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RECIAÇÃO INTRODUTÓRIA O ESTILO DE PENSAMENTO E DE ESCRITA A obra de um grande psicanalista deve ser conhecida não só pelas teses, teorias e conceitos que elabora e p r o p õ e , e tampouco apenas pelas i n o v a ç õ e s t é c n i c a s que introduz. E m todos esses aspectos, como veremos adiante, Melanie K l e i n foi extremamente criativa e original. No entanto, há um plano no qual o pensamento psicanal í t ico de cada um, na sua singularidade, precisa ser captado, se quisermos efetivamente entrar no mundo que é p r ó p r i o a cada grande autor: o plano do estilo e das es t ra tég ias re tór icas . Muitas simpatias e antipatias, acolhimentos e re je ições se dão a partir desse n í v e l . I s so procede e m r e l a ç ã o a todos os grandes autores da psicanálise, mas é particularmente verdadeiro nos casos de Melanie K l e i n e L a c a n , en t re a lguns out ros . C o m e c e m o s , por tan to , procurando uma b r e v e c a r a c t e r i z a ç ã o do es t i lo de e s c r i t a e pensamento kleinianos. Iniciemos com uma espéc ie de "conf i s são" : Quando, por volta do começo dos anos cinquenta, eu me propus a me familiarizar com a obra de Melanie Klein, (...) chocava- me com um outro obstáculo: pan mim, não foi o da língua inglesa, que me é familiar, mas o encontro com um texto que me confrontou com a experiência estranha, insuportável, do mundo fantasmático da violência. Eu abordava ceras desconhecidas, o continente kleiniano. O choque foi rude para aguém que na época havia rompido com o classicismo da saga do ídipo: eu me choquei contra uma 50 MEL/ .ANIE K L E I N - E S T I L O E PENSAMENTO nnitologia comipletamente diferente, bárbara, desrruesurada, onde o parcial, o fnagmentado e o cindido vinham tomair o lugar das figuras trágicass mas inteiras do mito edipiano. O mundjo do fantasma "lcleiniano" era outra c:oisa. E , assim como eu, a comunidade analítica havia percebido isto. Melanie K l e i n , maldita, rejeitada, marginalizada, sobretudo "tteorizada" até a trama molecmlar de sua obra, ocupava o lugar de: out-sider. O excesso deste "baile sangrento", esta carnif ic ina, estas eviscerações sei podiam suscitar resistência (Smirnoff, "Melanie K l e i n ou Ia viollence de 1'inconscient", p. 84-5, grifo do autor).1 A c i t a ç ã o do texto de V i c t o r S m i r n o f f , e s c r i t o pa ra a c o m e m o r a ç ã o na F r a n ç a dos 100 anos do nascimento da autora, em 1982, e x p r e s s a bem a es t ranheza e o choque que seu est i lo p rovocou em uma boa parte da comunidade p s i c a n a l í t i c a , em especial na americana e na francesa. Me lan ie K l e i n c o m e ç o u sua obra a partir de " o b s e r v a ç õ e s anal í t icas" do própr io filho, ou seja, trata-se de uma teorização que, literalmente falando, começou "em casa", e possuía , desde o início, um cará ter menos a c a d é m i c o e mais informal. É preciso lembrar que ela não tinha qualquer formação universi tária e tampouco treino na escri ta c i e n t í f i c a ou f i l o s ó f i c a , o que frequentemente era lembrado pelos seus opositores, mas mesmo por seus amigos e simpatizantes, que reconheciam nela a ausênc ia de traquejo para a comunicação formal e s is temát ica . A l é m disso, desde que foi para a Inglaterra, Melanie c o m e ç o u a tentar escrever em inglês, uma l íngua que lhe era estranha e não familiar, o que cont r ibuía para as dificuldades na sua comunicação . A o falar o inglês , por exemplo, ela jamais conseguiu se l iv ra r de um c a r r e g a d í s s i m o sotaque. Na escrita, dependia de revisores e ajudantes. Mas M e l a n i e K l e i n sempre v a l o r i z o u , a c i m a ds tudo, a importância da observação e do contato direto com o piciente, e mui t a s vezes i n s i s t i i no fato de es tar apenas observando e descrevendo p roces sosps íqu icos profundos — o que, naturalmente, 1. In: Gammil et alii. Mélinie Klein aujouixfhui. Lyon: Cesura Ly«n Édition, 1985. p. 83-93. APRECIAÇÃO INTRODUTÓRIA DO EESTILO DE PENSAMENTO E ESCRITA 51 não faz muito sentido para uma imente um pouco mais sofisticada em te rmos f i l o s ó f i c o s , como, em ge ra l , a dos ps icanal i s tas franceses. 