, o número de pacientes fixos do hospital. Esse é um dos passos, aplicados somente nas instituições públicas, para se chegar ao fim dos hospitais psiquiátricos. Ra u l So a r e s 26 H is t ó r ia s d a L o u c u r a Luís Cláudio conhece como ninguém o Raul Soares. Só não é mais velho que o prédio e as árvores da instituição. Entrou no hospital pela primeira vez nos anos de 1950, quando Getúlio Vargas ocupava pela segunda vez a presidência da república. Enquanto estava no Raul Soares, a situação do Brasil mudou — a dele, não. No Rio de Janeiro, o incendiário Carlos Lacerda so- freu o célebre atentado na Rua Toneleiros, episódio que apres- sou a queda do governo e culminou no suicídio de Vargas, dias depois. A UDN, partido de Lacerda, sem sucesso, tentou fazer o presidente da república. Dias de instabilidade, que viriam a se repetir tempos depois, em 1964, durante o período em que Luís Cláudio passava seus piores momentos no hospital, sob efeito de choques-elétricos. Na mesma época, os militares der- rubavam o governo de João Goulart e iniciavam ali um dos pe- ríodos de maior arbitrariedade da história do país. Quando, em 1979, os exilados já ensaiavam sua voltam ao Brasil, com festa, beneficiados por uma Anistia que chegou até mesmo a receber um hino não oficial, que falava no sofri- mento de Marias e Clarices, e em nuvens que, lá no mata-bor- rão do céu, chupavam manchas torturadas, continuava Luís Cláudio, no mesmo Raul Soares. De lá, comemorou a eleição do primeiro presidente civil depois de mais de 20 anos de re- gime militar, mas se decepcionou quando soube da notícia que Tancredo Neves nem chegou a assumir a presidência — deu o azar de morrer antes. Não sentiu o impacto do neoliberalismo nos anos 1990, mas ficou feliz quando um operário foi eleito presidente, o primeiro da esquerda na história do Brasil. Como em toda sua vida, decepcionou-se de novo: como pode um político de esquerda governar pela direita? Luís já não en- tende mais nada desse país “muito doido”. Depois, ele é que o louco, o alienado. Ouve este rótulo desde os 26 anos, quan- do foi internado pela primeira vez, no Raul Soares. Hoje, aos 78, faz um assustador balanço de sua vida. Mal consegue acre- ditar que passou quase dois terços dela internado em hospi- tais psiquiátricos — a maioria no Raul Soares. Saiu de lá algu- 27 mas vezes: ficou um tempo em Barbacena e na casa de um ir- mão, mas o destino poucas vezes mudou. Invariavelmente, re- tornava ao velho hospital. Ele sabe que continua vivo quase por milagre. Mesmo de- pois de tantas internações, drogas e choques, que o deixaram em permanente estado de demência, os momentos de lucidez são poucos e cada vez mais raros. A velhice torna esse pro- blema ainda mais agudo. Ele sabe que volta não há mais: ape- sar do sofrimento mental, é frio e pragmático quando diz que não tem esperança de deixar o Raul Soares com vida. Confor- mou-se de que ali passará o resto de seus dias. Apesar de tan- tos pesares, Luís Cláudio é forte. Está constantemente mal-hu- morado. Tem cabelos brancos, sobrancelhas grossas, unhas grandes e sujas, dedos amarelados, de um tom que se espalha pela palma e pelas costas da mão, herança do compulsivo ato de fumar, que é motivo também das intermináveis crises de tosses, que não deixam ninguém dormir em sua ala. Quando começa a tossir, diz que tem ânsias de vômito que só terminam com o amparo dos enfermeiros. A única companhia de Luís é a doença que o segue há décadas. No hospital, está quase sem- pre sozinho, apesar de ser bastante popular entre os internos. A família, diz, esta quase toda morta. Não sabe se o irmão, que não o visita há muito tempo, ainda está vivo. O passado, para Luís Cláudio, é tortuoso. Parece assunto que lhe incomoda. Por isso, tenta evitá-lo. O pouco que se sabe é que não se casou nem teve filhos — não “transmitiu a nenhuma criatura o legado de sua miséria”, como escreveu Machado de Assis na derradeira página de Memórias Póstumas de Brás Cubas. — Assim foi melhor. Não preciso incomodar ninguém. Em um único momento apenas Luís evoca o passado. Para falar do América, seu time de coração. É quando surgem his- tórias do valente Siderúrgica, de Sabará, que, em tardes glori- osas, bateu o Cruzeiro e o Atlético. O mau humor não impede Ra u l So a r e s 28 H is t ó r ia s d a L o u c u r a que, de vez em quando, Luiz faça o que mais gosta: contar histórias. Raramente faz perguntas, como se o mundo lá fora não o interessasse. Em uma longa tarde de conversas e entre- vistas, só fez esta: — Você sabe quanto ficou o jogo do América? “O maior de todos os medos é o medo de uma recaída”Quando Oswaldo Dimas foi internado pela primeira vez no Instituto Raul Soares, nem se deu conta de qual era o dia. So- fria a mais forte crise de abstinência desde que, com a ajuda da irmã, começou a lutar contra o álcool. Naquela segunda-feira, 11 de setembro, o mundo se lembrava dos cinco anos da fatí- dica terça-feira de 2001, quando dois aviões atravessaram as torres do World Trade Center, em Nova York, no maior e mais audacioso ataque terrorista da história. Assim que chegou ao hospital, delirando, Oswaldo também sofria o que parecia um atentado terrorista particular. Não conseguia se firmar em pé, com todos os músculos do corpo em permanente convulsão. O quadro era de delirium tremens, um dos sintomas mais graves da síndrome de abstinência aguda. O paciente, com este tipo de alucinação alcoólica, apresenta vários surtos de pânico, com sensações imaginárias de estar sendo atacado por insetos ou al- gum animal ainda mais estranho. Imagina algo percorrendo seu corpo e tentava livrar-se dele. Via bichos rodeando a cama, paredes e teto do quarto, sem contar o sentimento de medo, cada vez mais crescente. No surto, que pode durar minutos, horas ou até dias, se nada for feito, o alcoólatra pode tentar se rasgar. Há ainda os riscos de parada cardíaca ou respiratória. No passado, pacientes que apresentavam o quadro de deli- rium tremens recebiam, na maioria das vezes, tratamento duro: a angustiante camisa-de-força. Hoje, o velho instrumento de 29 tortura foi substituído por sedativos potentes. Foi o que os en- fermeiros injetaram em Oswaldo para conter seus delírios. Quando acordou, amarrado e sem forças para sequer mexer os olhos, conta que passou a noite entre pesados cochilos e pensa- mentos entrecortados de imagens fragmentadas, desconexas, em que o medo era o denominador comum, a única coisa que parecia efetivamente real. Foram, apesar de tudo, momentos de profunda reflexão, admite. Tanto que, refletir é