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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI HISTÓRIA MODERNA GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 4 2 IDADE MODERNA .................................................................................................. 5 2.1 A transição da Idade Média para a Idade Moderna ............................................ 6 2.2 Os burgos e a modernidade ............................................................................... 9 2.3 Do teocentrismo ao antropocentrismo .............................................................. 13 3 DEBATES HISTORIOGRÁFICOS SOBRE A TRANSIÇÃO DA IDADE MÉDIA PARA A IDADE MODERNA ...................................................................................... 17 3.1 A historiografia sobre a Idade Moderna ............................................................ 17 3.2 As origens econômicas da Idade Moderna ....................................................... 21 3.3 As origens culturais da Idade Moderna ............................................................. 24 4 A FORMAÇÃO DOS ESTADOS MODERNOS E O ANTIGO REGIME ................ 27 4.1 A formação dos Estados Modernos e o mercantilismo ..................................... 27 4.2 Fatores culturais da formação do Estado Moderno e do sistema mercantilista 31 4.3 O Antigo Regime ............................................................................................... 35 5 O ESTADO ABSOLUTISTA .................................................................................. 38 5.1 Contexto histórico ............................................................................................. 38 5.2 O absolutismo em Portugal, França e Espanha................................................ 41 5.2.1 Portugal........ .................................................................................................... 41 5.2.2 Espanha....... ..................................................................................................... 43 5.2.3 França.......... ..................................................................................................... 47 5.3 O absolutismo e a expansão marítima .............................................................. 49 6 TEÓRICOS DO ABSOLUTISMO .......................................................................... 51 6.1 Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes .............................................................. 54 6.1.1 Nicolau Maquiavel ............................................................................................. 55 6.1.2 Thomas Hobbes ................................................................................................ 56 6.2 Jacques Bossuet e Jean Bodin ......................................................................... 58 6.2.1 Jacques Bossuet ............................................................................................... 59 6.2.2 Jean Bodin..... ................................................................................................... 61 7 O ILUMINISMO E O LIBERALISMO ..................................................................... 63 7.1 O Iluminismo e seus Teóricos ........................................................................... 63 7.2 O liberalismo na Idade Moderna ....................................................................... 66 3 8 A CULTURA DO RENASCIMENTO ...................................................................... 69 8.1 O Renascimento científico ................................................................................ 69 8.2 O Renascimento artístico .................................................................................. 72 8.3 O Renascimento e a contemporaneidade ......................................................... 74 9 A ERA DAS REVOLUÇÕES INGLESAS .............................................................. 77 9.1 O crescimento do poder da burguesia e o enfraquecimento do antigo regime . 77 9.2 As revoluções inglesas ..................................................................................... 79 9.2.1 Guerra Civil ou Revolução Puritana (1642-1648) ............................................. 79 9.2.2 República de Cromwell (1649-1658) ................................................................. 81 9.2.3 Restauração Monárquica (1660-1688) ............................................................. 82 9.2.4 Revolução Gloriosa (1688-1689) ...................................................................... 83 9.3 As dinastias envolvidas no conflito e seus interesses ....................................... 84 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 88 4 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 5 2 IDADE MODERNA Durante o século XVI, homens e mulheres acreditavam estar vivendo um novo mundo, um mundo "moderno". Esse sentimento em relação a sua experiência fez com que historiadores estabelecessem uma periodização, chamando esse "novo tempo" de "Renascimento", e o passado recente de "Idade Média", estabelecendo um elo entre a Antiguidade greco-romana e aquela realidade. A Idade Moderna foi um período marcado por transições, rupturas e continuidades em relação à sociedade medieval. Houve uma série de mudanças nos âmbitos cultural, econômico, político e social, com a coexistência do “novo” e do “velho”, que fizeram com que as sociedades da Europa Ocidental desenvolvessem uma autoconsciência de viver em um “novo tempo”. Nesse sentido, é muito importante estudar que transformações foram essas ocorridas entre o século XIV e o século XVIII e de que maneira elas impactaram na construção de uma nova visão de mundo dos europeus na chamada “modernidade”. (BAUER, 2018). Nesta seção, você vai estudar de que forma se dá a transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, compreendendo que essa abordagem dá espaço para rupturas e continuidades entre um período e outro. Além disso, vai conhecer a forma pela qual os burgos e, mais especificamente, o “renascimento” comercial e urbano, contribuíram para a conformação da sociedade moderna e, por fim, vai ver o surgimento de preceitos laicos na ascensão do antropocentrismo. Fonte: https://www.educamaisbrasil.com.br/ 6 2.1 A transição da Idade Média para a Idade Moderna Na divisão quadripartite da história, convencionou-se chamar Idade Moderna, Modernidade ou, ainda, Tempos Modernos o período que corresponde à formação do Estado Nacional, juntamente a uma série de transformações culturais, econômicas e sociais (absolutismo,grandes navegações, mercantilismo, renascimento, reforma religiosa), encerrando-se com a Revolução Francesa, em 1789. Contudo, os historiadores estão cientes das dificuldades de circunscrição de movimentos como esses em periodizações em função das continuidades e permanências para além das rupturas mais facilmente identificáveis. Um dos marcos cronológicos normalmente escolhidos para assinalar o fim da Idade Média é a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, principalmente pela pretendida relação com outro acontecimento “fundador” da época moderna, a chegada de Cristóvão Colombo à América, em 12 de outubro de 1492, mas a “modernidade” é dificilmente delimitada por acontecimentos ou datas específicas. “Não existe um ponto que possamos dizer que tenha marcado a transformação do mundo medieval no mundo moderno” (RUNCIMAN, 2002, p. 11). Além disso, é importante lembrar que as transformações que se iniciaram na sociedade europeia a partir dos séculos XV e XVI já estavam delineadas no período precedente. Simultaneamente, as profundas mudanças referidas não significaram a eliminação instantânea e completa da sociedade feudal em seus aspectos culturais, econômicos, políticos, religiosos e sociais, de modo que muitas características medievais coexistiram com as modernas. Podemos afirmar que entre os séculos XV e XVIII ocorreram transformações significativas na sociedade europeia e suficientes para que homens e mulheres percebessem que estavam vivendo em uma “nova época”: as grandes navegações e as conquistas territoriais, o advento de uma nova mentalidade burguesa e racionalista, a constituição dos estados nacionais com a imposição de um novo poder político, centrado no rei soberano e absoluto, a ruptura com a unidade da Igreja Católica e a expansão do capitalismo. Para compreender a transição da sociedade medieval para a Idade Moderna, é preciso refletir sobre a crise pela qual passava o sistema feudal em meados dos séculos XIV e XV e que, de acordo com Franco Júnior (1997, p. 53): 7 Foi uma crise de grandes proporções, que se projetou nos diversos âmbitos da realidade, envolvendo aspectos econômicos, demográficos, sociais, políticos e clericais: aspectos econômicos derivados da exploração agrícola predatória e extensiva, que fora típica do feudalismo e que inviabilizou o aumento da produção; aspectos demográficos oriundos das grandes tragédias, da fome e da peste; aspectos sociais advindos da ruptura da rigidez hierárquica anterior, seja pela crise demográfica, seja pelo empobrecimento das camadas superiores a partir da crise econômica do período ou pela ruptura do próprio conceito de ordem; aspectos políticos resultantes da retomada ou reconstituição dos poderes públicos centralizados; aspectos clericais originados do questionamento da supremacia do poder da Igreja e de seu representante supremo. Após uma fase de avanços tecnológicos na prática agrícola que levaram ao crescimento populacional e ao aumento do comércio, a