2 Melanie fala, por exerrnplo, em "observar a mente de um r e c é r n - n a s c i d o " , colocando-se, i inclusive, em p o s i ç ã o superior a Freud, que apenas teria feito inteirpretações indiretas e inferências. Podemos conjeturar que a suai fa l ta de f o r m a ç ã o a c a d é m i c a obr igou-a a dar v a l o r aos instrumentos de que dispunha para trabalhar: um apaixonado interesse pelas ques tõe s ps icanal í t icas , uma grande capacidade de leitura da obra de Freud, Abraham, Jones e Ferenczi , e um ardente desejo de tentar oferecer a si mesma e aos pacientes algum tipo de c o m p r e e n s ã o e de insight que pudesse d iminu i r a intensidade do sofrimento p s í q u i c o e suas nefastas c o n s e q u ê n c i a s . E m todas essas atividades, a in tu ição e o contato direto com os processos e f enómenos levavam a dianteira sobre a capacidade de cons t rução racional e s is temát ica de conceitos. Mas t a m b é m devemos supor em Melanie K l e i n (e por que não? ) uma ardente a m b i ç ã o de escrever uma obra cr ia t iva e que viesse a ser reconhecida, o que confere, às vezes, um certo tom de a r rogânc ia a seus t ex tos . H a v i a , p a r e c e , u m a demanda r e p r i m i d a por reconhecimento, que encontrava finalmente na psicanál ise seu canal de sa t i s fação . N ã o podemos t a m b é m deixar de inclui r , entre os r ecur sos de que d i s p u n h a no i n í c i o de sua c a r r e i r a , a s u a exper iência analí t ica com Ferenczi , acrescida mais tarde da segunda aná l i s e com Abraham e de u m a s i s t e m á t i c a e apaixonada auto- análise. A exper iênc ia com Ferenczi , em particular, foi importante para o impulso inic ia l em uma v i a inovadora - a da ps icaná l i se de cr ianças - e corajosa — a p s i c a n á l i s e de seu p r ó p r i o filho E r i c h . Na verdade, mesmo entre seus discípulos ingleses da primeira hora, como Suzan Isaacs, observa-se uma preocupação em diferenciar os níveis do conhecimento. As fantasias inconscientes, por exemplo, tema que coube a Isaacs aprofundar, são construções eóricas inferidas e não diretamente observadas, embora ela mantenha qut essas fantasias operem na realidade psíquica e deixem à mostra mui ta de seus efeitos estruturantes ou patogênicos (cf. Nature and functioi of the phantasy. In: Klein et alii, Developments of Psycho-knalysis. Lcndon: Hogarth, 1952). 5 2 M E I L A N I E K L E I N - E S T I L O E PENSAMENTO F e r e n c z i sempre íse notabi l izou pelo e s p í r i t o r e v o l u c i o n á r i o e destemido em mateéria de inovações técnicas e pela c r e n ç a de que todos pod iam ser «ajudados pela p s i caná l i s e , contrariando certas r e t i c ê n c i a s do próp;rio Freud. K l e i n foi, sem dúvida , mo estilo e nas e s t r a t é g i a s c l í n i c a s e t e ó r i c a s , como anal i s ta de c r i a n ç a s , de p s i c ó t i c o s e de bordedines, uma au t ên t i ca d i s c í p u J a de Sandor Fe rencz i . A» sua carreira académica havia sido impedida pejo casamento e pelo nascimento dos fi lhos, e sabe-se que o seu interesse pelo estudo e pela pesquisa teve de aguardar muito tempo antes de se realizar. A descoberta tardia de que se precipitara em um casamento infe l iz e as tarefas de m ã e e dona de casa expuseram-na a um longo pe r íodo de frustrações e espera, com episódios de depressão , que se transformaram em uma longa crise existencial. E l a buscava dar sentido à sua vida, mas estava fora do ambiente in te lectual que tanto amava, e impossibilitada de dedicar-se a um trabalho que realmente a interessasse. E s s a longa espera deve ter intensificado muito o desejo de dedicar-se ao estudo e à pesquisa. Melanie foi aceita na Sociedade Psicanal í t ica de Budapeste logo após a leitura deseu primeiro trabalho