hoje o que ele mais faz no Raul Soares. Nascido em Moeda, no interior de Minas, foi aos 13 anos que Oswaldo Dimas Silveira começou a beber. Como toda cri- ança curiosa, começou bebericando cerveja com os amigos. A partir daí, não parou mais. Foi experimentando a cachaça, que também se tornou um hábito e, quando se tornou adulto, per- deu os limites: do vermute Martini ao uísque, da vodka ao rum e as batidas das mais variadas espécies e teores. Nada esca- pava. Se o cardápio era grande, a freqüência também. Bebia compulsivamente. Certa vez, ficou 15 dias entregue ao álcool, só parando quando perdeu de vez todos os sentidos. No hos- pital, Oswaldo parece diferente de todos os outros internos. Não apresenta o olhar dopado da maioria deles. Conversa pau- sadamente, sem atropelar ou pestanejar. Mas, tem a mesma an- siedade. Pensativo, confessa ter medo de voltar à “sociedade”, por não saber o que encontrará do “lado de fora”. Separado da mulher, tem dois filhos, já criados. Um mora em Portugal; o outro, em Teófilo Otoni. A única assistência que recebe é da irmã. É pouco para quem ainda não se reconhece livre da de- pendência alcoólica, agravada pelas más lembranças do pas- sado. A separação foi uma delas — só trouxe mais inseguran- ças. Medos à parte, Oswaldo, pelo menos, tem a esperança em dias melhores e não abre mão disso. É alfaiate, acredita que tem trabalho à espera, quando receber alta. Mas, logo, logo, os me- dos voltam a atacar a esperança, nesse perverso jogo mental, em que ele é o único perdedor. O maior de todos os medos é o medo de uma recaída — se isso acontecer, sabe que voltará a Ra u l So a r e s 30 H is t ó r ia s d a L o u c u r a beber com toda fúria. Mas, aqui também, ressurgindo do nada, a esperança bailarina volta a se equilibrar na corda bamba da vida, a lembrá-lo que o Raul Soares também não é seu lugar: — Não sou tão louco para poder ficar aqui. A cachaça do século 21 Era comum encontrar nos hospitais psiquiátricos, há alguns anos, pacientes que se internavam para tratar de alcoolismo. Apesar de se tratar apenas de dependência do álcool, muitas vezes esses internos eram identificados como psicóticos e rece- biam tratamento condizente com o diagnóstico: medicamentos errados e pesados, que tornavam ainda mais crônico o quadro psicológico e não amenizavam em nada a causa da internação. Ainda hoje, os alcoólatras permanecem, mesmo que em nú- mero menor, mas, em compensação, dando lugar a um fenô- meno cada vez mais assustador e que vem, de novo, repovo- ando os hospitais psiquiátricos de todo o país: são os crackei- ros. Ou seja, os viciados em crack. — O crack, do ponto de vista psiquiátrico, é a cachaça do sé- culo 21 — explica o psiquiatra Antônio Soares Simone. A grande maioria são pessoas com larga convivência com o clima e os riscos das ruas, sem relações familiares, e não raro, com forte envolvimento com a delinqüência. No Raul Soares, dos seis pacientes que o psiquiatra Antônio Soares Si- mone atende, três são jovens que lutam contra o vício do crack. Para se ter uma idéia do perigo, segundo o médico, um psicótico é tratado com menor quantidade de sedativos do que o dependente químico. Giovane Alves Ribeiro, 20 anos, é um dos rapazes que têm dependência química. É viciado em crack, já esteve internado 31 no hospital mais de 20 vezes. Curiosamente, afirma que pre- fere o Raul Soares – onde diz “comandar” – do que a própria casa. É que lá vive o padrasto, que já o espancou várias vezes, como se fosse um carrasco. Os dois sempre tiveram uma con- vivência difícil. Giovane não conheceu o pai, que morreu an- tes dele nascer. Cresceu com os dois irmãos e a irmã, com di- ficuldades e enciumado com o novo marido da mãe, a quem, quando fica violento, ameaça de morte. Foi um típico garoto da periferia brasileira: sem compromisso, mas também sem oportunidades. E sem freqüentar a escola. Às vezes, ganhava algum trocado lavando carros. Na adolescência, começou a usar drogas. Percorreu um cur- rículo exemplar: cola, maconha, cocaína e, por fim, o que pa- rece ser hoje o doutorado do vício, o crack. Para ganhar di- nheiro, encontrou a via mais fácil: vender drogas. “Preto, bran- co e pedra”. O dinheiro, a princípio, parecia bom. Poderia aju- dar a mãe, dava para pagar as despesas com a boca de fumo e ainda sobrava para andar na moda — tinha dinheiro para com- prar o tênis que quisesse e as bermudas iguais às dos “boyzi- nhos” os quais ele vendia droga, daquelas que parecem que es- tão descendo pelo quadril, deixando a cueca à mostra. Em casa, ficou pouco tempo. Já era independente financei- ramente, e as constantes brigas com o padrasto aceleraram sua saída. Foi para as ruas. Depois delas, o Raul Soares, levado pela mãe, a única da família que ainda o visita. No Raul Soares, junto com um grupo de internos, ele realmente parece um lí- der. Ou o comandante-em-chefe. Caminha com desenvoltura pelo jardim e tem intimidade com a maioria dos internos, ape- sar de ser um rapaz baixo, magro e de pernas extremamente fi- nas. O segredo é que Giovane é malandro. E gosta de luta. Ginga capoeira. Afirma que já foi professor de kung-fu e que, na mão, bate como ninguém. Não matou com um tiro o pa- drasto porque preferiu enfrentá-lo como homem. Só que levou a pior. No hospital — ele mesmo conta — também já arrumou muita confusão. Ficou de castigo, por mau comportamento, Ra u l So a r e s 32 H is t ó r ia s d a L o u c u r a uma briga com um companheiro de quarto. A malandragem, aqui, não dá um tempo. Por isso, nem reclama das punições; reconhece que, em alguns momentos, passa mesmo dos limi- tes. Vive entre contrastes. Vai de um extremo ao outro. Não re- clama da vida, mas chora — e muito! — quando se lembra do passado ou de algumas pessoas, principalmente da mãe e até das brigas com o padrasto. A dureza com que a vida lhe bateu não soterrou o jovem carente que há em Giovane. Quando co- nhece alguém, tenta criar intimidade, demonstra carinho. Aos autores deste livro, pediu tudo. Guardou cigarros e mais ci- garros nos bolsos do pijama do hospital.Queria levar o tênis de um de nós. Fez encomendas também. Pediu relógio, calça jeans e uma camisa do Cruzeiro, seu time de coração. Quando percebeu que não ia ganhar nada mais que cigarros, saiu-se com essa: — Não precisam me dar nada. Apenas venham me visitar. Giovane nos guiou em um tour pelas dependências do hos- pital, nos apresentou aos colegas de ala e funcionários que en- controu pelo caminho. Mostrou o quarto e a cama. O próximo destino foi à cozinha, local limpo, com todas as cozinheiras