Europa Ocidental passou por uma grave crise econômica e social. As razões dessa crise, como já explicitadas por Franco Júnior (1997), na citação anterior, são várias. Primeiramente, a oferta de alimentos se tornou insuficiente para o aumento da população. Juntamente à pouca oferta de alimentos, condições climáticas adversas e más colheitas agravaram a situação. Somaram-se a esses fatores as péssimas condições de higiene, que contribuíam para a proliferação de doenças. Segundo Burns (1957), na maioria das cidades medievais, as condições sanitárias eram péssimas. A população dependia de água proveniente de poços ou rios contaminados, e eram frequentes os casos de febre tifoide. Algumas cidades tinham sistema de esgoto, mas não há informações sobre a coleta de lixo. Há relatos de que os restos eram jogados na rua e eram levados pelas chuvas ou consumidos por cachorros e porcos. A epidemia de peste bubônica, que ficou conhecida como peste negra, ocasionou uma mortandade jamais vista na Europa Ocidental. Acreditava-se que a peste era um tipo de castigo divino, como outros fenômenos que eram explicados a partir da fé e da religião. No entanto, tratava-se de uma doença contagiosa e, na maioria das vezes, fatal, que se acredita que tenha chegado à Europa por meio de navios mercadores. Nesses navios, estavam ratos infectados por uma bactéria, e as pulgas que picavam os ratos acabavam por contaminar os seres humanos. Acredita- se que a peste bubônica tenha chegado à Europa em 1348, e, como consequência, houve a morte de 30% da população europeia. Assim, as mortes causadas pela peste negra somavam-se àquelas ocasionadas pela fome e pelas guerras, gerando uma crise de produtividade (afinal, não havia pessoas para trabalhar no campo) e, por consequência, uma diminuição da 8 produção agrícola. Em um efeito dominó, houve o endividamento da nobreza, que, como forma de compensação, passou a cobrar mais impostos e tributos dos camponeses, gerando descontentamento, fugas e uma série de revoltas. Essa situação levou ao enfraquecimento do poder da nobreza feudal, que passou a se aproximar dos reis como forma de manter a ordem social frente às revoltas camponesas. Setores da nobreza optaram por modificar as relações sociais, rompendo com os laços vassálicos, ou, então, por vender suas propriedades a agricultores enriquecidos ou burgueses. Houve, também, a libertação de muitos servos, que se transformaram em agricultores ou migraram para as cidades, a fim de se dedicar ao comércio. Isso significou uma profunda modificação da ligação da nobreza com a posse da terra. Os burgueses já haviam iniciado esse movimento de aproximação, afinal, a fragmentação econômica e política não interessava à burguesia, estrato social surgido da revitalização das cidades e do impulso às atividades comerciais e manufatureiras. Moradores das cidades, os burgueses construíram suas fortunas a partir do grande comércio e das atividades bancárias, baseados na ideia de lucro e na posse de uma riqueza que não consistia em propriedades rurais. Ou seja, estamos falando de um grupo social em ascensão cujo estilo de vida era muito diferente daquele que caracterizava o nobre feudal — senhor da guerra e proprietário rural. A burguesia enriqueceu com o comércio praticado nos burgos, nas vilas e nas cidades, além das rotas comerciais estabelecidas entre a Europa e a Ásia Central, bem como no Mar Mediterrâneo. Juntamente ao desenvolvimento de seu poder econômico, adquiriu prestígio político e social e passou a reivindicar melhores condições para o exercício da economia e da política, tornando-se uma das fomentadoras do processo de centralização política que resultaria na conformação do Estado moderno. (BAUER, 2018). A mudança nas relações de trabalho, com o início da especialização, o controle do tempo, a expansão das rotas comerciais e a ampliação do mundo conhecido, torna o estado medieval um modo de vida ultrapassado, e uma das mais importantes revoluções da história, que tem início no século XIV, associada à peste negra e a guerras que duraram mais de um século, transforma o mapa da Europa. Além disso, é importante lembrar que, durante a Baixa Idade Média, havia uma profunda descentralização no poder político devido à fragmentação territorial 9 ocasionada pela divisão de terras entre a nobreza feudal. Essa descentralização gerou inúmeras guerras de sucessão (já que as terras eram hereditárias e havia muitos casamentos por interesses). Citemos, como exemplo, a Guerra dos Cem Anos, ocasionada por um problema de sucessão no trono francês, quando o rei inglês crê ser legítima a sua coroação como rei da França, pois na Normandia estariam localizadas terras de senhores ingleses. A resolução da guerra é feita quando os Valois são substituídos por Habsburgos no trono francês. O resultado da guerra é a aberturarumo à centralização política. Além da Guerra dos Cem Anos, também se destacou a Guerra das Duas Rosas, provocada pela disputa entre duas famílias, Yorks, as rosas brancas, e Lancasters, as rosas vermelhas, pelo poder. 2.2 Os burgos e a modernidade Uma série de transformações ocorridas entre o século XIV e o XV fragilizou o sistema feudal, compreendido em seus âmbitos cultural, econômico, político e social. Em relação à economia, a melhoria nas técnicas de plantio, somada a outros fatores, permitiu o aumento da produtividade agrícola, gerando um crescimento demográfico na Europa. Entretanto, as estruturas feudais (alimentos, espaço, governo, leis) não deram conta do aumento no número da população, gerando diminuição das condições de vida, mortandade e uma alta geral de preços. (BAUER, 2018). Em meio a esse processo de instabilidade, as cidades recuperaram o poder econômico e político. Mas você sabe de que forma os burgos e, mais especificamente, o “renascimento” comercial e urbano, contribuíram para a conformação da sociedade moderna? Com as novas rotas comerciais surgidas durante a Baixa Idade Média em decorrência do movimento das cruzadas e a retomada do comércio marítimo pelo Mar Mediterrâneo, as feiras, que eram periódicas, tornaram-se fixas, dando origem aos burgos (cidades). As feiras eram espaços em que eram comercializados produtos locais e outros vindos do Oriente, como as especiarias, os perfumes, os tecidos e as porcelanas, que se tornaram objetos de luxo e cobiça por parte da nobreza feudal. As feiras também atraíam muitas pessoas, sendo um verdadeiro espaço de encontro entre culturas diferentes. Assim, ao mesmo tempo que as cidades foram fundamentais para o desenvolvimento do comércio, o comércio também foi indispensável para o surgimento de novas cidades e para o desenvolvimento de outras. 10 Os mercados dos burgos possibilitavam o desenvolvimento de atividades laborais assalariadas e a ascensão social em uma sociedade rigidamente estratificada. Por isso, os burgos passaram a atrair cada vez mais artesãos, camponeses livres, comerciantes itinerantes, servos fugitivos e outras pessoas. Localizados no interior dos feudos, os habitantes dos burgos eram obrigados a pagar determinadas taxas aos senhores feudais, como o direito de passagem, além da realização de câmbios e conversões, em função da inexistência de um sistema de medidas e monetário único. (BAUER, 2018). As dificuldades geradas por essa situação, somadas às taxas, fizeram com que os habitantes dos burgos se organizassem em comunas, como associações coletivas de trabalhadores, e, dessa forma, conseguiram obter certos direitos frente aos senhores feudais (inclusive a abolição de obrigações servis), o que possibilitou o desenvolvimento das atividades comerciais. Dessas coletividades, surgiram as corporações de ofício, que reuniam profissionais do mesmo ramo com o objetivo de proteger seus trabalhadores (ou seja, com caráter assistencialista) e de regulamentar a profissão, como a quantidade e a qualidade da produção, com o objetivo de limitar a concorrência dentro de um mesmo ofício. (BAUER, 2018). Fonte: https://escolaeducacao.com.br/ Com a fixação dos mercadores nas cidades, que traziam produtos do Oriente e de média distância, houve a possibilidade de comercialização dos excedentes agrícolas e de produtos artesanais produzidos no âmbito do feudo. A partir desse 11 processo de “sedentarização” do mercado, cria-se uma demanda por novos produtos, gerando lucro e acúmulo crescente de capital. “As cidades e as vilas multiplicaram-se tão rapidamente que, em algumas regiões, pelas alturas do século XIV, metade da população tinha sido desviada das atividades agrícolas para as comerciais” (BURNS, 1957, p. 423). As principais cidades desse período de transição localizavam-se na Itália, e seus habitantes comerciantes estabeleceram relações comerciais com Império Bizantino e com as grandes cidades muçulmanas de Bagdá, Damasco e Cairo. Os produtos tinham grande procura não somente na Itália, mas também no território do que hoje é Alemanha, França e Inglaterra. Porém, havia alguns problemas para o desenvolvimento pleno das relações comerciais. O comércio com moedas se tornou mais frequente, mas havia uma pluralidade de moedas diferentes, com valores distintos. Isso fez com que surgissem os cambistas, também chamados de banqueiros, porque analisavam as moedas em cima de um banco. A partir dessas atividades, os banqueiros passaram a emprestar dinheiro, cobrando juros, e enriquecendo a partir dessa atividade. Esse processo fez com que Le Goff e Schmidt (2006, p. 223) assim definissem a cidade na Baixa Idade Média: A cidade medieval é, antes de mais nada, uma sociedade da abundância, concentrada em um pequeno espaço em meio a vastas regiões pouco povoadas. Em seguida, é um lugar de produção e de trocas, onde se articulam o artesanato e o comércio, sustentados por uma economia monetária. É também o centro de um sistema de valores particular, do qual emerge a prática laboriosa e criativa do trabalho, o gosto pelo negócio e pelo dinheiro, a inclinação para o luxo, o senso da beleza. É ainda um sistema de organização de um espaço fechado com muralhas, onde se penetra por portas e se caminha por ruas e praças, e que é guarnecido por torres. Mas também é um organismo social e político baseado na vizinhança, no qual os mais ricos não formam uma hierarquia, e sim um grupo de iguais — sentados lado a lado — que governa uma massa unânime e solidária. [...] Essa sociedade laica urbana conquistou um tempo comunitário, em que sinos laicos indicam a irregularidade das chamadas à revolta, à defesa, à ajuda. Contudo, esse processo de “urbanização” da sociedade não ocorreu sem conflitos. Nas cidades, houve um processo de exploração dos trabalhadores nas próprias corporações de ofício que levou à sua extinção, e, no campo, uma série de revoltas camponesas em função da exploração realizada pelos senhores feudais, além do descontentamento com as limitações impostas pelas relações vassálicas. 