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A con stru çã o d o eu na M odern idad e Da Renascença ao Século X IX Pedro Luiz Ribeiro de Santi O cHoíoi. ÊtUfom V Q ue características deste século são re su lta d o s d e m udanças dc fut ocorridas nos últimos cinqüenta anos? A sensação d c fcagmenlaçào do eu v isão que as pessoas têm dc si m esm as é r e s u lt a d o p a rticu la r de su personalidade ou é um padrão geral na sociedade con tem p orân ea? Diversas mudanças na culnira nos u ltim es 300 anos fizeram com qu f o s s e altamente desgastada nossa capacidade de o lh a p n o s O mom ento em q vivepios c dc com preenderm os as ra í/es de s u .ls crises no passado. Os teni| •atuais têm essa mistura de grande desenvolvim ento t e c n o ló g ic o e uma cnorm carência de reflexão filosófica. Há problema- estr itam en te atuais, mas as bus ' d a atualidade vêm de longe. Pedro Luiz Ribeiro de Santi. neste A construção do «e na M otlernuU uk\ ífo rf ie ce uma ferramenta para professores e a limos q u e pretendam tratar o temp I atua l com uma perspectiva histórica. Com olhos v o lta d o s para os pm i-vdenttÀ E d a Psicologia como uma área cientifica, de Santi acab a por fazer um resumo d h is tó ria do p en sam en to f ilo só fico nos ú ltim o s 500 a n o s . A le itu ra d | fundamentação para que alunos de Psicologia possam compreender o surgiment S d e sua própria profissão, mas tam bém fornece m ater ia l para que alunos interessados de quaisquer outras áreas possam com preend er as raízes da vi sã d o fiomem de si mesmo no século XXI Com e x em p lo s n a m úsica, nu literatura! " i pintura e no com portamento, de Santi narra a trajetória da construção ópria imagem do homem. Asaocnçôo catarineose <te Ensino ■045518* 1501 A oanrfii nSo Uft eo ní Pedro Luis Ribeiro de Santi, plrsantifiruol.cojn.br C Pedro Luís Ribeiro de Santi. 19%, 2000,2003,2001, 2005,2009. Dados Imcrnackinais de CulittoKttçiUi «U Publicação (61P) (Câm ara Brasileira du Livro, SP. Brasil) 1 5 0 .1 de S a n t i , P ed ro L u ís R i b e i r c . 5235c A Construção do 'eu' r.a Modernidade. Da Renascença ao século XIX / Pedro Luis Ribeiro de Kanti. -- Ribeirão Preto : Holos, Editora. 1990. 134 p. : 11. ; 21 1. 1 5 0 .1 . 2 . P s i c o lo g i a - T e o r i a . I . T í t u l o . ISBN 85 8 6 6 9 9 -C4-7 CDD 789566 699047 Primeira capa: Mtchcfongvlu. O despertar du escreve". Um Je quatro escravos c.iculpidos /mr Lfichelan&do para o túmulo de Júlio ll A obro, inacabada, sugere ifuc o acruvo procura libertar-se do pedra, Uhíma capa: Ammboldo. “A primavera " fTssOüÛ AOCATARtNÊ .r 'Ta íNSwaJ MUOTECACMIAU. *S9-W»,! J<* \ 08181 i J c.jQf/aw-sç| 2009 Proibida a reprodução tnial ou parcial. Os infratores scrào processados na fürmi tia lei. Hiikrs Edituni Rua Coronel Fernando Ferreira l eite 102 14.026-020 Ribciriio Preto , SP Telefone. 0.++ I6.3234.K0H3 ! Fax: 0.++. 16.3234.8084 Pmail holo«@holoscdito*a.cünü)r w ww. ho lo sed 11 ora.co in.br ‘Todos neste mundo dizem eu, eu, eu. Se você fi/cr alguma pergunta, você obterá corno resposta, eu li/, cu vim, cu vt, eu expenenciei Quem é esse eu-1 Se você reconhecer o divino comum nos milhões de pessoas, entâo você compreenderá o verckideiro cu <rm você Entào, isso trará transformação social.” (Sathya Sai Babá) 4 Pedro I.uis Ribeiro de Satui SUM ÁR IO P r e f á c io d e l . u í s C lá u d io F ig u e ir e d o 7 1. In trodução 9 2. A Passagem da Idade M édia ao R enascim ento 13 3 .0 H um anism o no R enascim ento 20 4 O Encontro com a Multiplicidade 25 5 Os P rocedim entos de C ontenção de Eu 36 6. A Posição de C ritica à A parência 47 7. O D iscurso do M étodo 58 8. O Eu c o N àn -b u 68 9 O s M oralistas do Século X V II 76 1 0 .0 Público e o Privado 83 11. Tem pestade c ím peto: O Rom antism o 91 12. A A uto-C ritica da R azão 99 13.0 Positivismo 102 14. O s D iversos C am inhos para a Psicologia 107 15. Figuras do R om antism o no século XIX 110 16. A lguns D esdobram entos que Levaram ã Psicologia 120 17. C onsum ação da C rise da Subjetividade 124 18 . C o n c lu s ã o 131 19. Bibliografia 132 5 A Construção do eu na Modernidade Pedro Luis Ribeiro de Santi PREFÁC IO conteúdos dc Teorias c Sistemas Psicológicos ou de História da Psicologia, disciplinas que integram os Cursos de Psicologia no Brasil, estão cada vez mais valorizados e vêm sofrendo nos últimos tempos algumas transformações muito positivas. H oje reconhece-se que estas m atérias nào podem ser consideradas com i secundárias e marginais, mas que ocupam lima posição fundamental na formação do psicólogo, h preciso que o aluno de Psicologia c futuro profissional saiba inserir-se e inserir suas crenças c práticas em um contexto histórico e social muito complexo e sem o qual nossas teorias, habilidades c técnicas nào poderiam ter vindo a existir e a funcionar com alguma eficácia Na m edida cm que as m atéria s m encionadas fo ram conquistando uma maior consideração, foram também mudando de fisionom ia Não se trata mais de apenas transm itir aos alunos informações lacluais sobre autores e obras célebres da História da Psicologia (o que é importante), nem de apenas rastrear a origem das idems psicológicas nos campos da filosofia cdas cicncias naturais (o que também c de interesse). Trata-se agora de con textual izar histórica c sociologicamente o nascimento e o desenvolvimento tio universo psi, de form a a tornar in te lig íve is as p roduções e transformações teóricas e técnicas desse campo. Assim sendo, as disciplina de Teorias e Sistemas, História da Psicologia c. cm a guns casos, como tia USr. Psicologia Geral, além de colocarem os alunos em contato com as diversas escolas c correntes da Psicologia contem porânea cm seus processos de constituição e mudança, passaram a desempenhar a importantíssima tarefa dc colocá-los cm contato com os complexos culturais de que as Psicologias faz;m jxute. Tal com o sào oferecidas na UNTP e na USP (enlre muitos outros exemplos cue conheço, mas dc que não estou tão próximo). 