usando gorros de proteção sobre os cabelos. Giovane e os inter- nos com quem conversamos nos garantiram que a comida é boa. Mas há um lugar que parece ser ainda mais especial. Gio- vane nos levou ao “Túnel do Amor”, que vem a ser um corre- dor, com as paredes estranhamente pintadas de rosa, que rece- beu este nome por ser isolado das dependências do hospital, e onde os internos fazem sexo, segundo conta Giovane. O psi- quiatra Antônio Soares Simone desconhece o “Túnel do Amor”, mas não nega que internos mantenham relações lá dentro, citando, inclusive, o caso de um psicótico homossexual, internado no hospital há vários anos, que não esconde de nin- guém seus relacionamentos com outros internos, a quem con- vida a passar a noite em sua cama. O pior de tudo é que, de- 33 pois, sai contando todos os detalhes de suas aventuras amoro- sas para os enfermeiros e médicos. Aliás, esta parece ser uma prática das mais comuns no hos- pital. Giovane também não nega fogo quando quer contar de- talhes de suas aventuras sexuais no Raul Soares. Uma delas fala de um romântico encontro que teve com uma namorada sua, que foi visitá-lo e acabou passando uma tarde inteira com ele, no ardente “Túnel do Amor”. Giovane só lamentou que nesse dia não pôde fumar maconha antes da transa. — O sexo fica muito mais gostoso sob efeito da maconha; ele evolui —, receita Giovane, deitado em um dos bancos do jardim do Raul Soares. R a u l So a r e s Galba Veloso A surpresa veio junto com a suspeita de que ele já estava com algum transtorno mental — o que foi confirmado logo a seguir. Izadora conta que tomou um susto quan- do entrou na cadeia: com vários hematomas, marcas do espancamento que sofreu da polícia e dos outros presos, Carlos, com a roupa toda rasgada, esfregava fezes por todo o corpo, inclusive no rosto. 37 G a lb a V e lo so Ele se apresenta como Macaulay Culkin. Cabelos encaraco-lados, olhos extremamente azuis, físico atlético. Boa apa- rência. É falador; não dá espaço para o interlocutor. Concor- dando ou não com o assunto, é sempre quem tem a palavra. Na mão, o caderninho com seus manuscritos, pois também é escri- tor. Antes de qualquer pergunta a respeito do que escreve, ex- plica que já contatou duas editoras e que logo vai lançar um li- vro — o primeiro de muitos. Não será um romance, um livro de poesias ou de contos. Na verdade, ele nem sabe definir o que será. Carlos virou escritor há pouco tempo — umas qua- tro internações atrás. Quando morava com a família, em Itabi- rito, sua cidade natal, não demonstrava qualquer interesse por atividades intelectuais — trabalhava em uma loja de peças au- tomotivas. Depois disso, mudou-se para Porto Seguro, onde foi vendedor de CDs piratas na praia e chegou a trabalhar em um bar. Paralelamente, nunca deixou de lado as atividades espor- tivas — nadava, andava de bicicleta, corria. Mens sana in cor- pore sane. Mas, foi exatamente aí, quando se mudou para o Sul da Bahia, que a vida de Carlos começou a se modificar. Radi- calmente. Ao tentar transformar em realidade o sonho de tra- balhar com esporte na cidade mais antiga do Brasil, cheia de sol e praias, em um cenário perfeito, mal sabia ele que ali co- meçaria seu sofrimento. Carlos foi morar na pensão de uma senhora que, além de lhe oferecer um lugar para comer e dormir, também lhe arran- jou emprego em um bar. Carlos até que ralava muito. Nas ho- ras vagas, percorria as praias vendendo CDs a R$ 5 para turis- tas que, o ano todo, lotam as praias de Porto Seguro. Mas, an- tes de terminar a aventura de Carlos na Bahia, vale a pena con- tar uma outra história. Seus pais, em Itabirito, casaram-se ainda jovens. Alzira, a mãe, tinha 16 anos quando resolveu se juntar com o único ho- mem que “conhecera” na vida. Nem importava ele ser um pouco mais velho que ela. Contra a vontade das famílias, se ca- saram e foram viver em um barracão alugado. Passados os en- 38 H is t ó r ia s d a L o u c u r a cantos da lua de mel, começou a fase de sofrimento: Alzira era constantemente espancada pelo marido. Quando ele bebia, a coisa piorava. Nem durante a gravidez do primogênito, ele ali- viou a mão. Todos os seis filhos de Alzira nasceram e cresceram nesse ambiente de pura hostilidade, vendo a mãe ser agredida pelo pai. Carlos foi o quarto filho a nascer. Junto com a irmã e o irmão mais novos, foi dos que mais sofreram. Ninguém da família sabe explicar, mas a fúria do pai redobrava contra os três mais novos. O pai, no entanto, ainda desejava Alzira, a queria como mulher. — Ele me aceitava, mas não queria as crianças. Alzira chegou a ser expulsa de casa com os seis filhos. O marido, quando enlouquecia, mandava todos para a rua. Quando voltavam, entravam por uma porta lateral da casa e iam dormir em um pequeno banheiro no quintal. Enquanto foi possível agüentar, ninguém jamais pensou em denunciar o pai. Até que, certo dia, Izadora, a filha mais nova, pediu a uma vizinha que chamasse a polícia: temia que a mãe não resistisse mais às crescentes agressões. O pai foi preso, mas logo deixou a cadeia, por influência de um irmão advogado. Apesar de se afastar da família, o pai ainda morava na mesma casa e conti- nuava a atacar os filhos. Não importava o motivo: que abris- sem a geladeira, falassem mais alto, rissem ou ligassem a tele- visão. Carlos nunca perdoou o pai por um corte em sua ca- beça. Só alguns anos depois, o pai foi obrigado a deixar defi- nitivamente o lar. E em circunstâncias trágicas: tentou matar Roberto, o caçula. Foi no seio dessa família que Carlos viveu sua infância e adolescência. 39 “Tô à toa, aqui só entra gente boa!” A família notou mudanças no comportamento de Carlos, enquanto ele ainda estava em Porto Seguro. Sempre que telefo- nava para a irmã, questionava, indignado, o porquê de o Bra- sil ser um país tão desigual, com má distribuição de renda, res- ponsável pela quantidade de crianças pobres que via nas ruas, sem comida, amparo ou qualquer atenção. Via as ruas da ci- dade, o ano inteiro repletas de turistas que desfrutavam do bom e do melhor e se perguntava sobre as injustiças. E decidiu que era hora de solucioná-las sozinho, à sua maneira. À noite, quando voltava para a pensão, passou a recolher as crianças que perambulavam pelo centro histórico de Porto Seguro ou pelo famoso Corredor do Álcool, um dos pontos mais movi- mentados da cidade, em busca de trocados. Levava todos para a pensão onde morava — ali, garantia que teriam teto e co- mida. Carlos não fazia isso todos os dias, mas a freqüência com que ele entrava na pensão com a procissão de desvalidos não