12 A valorização das atividades comerciais, somada à ascensão dos centros urbanos, e as possibilidades de unificação da moeda e do sistema de medidas levariam ao desenvolvimento de relações capitalistas de trabalho e produção e ao surgimento de novos estratos sociais, como a burguesia, com interesses próprios. As relações sociais, os estratos dessa sociedade citadina e suas sociabilidades são resultados de mudanças culturais, econômicas, políticas e sociais. (BAUER, 2018). E quem era o burguês? O burguês era o habitante do burgo, um homem livre (no sentido de não submetido às relações de poder que envolviam suseranos, vassalos e servos), que exercia profissões liberais como artesão ou comerciante. Os burgueses foram os principais responsáveis pelo desenvolvimento das cidades, um processo que foi impulsionado com a abertura de rotas comerciais que ligavam o Ocidente ao Oriente e a retomada do comércio marítimo pelo Mar Mediterrâneo a partir do movimento das Cruzadas. Aos poucos, tornaram-se numerosos e, então, estabeleceu-se uma hierarquia entre os próprios burgueses de acordo com o tamanho de seus comércios e sua capacidade produtiva. O esquema da Figura a seguir, representa uma síntese do fortalecimento das cidades e das mudanças ocorridas que levariam à modernidade. As cidades e a modernidade. Fonte: o autor, 2021. Em resumo, podemos estabelecer o seguinte encadeamento de eventos para explicar a relação dos burgos com a modernidade: a produção de artigos no Oriente (especiarias, tapeçarias e tecidos finos) desperta o interesse da nobreza feudal no Ocidente; o comércio com o Oriente exige a utilização de moedas, que também desperta a busca por metais preciosos; 13 as mercadorias do Oriente levam a um processode “sedentarização” dos mercadores nos burgos, rompendo com o caráter local do comércio e estabelecendo rotas comerciais; há um processo de enriquecimento dos mercadores; as mudanças nas atividades comerciais afetam a produção agrícola e artesanal, levando a críticas nas estruturas feudais. Todo esse processo ocorre nas cidades, ainda que a maioria da população europeia fosse rural. Esse é um alerta que faz o historiador Fernand Braudel (1985, p. 13) e que demonstra, mais uma vez, os traços de continuidade e ruptura presentes durante a Idade Moderna: [...] por um lado, os camponeses nas aldeias, vivendo de uma forma quase autônoma, quase autárquica; por outro lado, uma economia de mercado e um capitalismo em expansão [...]. O perigo reside, evidentemente, em vermos somente a economia de mercado, em a descrevermos com tal exuberância de detalhes que denote uma presença avassaladora, persistente, não sendo ela afinal senão um fragmento de um vasto conjunto. 2.3 Do teocentrismo ao antropocentrismo Antes de nos dedicarmos ao estudo das novas formas de pensamento surgidas na modernidade e seu reflexo nas práticas e nos valores da sociedade moderna, é necessário lembrar quais eram as bases da sociedade medieval no que diz respeito à sua visão de mundo. Durante a Idade Média, a religião era estruturante dos âmbitos cultural, econômico, político e social das sociedades da Europa Ocidental, e não havia uma nítida distinção entre essas esferas e a religiosa, que permeava todo o social. Em outras palavras, pode-se afirmar que a visão de mundo dos europeus durante a Idade Média é religiosa, mesmo que houvesse diferenças entre algumas concepções e práticas, de acordo com o local ou o tempo, o que também faria com que a Igreja Católica se esforce para a normatização e unificação de cultos, dogmas, práticas e rituais. A marcação do tempo do calendário e do relógio vincula-se a essa visão de mundo religiosa, ou seja, a organização da vida cotidiana se faz a partir da relação do homem com o sagrado, assim como as explicações para os fenômenos naturais e sociais eram encontradas nos dogmas religiosos. 14 Nessa sociedade, em que todo o conhecimento se dava a partir da fé, refletir sobre o mundo a partir de outros parâmetros, como outras crenças ou por meio da natureza, era considerado heresia. Entretanto, essa situação começa a se modificar a partir do século XI, quando se inicia uma aproximação das formas de se conhecer o mundo a partir da lógica, do estudo de observação e da investigação. A Igreja Católica era a instituição mais importante da Idade Média, regulando todas as esferas da vida em sociedade, funcionando como um agente unificador e forjando ou mediando a relação dos homens e das mulheres com o mundo. Como afirma Bedin (2012, p. 25), “[...] a Igreja passou a exercer uma dupla função: a de instituição oficial do mundo medieval e a de instituição guardiã e intérprete autorizada do conhecimento”. Assim, uma das marcas da “modernidade” no que diz respeito à autocompreensão de homens e mulheres e sua compreensão em relação ao mundo será um rompimento com essa visão unívoca e a existência de outras formas de se compreender e compreender o mundo. Isso, no entanto, não significa um movimento de rompimento com a percepção religiosa do ser humano e da sociedade. É importante destacar a continuidade dos valores e visões de mundo religiosos paralelamente a mudanças e rupturas. Não podemos, dessa forma, dizer que houve um processo de laicização, e, sim, uma progressiva separação entre os componentes religiosos e seculares das sociedades. Há, sem dúvida, uma diminuição do poder da Igreja Católica frente à emergência de outros saberes, principalmente os científicos, mas esses não implicam um total rompimento com certas interpretações religiosas. Essa abordagem, que implica continuidades e rupturas, ou seja, a compreensão da Idade Moderna como uma transição, é muito importante para compreendermos a progressiva valorização do homem e do indivíduo, o chamado antropocentrismo, em detrimento de uma visão de mundo teocêntrica, característica do medievo. De acordo com Burns (1957, p. 464-465), Ainda que as universidades modernas tenham copiado muito dos seus protótipos medievais, o programa de estudos mudou radicalmente. Nenhum dos currículos da Idade Média incluía um número razoável de aulas de história ou de ciências naturais, e pouca coisa continham de matemática e literatura clássica. O educador tradicionalista moderno, que acredita formarem a espinha dorsal do ensino universitário a matemática e os clássicos, não encontrará base para os seus argumentos na história das universidades medievais. 15 Da mesma forma, o movimento ao qual se vincula a ascensão do antropocentrismo, o Renascimento, não pode ser visto apenas como um movimento de elites letradas, mas como um fenômeno que abrange os diferentes estratos da sociedade, com características específicas. Em relação ao Renascimento, cabe destacar, neste momento, que esse “movimento” não se tratou apenas do acúmulo de obras científicas, filosóficas ou literárias nem de mudanças estéticas e técnicas nas artes plásticas, mas significou uma transformação muito mais ampla, com a difusão da escrita e da leitura para além dos espaços religiosos ou das elites, da alfabetização vinculada às necessidades do comércio e das cidades, da releitura dos textos da Antiguidade Clássica a partir desses próprios textos, e não das interpretações religiosas a eles atribuídas. Vejamos, resumidamente, nas considerações de Burns (1957), quais foram as causas da renovação artística e intelectual ocorrida nos séculos XII e XIII que gerariam o Renascimento: influência das culturas bizantina e sarracena; desenvolvimento do comércio; crescimento das cidades; renovação do interesse pelo estudo dos textos da Antiguidade Clássica greco-romana; desenvolvimento de um pensamento cético e crítico; abandono progressivo do asceticismo e do misticismo característicos da Alta Idade Média; retomada do estudo do direito romano; surgimento das universidades; influência do aristotelismo; presença do naturalismo nas artes plásticas e na literatura; desenvolvimento da observação e da pesquisa científica. Em relação à religião, esse aspecto de continuidade do medievo, mas sujeito a transformações, uma das marcas da “modernidade” é a reivindicação da livre interpretação das escrituras, sem negar o valor e a verdade da Bíblia, mas questionando o privilégio de apenas os clérigos poderem comentá-la. Durante a Idade Média, a leitura das escrituras era orientada pela escolástica por meio da hermenêutica (SILVA; SILVA, 2009). Há outra visão de ser humano e de religião em 16 disputa, e aqui se apresenta uma distância menor entre homens e mulheres e Deus. Juntamente ao antropocentrismo, haverá o desenvolvimento de outras formas de pensamento, todas vinculadas entre si, como o humanismo, o individualismo e o racionalismo. Vejamos como Silva e Silva (2009, p. 193) definem o humanismo, esse grupo heterogêneo de intelectuais que compartilhavam o entusiasmo pelo estudo dos escritos da Antiguidade Clássica: O termo humanismo surgiu no século XVI para designar as atitudes renascentistas que enfatizavam o homem e sua posição privilegiada na Terra. [...] O humanismo é comumente definido como um empreendimento moral e intelectual que colocava o homem no centro dos estudos e das preocupações espirituais, buscando construir o mais alto tipo de humanidade possível. [...]