cl ínico, mas a inserção mais profunda em Ber l im e Londres, dificultada por preconceitos quanto à sua falta de formação académica , colocou novos obs tácu los a serem superados. E s s e s dados b i o g r á f i c o s ajudam a compreender a intensidade passional de seu estilo, que revela um extenuante combate contra tudo que se opusesse ao seu desejo de desenvolver um pensamento e uma obra pessoal e científica. Seu esti lo revela que, desde o p r i n c í p i o , K l e i n aprendeu a colocar ênfase e valorizar a experiência pessoal. Isso pede ter sido uma estratégia pa ra enfrentar o preconceito alheio e a p r ó p r i a sensação de insegura iça , mas, efetivamente, tal fato lhe dava uma liberdade diante de seus mestres, inc lus ive Freud, de que poucos psicanalistas iniciantes d i s p õ e m . E e la era uma iniciante, embora tivesse cerca de 40 aios quando c o m e ç o u a exercer a po f i s s ão de psicanalista e, ao m e m o tempo, a criar novas ideias e técnicas de trabalho. A sua condição de mãe de vários filhos parece, le alguma maneira, t ê - l a au torzado a fazer suas p r ime i r a s o b í e r v a ç õ e s analíticas de c r i anças tornando-as merecedoras de comideração . APRECIAÇÃO INTRODUTÓRIA DO ESTILO D E PENSAMENTO E ESCRITA ' 5 3 E c o m o se f izesse do que até ientão fora um impedimento - a maternidade - a p r ó p r i a plataforma para seus novos voos. Esse pos ic ionamento , por ass im d i ze r , e p i s t e m o l ó g i c o , de índo le fortemente empirista e clínica, e.xpressa-se no estilo predominante de seus textos: a d i m e n s ã o fenonnenológica e experiencial aparece sempre em evidência , mas mesclada com a d i m e n s ã o teórica, mais e s p e c u l a t i v a e m e s m o m e t a p s i c o l ó g i c a , p roduz indo , com frequência , uma teor ização h íbr ida , em que a proximidade com a c l ín ica (e, por trás desta, com a e x p e r i ê n c i a pessoal) é usada para dar valor de verdade à s teorias. Mui tas vezes, K l e i n faz teoria, e teoria altamente especula t iva , sobre processos e mecanismos ps íquicos arcaicos e profundos, mas expressa-se como se estivesse apenas descrevendo o que pode captar por meio de o b s e r v a ç õ e s cl ínicas a olho nu, pela v ia da in tu ição . E s s a mistura traz vantagens e desvantagens. U m a desvanta- gem é a frequente confusão entre o que veio predominantemente da exper iênc ia c l ín ica - sem precisarmos supor que algo venha exclu- sivamente da cl ínica e sem a m e d i a ç ã o de alguns pressupostos ou vért ices teór icos - e o que, definitivamente, é uma cons t rução teó^ rica a ser tomada como uma conjetura, uma h ipó t e se , algo a ser discutido e "testado". Não se distinguindo um plano do outro, a ten- dência é a um certo dogmatismo, pois quase tudo o que Melanie K l e i n afirma aparece como totalmente fundado na obse rvação — e esta seria indiscut ível . Ao longo de toda a sua vida, e principalmente na idade mais avançada , todos os que a conheceram se surpreen- d iam com a sua aparente s e g u r a n ç a , que c h e g a v a a be i ra r a arrogância nas s i tuações de disputa teór ica . É como se e la não se dispusesse a pôr em ques tão e n ã o permitisse que se duvidasse da- quilo que v inha da exper iênc ia e ca o b s e r v a ç ã o cl ínica, e que lhe dava as bases para uma c o n v i c ç ã o n a b a l á v e l . Por outro lado, a mescla de exper iênc ia e e specu lação t e ó r i - ca e m e t a p s i c o l ó g i c a faz c o m q i e em Melan ie K l e i n nunca a netapsicologia tenda a s e tornar í u t ô n o m a em re lação à c l í n i c a . Seus textos devem sempre ser l i d o í como implicados pela e na c l í - iiica ps i cana l í t i ca , e mais, d e v e m sempre ser lidos à luz e sob o pano de fundo da exper iênc ia cl inica do leitor, isso, al iás , s e rá u m a característ ica da " p s i c a n á l i s e inglesa", seguidora mais ou menos 5 4 MELLANIE K L E I N - E S T I L O E PENSAMENTO obedien te da trilhai kleiniana ( B i o n , Winnicott e