passou despercebida e logo chamou a atenção de um desavi- sado vizinho, que o denunciou à polícia, acusando-o de pedofilia. Só dois dias depois que ele estava preso é que a família, em Itabirito, foi avisada. Mas, eles só chegariam a Porto Seguro uma semana depois. Para viajar, precisaram de dinheiro e carro. Lá, se assustaram ao ver que a situação de Carlos era de- plorável. A surpresa veio junto com a suspeita de que ele já es- tava com algum transtorno mental — o que foi confirmado logo a seguir. Izadora conta que tomou um susto quando en- trou na cadeia: com vários hematomas, marcas do espanca- mento que sofreu da polícia e dos outros presos, Carlos, com a roupa toda rasgada, esfregava fezes por todo o corpo, inclusive no rosto. Na volta a Minas, os sinais do desvio se acentuaram. Nos quase 900 km até Itabirito, Carlos não parou de falar uma única vez. Estava insuportável, tentando, do banco de trás, pegaro vo- lante. Foi difícil controlá-lo. Ele importunava o motorista, os G a lb a V e lo so 40 H is t ó r ia s d a L o u c u r a passageiros e se levantava dentro do carro. O descontrole era tanto que, várias vezes, eles precisaram parar pelo caminho para que Carlos extravasasse as energias no acostamento. As crises só aumentaram. Em sua cidade natal, a situação ficou ainda pior. Na televisão, na época, era exibida a novela Uga Uga, na Rede Globo, com o ator Cláudio Heinrich interpretando um índio aculturado e idiota, chamado Tatuapu. Eis que Carlos, talvez até por sua semelhança física com o ator da televisão, se apresen- tava e agia como o índio burro da novela: andava com pouca roupa, esmurrava o peito e vivia gritando “uga-uga” para qual- quer um que passasse. Resolveu adotar a moda indígena, com largos cordões e pulseiras. E pôs anéis em quase todos os dedos. A mãe só percebeu que o filho precisava de ajuda quando ele interrompeu, em plena Semana Santa, o cortejo da procissão que levava o Cristo crucificado à Matriz da Boa Viagem. Mo- rando ao lado da igreja, Carlos espreitava a procissão que des- cia a Rua dos Rosários. A cantoria das beatas ecoava pela rua, quando o cortejo foi interrompido por ele, que saltou da janela, parou no meio da procissão e, com os braços abertos, gritou: — Eu sou Jesus Cristo! Eu sou Jesus Cristo! Para espanto geral da platéia, Carlos continuou com a per- formance. Estirou-se no chão, com o corpo quase no formato de uma estrela, braços e pernas abertas, lembrando o famoso desenho Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, sussurrando que era o filho de Deus. A procissão, estupefata, observava a atuação de Carlos, que foi logo retirado da rua para que o cor- tejo entrasse na igreja, carregando a imagem de Cristo. Mas, Carlos também deu um jeito de entrar e, do altar, novamente se autoconclamou o Filho de Deus. Quando um dos fiéis veio re- tirá-lo, indignou-se: — Como pode você tirar Jesus da casa do Senhor? É um pe- cado. Sou eu, Jesus! 41 Ao retornar a Itabirito, depois de um longo período de in- ternação em Belo Horizonte, Carlos viveu momentos distintos, ora deprimido, ora extremamente feliz. Na depressão, tran- cava-se em seu quarto, anexo à casa (o mesmo que o pai usou nos seus últimos anos em que lá viveu), não saindo para nada. Por gostar da natureza, plantou no quarto mudas de várias plantas. Colocou também, na porta, uma placa com a inscrição “Tô à toa, aqui só entra gente boa”. Segundo ele, uma referên- cia ao nome da loja de CDs que ainda pretende montar. Ele alterna momentos de alegria e extroversão. Pratica es- portes freneticamente — não fuma nem bebe, as únicas drogas que toma são as do tratamento psiquiátrico. Corre, nada, en- fim, faz todo o tipo de exercício físico. Certa vez, foi e voltou a pé, de Itabirito a Belo Horizonte, andando 110 km. A mãe ficou chocada quando viu o filho chegar em casa, com todas as unhas do pé estouradas. Quando não está no hospital e fica sem tomar os remédios regularmente, sob a alegação de que já está bom, as crises voltam. E a nova internação também passa a ser uma necessidade. Quando Carlos internou-se pela primeira vez no Galba Ve- loso, em 2000, o hospital já se livrara, algumas décadas antes, de parte da prática das atrocidades que reduziam os pacientes a um nada terrivelmente assustador e que o tornavam triste- mente famoso. No entanto, apesar de todas as mudanças apli- cadas ao tratamento psiquiátrico, os resquícios do passado ainda são encontrados no hospital — hoje, o que tem o maior número de pacientes em Belo Horizonte. G a lb a V e lo so 42 H is t ó r ia s d a L o u c u r a Doente mental é tudo igual Durante o governo Bias Fortes (1956-1961) decidiu-se pela construção de um novo hospital psiquiátrico em Belo Hori- zonte, para assumir parte da demanda que abarrotava o Raul Soares, que seria reformado e ajustado para funcionar como hospital de adolescentes com “problemas de ajustamento” — idéia que não foi adiante, como se veria depois. O novo hospi- tal foi planejado e concebido pelo então secretário de saúde Austregésilo Ribeiro de Mendonça, que havia sido psiquiatra no Instituto Raul Soares e era conhecedor das deficiências no tratamento da doença mental. Escolheu-se o local para erguer o hospital: uma área de 12.000 metros quadrados no bairro Gameleira, região oeste de Belo Horizonte. Além do dinheiro do Estado, foram usados também recursos do governo federal para a construção do Galba Veloso, que recebeu este nome em homenagem ao psi- quiatra mineiro que muito atuou na área durante a primeira metade do século 20. Inaugurado em 1961, no ano seguinte fo- ram transferidas para o novíssimo Galba Veloso os primeiros pacientes, 34, todos egressos do velho Raul Soares. Irmã Aparecida foi uma das primeiras pessoas a ocupar as dependências do novo hospital, mas não como interna: fazia parte da congregação Franciscana Alcantarina, braço da igreja católica que trabalha na assistência social. Em novembro de 1963, ela entrou no Galba Veloso, e só deixaria de trabalhar com doentes mentais quase 30 anos depois. Nascida em Nova Era, no interior de Minas, o sonho de Ma- ria Regina de Carvalho — seu nome de batismo —, desde nova, era ingressar em uma congregação religiosa. Como o pai não a deixou sair de casa muito nova, precisou esperar: só em 1961, aos 32 anos, pôde se mudar para o Rio de Janeiro, onde foi estudar na congregação e tornou-se Irmã Aparecida. Dois anos depois, foi enviada, junto com outras religiosas, para o re- cém-criado hospital psiquiátrico. 