. Alguns autores consideram o humanismo um fenômeno dialético, pois, de um lado, valorizava o humano, contrariando a mentalidade teocêntrica da Filosofia medieval, mas, ao mesmo tempo, possuía fortes preocupações religiosas, sendo o movimento incompreensível sem suas preocupações espirituaise o anseio por uma reforma da Igreja Católica. Ou seja, o contexto humanista apesar de seu antropocentrismo, foi intensamente influenciado pelo Cristianismo e pelos dilemas da Igreja Católica no início da Idade Moderna. Percebe-se, novamente, a importância de compreender a modernidade entre a continuidade e ruptura: até mesmo os valores antropocêntricos tinham conotações religiosas. Contudo, também é importante destacar os rompimentos: o humanismo foi um movimento surgido em algumas cidades italianas com forte desenvolvimento urbano e comercial e teria sido burguês. Símbolo do Antropocentrismo Humanista: Homem Vitruviano (1590) de Leonardo da Vinci Fonte: https://maestrovirtuale.com/ 17 3 DEBATES HISTORIOGRÁFICOS SOBRE A TRANSIÇÃO DA IDADE MÉDIA PARA A IDADE MODERNA A Idade Moderna foi um período de transformações generalizadas nas sociedades europeias ocidentais, levando a modificações nos âmbitos cultural, econômico, político e social. Muitas vezes, essas mudanças apresentaram traços de continuidade do período feudal, seja porque se iniciaram ainda durante o medievo ou porque as temporalidades das transformações eram distintas — sabemos que o tempo da política, por exemplo, é diferente do tempo das mentalidades. (BAUER, 2018). 3.1 A historiografia sobre a Idade Moderna Sabemos que a história da historiografia está inserida dentro das características culturais, econômicas, políticas e sociais de uma época, evidenciando componentes desse “pertencimento” na escolha de seus objetos, de suas abordagens, etc. Ainda, é preciso lembrar que a historiografia é apenas uma das possibilidades de abordagem da Idade Moderna: o período pode ser estudado dentro da história da arte, da história da ciência, da história da filosofia, entre outras. Comecemos pela ideia de “modernidade”: você sabe o que significa o “moderno” da Idade Moderna? Segundo Falcon (1977, p. 10-11), “[...] a noção de ‘moderno’ não basta por si só para dizer algo de concreto ou definitivo sobre o período que queremos analisar. [...] Só aos poucos, nas sociedades ocidentais, foi havendo uma tomada de consciência quanto à modernidade nascente, em cujo seio já se vislumbra, indecisa, a teoria do progresso”. Assim, modernidade vincula-se a um sentimento de ruptura com o passado. “Um dos primeiros pensadores a utilizar a ideia de modernidade foi Charles Baudelaire, escritor francês da segunda metade do século XIX, autor de As flores do mal, que pensava a modernidade como as mudanças que iam se operando em seu presente, utilizando a palavra sobretudo para a observação dos costumes, da arte e da moda” (SILVA; SILVA, 2009, p. 297). Na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, “ser moderno” era se opor ao mundo medieval, e, assim, “[...] podemos definir a modernidade como um conjunto amplo de modificações nas estruturas 18 sociais do Ocidente, a partir de um processo longo de racionalização da vida” (SILVA; SILVA, 2009, p. 297). Além das obras que serão analisadas nos debates historiográficos sobre a economia e a cultura, vamos apontar outros exemplos. Dentro do âmbito da cultura, podemos citar as obras do historiador francês Marc Bloch, Os reis taumaturgos, em que estudou as origens e a natureza do poder régio e do estado monárquico vinculadas à crença mística e religiosa da cura proporcionada pelos reis por meio do toque, prática disseminada na realeza inglesa e francesa entre os séculos XIII e XIX; e a obra do sociólogo alemão Norbert Elias, A sociedade de corte, que analisa como a sociedade da corte organiza toda a sociedade do Antigo Regime a partir das relações que se estabelecem e das reciprocidades, além dos códigos sociais. Do ponto de vista político, há, desde os anos 1980, uma tendência historiográfica preocupada com a renovação das interpretações sobre o surgimento do Estado moderno, que se dedica a outras abordagens para além do aparato burocrático administrativo e do direito legislativo oficial, tais como as relações sociais clientelares e a fidelidade, a noção de linhagem e a organização doméstica, etc. São representativos desses estudos os historiadores Pablo Fernández, Albadalejo, Bartolomé Clavero e António Manuel Hespanha. Para eles, fazia-se necessário rever alguns “enviesamentos correntes” sobre as categorias políticas desse período que, de forma anacrônica, a historiografia interpretava por meio dos conceitos da política e do direito próprios da contemporaneidade. A imagem de uma monarquia precocemente centralizada escondia a pluralidade e a concorrência entre as jurisdições, assim como as limitações éticas, doutrinais e institucionais que se impunham ao “poder absoluto” do príncipe. Em suma, a centralidade da coroa, com suas instituições, o seu direito e os seus oficiais, oferece uma visão distorcida, mas, sobretudo, simplista da dinâmica política do Antigo Regime, porque a reduz à dominação de classe, a mero instrumento da sociedade política; as conexões com a sociedade civil passam despercebidas [...] (COELHO, 2011, documento on-line). Há algumas mudanças historiográficas muito importantes em relação à modernidade que se relacionam com o desenvolvimento de estudos chamados decoloniais ou pós-coloniais. De acordo com Ballestrin (2013), intelectuais latino- americanos situados em diversas universidades das Américas promoveram uma renovação crítica e utópica das ciências sociais na América Latina no século XX, a radicalização do argumento pós-colonial no continente. 19 Segundo a autora, “[...] mesmo que não linear, disciplinado e articulado, o argumento pós-colonial em toda sua amplitude histórica, temporal, geográfica e disciplinar percebeu a diferença colonial e intercedeu pelo colonizado. Em essência, foi e é um argumento comprometido com a superação das relações de colonização, colonialismo e colonialidade” (BALLESTRIN, 2013, p. 91). Foi a partir dessas considerações que se iniciou, historiograficamente, uma crítica sobre o colonialismo da modernidade, da hierarquia estabelecida entre as sociedades e de uma pretensa superioridade europeia. Assim, os estudos de Anibal Quijano (2000) e a vinculação que estabelece entre a colonialidade e a modernidade são fundamentais: não existe modernidade sem colonialidade, ou seja, os regimes coloniais foram encerrados, mas não a colonialidade, que é definida por Quijano (2000) como um dos elementos específicos do capitalismo, criando uma classificação étnico-racial da população mundial e opera em todas as esferas da realidade. Na mesma linha interpretativa, temos Enrique Dussel (2000), que destaca um vínculo entre a modernidade e a violência, como um mito que oculta a colonialidade. Vejamos a vinculação estabelecida pelo autor em sete pontos: superioridade da civilização moderna a partir de uma visão eurocêntrica; a partir do estabelecimento dessa superioridade, criação de uma exigência moral de desenvolvimento dos mais “primitivos, bárbaros, rudes”; o caminho do “desenvolvimento” é ditado pela Europa; se necessário for, ou seja, se o “bárbaro” exigir, o “processo civilizador” deve ser empregado à força; a dominação produz vítimas, consideradas como um ato inevitável e no sentido de um quase-ritual de sacrifício para a civilização; a “modernidade” emanciparia os “bárbaros” da culpa por se oporem ao processo civilizador; o processo de “civilização” pressupõe sofrimentos e sacrifícios a outros povos “atrasados” Dentro da história da historiografia, foram três os principais debates sobre o período. O primeiro deles se relaciona com a passagem ou a transição da Idade Média para a Idade Moderna e envolve questões como a cronologia e a periodização, sustentadas em compreensões de continuidades ou rupturas entre esses dois momentos históricos. 