t c ) , em contrapo- sição a o s franceses;, que muitas vezes se extraviam e m uma certa t e n d ê n c i a teoricista que chega às raias das filosofadas e literatices. O ú l t i m o livro de K l e i n - um imenso volume publicsido postuma- mente e dedicado apenas a um caso cl ínico, mas no qusal estão todas as e l a b o r a ç õ e s teór icas que ela j á produzira até a épocca do atendi- mento ( o s achados da década de 1930 e inícios da de 1940), mas revistas à base das suas teorias posteriores nas duas décadas se- guintes — dá uma medida do seu apego à exper iênc ia psicanal í t ica em o p o s i ç ã o aos voos demasiadamente livres e abstratos dos psi- canalistas que se ju lgam intelectuais. Outro aspecto de seu estilo é a osc i lação de enfoques, isto é, ora o olhar se concentra nos processos evolutivos e nas etapas de desenvolvimento, seguindo a l inha c r o n o l ó g i c a do tempo, ora o olhar é captado pelo dinamismo psíquico e pela complexidade deste, em que di ferentes aspec tos , per tencentes a d i v e r s a s fases , encontram-se combinados e imbricados. E esse cruzamento do vér t ice gené t i co com o estrutural e d i n â m i c o que, às vezes, dá a sensação de "enrolamento re tó r i co" ao trabalho de K l e i n . Diga-se, ainda, que poucos autores da p s i c a n á l i s e foram tão sens íve i s à complex idade da v i d a men ta l desde seu c o m e ç o , desde o nascimento. Por isso : embora Melanie K l e i n procure acompanhar na-clínica e na teoria os processos por meio dos quais o psiquismo e a personalidade do i n d i v í d u o se. formam e se transformam, e procure i d e n t i f i c a r as o p e r a ç õ e s de todos os mecan i smos r e s p o n s á v e i s pe los processos de desenvolvimento sadios e patológicos, a d imensão h i s tó r i ca nunca se descola da d i m e n s ã o dinâmica e mesmo estrutural. Muitas vezes, alguns auores como Melanie Klein e Donald Winnicott são apresentados cono teóricos de uma certa "psicolcgia-do desenvolvimento". Nada mais falso: Melanie Klein e, da nesma forma, Winnicott são psicaialistas, e, nessa medida, compiometidos com n o ç õ e s de tempoialidade e história muito mais cortplexas que aquelas implicadas ns noção de "desenvolvimento". A psicanálise k e i n i a n a , como qualquer outra, nas mais decisivamente do queem muitos outros casos, nos exije fazer a diferença entre a c r i a r ç a e o infantil. A s teorias de Melai ie Kle in APRECIAÇÃO INTRODUTÓRIA DO E S T I L O DE PENSAMENTO E ESCRITA 5 5 procuram ser fiéis, no conteúdo <e na forma, nas teses e no estilo, a essa d imensão do infantil, e is;so corresponde a uma dimensão atemporal - melhor dizendo, a aligo sem tempo, zeitlos - operando em todos os processos p s í q u i c o s temporais, i n c l u s i v e nos de desenvolvimento. A " c r i a n ç a " é uma categoria eminentemente temporal: a criança es tá no tempo e, por isso, um belo dia a infância j á ficou para trás. O "infant i l" permanece, embora ele também seja objeto de t rans fo rmações e e laborações . Como bem observa Ju.liet M i t c h e l l 3 no texto de i n t r o d u ç ã o a uma antologia das obras de Melanie K l e i n , o infantil a que essa psicanalista tanto se dedica é justamente o que resiste a uma simples his tor ic ização, o que resiste às formas mais c láss icas e lineares de temporalidade. O estilo de Melanie Kle in tenta dar conta das ar t iculações entre o infantil e o psiquismo, seja o infantil da cr iança, seja o do adolescente, seja o do adulto, seja o do a n c i ã o , e isso impl ica transitar, mesmo sem qualquer aparente sofist icação teórica, pelos meandros das questões filosóficas relativas ao tempo, ao a lém do tempo e ao sem tempo. E é desse infantil que se trata no que mais chama a a tenção de todos os leitores de K l e i n , como foi o caso de Victor Smirnoff: a sua fidelidade à v io lênc ia dos processos — a força da libido, da destrutividade e do superegoe s t á na raiz da crueza conceituai e imagética de seus relatos ("esta