7 A Construção do eu na Modernidade estas disciplinas converteram-se em oportunidades indispensáveis de aproximar o alunado do vastissimo eatnpode fenômenos culturais no qual se formaram as subjetividndes modernas e contemporâneas. Foi neste campo c cm resposta às diversas demandas provenientes destas subjetividades que as Psicologias foram sendo criadas e desenvolvidas. Quando se tenta, contudo, oferecer uma disciplina com este alcance e esta ambição, depara-se com uma dificuldade operacional: como organizar didaticamente uni material tào diverso quanto é, de fato, necessário -textos de filosofia, textos dc religião, textos de literatura (ficção e poesia), composições musicais e reproduções de obras dc ano-, de modo a oferecer aos alunos uma viagem rica, interessante mas viável e relativaroentc segura pelos terrenos da cultura ocidental moderna? O trabalho de Pedro Luiz Ribeiro de Santi é um coadjuvante valiosissimo para o professor que enverede por este caminho e sc coloque estas questões. Aqui encontram-se exemplos bem escolhidos dos complexos culturais que. do século XVI em diante, foram condicionando as formas de viver c experimentar o mundo dos homens ocidentais. Estes exemplos, hem ordenadas c bem interpretados nas suas linhas mais decisivas mediante comentários breves nius elucidativos do Autor, retratam os quadros sucessivos em que nos fomos tornando o que hoje somos. Trata-sc. portanto, de uma contribuição generosa para o ensino da Psicologia e que, estou certo, terá uma boa acolhida pelos professores c alunos que com ela tiverem contato. ju lh o , 199# I uís C láudio Figueiredo Livre Docente dc Psicologia Geral Universidade de São Paulo 8 Pcdru Luis Ribeiro de Santi 1 IN TRODUÇÃO F 1—/ste livro nasceu dc uma pesquisa iniciada et» agosto de 1995 que tinha a finalidade dc produzir material didático pani o curso “ Teoriase Sistemas Psicológicos” , que ministro no primeiro ano do curso de Psicologia desde 1992. lk>a parte deste canso c dedicado ao estudo das condições que levaram ao surgimento da Psicologia, no final do século XIX. Desde então, tenho tentado ampl iar este trabalho, organizando textos, combinando trechos dc obras dc comentadores c adicionando novos textos originais dc cada época. Combinando a preocupação com a abertura dc vias de comunicação com os alunos e uni interesse pessoal, com freqüência uso outros recursos que não apenas textos teóricos, como literatura geral, filmes, referencias à ‘história dos costumes' e, muito especial mente, a audição de música dc época. P-ssa reunião entre uma Linguagem teórica c mais abstrata com outras m ais im ediatas e prazerosas não apenas mostrou-se produtivo, atendendo um pouco uma das necessidades mais comuns do estudante universitário de hoje. o aumento de sua cultura geral. Pia também deixa evidente para o aluno a relação entre os problemas filosóficos ilas várias épocas, que se refletem cm toda a expressão humana - dos hábitos á arquitetura, da música à visão dc si mesmo Tenho procurado digerir esta experiência dc mais dc quatro anos através da produção dc um texto didático. Para isso, há que se pagar o preço de uma simplificação inevitável, quando se compilam fontes fragmentadas e, sobretudo, quando se tenta tomar urr texto sobre u historia do pensamento humano acessível á linguagem Je alunos dc graduação. A esperança maior deste In ro é a dc convidar, dc um lado. os alunos dc Psicologia a pensar nas relações dessa área de pensamento com o restante do conhecimento c em suas condições de surgim ento . De outro , co n v id a r o pú b lico le ito r geral u A Construção do eu na Modernidade compreender e refletir um pouco sobre a história dos problemas filosóficos que resultaram no perfil do século XX. Nesse sentido, a Psicologia é apenas uma faceta de um contexto mais geral com o qual todos têm co n ta to A lastam o -n o s de um a posição “ substancialista”, que levasse a crer que o mundo psíquico seja uma coisa dem a e imutável, a qual a ciência fmalmente teria vindo desvela*. Assim, colocamos no livro a questão da construção do muudo psicológico, assim como a Psicologia como uma instância de produção de conhecimento cientifico Ao menos, creio que este livro permite introdu/ir os alunos â idéia de que a compreensão da questão psicológica é muito anterior á sua formulação cm lima linguagem científica. Ao público leigo geral, compreender que. antes oa visão de si mesir.o que se tem hoje na cultura ocidental, já houve inúmeras maneiras diferentes de ver a si mesmo e de compreender a posição do homem no universo. * Desde que o homem pensa, ele pensa sobre si mesmo, sobre