20 Citemos, como exemplificação, a obra de Jacques Le Goff, EmBusca da Idade Média (2005). Nela, o autor, inspirado nos debates sobre temporalidade desenvolvidos por Fernand Braudel, desenvolve a ideia de “longa Idade Média”, um período que teria se estendido do século IV ao século XVIII. Sua conceituação permitiria a compreensão das continuidades existentes entre o medievo e a modernidade, bem como as marcas indeléveis do medievo presentes nas “novidades” da Idade Moderna. Para o autor, “[...] as mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média que — em certos aspectos de nossa civilização — perdura e, às vezes, desabrocha bem depois das datas oficiais” (LE GOFF, 2005, p. 66). Para o autor (2015, p. 97), seriam somente a Revolução Industrial e a Revolução Francesa que marcariam uma ruptura definitiva com a Idade Média: “[...] é preciso mostrar que, nos campos econômico, político, social e cultural, não há, no século XVI, e de fato até meados do século XVIII, mudanças fundamentais que justifiquem a separação entre Idade Média e um período novo, diferente, que seria o Renascimento”. Um segundo debate diz respeito à transição do sistema feudal para o capitalismo mercantil, ou seja, uma discussão centrada em sistemas econômicos, que, no entanto, revelam compreensões sobre o Estado e a sociedade. A relevância cada vez maior de uma economia monetária interligando diferentes regiões da Europa e do mundo e modificando de diferentes maneiras as estruturas socioeconômicas é, sem dúvida, um marco da modernidade, assim como a aceleração do processo de centralização de poder operado por monarcas e príncipes europeus desde o século XII, e que se beneficia dessa economia de mercado na formação dos primeiros Estados modernos. Por fim, podemos citar um terceiro debate, que diz respeito à dimensão cultural, às transformações ocorridas nas mentalidades. Nesse sentido, é fundamental relacionar a produção de um pensamento caracterizado pelo antropocentrismo e pela racionalidade e as necessidades das práticas comerciais e mercantis, que emergem das áreas mais urbanizadas da Europa, principalmente das cidades, como as situadas no norte da Itália. 21 3.2 As origens econômicas da Idade Moderna Como afirmado anteriormente, um dos principais debates sobre as origens econômicas da modernidade se deu em relação à transição do sistema feudal para o sistema capitalista e em referência à origem do capitalismo na sociedade europeia ocidental em meados dos séculos XIV, XV e XVI. A origem do capitalismo interessou uma série de autores. Karl Marx e Max Weber foram dois pensadores que dedicaram parte de suas investigações para buscar a conformação das relações econômicas e sociais que deram origem ao capitalismo. A partir de meados do século XX, os historiadores também passaram a se interessar pela temática. Na década de 1940, o historiador francês Maurice Dobb, em seu livro Estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo, lançou a tese de que o capitalismo era proveniente da circulação de mercadorias entre o campo e a cidade, proveniente da crise estrutural do sistema feudal. Dobb (1983, p. 7) utilizava as categorias forjadas por Marx para explicar as características do capitalismo: [...] temos o significado inicialmente conferido por Marx, que não buscava a essência do capitalismo num espírito de empresa nem no uso da moeda para financiar uma série de trocas com objetivo de ganho, mas em determinado modo de produção. Por modo de produção, ele não se referia apenas ao estado da técnica — a qual chamou de estágio de desenvolvimento das forças produtivas — mas à maneira pela qual se definia a propriedade dos meios de produção e às relações sociais entre os homens, que resultavam da de suas ligações com o processo de produção. Assim, o capitalismo não era apenas um sistema de produção para o mercado — um sistema de produção de mercadorias, como Marx o denominou — mas um sistema sob o qual a própria força de trabalho “se tornara uma mercadoria” e era comprada e vendida no mercado como qualquer outro objeto de troca. Seu pré-requisito histórico era a concentração da propriedade, dos meios de produção em mãos de uma classe, que consistia apenas numa pequena parte da sociedade, e aparecimento consequente de uma classe destituída de propriedade, para a qual a venda de sua força de trabalho era a única fonte de subsistência. [...] O que diferencia o uso dessa definição em relação às demais é que a existência do comércio e do empréstimo de dinheiro, bem como a existência de uma classe especializada de comerciantes ou financistas, ainda que fossem homens de posses, não basta para constituir uma sociedade capitalista. Os homens de capital, por mais ambiciosos, não bastam — seu capital tem de ser usado na sujeição do trabalho. Essa interpretação gerou um debate sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, com outro pensador, Paul Sweezy, que se prolongou pelas décadas de 1950 e 1960. Sweezy (1977 apud MARIUTTI, 2004), ao se contrapor à tese defendida por Dobb, afirma que a principal característica da economia feudal é a de produzir 22 valores de uso. Assim, o valor de troca se desenvolve devido ao comércio. Ao contrário de Dobb, Sweezy (1977 apud MARIUTTI, 2004) denomina o período de transição do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista como um sistema de produção pré-capitalista de mercadorias, pois os elementos predominantes não eram feudais e nem capitalistas, propondo a coexistência de diversas classes dominantes. Ainda no âmbito dos estudos marxistas, o historiador inglês Perry Anderson publicou, na década de 1970, o livro Linhagens do Estado Absolutista, no qual trabalhou as origens do capitalismo a partir do surgimento do estado absolutista. Para o autor (ANDERSON, 1998), as estruturas de poder deveriam ser entendidas a partir das relações econômicas, com o objetivo de legitimar e garantir a dominação de uma classe sobre outra. Para Anderson (1998), não existiria uma ruptura no modo de produção na passagem do medievo para a modernidade e, dessa forma, o Estado absolutista não representaria uma reordenação do poder na sociedade: seu objetivo seria manter a ordem feudal. Isso não significa que essas estruturas possuíssem inovações, como a codificação do direito, a formação de exércitos regulares, a burocracia permanente, a unificação de sistemas tributários, a diplomacia; mas toda essa maquinaria estaria voltada para um objetivo que não é novo: a manutenção da ordem feudal, a dominação e a exploração dos camponeses a partir de uma relação que os mantém vinculados à terra. Contudo, Roiz (2009) assinala que todas essas análises naturalizavam o surgimento do capitalismo e que a passagem das sociedades para esse sistema se tratava de uma fatalidade ou necessidade a partir de uma visão linear e progressiva da história. Essa visão era assentada em um marxismo vulgar, em que as transformações econômicas, políticas e sociais deveriam ser compreendidas a partir da sucessão de “modos de produção”. Criticando essa versão determinista da história, a historiadora estadunidense Ellen Wood propôs uma nova interpretação para as origens do capitalismo em seu livro As Origens do Capitalismo, lançado em 1999 e publicado em português em 2001. De acordo com a autora (WOOD, 2001, p. 13-14): [...] na maioria das descrições do capitalismo e de sua origem, na verdade não há origem. O capitalismo parece estar sempre lá, em algum lugar, precisando apenas ser libertado de suas correntes — dos grilhões do feudalismo, por exemplo — para poder crescer e amadurecer. O efeito 23 dessas explicações é enfatizar a continuidade entre as sociedades não capitalistas e capitalistas e negar ou disfarçar a especificidade do capitalismo Diferentemente do apontado pela historiografia sobrea origem do capitalismo, Wood afirma que o capitalismo não é o mercado (já que não se trata de uma originalidade da modernidade), não é o Estado (pois havia outras instituições prévias responsáveis pela organização institucional do território), nem o dinheiro ou trabalho, que existiam em outras épocas. Não seriam esses fatores que explicariam o que é o capitalismo e sua especificidade nessa conjuntura histórica (WOOD, 2001). Para Wood (2001, p. 14), O capitalismo é um sistema em que os bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidos para fins de troca lucrativa; em que até a capacidade humana de trabalho é uma mercadoria à venda no mercado; e em que, como todos os agentes econômicos dependem do mercado, os requisitos da competição e da maximização do lucro são as regras fundamentais da vida. Por causa dessas regras, ele é um sistema singularmente voltado para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho através de recursos técnicos. Acima de tudo, é um sistema em que o grosso do trabalho da sociedade é feito por trabalhadores sem posses, obrigados a vender sua mão de obra por um salário, a fim de obter acesso aos meios de subsistência. No processo de atender às necessidades e desejos da sociedade, os trabalhadores também geram lucros para os que compram sua força de trabalho. Na verdade, a produção de bens e serviços está subordinada à produção do capital e do lucro capitalista. O objetivo básico do sistema capitalista, em outras palavras, é a produção e a autoexpansão do capital. Dessa forma, a autora desenvolve uma análise não somente sobre o que é o capitalismo, mas combate as versões deterministas da história, que abordavam o processo histórico na Europa Ocidental como uma sucessão de modelos de produção, como se o feudalismo fosse sucedido, naturalmente, pelo sistema capitalista. Wood afirma que, para além das variedades existentes nas relações feudais, de acordo com cada um dos países, a desintegração das relações vassálicas deu origem a outras tantas formas de organização econômica e social das quais o capitalismo, tal como estudamos em uma vertente mercantilista, foi apenas uma. A interpretação mais inovadora da autora reside, entretanto, no deslocamento da explicação da origem do capitalismo das atividades comerciais e mercantis para as atividades agrárias. Essa visão é compartilhada por Le Goff (2015, p. 99), em sua proposição de uma “longa Idade Média”, em que existe uma permanência no imaginário, nas práticas sociais, nas formas de trabalho e na economia de práticas do medievo: “[...] no início 24 do século XVI, e mesmo além dele, subsiste na Europa uma economia rural de longa duração. Essa ruralidade, então, até mesmo se reforça, dado que aqueles que enriquecem graças ao comércio e ao banco nascente reinvestem grande parte de seus benefícios nas terras. É o caso, na Itália, dos banqueiros genoveses e florentinos [...]” 