carnificina, este baile sangrento"), o que provoca um contato de início insupor táve l com as fantasias s os desejos m a i s a r ca i cos , gerando u m a i n e v i t á v e l onda de resistência. Mas, acreditamos, a res is tência à ps icanál ise não é algo extrínseco à ps icaná l i se , e o grande choque que abalava Smirnoff IO ler os textos kleinianos foi para ele, certamente, a ev idênc ia de que aquilo que lia era ps icaná l i se —e das melhores. Depois do grande choque que fora a descoberta freudiana da :exualidade infantil, Melanie K l e i n iiitroduziu um horror maior ainq*a, io descrever o cortejo de corpos despedaçados e outras fantasias íádicas, isto é, a avalanche de imagens do infantil que invadiram Í cena anal í t ica , colocando-nos e m contato com 2 J . Mitchell. Introduction to Melanie Kein. In: J . Phillips and L . Stonebrige (orgs.). Reading Melanie Klein. Londoi: Routledge, 1998. 56 M I E L A N I E K L E I N - E S T I L O E PENSAMENTO ... a criançaa em sua onipotência, sua raiva, sem desespero, seu desamparo, seu abandono, seu combate com os fantasmas, os bons e os nnaus objetos introjetados, triturados, destruídos ou hipostasiados. Combate com o anjo, combate com o demónio, combate ccom as imagens, estas imagos que se constroem, evoluem e nãío a deixam em paz, que nenhum exorcismo será, jamais, capaz de abodir. (Smirnoff, p. 88) S m i r n o f f considera que, depois de Ferenczi , foi K l e i n quem mais sensibilizou os analistas para a p r e sença da criança no adulto (do infant i l no psiquismo, nós d i r í a m o s ) , dando "palavra a esta criança que nós mimamos ou perseguimos" (ibid., p. 89), mas com quem precisamos desesperadamente entrar em contato, n ã o só como reserva vi ta l , mas como fundamento de nosso idioma mais a r c a i c o , p rec ioso recur so con t ra t r ans fe renc ia l que pode ser colocado a serviço dos pacientes. S e n s í v e l à d i m e n s ã o do excesso e ao c a r á t e r i n s a c i á v e l e i n g o v e r n á v e l das p a i x õ e s , M e l a n i e K l e i n p o s s u í a um talento inquestionável para dar corpo, tornando-os visíveis e nomeando-os, aos aspectos mais a r c a i c o s da fan tas ia . E s s a é a sua m a i o r c o n t r i b u i ç ã o ao leitor interessado em p s i c a n á l i s e : o entrar em contato com a estranheza das f o r m a ç õ e s do inconsciente, que desafiam todas as medidas de bom senso. E l a ensina a p ô r de lado esse bom senso e o comedimento para compreender o c a r á t e r autónomo e demoníaco do inconsciente. Seu estilo ajuda a penetrar na alteridade e na desmesura, na onipotência do desejo inconsciente. U m exemplo disso 6 a sua descr ição da voracidade, da avidez com que o bebé deseja c seio materno. E l e quer o seio e também tudo o que há nele e a iém dele, esse corpo onde à s vezes o seio desaparece, e e n t ã o ele quer t ambém o corpo e tudo o que houver de precioso nele. Mais, o querer quer sempre mais. Melanie K l e i n chamou i s so de " s i c ç ã o vampiresca": latente no fundo de todo desejar "adulto" cono u m vórt ice insac iáve l . No adulto, o caráter insaciável do desep é menos evidente, pois sua e x p r e s s ã o foi longamente m o d i í c a d a pelas defesas e pe la a m p l i a ç ã o das capacidades, do ego >ara a subl imação e para a reparação. Entretanto, p>r me io de M e l a n i e K l e i n aprendemos a reconhecer a m e s r i a i n c o m e n s u r a l i b i l i d a d e n a s p o t ê n c i a s A P R E C I A Ç Ã O INTRODUTÓRIA DO ESJTILO DE PENSAMENTO E ESCRITA 57 destrutivas. Desejo de atacar, destiruir, picar, esquartejar, engolir e de feca r o objeto c o m o se fosse um s i m p l e s dejeto. E s s a fan tasmagor ia que l e v o u Lacam a c h a m a r M e l a n i e K l e i n de "açougue i ra inspirada" é o aspecto de sua obra que nos dá acesso ià v iolência e ao grotesco do pulsional "que n ã o tem sossego, nem inunca t e r á " . E s s a autora nos coinvida a de ixa r de lado nossos preconceitos e s t é t i cos e a necessidade