43 Durante os nove anos em que trabalhou no Galba, Irmã Apa- recida presenciou muitas atrocidades a que os pacientes eram submetidos. Lembra do horror das seções de eletrochoques e de como os médicos não tinham a menor preocupação em exami- nar detalhadamente cada paciente. Segundo ela, todos que en- travam no hospital eram esquizofrênicos — mesmo sofrendo de outro mal, o paciente era medicado com remédios para a esqui- zofrenia. Além disso, o tratamento com eletrochoque era feito sem nenhum tipo de controle, o que causava ainda mais danos à saúde dos internos. Bastava o paciente se rebelar ou sofrer al- gum tipo de crise para que fosse usado o ECT (electroconvul- sive therapy). Havia também o tratamento a base de insulina, que era injetado em doses cavalares para acalmar os doentes. Mesmo com todos os problemas e desumanidades, Irmã Aparecida se lembra que alguns profissionais tentaram huma- nizar o tratamento no Galba Veloso. Isso no final dos anos de 1960. Em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde, que dis- ponibilizou 20 profissionais, foram criados salão de beleza, que existe até hoje, e salas para que os internos trabalhassem com massas, pintura, artesanato e música. Já naquela época, havia a preocupação de proporcionar aos doentes atividades terapêu- ticas. Mas, as maiores mudanças só aconteceriam na próxima década, com a criação do serviço de urgência, antes usado ape- nas como meio de triagem de pacientes. O Galba, por ele mesmo Um jardim florido na frente. Uma seqüência de pátios ensolarados, tipo alçapões de cimento, ao fundo. Muros acinzentados de até cinco metros de altura. Nenhuma área verde no interior, nenhuma sombra, uma banco para se assentar. Sequer uma peteca, uma bola, um ci- garro para fumar. Apenas uma única salinha, de praxi- terapia. Enfermarias escuras e fétidas. Homens e mulhe- G a lb a V e lo so 44 H is t ó r ia s d a L o u c u r a res transmutando seus problemas, piorando da doença. Neuroses, psicoses e ausência de amor reunidas em dor- mitórios comuns (...). A descrição do Hospital Galba Veloso feita pelo jornalista Hiram Firmino no primeiro capítulo do livro Nos Porões da Lou- cura, que reúne várias reportagens feitas por ele para o jornal Estado de Minas, e publicadas no final dos anos de 1970 e início de 1980, mostram que as tentativas de humanização, contadas por Irmã Aparecida, pouco ajudaram na evolução do trata- mento e, principalmente,na condição dos internos. O HGV continuava sendo um depósito de excluídos. O verbo no pas- sado está impreciso — a situação ainda é deprimente. Começamos pelos quatro “consultórios” sombrios, anexos à portaria, onde os pacientes são examinados em tempo re- corde. Depois, pelo “Posto de Sedação”, onde são sumaria- mente drogados para internamentos. Tudo escuro. Sem ar, sem verde. Uma mesinha de metal, muita seringa, ampolas de injeção. Um corredor comprido e, logo à direita, a “Ala dos Neuróticos”, a primeira enfermaria. Um dormitório, espécie de copa-e-sala acoplada a um quartinho de remédios e um pátio horrível. Quinze pacientes homens caídos pelo chão, encostados nos muros, andando a esmo, no mesmo lu- gar. Um ambiente pequeno, desolado. Nenhum banco para se assentar. O Galba Veloso continua a ser um lugar sombrio. As salas continuam sem ar. Os pacientes ainda parecem desolados. O mesmo ritual de tocar a campainha, esperar uma aten- dente olhar pela janelinha e abrir a porta. Entramos e, num instante, umas duas dezenas de homens, de todas as idades e modos, começaram a caminhar em nossa di- reção. Os menos drogados vieram rapidamente. Os ou- 45 tros, em câmera lenta. Nada de terror. A maioria deles ainda queria simplesmente apertar as nossas mãos, se identificar como “fulano”, “beltrano” e “siclano”. Ao perceberem que éramos repórteres, e não médicos, come- çaram a dizer, mais descontraídos: — Zero! Zero! Nota zero vezes zero pra tudo isso aqui. (...) — Por favor — continuaram — ajudem a gente. Aqui tem briga toda hora e não vem ninguém para separar a gente. O mais fraco é arrebentado. Outro: — Somos nós que lavamos tudo aqui. Um lava o outro. As privadas, os quartos, tudo. E outro: — O médico de plantão não aparece aqui. Quando vem, não conversa com ninguém. Ele diz que não conversa com gente doida. A prostituta Ana Sílvia, tia de Lorraine, uma das internas da “Ala Feminina”, reclama do “aspecto prisional” do hospital. A portinha para identificar o visitante e, dependendo das cir- cunstâncias, liberar a entrada. A sobrinha de Ana Sílvia, como a maioria dos internos, passa quase todo o dia nas alas. Lor- raine fica rezando, para espantar os “capetas que estão no corpo”1. No pátio não gosta de ir, porque vê a rua e começa a G a lb a V e lo so 1. Nos poemas de Homero, escritos mais ou menos em 1000 a.C., acreditava-se que as pessoas que sofriam de insanidade mental haviam ofendidos os deuses, que as castiga- vam fazendo com que se comportasse de maneira estranha. Primitivamente, a associa- ção entre perturbação mental e influências malignas levou o homem a atribuir ao sobre- natural a causa da manifestação das enfermidades mentais. 46 H is t ó r ia s d a L o u c u r a chorar, com vontade de ir embora. Uma vez por semana parti- cipa de atividades com pintura. Ela fica ali, esperando a sua hora. Não sabe ao certo que hora é essa, nem qual o seu sen- tido. Mas, na falta do que fazer, continua ali, a esperar. De uma maneira geral, parte do ambiente de horror descrito no livro Nos Porões da Loucura, felizmente, não existe mais. As alas superlotadas e muitas das atrocidades foram banidas do hospital, além de maior preocupação das autoridades médicas com as questões higiênicas. — O Galba Veloso é fiscalizado regularmente, e isso vale para todas as instituições de saúde. A Vigilância Sanitária é res- ponsável por manter as condições sanitárias dos lugares que prestam serviços de saúde. Se alguma irregularidade for cons- tatada, somos autuados e multados. Nesse aspecto, o Galba melhorou muito, ainda que muita coisa tenha que melhorar. A afirmação é de Luz Marina Morello, diretora-clínica do hospital. Segundo ela, o serviço de nutrição e dietética do hos- pital, que é terceirizado, é inadequado. A causa seria uma he- rança do passado. Mas, esse não é o principal problema do Galba Veloso, e sim a solidão e a falta de humanidade. Pacien- tes caminham pelos corredores do Galba, alguns com outros problemas além da doença mental. Um dos internos, por exem- plo, andava pelos corredores do hospital com bastante dificul- dade, se arrastando pelos corrimões com ferimentos expostos na perna e a aparência muito frágil. Enfermeiros e outros pro- fissionais