3.3 As origens culturais da Idade Moderna A origem cultural da Idade Moderna, ou seja, o marco que representaria uma ruptura em relação ao medievo, foi consagrada historicamente como o Renascimento, caracterizado como um movimento intelectual, centrado no homem, propiciado pelo desenvolvimento comercial e os debates culturais realizados nas universidades e em círculos de saber, como entre os humanistas. Essa visão foi forjada no século XIX por historiadores como Michelet e Burckhardt, que, ao estabelecerem parâmetros para seus presentes, elaboraram determinadas narrativas para o passado. “Definido por Michelet como uma ‘passagem ao mundo moderno’, o Renascimento marca um retorno ao paganismo, ao gozo, à sensualidade, à liberdade. Foi a Itália que ensinou isso às outras nações europeias — em primeiro lugar à França, por ocasião das guerras da Itália, e depois à Alemanha e à Inglaterra” (LE GOFF, 2015, p. 49). Para Burckhardt (2009 apud LE GOFF, 2015, p. 54), “[...] diferentemente da Idade Média, em que o indivíduo se encontrava limitado pela religião, pelo ambiente social, pelas práticas comunitárias, o homem do Renascimento pode, sem entraves, desenvolver sua personalidade”. Percebemos com essas citações como ambos os autores se preocupavam em marcar uma ruptura entre a Idade Média e a Idade Moderna no âmbito da cultura. Jacob Burckhardt teria sido um dos primeiros a elevar a categoria de “Renascimento” a um conceito, categoria histórica possuidora de unidade e abrangência, que baliza e define a modernidade europeia (FLORENZANO, 1996). “Coube ao historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) o mérito de ter demonstrado — no ensaio O problema do Renascimento (1920) — que a palavra Renascimento, indicando um determinado período da civilização, entrou em uso, pela primeira vez, nos círculos intelectuais parisienses, na década de 1820” (FLORENZANO, 1996, p. 20). 25 O Renascimento, sem dúvida, foi um momento em que houve um importante desenvolvimento das artes plásticas e visuais, da ciência e do pensamento, e que trouxe um interesse acentuado pela produção cultural da Antiguidade Clássica greco- romana. Entretanto, segundo Le Goff (2015), as características utilizadas para assinalar as especificidades do Renascimento não seriam suficientes para conformar um novo período histórico. Algumas das formas de pensamento que marcariam a mudança, como o humanismo, o individualismo e o racionalismo podem ser encontradas desde o século XII na sociedade medieval. Mais recentemente, em livro publicado pela primeira vez em inglês em 1987, Peter Burke (2008) criticou as interpretações de Burckhardt, Michelet e outros, que confeririam ao Renascimento o caráter de um período específico, com características homogêneas, o que foi classificado por Burke como um “mito”. Para Burke (2008), esses autores procuraram estabelecer um contraste, um rompimento entre o Renascimento e a Idade Média, e entre a Itália e o restante da Europa, e, nessa empreitada, ignoraram que muitas das invenções celebradas durante o Renascimento têm sua origem na Idade Média, para além da sobrevivência de tradições. Em suas próprias palavras, Como todas as autoimagens, a dos académicos e dos artistas do Renascimento era tão reveladora quanto enganadora. [...] Estes homens deviam mais do que julgavam à “Idade Média” que tão frequentemente denunciavam. Se sobrestimaram a sua distância do passado recente, subestimaram a sua distância do passado longínquo, a Antiguidade que tanto admiravam. A sua versão do Renascimento era um mito na medida em que apresentava uma descrição enganadora do passado: que era um sonho, um desejo cumprido, uma reencenação ou representação do antigo mito do eterno retorno (BURKE, 2008, p. 12). Dessa forma, alguns autores têm sugerido compreender o Renascimento muito mais como uma síntese de inovações que foram sendo gestadas em um longo período, mais que características de um novo momento histórico. Isso não significa negar as inovações artísticas, científicas e filosóficas, mas, sim, compreendê-las como resultado de um processo que se dá durante o medievo. Do ponto de vista cultural, também existem os debates sobre a Reforma Protestante e seu caráter de rompimento em relação a uma ordem anterior. Mesmo entre os historiadores que aceitam uma longa duração para a Idade Média, existe uma relutância em prolongar esse período para a além do século XVI, em função das consequências culturais, econômicas, políticas e sociais da Reforma Protestante e da 26 Contrarreforma Católica. A quebra da unidade da Igreja Católica, as mudanças no mapa político europeu, as guerras em maior escala, como a Guerra dos Trinta Anos, são mudanças importantíssimas. Contudo, na defesa de seu argumento de uma “longa Idade Média”, Le Goff (2015) afirma, como sabemos, que a Idade Média é uma época profundamente religiosa,marcada pelo poderio da Igreja e pela presença da religião em todas as esferas do cotidiano. Sem dúvida alguma, a Reforma e as Guerras Religiosas representaram uma mudança, quase uma ruptura nesse cenário. A fé cristã apresenta-se doravante sob ao menos duas formas, a católica tradicional e a reformada nova, que também é chamada de protestante e que compreende diversas orientações: anglicanismo na Grã-Bretanha, luteranismo e calvinismo no continente, sendo que o primeiro se espalha preferencialmente nas regiões germânicas e nórdicas, e o segundo nas de língua romana (LE GOFF, 2015, p. 86). Entretanto, ainda assim, trata-se do cristianismo. Para além da adoção ou não da perspectiva de uma longa duração da Idade Média na questão religiosa, é importante assinalar que houve, sim, uma continuidade bastante importante: mesmo que tenha havido uma fragmentação da Igreja Católica, a religião seguiu como uma força dominante na vida social, intrinsecamente vinculada à política. Assim, a polarização entre o teocentrismo e o antropocentrismo, como se houvesse um processo imediato e definitivo de laicização e secularização das relações econômicas, políticas e sociais, é falsa. A conquista de Constantinopla e o fim do Império Bizantino em 1453 configuram o marco que inicia a Idade Moderna. Fonte: https://mundoeducacao.uol.com.br/ 27 4 A FORMAÇÃO DOS ESTADOS MODERNOS E O ANTIGO REGIME Antigo Regime foi uma expressão que se tornou conceito utilizado em referência ao conjunto de características de um período que corresponderia à Idade Moderna na Europa Ocidental: o Estado absolutista, a economia mercantilista e a sociedade do Antigo Regime. Cada uma dessas esferas, que correspondem, respectivamente, aos âmbitos político, econômico e social, é resultado das transformações pelas quais a sociedade europeia passou durante os séculos XV, XVI e XVII, ainda que mantenham traços indeléveis das estruturas feudais. 4.1 A formação dos Estados Modernos e o mercantilismo Existe uma relação intrínseca entre a centralização política e a formação do Estado Moderno, as grandes navegações e o desenvolvimento da política econômica que foi chamada de “mercantilismo”. Vamos compreender melhor esse processo e como se estabeleceu esse vínculo? A economia europeia atravessava uma crise entre os séculos XIV e XV em função da escassez de alimentos, da falta de mão de obra e da mortandade ocorrida em função da peste negra — todos esses fatores estão interligados. Havia necessidade de estabelecer novas rotas comerciais e novos mercados, além de encontrar fontes de metais precisos (para as cunhagens de moedas e para satisfazer o luxo das cortes). No século XV, o comércio de produtos orientais era monopolizado pelas cidades italianas, como Veneza e Gênova, que dominavam as rotas no Mar Mediterrâneo, fornecendo esses produtos a altos preços no mercado europeu. Além disso, com a tomada de Constantinopla, em 1453, pelos turcos otomanos, o caminho para o oriente se torna bastante perigoso e, a partir de então, os reis começaram a patrocinar a busca por novas rotas. Mercadores do resto do continente também tinham razões para voltar os olhos para o exterior: o comércio entre Europa, África e Oriente vinha, há algum tempo, contando com a presença de intermediários muçulmanos, venezianos e nômades árabes. Nesse contexto, qualquer estratégia de expansão marítima e comercial exigia a busca de rotas alternativas para alcançar as áreas fornecedoras de cerâmicas, especiarias e tecidos (FALCON, 1996). 