o que é alma, desejo, liberdade, etc. Mas foi apenas no final do século XIX qie surgiram os projetos de se realizar uma ciência da mente, iu>$ moldes que conhecemos hoje. Parti uir.a primeira aproximação com o campo da Psicologia, é essencial que se procure pensar no motivo pelo qua! nasceu a demanda por um profissional, dentro dos moldes da ciência, para dar coma das crises de identidade ou do controb dos comportamentos. Como se sabe, a Psicologia é composta de utna grande quantidade de teorias diferentes, que mal conseguem se comunicar entre si. Este estado não parece ser passageiro, mas próprio da Psicologia e de outras ciências humanas. Ao compreendermos o sentido do surgimento da Psicologia, talvez também possamos entender o motivo dessa dispersão. Essa história è imer.sa Ela remonta à filosofia grega e acompanha toda a reflexão filosófica posterior e, mai.s recentemente, alcança as teorias psiquiátricas até o inicio de nosso século. Por isso, tomamos algumas teses sobre o assunto para organizar nosso percurso. Está longe de nossa pretensão realizarmos uma obra 10 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Pedro Luis Ribeiro de Santi to talizadora ou sequer cc nos aproxim arm os disso . Trata-se simplesmente de perseguir um fio nesta rede. na esperança de que ele convide os leitores ti explorar outras vias. Como será possível perceber cada época tem um número de correntes de pensamento paralelas e um número de formas dc expressão desses pontos de vista. A seleção dos autores e temas obedeceu àorientação dc alguns comentadores clássicos, dc um lado. e a motivos menos nobres, dc outro, como o ponto de v ista do conhecimento prévio do autor. Muitas discussões essenciais sào apenas mencionadas, como a questão da Modernidade, algumas passagens da própria história: muitas questões paralelas às vezes sequer sào mencionadas. Peço desculpas ao leitor mais bem informado e reafirmo o caráter meramente didático deste projeto. A tese hàsica que orienta este percurso é a de l.uis Cláudio Figueiredo, cm "Psicologia. Uma introdução"* Fie propõe a idéia de que houve duas pré-condições para o surgimento dc uin projeto de Psicologia conto ciência. A primeira seria o surgimento de uma noção clara de subjetividade privada (ou seja. una afirmação da idéia de que as pessoas sào indivíduos livres e. enquanto tais, indivisíveis, separados, independentes un3 dos outros c donos de seus destirtos A segunda seria a de que essa concepção de sujeito teria entrado em crise, gerando assim um sujeito cm crise de identidade c a procura dc um profissional que lhe pudesse restituir a estabilidade. Ue momento, essa tese poce parecer obscura. mas gradativamente ela irá sendo explicitada. Dc uma forma genérica, podemos dizer que a n oçio dc subjetividade privada data do inicio da Modernidade, ou se|u. do Renascimento. Será justamente na passagem da Idade Média para o Renascimento que iniciaremos esse percurso. A afirmação do sujeito chegará a seu ponto máximo no século XVII e, a partir de então, iniciará uma longa crise até o tlnal do século XIX. No final do século XIX. surgirão os m m eiros projetos de O livro "Psicologia. Unia fnirodução. Figueiredo. L.C. 1991. EDUC, Sào Paulo” :òi rccditudo como "Psicologia. Uma (nova) introdução. Figueiredo. L.C & pedro. 1998, Sào Paulo. ED U C Apói a primeira versào publicada. Figueiredo já desenvolveu teses mais complexas s*bre o lema, como em *1 invenção do Psicológuo 11 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Consuxiçào do eu na Modernidade Psicologia, já com algumas características definitivas da diversickde que marca esta ciência Wundt cria condições para a eriaçào de uma Psicologia experimental, enquanto Freud cria a Psicanálise. A esta lese, que mostra os modos de afirmação do eu ccsdc o século XVI, acrescento uma observação minha; a de que, desde o inicio do Renascimento, alguns autores já se dedicam a mostrar as fracucias e insuficiências do eu Isto indicaria a possibilidade de que a Modernidade incluísse proccd .mcntos de auto-crítica e dissolução do eu, além dos clássicos procedimentos dc auto-afirmação. Gabriel Rossi Gabriel Rossi 2 1'cct x) Lu is R IHelro de Surti A PASSAGEM DA IDADE M ÉD IA AO RENA SC IM ENTO Nesta parle, m ua-se de es por que nossa concepção aluai do que seja o "eu” não cm posshei na Idade Média Renascimento, como já é clássico dizer-se. nasce o hum anism o moderno. De acordo com a tese de l.uis C láudio Figueiredo, seria neste período que passaria a se afirm ar uma concepção de subjetividade privada -a í incluída a idéia de liberdade do homem e de sua posição como centro do mundo Voltemos alguns passos: o que significa dizer que a noção de ‘subjetividade pri\ ada‘ passa a ex istir? P or que tal co n cep ção não seria p o ssív e l anteriormente, no mundo medieval? Pode provocar alguma estranheza a idéia de que a noção de privacidade não existisse em um num determinado momento. Nossa intimidade, nossa existência enquanto sujeitos isolados -ou. até mais. solitários— parece no-, clara, certa. "T e r u m tempo para si” , sem estar trabalhando ou estudando (produzindo, dc urn modo geral),possui um grande valor em nossas vidas’ . Certamente, essa é uma das * A privacidade tomará diversos aspectos: em primeiro lugar temos nosso pensamentos, que