de uma bela teoria, e nos c h a m a a fazer com e la precisamente isso: um movimento de rebaixamento, de degradação do que é abstrato para o plano material e corporal . Para conc lu i r estas c o n s i d e r a ç õ e s sobre o estilo de escrita kleiniano, citamos um texto de Bahkt in , em que ele faz o elogio desse movimento em d i r e ç ã o ao baixo produtivo, eterno r e c o m e ç o do pensar: Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a ten-a em um movimento concebido como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente: mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor. Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isto não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. Precipita-se não apenas para baixo, para o nada, a destruição absoluta, mas também para o baixo produtivo no qual se realizam a concepção e o renascimento e onde tudo ciesce profusamente. O realismo grotesco não conhece outro baixo: o baixo é a terra que 'dá vida', e o seio corporal: o baixo é sempre o começo. 4 Se em Freud encontramos u r i est i lo c l á s s i c o , culto e algo p i d i c o (até mesrno para falar das " b á x e z a s " ) , com o uso frequente dc expressões latinas para denominai certos aspectos menos nobres 4 . M. Bahktin. A cultura popular na Idcde Média e no Renascimento - o contexto de François Rabelais. Brasília Ed. Univ. Brasília, 1987. 58 M E I L A N I E K L E I N - E S T I L O E PENSAMENTO da e x i s t ê n c i a humana/ 5 Melanie K l e i n corresponde ao grotesco e v i s c e r a l da cultura popular tão bem captado por Bakht in nos textos medievais e renascentistas. Tanto nas suas c o m u n i c a ç õ e s com seus pacientes (mesmo as c r ianças) , como nas suas teor izações , Melanie K l e i n vai fundo e não teme a realidade dos processos p s í q u i c o s m e s m o cm suas d i m e n s õ e s m a i s b iza r ras e menos bem- comporladas. É como se ela estivesse nos ensinando - ou ajudando a r e m e m o r a r - a l inguagem p r i m i t i v a por i n t e r m é d i o da qual podemos entrar em contato com a realidade mais profunda de um i n d i v í d u o e de nós mesmos, em um plano em que mente e corpo formam uma única e complexa unidade. 5. Lembre mo-nos do lanoso coitus a (erg um inodus ferarum para descrever uma dada posição sciual em que. Freud supunha, um de sejs pacientes flagrara os próprios piis. PEQUENA RECONSTITWÇÃO 1 DA HISTÓRIA DOS SISTEMAS KLEINIANOS A década de 1920 e as questões do conhecimento e da inibição intelectual Mel anie K l e i n , como se viu, c o m e ç o u a fazer suas observa- ções c l ín icas e a escrever e apresentar seus trabalhos em congres- sos no início da década de 1920, e será essa primeira parte de sua obra que iremos agora considerar. Nesse p e r í o d o citado, ainda n ã o existe, naturalmente, um pensamen.o kleiniano estruturado, mas e la j á é capaz de chamar a a tenção de seus mestres e colegas pela o r i - ginalidade de muitas de suas intuições, e pela coragem de suas pro- postas c l í n i c a s e teór icas , apesar de ser uma r e c é m - c h e g a d a . Como vimos no capí tu lo anterior, a perspectiva e o estilo k l e i - n imos revelam a i m p o r t â n c i a por ela conferida à v i o l ê n c i a dos i n s - tirtos, das e m o ç õ e s e dos conflitos mais precoces entre forças an- tagónicas. U m a intensidade de a fetos e impulsos desproporcional à capacidade de con tenção e o r g a n i z i ç ã odo ps iqu ismo infantil . A n o p ã o grega de hybris como ruptura do métron, d a " jus ta medida", fo i por ela invocada e m um de s e u s ú l t i m o s trabalhos, " A l g u m a s r e f e x õ e s sobre a Orcs t ia" , publicado a p ó s sua m o r t e , em 1 9 6 3 ; p o é m , a p r e o c u p a ç ã o com o excesso, a desmesura e a in sac i ab i - l i d í d e do desejo marcou o seu pensanento desde o s p r i m ó r d i o s . E m seus primeiros textos, Kle in fala des ía hybris por e x c e l ê n c i a que é
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