28 Nesse momento da discussão, é importante entender como se dá a relação que estamos procurando estabelecer entre o Estado, o mercantilismo e as grandes navegações. É preciso, para isso, diferenciar o processo de centralização do poder, o Absolutismo e a formação dos Estados Modernos ou Estados-nações. Por vezes, essas expressões são tratadas como sinônimos na abordagem da “formação dos Estados Modernos” ou como uma sucessão de acontecimentos, mas fazem referência a processos distintos que não tinham necessariamente uma lógica de encadeamento. Nesse sentido, é importante lembrar que o processo de centralização do poder inicia-se na Baixa Idade Média, em torno do século XII, e faz referência ao aumento do poder dos reis frente à nobreza feudal no que diz respeito a certas questões burocráticas, como o sistema de justiça e o tributário. Já o absolutismo surge e se consolida como sistema de governo em torno dos séculos XVI e XVII, mas isso não ocorreu da mesma forma em todos os países, o que gerou formas diferentes de regime absolutista, sendo algumas práticas, tais como a existência de assembleias com representantes dos diferentes estamentos da sociedade, um verdadeiro limitante desse poder “absoluto” dos reis (ANDERSON, 1989). Como afirma Falcon (1996, p. 29): O Estado absolutista é, antes de mais nada, um, Estado Moderno, ou seja, um tipo de Estado que é resultante de vários séculos de formações e de lutas, no final da idade Média, levadas a cabo contra os universalismos representados pelo Papado e pelo Império e também contra as tendências localistas dos senhorios feudais e das comunas urbanas. Afirmando-se como Estado territorial, governado por um príncipe, através de uma complexa política de concentração do poder e centralização administrativa, o Estado moderno define-se rapidamente como Estado monárquico absolutista, isto é, pelo fato de que todo o poder está nas mãos de um rei ou príncipe que é, de fato e de direito, o seu soberano. Simultaneamente, esse Estado pressupõe a existência de um aparelho burocrático e militar que não só execute as determinações do soberano, mas dê na realidade uma forma visível e concreta à própria ideia de poder que o monarca personifica. O Estado é o Rei, porém este é na verdade o conjunto de instâncias e agentes burocráticos que são os seus oficiais. Por fim, a ideia de nação, mesmo que presente em debates e discussões no século XVII, só se consolidará na Europa Ocidental no século XIX. Portugal foi o Estado Moderno pioneiro nas chamadas “grandes navegações”, rotas marítimas que procuravam alcançar o Oriente através da navegação oceânica e que levaram à conquista e à colonização do território da América portuguesa. O pioneirismo português se explica pela precocidade na centralização do poder político, 29 capaz de mobilizar os recursos necessários, a aliança do Estado com a burguesia, o desenvolvimento tecnológico e a posição geográfica privilegiada. O processo de expansão marítima, que será seguido por Espanha, França e Inglaterra, vincula-se a uma prática econômica que recebeu o nome de mercantilismo. Essa concepção econômica partia do pressuposto de que a medida da riqueza de um Estado vinculava-se à quantidade de metais preciosos que possuía. Surgiu durante o renascimento comercial das cidades e com a emergência da burguesia, que transformou as relações de trabalho e passou a exigir a monetarização das relações comerciais. De acordo com Silva e Silva (2009, p. 283), [...] a definição mais aceita de mercantilismo informa que esse termo compreende um conjunto de ideias e práticas econômicas dos Estados da Europa ocidental entre os séculos XV, XVI e XVII voltadas para o comércio, principalmente, e baseadas no controle da economia pelo Estado. Mercantilismo dá nome, nesse sentido, às diferentes práticas e teorias econômicas do período do Absolutismo europeu. Cabe lembrar que esse conceito não é contemporâneo aos fatos que nomeia; foi empregado por liberais no final do século XVIII, com tom depreciativo, para se referir às práticas de intervenção do Estado na economia. Fonte: https://www.suno.com.br/artigos/mercantilismo/ Falcon (1996, p. 8), afirma que “[...] foram seus adversários, os fisiocratas do século XVII e os economistas da escola clássica, dos séculos XVII/XIX,que de certa forma o construíram, denominando-o, à época, ‘sistema mercantil’ ou ‘do comercio’. 30 Foram ainda seus admiradores os membros da chamada ‘escola histórica alemã’, já no final do século XIX, que deram o nome que se fixou: Mercantilismus”. A política mercantil, segundo essas teorias, entendia a riqueza e o desenvolvimento como dependentes de um Estado, que deveria unificar a tributação, controlar a atividade produtiva e estabelecer um sistema alfandegário para proteger os produtores do seu país. O Estado deveria manter uma balança comercial favorável, ou seja, exportar mais do que importar. Devido à necessidade de manutenção dessa balança favorável, associada ao metalismo, os governos mercantilistas foram levados a argumentar em favor da autossuficiência interna e a prática do monopólio, ainda que, em inúmeras ocasiões, esse monopólio não tenha sido respeitado, porque, para os comerciantes, era muito mais interessante comerciar com o maior número de clientes possíveis. Assim, podemos afirmar que, para além de nomenclaturas como “mercantilismo”, a economia da Europa Ocidental durante a Idade Moderna foi marcada por práticas tais como o metalismo (quantidade de metais preciosos por ele acumulado, convertido ou não em moedas e títulos), a balança comercial favorável (regulação das exportações e importações) e o protecionismo estatal (intervenção do Estado na economia) (FALCON, 1996). Foram subvencionadas indústrias para garantir o abastecimento do mercado interno, mas, como a riqueza só podia ser medida a partir do comercio exterior e do fluxo de metais em seu território, a sustentação do sistema mercantil vai depender das colônias. O governo vai licenciar companhias para o comércio ultramarino e promover a organização dos territórios ocupados. Além disso, é preciso relativizar, a partir de estudos historiográficos mais recentes, o alcance dessa industrialização (Portugal, por exemplo, seguirá como um país majoritariamente agrário) e a ideia do “pacto colonial”, ou seja, relações comerciais restritas entre metrópole e colônia, em que a primeira extraia matéria-prima e metais preciosos enquanto a segunda comprava os produtos manufaturados das metrópoles (FALCON, 1996). Segundo as teorias econômicas, existiram diferentes formas de mercantilismo de acordo com cada um dos países. Lembremos que, como assinalado por Silva e Silva (2009, p. 283): [...] o mercantilismo não existiu como um conjunto coeso de ideias e práticas econômicas, nem como grupo de pensadores da economia com uma filosofia comum. De fato, sob a definição de mercantilismo, foram reunidos pelos críticos diferentes autores e diferentes políticas econômicas, com pouco em comum, a não ser o fato de pertencerem a países absolutistas. 31 O critério para definir cada tipo de mercantilismo foi a posse ou não de territórios coloniais e que tipo de produto forneciam. A expansão marítima europeia trouxe o domínio de novos territórios, novas fontes de riquezas e mão de obra à Europa. A estruturação do sistema de exploração colonial só foi possível após o entendimento da necessidade de gerar riqueza nesse território. Porém, se analisarmos a economia do período na Europa Ocidental, vemos uma série de características marcantes das estruturas econômicas feudais, reforçando o argumento de que a Idade Moderna é um período marcado por rupturas e continuidades coexistentes em relação ao medievo. Um dos aspectos dessa continuidade da estrutura feudal é a estrutura social: “[...] se o mercantilismo tem sua contraparte política no Estado absoluto, no campo social tem relação com a estrutura social comumente conhecida como sociedade do Antigo Regime. Ou seja, a estrutura social estamental, ainda baseada na sociedade de ordens do medievo, porém com novos elementos, dos quais a burguesia é o principal fator de diferenciação” (SILVA; SILVA, 2009, p. 283). 4.2 Fatores culturais da formação do Estado Moderno e do sistema mercantilista Quando falamos em fatores culturais relacionados à formação do Estado Moderno e às práticas mercantilistas, compreendemos cultura de uma forma ampla, não apenas como expressão de certos artistas ou intelectuais. A ideia de cultura deve ser ampliada de forma a abarcar as transformações pelas quais passa a vida pública e privada, a conformação da ideia de indivíduo e coletividade, as novas formas de o ser humano conceber a si próprio e entender o mundo, entre outras, para além da cultura material de uma sociedade. Assim, salientamos que a expansão comercial mercantilista, fomentada por indivíduos, mas possibilitada pela existência do Estado, permitiu não somente o enriquecimento para os burgueses e o acesso a determinados produtos, mas também que grandes setores das sociedades da Europa Ocidental tivessem contato com costumes, hábitos e práticas de outros povos, como usavam esses mesmos produtos, de que forma se vestiam, influenciando profundamente a vida cultural europeia. Essas modificações alteraram a alimentação, as casas e as formas de habitar, a vestimenta, 32 mas também as relações de trabalho, já que o “luxo” exigia transformações nos ofícios e na própria organização do trabalho. “Dentro de cada país, o luxo tem sempre seus defensores e seus inimigos, pois, enquanto estes apontam os malefícios que ele traz à degeneração dos costumes, a quebra das hierarquias, os vícios , aqueles exaltam o fato de que é a produção do luxo que assegura emprego e sustento a milhares de pessoas que, de outro modo, ficariam ociosas e famintas” (FALCON, 1996, p. 76). O sociólogo polonês Norbert Elias (1994) nos ajuda a compreender a história dos costumes a partir da formação do Estado Moderno e suas influências na conformação do que era a “civilização”. Em outras palavras, há uma íntima relação entre o processo de centralização política e o surgimento do Estado Moderno e a conformação de determinada cultura e sociedade. Nos dois volumes da obra O Processo Civilizador, lançada em 1939, Elias contribui nas análises sobre os efeitos da formação do Estado Moderno nos costumes e na moral dos indivíduos. Vejamos o que diz o autor sobre a formação