tmrilas vezes anotemos em segredo: se lemos uma casa ou um quarto para nós, pode-se ouvir uma música, amimar gavetas, estar com uma roupa confortável (muitas vezes velha c acabada, mas neste caso nào há problema, pois não há ninguém olhando): se dividimos nosso quarto com outras pessoas, sempre podemos tomar um longo banho, fazer a barba ou as unhas, ou outras coisas mais 13 Gabriel Rossi A Construção do eu na Modernidade poucas coisas pckts quais lutamos hoje -ti preciso garantir nossa privacidade, diante da aha exigência atual para que dediquemos toda a nossa energia c tempo às atividades consideradas “úteis” . Há até quem diga, e nào são poucos, que nosso excessivo individualismo è um cos grandes problemas da convivência social atual. Dentre os problemas que derivariam disso, poderíamos enumerar: a imposição dos interesses pessoais sobre os coletivos, a insensibilidade ao que nào nos di2 respeito imedialamentc. a solidão, a falta dc um sentido para a vida, o desrespeito generalizado às leis, o crescimento com o reação a tudo isso dc m ovim entos ideológicos ou religiosos dogmáticos e violentos, caracterizados pela intolerância para com aquilo que c diferente dc si ou do grupo, ctc. Existem as nações, grupos religiosos, familiares, ctc, mas a menor unidade seria a pessoa. O termo ‘indivíduo’ remete a isto, somos o “átomo” indiviso do mundo humano. Este sentimento de individualidade se mostra, em outro exemplo caricato, quando estamos prolundamente infelizes e nos sentimos incompreendidos, passando por uma dor que provavelmente ninguém jamais passou antes. Se um amigo a quem confidenciamos nossa dor diz nos com preender e já ter passado pela mesma experiência, enchemo-nos de orgulho e reagimos dizendo que clc nào entendeu nada, nosso sofrimento é incomparavelmente maior que o dele! Assim, quer pelos valores positivos, quer pelos negativos que lhe atribuamos, parece-nos certo que o sujeito isolado c a unidade básica dc valor e referência de tudo. Ainda assim, sc dermos uma olhada na história dos costumes ou da filosofia, veremos que rtcin sempre foi assim. Esta afirmação do “eu” parccc ter-se construído gradativamcnte. através dc séculos’ . ü “eu” nem sempre foi soberano. Sc nos dirigíssemos à filosofia da Grécia clássica (scculo V A.Cd. certamente já encontraríamos algo que poderíamos chamar dc humanismo, como uma valorização do ser humano já nào submetido ao poder dos deuses (como na filosofia dc Sócrates ou no teatro de Euripcdes), a criação do direito e da dem ocracia, etc. Mas o 1É sempre bastante compl srado aftnnamuw que detenmnada idéia tenha surgido pela primeira vez em tal momento ou em determinado autor Sempre achamos alguém que jã afirmara tal idéia aníenonncntc. Este recuo parece ser infinito. Assim, sempre trabalhamos com uma margem dc aproximação o, vale dizer, erro. 14 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Pediu) Lu is Ribeiro ile Santi humanismo, entendido como a colocação do homem como medida dc todas as coisas e centro do mundo, parece ter tomado a forma que tem lioje no Renascimento, surgindo dc dentro da Idade Media A inda que não entrem os cm detalhe na discussão do pensamento medieval ou grego, vale a pena destacarmos dguns momentos privilegiados na direção da tese que desenvolvemos. Fm uma obra recer.te, chamada As Juntes do Self, Charles Taylor realiza uma análise profunda do nascimento do sentimento característico da Modernidade: o de que possuímos uma inlerioridade. O ponto dc partida da análise dc Taylor c Platão. Tnta-se de mostrar como, para ele, a razão c a percepção de uma ordem absoluta. Ser racional significa ver a ordem como cia é. Não há com o ser racional e estar enganado sobre a natureza ao mesmo tempo. Podemos já reconhecer aqui o nível dc certeza pelo qual aspira a Modernidade, representada sobretudo pela figura de Descartes. No entanto, enquanto para Descartes a ordem está 'dentro ' de nós, para Platão ela resicc no absolutamente Bom. H em Santo A gostinho que Taylor encontra a grande passagem para a inferioridade Santo Agostinho c assustadoramente moderno, considerando que viveu entre os scculos IV' e V dc aossa era. Todo o seu pensamento seria permeado pelas noções dc Tnterno- extem o’: espirito/matéria, alto/batxo, etem o/tcm poral. imutável/ m u tan te , e tc . A qui ap arece um m ovim ento inéd ito : com a desvalorização do corpo e de tudo o que é m undano, com a correspondente valorização da alma como algo interno, a basca por Deus passa a ser feita dentro de nós. Deus não deve ser procurado no que vemos, mas no próprio olhar. Lie sei ia a própria luz interior. Santo Agostinho estaria, com isto, inaugurando uma experiência radical: "A reflexão radical traz paru o primeiro plano uma espécie tJe presença para a pessoa, que c inseparável do fato de esta pessoa scr o agente da experiência, algo cujo acesso ê, par sua própria natureza, assimétrico: há uma diferença crucnl entre a forma dc cu experimentar minha ;»li\ idade, pensamento e sentimento, e a fu mia pela qual você ou qualquer outro o faz: É isso que rr.e toma um scr que pode lalur de si na primeira pessoa”, (p. 174} 15 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Coustmção do eu na Modernidade A experiência passa a ser altamente subjetivada e dependente de nós. A tradição moderna teria levado esia concepção ao extremo, passando a rcfcrir-se a objetos internos c. ao mesmo tempo, a um ‘eu penso' totalmente separado do ' externo’. Mas isto já é adiantar demais nossa discussão. Em uma imagem que reconhecemos como caricatural e bastante insuficiente da concepção de mundo medieval no Ocidente apenas com o pano dc fundo para introduzirm os as idéias do R enascim en to -, poderíam os d izer que ela se caracteriza por considerar o mundo organizado cm tomo dc um centro. 