cruzavam o paciente sem prestar nenhum tipo de amparo. Nenhuma cadeira de rodas ou muletas. Sequer um sorriso. Nas enfermarias, a situação chega a ser pior. Na “Ala F”, é nítido a carência e a solidão dos pacientes – cerca de 20. Entrar no local é motivo de alegria para os alienados, que, por um tempo, parecem esquecer a solidão e querem conversar. Falam todos ao mesmo tempo, desde amenidades até as más condi- ções dos leitos. Abraçam o visitante, reclamam da solidão e fa- 47 zem pedidos, quase sempre o mesmo: querem sair dali. Ou, o que é mais comovedor, pedem um pouco de atenção. — Então pelo menos vem me visitar de novo... As quatro enfermarias da ala são limpas, muito diferente do banheiro, com cheiro impregnado de urina e fezes. Da “F” é possível sair em um pátio no fundo do hospital, onde os inter- nos tomam banho de sol — qualquer semelhança com uma pri- são não é mera coincidência. O pátio é cercado por grades e muros altíssimos, herança dos remotos tempos dos “campos de concentração psiquiátricos”. A própria diretora reconhece que não faz sentido manter aquele tipo de ambiente: — Já passou da hora de acabarmos com esse pátio, a ima- gem é muito pesada. O que mais impressiona, no entanto, é o clima de ociosi- dade. Os internos passam os dias entre os quartos e o pátio, muitos deitados seminus no chão frio. Não há sequer uma ca- deira na ala, nada para distraí-los. São os loucos afastados, in- ternados em uma “jaula”, sem assistência adequada e simples- mente sendo medicados e alimentados, o que já é uma evolu- ção, pois, nas décadas passadas, os pacientes eram medicados em jejum. O jornalista Hiram Firmino relata que os internos eram obrigados a tomar remédios logo que acordassem, sem ingerir uma gota de café, um biscoito, um pão, nada. A comida, dizem os internos, é farta. Carlos, nas tempora- das que passa no Galba Veloso, sempre volta para casa, em Ita- birito, acima do peso. Impressiona a mãe com o apetite. Com- pra tudo em excesso, e tem a estranha mania de dividir toda a comida até com os quatro cachorros da casa. Outro ambiente assustador é a cozinha, onde os internos fa- zem as refeições. A comida não é mais preparada pelo hospital, mas por uma empresa terceirizada. O ambiente é terrível: ins- G a lb a V e lo so 48 H is t ó r ia s d a L o u c u r a talações escuras, com as paredes estragadas, mesas e cadeiras de concreto, sem um mínimo de conforto e higiene. Na área onde está a cozinha — se é que pode ser chamada de cozinha —, o que se vê é muito mofo e mais abandono. Além disso, o caminho que leva a esse lugar é no mínimo inadequado para um hospital psiquiátrico: entra-se por outra cozinha, já desati- vada, com vários pedaços de concreto, ferros e outros objetos espalhados no chão. Esse desalentador cenário, contudo, é totalmente diferente da área destinada aos funcionários da instituição, principal- mente dos diretores. Eles têm à disposição um refeitório infini- tamente superior, sem conforto, mas com paredes pintadas, mesas e cadeiras decentes, sem o abafamento da cozinha dos loucos. As salas da diretoria também contrastam com todos as outras dependências do Galba Veloso — tem-se a impressão de estar em outro lugar. As paredes são pintadas, as janelas não têm grades, os assentos são macios e confortáveis e os banhei- ros estão em ótimas condições de higiene. É difícil precisar o número exato de pacientes no hospital, pois a rotatividade é muito grande. Segundo Luz Marina Mo- rello, a média de internação é de 18 dias. A taxa de ocupação é de 100%, todos os 145 leitos — há três anos, 15 leitos estão de- sativados, por falta de funcionários — estão em uso, mas ela afirma que trabalhar com essa taxa de internação não é muito seguro, e que é imprescindível ter leitos disponíveispara os que estão chegando. Luz Marina também reconhece outros problemas: — Na saúde mental, o principal é ter recurso humano ade- quado, uma área física melhor do que temos hoje, porque o hospital é antigo e não passou por grandes reformas. Tem problemas arquitetônicos sérios, que precisam ser sanados. Mas, essa é uma questão que não vai ser resolvida da noite para o dia. 49 Na “Ala E”, José Adão está internado há quatro anos — e ele não cometeu nenhum tipo de delito, fora ter nascido com pro- blemas mentais. Dopado, falando com muita dificuldade, a única coisa que consegue dizer é que é do interior, de Itabira. Apenas sabe que “está preso”. Com as roupas sujas, descalço, caminha com dificuldades, apoiando-se nas paredes. Um en- fermeiro que passa pelo local, nos fala sobre José Adão. — Esse aí já está com a gente há muito tempo. Foi largado aqui, não sabemos nada sobre ele ou sua família. E agora, José? Como a personagem angustiada e perdida do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, o José do hospício não tem respostas. Ele é, como seu homônimo, apenas uma interrogação. (...) Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia, e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou e agora, José? (...) G a lb a V e lo so Rafael Izaías de Queiroz não chegou a comer bosta para acabar com a fome ou a beber urina para matar a sede. Morreu antes, cinco dias depois de ser internado, em 1º de agosto de 1966. Assim como Rafael, vários morreram depois de dias, semanas ou meses da internação, o que reforça o rótulo de o hospital de Barbacena ter sido o Auschwitz brasileiro. Barbacena 53 Oapelido Cabo ficou por causa de uma jaqueta, com essainscrição, presenteado pela Aeronáutica a alguns internos que prestavam serviço à corporação, de dentro do hospital. Quase ninguém o conhece ou o trata como Antônio Gomes da Silva. Aliás, nem precisava, pois Cabo não é dado a formalida- des. Prefere o silêncio. A reflexão. Antônio, ou Cabo, é um ne- gro forte, muito forte para os seus 61 anos. Conserva um bi- gode fino, à moda antiga. A fisionomia é sempre séria. Tem poucos fios brancos no cabelo, que é cortado de forma a ficar um leve topete. Não tem os dentes superiores, quase nunca dá uma risada e tem uma das mais impressionantes histórias de todos àqueles que já passaram pelo CPHB, o Centro Psiquiá- trico Hospitalar de Barbacena. Cabo nasceu em Congonhas, em 1945. Cresceu rápido. Sem- pre ajudou os pais, que perdeu aos 16 anos, no sustento da casa. A ausência deles pouco mudou na rotina do jovem, acos- tumado desde novo ao trabalho. Começou na roça, transfe- rindo-se depois para a exploração mineral, segmento que dava os primeiros passos na cidade eternizada pelas obras de Aleija- dinho. Já era um homem sério e trabalhador quando se