do Estado Moderno: Com a divisão de funções, aumentou a produtividade do trabalho. A maior produtividade era precondição para a elevação dos padrões de vida de classes que cresciam em número; com a divisão de funções, acentuou-se a dependência das classes superiores; e só num estágio muito adiantado dessa divisão de funções é que, finalmente, tornou-se possível a formação de monopólios mais estáveis de força física e tributação, dotados de administrações altamente especializadas, isto é, a formação de Estados no sentido ocidental da palavra, através dos quais a vida do indivíduo ganhou, aos poucos, maior “segurança”. O aumento da divisão de funções, porém, colocou também maior número de pessoas, e áreas habitadas sempre maiores, em dependência recíproca, exigiu e instilou maior contenção no indivíduo, controle mais rigoroso de suas paixões e conduta, e determinou uma regulação mais estrita das emoções e — a partir de determinado estágio — um autocontrole ainda maior (ELIAS, 1994, p. 256). Em outras palavras, para o autor, a estrutura do comportamento dito “civilizado” está estreitamente inter-relacionada com a organização das sociedades ocidentais sob a forma de Estados. No primeiro volume, Elias dedica-se ao estudo das chamadas “boas maneiras”, dos costumes, hábitos e práticas presentes na estrutura emocional e mental da aristocracia que, no final da Idade Média, passam a ser apropriados pela burguesia, que precisa ser “civilizada”, trabalhando com os conceitos de “cultura” e “civilização” presentes em livros de boas maneiras, em obras de arte, em romances e outros documentos históricos da Alemanha, da França e da Inglaterra (ELIAS, 1994). 33 Mas qual é avinculação dessas mudanças comportamentais e de pensamento com a estrutura do Estado? Apesar desses costumes, hábitos e práticas nem sempre procederem do Estado (por meio de leis), alguns desses princípios impunham comportamentos e regras que, se não fossem seguidos, poderiam gerar certas penalidades, como desaprovação ou repreensão. A história das boas maneiras está diretamente relacionada às regras de comportamento social. Essa história refere-se não apenas a questão da etiqueta, mas também diz respeito à moral, à ética, ao valor interno dos indivíduos e aos aspectos externos que se revelam nas suas relações com os outros. Todas as sociedades, ao longo da história, criaram normas e princípios com a finalidade de orientar as relações entre grupos e pessoas (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2012, documento on-line). De acordo com Oliveira e Oliveira (2012, documento on-line), em relação às mudanças destacadas por Elias, “[...] no que diz respeito aos costumes, as transformações que ocorrem estão relacionadas à dinâmica das classes sociais, ou seja, quando a classe social superior procura distanciar-se das outras classes sociais, criam-se novos padrões de comportamento que, historicamente, acabam por ser adotados pelas outras classes”. Com a passagem do tempo, os padrões de comportamento aprendidos deixam de ser conscientes e passam a ser naturalizados, conformando a personalidade dos indivíduos. Daí, surge o autocontrole, uma forma de introjeção de aspectos legais e normativos provenientes do exterior. Ou seja, ao mesmo tempo que a estrutura do comportamento “civilizado” está intimamente relacionada com a organização das sociedades ocidentais na forma de estados, na medida em que esses comportamentos esperados são introjetados, é cada vez menos necessária uma regulação do Estado nos costumes, nos hábitos e nas práticas dos indivíduos. O desenvolvimento da constituição psíquica dos indivíduos tem, então, uma relação direta com o desenvolvimento das estruturas sociais ocidentais modernas: Os principais elementos deste processo de civilização foram: a formação do Estado, o que significa dizer o aumento da centralização política e administrativa e da pacificação sob o seu controlo, processo em que a monopolização do direito de utilização da força física e da imposição de impostos, efetuada pelo Estado, constitui uma componente decisiva; um aumento das cadeias de interdependências; uma mudança que é inovadora no quadro de equilíbrio dos poderes entre as classes sociais e outros grupos, o que é o mesmo que dizer pelo processo de ‘democratização funcional’; a elaboração e o refinamento das condutas e dos padrões sociais; um aumento concomitante da pressão social sobre as pessoas para exercerem o 34 autocontrole na sexualidade, agressão, emoções de um modo geral e, cada vez mais, na área das relações sociais; e, no nível da personalidade, um aumento da importância da consciência (‘superego’) como reguladora do comportamento (ELIAS, DUNNING, 1992, p. 30). A partir dessa citação, torna-se explícita a compreensão do autor de que existe uma mútua influência dos níveis individual e coletivo, e do público e do privado, na configuração das relações sociais. Em relação ao período que estamos estudando, a formação dos Estados Modernos, acompanhamos o aumento do poder e do prestígio social da burguesia, que passa a realizar uma figuração da “sociedade de corte” e, ao mesmo tempo, uma proximidade entre a aristocracia e o rei, em função das atribuições de cobrança de impostos e da conformação dos exércitos profissionais. A pressão da vida de corte, a disputa pelo favor do príncipe ou do ‘grande’ e depois, em termos gerais, a necessidade de distinguir-se dos outros e de lutar por oportunidades através de meios relativamente pacíficos (como a intriga e a diplomacia), impuseram uma tutela dos afetos, uma autodisciplina e um autocontrole, uma racionalidade distintiva de corte (ELIAS, 1994, p. 18). As transformações ocorridas no âmbito privado também tiveram reflexos na esfera pública. Assim, houve uma preocupação de que as sedes administrativas das cidades e dos reinos fossem luxuosas, assim como as igrejas e outros espaços públicos, como as praças, os jardins e certas festas, com banquetes e desfiles. Os contatos estabelecidos com outros povos também permitiram a assimilação de saberes de outras culturas e fomentaram o desenvolvimento de novos conhecimentos na Europa Ocidental. Foi a partir da expansão europeia pelo mundo que houve o contato com povos cujos costumes, língua e produtos eram muito diferentes. Para alcançar esses povos — e, também, seus territórios, na lógica colonial europeia — foi necessário o desenvolvimento de saberes relacionados à cartografia e à geografia. Houve também uma transformação dos registros: grandes navegadores passaram a escrever “diários de bordo”, que serviam como orientações. Do ponto de vista da compreensão do ser humano sobre si e sobre o mundo, houve: [...] o abandono de concepções e preocupações construídas em função de uma ordenação sobrenatural ou extraterrena do mundo e do homem, no homem em si mesmos [e] o avanço da secularização, quer dizer, o recuo das formas de pensamento e das instituições eclesiásticas, a afirmação do Estado como realidade própria, o desenvolvimento de teorias científicas e filosóficas apoiadas no racionalismo e no humanismo, renegando a plano secundário o 35 primado da teologia; [e] a afirmação, pouco a pouco, do individualismo burguês. Assim, durante o processo de transição, o universo ideológico medieval (ou católico- -feudal) cede lugar ao universo ideológico moderno (secular, imanentista, racionalista, individualista) ou burguês (FALCON, 1996, p. 37-38). 4.3 O Antigo Regime A expressão “Antigo Regime” é facilmente encontrada na história da historiografia, em livros didáticos e outros materiais encontrados na internet. Costumeiramente, é utilizada para se referir à organização econômica (mercantilismo), política (Estado absolutista) e social (sociedade estamental ou de ordens) surgida na Europa ao final da Baixa Idade Média, consolidando-se no século XVII. Mas você sabe como surgiu o termo Antigo Regime e a partir de quando ele se consolidou na historiografia? Para Florenzano (1996), foi Alexis de Tocqueville, na conjuntura posterior à Revolução Francesa (1789), que converteu a expressão “Antigo Regime” em um conceito, atribuindo a ele o caráter de anterioridade à Revolução, que não significou uma ruptura na realidade, mas, sim, nas “consciências”: É sabido que uma vez iniciada a Revolução francesa, isto é, pelo menos desde o mês de julho de 1789, os revolucionários logo batizaram de "Antigo" o "Regime" que eles estavam pondo à baixo. Em suma, desde a Revolução francesa, todos falam em Antigo Regime para designar o período imediatamente a ela anterior. Mas ninguém antes de Tocqueville havia dado ao termo o estatuto de um conceito, de uma categoria histórica definida. Já foi notado que o Antigo Regime tem um momento preciso de falecimento, isto é, julho-agosto de 1789, mas não tem um momento preciso de nascimento. (FLORENZANO, 1996, documento on-line). Durante esse período, a organização da sociedade foi marcada pela continuidade da sociedade estamental ou de ordens, característica da Idade Média, e que tinha como fundamento de diferenciação social o privilégio de nascimento, ou seja, a riqueza não se constituía como um critério de hierarquização social. “A ideia de estamento expressa uma concepção de sociedade na qual os homens se encontram agrupados em corpos sociais distintos e hierarquizados em função da importância que têm, ou acreditam ter, para o conjunto da sociedade” (RODRIGUES; FALCON, 2006, p. 39). A partir dessa divisão estamental, estabelecem-se os direitos e os deveres, que, em muitos casos configuravam-se como privilégios.
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