1 laverin uma o rdem ab so lu ta , rep re sen tad a p o r D eus e Seus leg ítim o s representantes na terra; a Bíblia e a Igreja. Cada coisa existente estaria relacionada necessariamente a esta ordem superior. Em última instância, cada ser formaria parte de uma grande engrenagem que seria a criação divina. Aí sc encontraria o sentido de tw lo\ A possibilidade da crença na liberdade humana é muito restnta. já que tudo faz parte dc um plano maior, de um tixlo perfeito disposto por Deus. A noção de justiça na Idade Média, por exemplo, c a da colocação de cada ser no lugar que lhe é próprio. Tatnpoueo haveria lugar para a privacidade. Ma m edida em que a onipresença e a < misci èticia são atributos de Deus. nada poderia ser mantido em segredo e nunca estudamos sozinhos: pecar cm pensamento já é pecar, MUSICA - Cunlu C rcgoríanu A audição e compreensão do canto gregoriano presta-se de forma exemplar a tentativa dc apresentar o espírito medieval. Ele c um canto em uníssono, ou seja. trata-se dc um coral onde todos cantam rigorosamente a mesma coisa. Sua letra é, invariavelmente, um texto sagrado e já conhecido pelos ouvintes: trata-se da reafirmação do já ‘ Issc rcmctc á parábola segundo a çual um passante veria vários homens erguendo uma parede; um deles de aparência destilada e outro está visivelmente satisfeito. O passante pergunla a cada um o que está fazendo; o primeiro responde “estou empilhando tijolos” t o segundo “estou construindo uma catedral” O segundo sente-sc parle dc uma obra maiur. o sentido de sua ação transcende em muito o imediato, está ligado a um lodo (o rtligúrc, de leligião -religar.l. O primeiro está só, o sentido de sua ação es gota-se nela mesma. IA Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Pedro Luís Ribeiro de Santi sabido e da apresentação dc um mundo sem novidades, Associando- se ao caráter da letra, não lia propriamente uma melodia, mas apenas uma sinuosalinha melódica que nào se repete; nào há refrão ou passagens bruscas, de fonra que o ouvinte não consegue "segurar- se” em nada. Ele nào pode se locali/ar e nào deve "prestai a ten çã o” ou estar consciente do que ouve, mas se deixar levnr por este mar ou rebanho. Hoje, ouvimos o canto gregoriano de forma muito diferente da que o caracteriza; nós o utilizamos para meditar, ou relaxar. De forma geral, poderíamos dizer que, na música, a melodia liga-se ao que há de mais espiritual -o sopro da voz, o sublime, a uma nota que se sustenta idêntica c linear. O ritmo, cm oposição, representa mais proximamente o corpo e seus movimentos, ele chama à dança, ao que é mais instável. Na Grécia, a música era atribuída a Dioniso, deus da embriaguez, do vinho, do teatro, etc. Ela conteria, assim, um elemento diabólico, excitante. Ao ser assimilada pela igreja, o que é atribuído ao Papa Gregóric, no século VI D.C., a música é filtrada, retirando-se dela ao máximo seus elementos ritmicos; ela passa a se restringir á pura emissão vocal, sem haver sequer instrumentos dc acompanhamento 5 6. Ainda no contexto medieval, surge um outro iipo de música que, dc outra forma, reafirma a certeza e a necessidade dc um centro e de uma referência externa. Nela, a voz da melodia e acompanhada por uma segunda, que sustenta uma mesma nota. chamada lbordão' (segundo Aurélio, “uma nota grave, prolongada e constante” , mas "também um pau grosso qi.e serve como arrimo, amparo”). Trata-se propriamente de manter uma referência, um centro em tomo do qual a melodia pode voltear sem juinais se p e r d e r J á se encontra nesse 5 A respeito desta teoria sobre a música, ver () som e o senado, de J.M. Wisnick ( I 989). Ao longo des.e texto, sempre que fizer alguma referência à música, procurarei indicar ao menos um exemplo em nota de rodapé, com o tiiuki da peça e a fonte a que recorri. Como exemplos de Canto Gregoriano, procure ouvir as faixas “Roraie coetí" e "Ave \f«rw ", do ‘Cantos do Pró prio do 'Gradual? Romatum'", no Cf) “Corno Gregoriano. Cboralschola Jes Wiener Hofburgkapelle, Plmnograru, 1984”. 6 Como exemplos, ouça a faria Natus est, extraído do CD "Nova C antua. Canções Latinas da Alia idade Média, Harmonia Mundi, 1990” e a faixa Pwsque bete dana* n e>m\ extraído do CD "LoveS fludoru. Música do Codex Montpdlier -Século XIII, Harmonia Mundi, 1994” 1 7 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Construção do cu na Modernidade último tipo de música a raiz do cânone -música com duas ou mais vozes na qual a mesma melodia é cantada de forma defasada entre elas e repetida, de form a que sempre se pode ouvir cada Frase m usical- e da polifonia do Renascimento. TF .XTO A N E X O - John ofSallsbury (Sécu lo X íl) No texto que se segue ptxle-sc ver a rigidez de um mundo concebido como hierarquizado por unia ordem superior. Não cabe ao homem questioná-la ou pretender escolher