casou com Dalva. Meses depois de casado, com a mulher grávida do primogênito, Cabo levou o primeiro golpe: Dalva, súbita e mis- teriosamente, partiu. Sem deixar nenhum recado ou carta de despedida. Simplesmente sumiu. Cabo suspeita que a esposa o abandonou por causa das dificuldades que eles enfrentavam na época. Nunca mais a veria — nem receberia notícias. O período logo após o abandono da mulher foi o pior na vida de Cabo. Era alvo de brincadeiras dos mais diversos ti- pos. Em uma noite, não agüentou a provocação num bar e par- tiu para cima do caluniador. Foi preso. O delegado de Congo- nhas, seguindo uma prática comum naqueles tempos, o enca- minhou ao hospital psiquiátrico de Barbacena. O cidadão An- tônio Gomes da Silva não estava em perfeita condição mental, tanto que sua mulher, Dalva, foi embora com um filho no ven- tre — foi a justificativa para a internação, que durou pouco Ba r b a c e n a 54 H is t ó r ia s d a L o u c u r a tempo. Cabo, depois, voltou a Congonhas, mas não demoraria e estava de novo em Barbacena — precisava tratar a esquizo- frenia, agora diagnosticada. Em seu retorno ao hospital psi- quiátrico, Cabo percorreu os 88 quilômetros que separam Congonhas de Barbacena a pé. O ano era 1966, e não havia época pior para Cabo ser inter- nado em um hospital psiquiátrico do que aquele. O hospital de Barbacena passava por seu pior momento — comportava cerca de cinco mil internos, com um número de óbitos assustador. A primeira reação de Cabo foi retroceder ainda mais em sua timi- dez. Não fez amigos nem falava com ninguém. Tomava os re- médios, alimentava-se, ainda que precariamente, e dormia — seu universo, já restrito, se fechou por completo. Mudou a ro- tina quando os funcionários perceberam a disposição de Cabo para o trabalho. Começou ajudando na limpeza do gramado externo do pátio. Logo estaria na olaria, fabricando tijolos. Chegou até tirar areia de um rio que cortava o fundo do hospi- tal. Assim seria a vida de Cabo nos 25 anos seguintes — calado e dedicado ao trabalho. Internos, médicos e funcionários do hospital, todos pensa- vam que Cabo era mudo. Nunca o viram falar nada — nem para reclamar da terrível comida, do frio das noites de inverno ou das intermináveis sessões de eletrochoques. Era sempre a mesma postura quieta, conformada e resignada. O rosto se- reno, calmo; o olhar tranqüilo. Até que em um sábado de 1991, um caminhão carregado de telhas iria mudar sua vida. Jairo Toledo era o diretor do Centro Hospital Psiquiátrico de Barbacena e construía na cidade sua casa. Naquele sábado, chegaria do interior de São Paulo um caminhão com um carrega- mento de telhas, para finalizar o teto. Jairo ligou para o hospi- tal, à tarde, à procura de algum funcionário que pudesse ajudá- lo a descarregar o material. Não encontrou ninguém — todos, provavelmente, estavam em algum buteco, onde se reuniam nos fins de semana. A alternativa foi chamar um interno. E não havia ninguém melhor do que Cabo, reconhecido como ho- 55 mem trabalhador. Cabo ajudou no descarregamento das telhas. Incansável, deu várias viagens, beneficiado pelos ombros lar- gos e mãos grandes, que o ajudavam a carregar grandes quan- tidades de uma só vez. Na segunda-feira, sem que ninguém o chamasse, Cabo apareceu novamente na construção. Queria trabalhar. Foi admitido como ajudante de obras, com as reco- mendações do diretor do hospital de que precisava manter-se medicado, o que nunca foi problema para Cabo, que sempre aceitou tomar os remédios para controlar a doença. Na obra, a postura de Cabo era a mesma. Ouvia a instrução do mestre-de-obras e a executava com o zelo e a dedicação de sempre. Não pronunciava nenhuma palavra, até que em uma bela tarde, já no final do expediente, um carro de som passou em frente à obra, tocando uma música alta, e Cabo começou a cantar. Os pedreiros se assustaram com a cena: ele não era mudo, como pensavam. Em oito meses de trabalho juntos, era a primeira vez que Cabo abria a boca, para acompanhar algu- mas estrofes da música que ninguém lembra mais qual é. O mestre-de-obras comentou com Jairo o ocorrido, e ouviu deste que eles deveriam instigá-lo a falar. Assim fizeram os colegas da obra. Jairo, certo dia, perguntou a Cabo por que nunca ele havia falado, depois de décadas de internação no Hospital- Colônia. A resposta foi simples: — Ninguém nunca conversou comigo, nunca me pergunta- ram nada. Eu fiquei na minha. Aos poucos o tímido Cabo começou a se soltar, porém sem nunca se exceder. Participava dos papos e comentários comuns em toda obra ou no meio operário, mas, sempre provocado pe- los companheiros. A casa do diretor ficou pronta. Cabo recebeu e voltou aos serviços do hospital, até que foi indicado para uma vaga na Turquete Gonçalves, empresa terceirizada que presta serviços de manutenção ao hospital psiquiátrico. Mas aí, outra surpresa: Cabo havia perdido todos os documentos Ba r b a c e n a 56 H is t ó r ia s d a L o u c u r a quando foi preso em Congonhas, em 1966. Passou os anos se- guintes sem nada que o identificasse. Trinta anos depois,tirou todos: carteira de identidade, CPF, título de eleitor e carteira de trabalho, agora assinada. Antônio Gomes da Silva, negro, es- quizofrênico e interno do hospital de Barbacena, tornava-se fi- nalmente um cidadão. Dois anos mais tarde, em 1998, ele vo- tou pela primeira vez, como relatou Gustavo Werneck em ma- téria no jornal Estado de Minas. Após oito anos exercendo sua ci- dadania, Cabo não se esquece das vezes que votou: — Até agora foram cinco eleições — declara timidamente, contando com o pleito de 2006 e sem revelar em quem votou. Só em 2003, Cabo deixou o hospital, depois de quase 40 anos de internação. Foi para um dos lares terapêuticos, manti- dos pela prefeitura de Barbacena. Vai à instituição diariamente, onde trabalha e encontra antigos colegas, alguns até de quarto. O mais velho entre os companheiros de trabalho, Cabo é res- peitado por todos — chega a ser quase uma admiração, pela sua história, que teve um final feliz, apesar das décadas de iso- lamento. Antônio Gomes da Silva é um exemplo de que os do- entes mentais não são menos capazes, que podem, sim, viver junto dos “normais”. Podem trabalhar, ter uma vida decente e até escolher os governantes, que, muitas vezes, são os mantene- dores desse sistema que ainda insiste em afastar “os alienados” do convívio social. Do delator da Inconfidência aos loucos despidos No início do século 20, em 16 de agosto de 1900, o governa- dor de Minas, Silviano Brandão, assinou a Lei nº 290, criando a “Assistência de