ou mudar o lugar que lhe cabe. O COR PO SO C IA L (“T h e Bodv S o d a l”) "U ma comunidade, de acordo com Plutarco. é um certo corpo dotado de vida pelo benefício do favor divino, que opera impelido pela mais elevada eqüidade c que c regulado pelo que pode ser chamado de poder moderador da razáu. Aqueles que em nos estabelecem e implantam a prática da religião c nos transmitem a devoção a Deus. preenchem o lugar dn alma nu corpo da comunidade. E assim, aqueles que presidem a prática da religião devem ser considerados e venerados como a alma do corpo. Pois, quem duvida de que os ministros da santidade de Deus sào Seus representantes? Além disso, desde que a alma é como se fosse o príncipe do corpo e legisla sobre todo o restante, etnAo aqueles aos quais nosso autor chama os prefeitos da religião presidem 0 corpo inteiro... O lugar da cabeça no corpo da comunidade é ocupado peUi príncipe, que se submete apenas a !>eus e àqueles que estilo a Seu serviço e O representam na torra, da mesma forma que, no corpo humane, a cabeça c animada e governada pela almu. O lugur do coração c preenchido pelo senado, do qual procede o ir.ííio de boas c mas obras. Os deveres dc olhos, ouvidos e língua sào cumpridos pelos juizes e governadores das províncias. Oficiais e soldados correspondem ás mãos. Aqueles que sempre servem ao príncipe sáo semelhantes aos flancos. Oficiais financeiros e comerciantes podem ser comparados com o estômago e os intestinos.. Os camponeses correspondem aos pcs. que sempre semeiam a terra, e precisam mais especifica mente dos cuidados c das preocupações da 18 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Pedro Luís Ribeiro de Sant: cabeça, já que, enquanto caminham sobre u tc-ni trabalhando com seus corpos, eles sc deparam fieqilenternaitc com pedras de hcsilação e, por isto, mercccrr. mais ajudas proteção que os demais com toda justiça, desde que são eles que erguem, suster.tiun c movem adiante o peso de todo o corpo... Entãc, c só então, a saúde da comunidade será sólida c florescente quando os membros mais aliou protegem os mais baixos, e os mais baixos respondem fiel e plena mente na mesma medida ás justas demandas de seus superiores, de modo que todos c cada um operassem como que membros uns dos outros por u ra espécie de reciprocidade, c cada um considerasse que seu próprio interesse era mais bem atendido por aquilo que ele soubesse ser mais vantajoso para os outros”. 4 O que pretendemos destacar deste texto é a concepção de uma relação orgânica entre todos os seres, sua irterdependência. Em tal universo, não faz sentido pensarmos que uma pessoa teria a liberdade de optar pelos rumos de sua vida. O homem nâo seria, assim, propriamente sujeito. PINTURA - (iiotto Questões para discussão 1. Qual c a diferença entre a raeditaçàu solitária dc um monge medieval e a experiência de solidão dc um homem do scculo XX? 2. Procure identificar alguma forma atual dc entender o inundo que sena impensável na Idade Média. 3. Hoje ainda existe a idéia de “corpo social"? 19 3 A Construção <lo cu na Modernidade O H UM AN ISM O NO R ENA SC IM ENTO \'esta parte, introduzimos o tema da valorização do homem como um todo e de coda indivíduo, no Renascimento, &n função da perda das referências sólidas medievais In ic ie m o s esta parte por unia definição de humanismo: “O tetmo ‘humanismo’ ê derivado de humanitas, que no tempo de Cícero (106 43 a.C.) designava a educação do homem enquanto considerado em sua condição propriamente humana, correspondendo á palavra grega fxiideia: a educação por meio de disciplinas liberais, relativas a atividades exclusivas do homem e que o distinguiam dos animais. (...) As chamadas ‘humanidades1 - poética, retórica, história, ética c política- possam, desse modo, a constituir, sob a inspiração dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem paro o exercício da liberdade." (...) “Outro fundamento do humanismo renascentista foi a convicção de que o inundo natural 6 o reino do homem. Esse naturalismo conduziu, paraleliur.ente á afirmação tio valor espiritual do homem e que o torna livre, á exaltação do valor do corpo t dos seus prazeres."7 Fica ev idente, pela passagem acima, que houve uma mudança na concepção do lugar do homem no mundo. Há agora uma grande valorização do homem c, ao mesmo tempo, a idéia de que cie tem que buscar uma formação, ele deve sc constituir enquanto humano. 7 José Américo Pessãnha, "VkJa e obra” (p. vi). Em Erasmo de Rotterdan, Coleção “Os Pensadores”, 1991, 20 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Pedro Luís Rihciro de Sauti Se o homem nào nasce com seu destino predestinado, ele se deve formar, educar. Nasce a necessidade do “cuidado de si”. É comum que tenhamos uma nuçào da passagem da Idade Média para o Renascimento em termos de história: com a diminuição do poder da igreja c advento da reforma, a crise do sistema feudal e o nascimento das cidades e rotas de comércio, a expansão marítima, etc. Masrararneiite consideram-se as mudanças dc modo de vida das pessoas implicadas nessas transformações politicas e econômicas. HA toda uma linha de investigação h istórica, cue se dedica especiftcamente ao escudo da história dos costumes, da vida cotidiana das pessoas e, o que nos interessa mais no momento, da idéia que elas tiniram dc