Alienados”, que seria capaz de tratar de todos os doentes mentais do Estado. Decidiu-se, três anos depois, 57 que a sede da nova instituição seria em Barbacena. Na cidade havia um prédio que poderia ser adaptado à nova função. Esse prédio era a antiga sede da Fazenda da Caveira de Baixo, que pertenceu ao português Joaquim Silvério dos Reis, delator da Inconfidência Mineira. No local, funcionava um serviço de atendimento a doenças pulmonares, principalmente tubercu- lose. A localização do terreno, no alto de um morro, era propí- cio ao tratamento desses males. A história, no entanto, também conta outra coisa. A cidade teria sido escolhida a sede do mani- cômio por decisão política, ou melhor, como “prêmio de conso- lação”, pois no início do século Barbacena disputou com Belo Horizonte o título de capital de Minas. Como a última foi esco- lhida, coube a primeira o hospital psiquiátrico. Vale lembrar que Barbacena é cidade de clãs políticos influentes, como os Bias Fortes e os Andradas, o que pesou na decisão e, claro, ren- deu dividendos eleitorais para ambos, que sempre foram ri- vais. Ninguém poderia imaginar que esse prêmio de consola- ção iria eternizar Barbacena como a “cidade dos loucos”. No final do século 19, os doentes mentais em Minas eram re- colhidos às cadeias públicas ou, em menor número, transferi- dos para o Hospício Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, o pri- meiro do país. Em Diamantina e São João Del Rei, os pacientes eram tratados e hospedados nos “anexos psiquiátricos” das Santas Casas. Na verdade, eram porões onde eram jogados. Daí a necessidade de criar um ambiente próprio para o acolhi- mento e tratamento dos alienados. E a criação do hospital psi- quiátrico em Barbacena foi de grande importância para o de- senvolvimento do município, tanto que o primeiro telefone da cidade foi instalado no manicômio. Até a década de 1930, o “Azylo Central de Barbacena”, seu primeiro nome, funcionou em “boas” condições. Tinha um nú- mero controlado de internos, entre 150 e 200. Apesar de não haver tratamento adequado, os doentes faziam atividades te- rapêuticas. Já nessa época, trabalhavam. Esse, acreditavam os especialistas, era o único remédio para a insanidade mental: Ba r b a c e n a 58 H is t ó r ia s d a L o u c u r a faziam tijolos, cortavam grama e cultivavam hortas. Mas, já em seus primórdios, o hospital foi estigmatizado como um lu- gar sem volta. A possibilidade de que alguém saísse dali com vida, era pequena. Francisco Gonçalves Lamas foi o primeiro a ser internado na instituição, ainda em 1903, no dia 27 de dezembro. E, se- gundo os registros do hospital, foi o primeiro a morrer lá den- tro. Francisco era solteiro, tinha 27 anos e nasceu em Rio Pomba, na zona da mata mineira. Assim ele está descrito nos velhos papéis do Azylo Central: Signaes physicos e physionomicos: cabelos castanhos, barba loura, estatura regular, magro e bons dentes. Diagnóstico: inquietação maníaca. OBS: Recolhido a requerimento por ordem de seu pai, curador, o cidadão Joaquim Gonçalves. Durante o tempo em que esteve internado, Francisco teve tratamento de indigente. Não é mentira: Francisco Gonçalves Lamas, o primeiro interno de Barbacena, faleceu em 1º de abril de 1905, pouco mais de um ano depois de chegar à instituição. A causa: gripe intestinal. Há ainda, nos primeiros anos do hospital, o registro de vá- rios estrangeiros internados. Como a italiana Maria Armoni, internada no dia 13 de maio de 1908. De cor branca, tinha 40 anos. Morava em Sabará e era casada. Diagnóstico: loucura maníaca e depressiva (depressão melancólica e idéias religio- sas). Deixou o hospital em 21 de agosto de 1908, sempre re- zando e com referências a Deus. Ou o alemão William Schsiack, internado em 14 de julho de 1904. Tinha 55 anos e era viúvo. Diagnóstico: melancolia (depressiva e gemedora). O Estado, responsável por sua internação, era seu tutor. Faleceu meses depois, em 11 de dezembro, por problemas cardíacos. Não 59 veria sua Alemanha dominada pelos nazistas. William está en- terrado em um cemitério da cidade, que era usado para sepul- tar os mortos do hospital. Na década de 1950, a situação do manicômio começa a mu- dar. E para pior. O asilo psiquiátrico de Barbacena tinha se po- pularizado em Minas e por todo o país. Recebia não só doentes vindos de cidades mineiras, mas também de estados como Ba- hia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Além desses, ha- via a triagem de pacientes dos hospitais Raul Soares e Galba Veloso. Quem completava 11 dias de internação e não voltava para casa, era encaminhado a Barbacena. Toda semana, saía de Belo Horizonte um ônibus lotado, o famoso “Lelé Tur”. Em ge- ral, eram pessoas que perdiam o vínculo social e familiar, esta- vam abandonadas e que encontravam nos hospitais psiquiátri- cos o último refúgio. Mas, havia também os doentes crônicos, que as famílias não tinham condições de cuidar e eram até co- niventes com a internação. — Era confortável para as famílias que, após a internação em Belo Horizonte, os parentes não voltassem mais para casa. A transferência para Barbacena era até um alívio — conta o psi- quiatra Antônio Soares Simone. A famosa expressão “trem de doido” também remonta à época. Um grande número de pacientes chegava a Barbacena transportado pelas linhas férreas, vindo de várias partes do Brasil. Assim, rapidamente o manicômio ficou superlotado. Ainda na década de 1950, abrigava quase cinco mil alienados, vivendo em condições subumanas, jogados pelos pátios e sem nenhum tipo de atenção. A condição era tão degradante que a grande maioria não tinha onde dormir; passava as noi- tes no chão ou dormia sobre pilhas de capim que eram impro- visadas como cama. A maioria ficava sem roupas, o que era crucial para o desenvolvimento de outros males, como conta Antônio Soares Simone: Ba r b a c e n a 60 H is t ó r ia s d a L o u c u r a — Ninguém morre de loucura. Era morte natural combi- nada com desnutrição: a comida, às vezes, era única e exclusi- vamente água com fubá, ou uma sopa rala de canjiquinha, sem nenhuma gordura ou proteína. Ficavam nus e chegavam a per- der os movimentos. Barbacena faz um frio terrível. Uma vez despidos, já desnutridos, sem nenhuma defesa, pegavam uma gripe, que depois virava pneumonia, porque eles também não eram medicados. E assim, todas às manhãs, eram recolhidos cadáveres nas enfermarias. Os mortos de Barbacena tornaram-se mais conhecidos do que os internos. O ano de 1966 foi um dos que contabilizaram maior
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