si mesmas. Tudo leva a crer que a diminuição do poder da igreja c a abertura operada sobre o mundo fechado dos feudos foi acompanhada por uma crise da concepção fechada de mundo que vigorava. Se os honens acreditavam ter um ponto de referência externo (um centro do muido) sobre o qual podiam se apoiar, agora já não podiam cor.tar com essa certeza. Numa nova caricatura, poderíamos dizer que, sob um poder absoluto, não liá liberdade, o que é terrível, embora seja rclativairiente fácil “compreender' o muncio, pois há referencias claras: o que c certo e o que é errado está prc-definido, cabendo, no máximo, tomar um partido ou outro. Já num mundo aberto, sem referências absolutas, surge a idéia ce liberdade, mas ao mesmo tempo, a de solidão e responsabilidade. Se o homem nào pode mais contar com uma resposta dada por uma autoridade absoluta, ele deverá buscar ou construir suas próprias respostas, liste ê um dos principais deméritos do humanismo. Isso não quer dizer que o homem do Renascimento fosse ateu, mas. de certa tómia. Deus parece ter se afastado para o céu. deixando o mundo a cargo dos homens. Na Idade Média, é truito comum a representação plástica do mundo como uma esfera cujo centro é Deus, Cristo ou, o que é tnenos ortodoxo, a Virgem Maria; já no Renascimento, há inúmeras representações do mundo nas quais Deus paira sobre ele, que tem agora ao centro o próprio homem. É também comum que no Renascimento comecem a surgir as assinaturas dos artistas em suas obras de arte, o que quase não existia no período anterior Quando pensamos nos pintores mais antigos que conhecemos no ocidente moderno, vem-nos a mente Ciiotto, por 21 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi A CanstnçSo Jo cu na Mixianidade exemplo, ainda que ele estivesse bciratulo o Renascimento, tendo vivido entre os séculos X O c XIV'. Nào era o ser humano que criava, cie era apenas um instrum ento da criação divina: com o numa representação do Papa Grtgório, na qual o Espírito Santo lhe sopra a música que esul a escrever, No contexto renascentista, nào há mais apenas uma certa cena bíblica que importa, mas a m io do sujeito que deixa sua marca na obra. Assim, surgem os nomes mais conhecidos do Renascimento, como Leonardo da Vinci ou Michc.angelo, que, mais que artistas, são gênios dc inúmeros talemos. Sào homens que se formam e que deixam seu traço pessoal tia obra que criam. Sem sofrer restrições por parte da igreja cm suas investigações sobre a anatomia humana ou sobre os astros, o homem ahre-sc para um mundo novo -quer cm suas viagens |>e!o mundo, quer pelo estudo da natureza. Em anexo, trechos dc um livro de 14#6. bastante expressivo como concepção do humanismo renascentista. T E X T O ANEXO - Pico Delia M irando!a D IS C U R SO S O B R E A D IG N ID A D E D O H O M EM “Já o sumo pui. Deus arquiteto, linha construído, segundo leis de arcana sabedoria, este lugar do mundo como nós o vemos, augustissimo templo da divindade. Tinha embelezado a zona supcr-cclcstc com inteligências, avivado os globos êtéreos com alma? eternas, povoado com unia multidão dc animais dc toda a espécie as partes vis e termenutres do mundo inferior. Mas. consumada a obra. o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra lào grande, que amasse a beleza c admirasse a sua grandeza Por isso. uma vez tudo realizado, como Moisés e Timcu atestam, pensou por último em enaro homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara nenhum sobre o qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros Unha algum para oferecer cm herança ao novo tiiho, nem dos lugares de todo o mundo restara algum no qual se sentasse este contemplador do universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído nos sumos, nos médios t nos ínfimos graus. Mas não teria sido digno da paterna potência não se superar, como sc fosse 22 Gabriel Rossi Pedro Luis Ribeiro de Santi inábil, na sua última obra. não era próprio da sua paciência permanecer incerta numa obn necessária, por falta de decisão, nem seria digno do seu bcrcfico amor que a quem estava destinado a louvar nos outros a liberdade divina fosse constrangido a lamcnta-lacm si mesmo. bstabelecen, portanto, o óptimo Artífice que, àquele a quem nada dc cspecificamerle próprio podia oferecer, fosse comum tudo o que linha sido dado parcclarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra dc natureza indefinida e, colocando-o no meio do murdi. talou-lhc deste modo: ‘Ó Adão» não te demos nem unt lugar determinado, nem um aspecto que te seja preprio, nem tareia alguma especifica, a fim dc que obtenhas e possuas aquele lu&ar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão A natureza bem definida dos Outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não será constrangido por nenhum? limitação, dcte-tninu-la-ás pata ti, segundo o teu arbítrio, a tnço poder tc entreguei. Coloquei- te no cer.tno do munco para qje daí possas olhar melhor tudo que há no mundo. Não tc fizemos celeste nem terreno, nem mortal ncir. in lorlal. a fim de que tu, árbitro e soberano artífice, te plasmasses e <e informtsses. na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos sares que são as bestas, poderá regenerar-te ate as realidades superiores que são divinas, por decisão to teu ânimo’ "Quem não admirará este nossocamaleão?" (p. 51-53) “Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para que compreendamos, a partir do momento em qnc nascemos, nu condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever é pteocuparmo-nos sobretudo coir. isto: que não se diga de nos que eslímdo em tal honra, não nos demos conta dc nos termos tornado semelhantes ás bestas e aos estúpidos j umentos de carga." (p. 55 f * Assim , a fc cm Deus não loi abalada, mas agora ele c cr.tendido como um criador que paira por sobre sua obra. que passa a ter vida própna. liberdade. L>eus está “antes" do mundo como criador " Fm Pico delia MirandoJa, Discurso sobre a Ji^nuiode do hdntcm. Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Construção do eu na Modernidade c "depois” d d c como juiz, mas é visto como tendo criado o mundo e o deixado funcionar por suas próprias lets. Daí surgirá a possibilidade do conhecimento das leis naturais; sc Deus interviesse a cada momento com milagres, seria impossível o projeto de conhecimento e previsão sobre os fenômenos naturais. Já a liberdade, dom maior dada ao larmetn, fará com que ele tenha que passar a tentar descobrir os caminhos do bem, definir o que c certo e errado. Este é o campo da moral, que será muito estudado nos séculos seguintes. A colocação do homem no ceniro do mundo nos traz ainda a idéia dc que todas as coisas existem pam sua contemplação e uso Tomj-se natural para o homem matai' animais ou devastar a natureza na medida de seu interesse A relação do homem com relação ao mundo se tomará cada vez mais a de exclusão. O homem jutga-se quase como Deus, relativamente acima do mundo, e as coisas (c mesmo o corpo humano) serão tomadas como objetos. Figueiredo’ observa a peculiaridade dessa posição do homem Tdc c o centro c é livre para tomar-sc o que quiser, mas ele não è propriamente nada. Há uma negatividade no homem e é justamente es.se vazio que ocupa o lugar do centro; o mundo já não é fechado, já não há estabilidade possível, o homem deve contmuamcntc tomar- sc, constituir-se, mover-se: "Este imenso espaço de liberdade será lambem o espaço das virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade,è ainda o espaço de urna aventura scir. destino certo, sem arrimos nem garantias. É, finalmemc, o espaço insólito da ignorância, da ilusão, do erro. da duvida e da suspeita.” (p, 24) QuMtks para discussão I. Como foi possível conciliar a crença em um Deus onipotente c a crença na liberdade do homem'1 2- Como u valorização do homem contribuiu para o aumento do conhecimento sobre a natureza? 3. líntie o mundo medieval c o mundo renascentista, qual parece gerar mais angústia no homem? Por quê? Em A invenção do psicólogo. Gabriel Rossi Gabriel Rossi 4 Pedro Luis Ribeiro dc Santi O ENCONTRO C OM A M ULT IPL IC IDADE Trabalhamos, testa parte, o encontro com a diversidade th. mundo. O confronto com a diferença fe~ cont que o homem se perguntasse sobre si. D erivamos do lema anterior outro que o acompanha. Ainda segundo Figueiredo, a multipLidcade c uma característica do Renascimento. A abertura do mundo irouxe o conhecimento de civilizações novas, com seus costumes, I nguas, hábitos alimentares. etc. Isto, é claro, acompanha os novos valores segundo os quais o homem (cada um) deve buscar seu caminho. Citando novamente Figueiredo: “Há algo de maravilhoso e inquictante na intinirude cias variações, O que se pode esperar íqj.tunainente dc um mundo infinilamentc diverso e surpreendente? Tudo. A credulidade c a liberdade dc imaginação do honrem renascentista não devem serjulgadas a partir de modelo 'científico* dos séculos posteriores; elas não sào índices de ingenuidade e ausência de espirito crítico. São forma* mad iras e tolerantes de relação com u diferença, as mais ajustadas a esse momento partic-ular de abertura do mundo."'*® (p 34> Introduzimos com isso. uma outra imagem significativa do A invenção do psicólogo, Essa imagem e as que se seguem ganham urna de suas melhores expressões na obra dc Rabclais. Gttrgántuu e Pantagruel (veja adiante). 9í. A Construção cio eu na Modernidade período, a feira de rua. Ainda que a feira já fosse uma instituição medieval, agora seu conteúdo está revestido com a abertura da Europa á diversidade cultural do mundo conhecido. Pode-se imaginar unia feira renascentista com as novidades trazidas das mais diversas partes do mundo recém-dcscobcrtas Aliir.er.tos básicos da cozinha, como a batata, o tomate, o cacau; temperos variados; tecidos e tinturas; pessoas e animais de diversas partes são trazidos á Europa no mesmo espirito de exotismo, A própria idéia de comércio, como intercâmbio de bens. circulação de mercadorias ou necessidade da criação de valores de troca, expressa bem o movimento da época. A feira dc rua contém um elemento de festa popular, desordem c gritaria diante de uma profúsào de mercadorias, Difícil nisto -c isto é significativo do período- devia ser a atribuição dc valor a cada coisa; quanto vale um cocar indigena. que importância ele tinhu em seu contexto original? Quanto vale uma pequena estátua que representa a divindade de uma certa cultura? Corno crcr na fídcdigntdade do produto oferecido? Dc modo idêntico, podemos imaginar o espanto do liomcm ocidental ao deltoutar-se com as religiões e costumes distintos pelo mundo. Duas atitudes básicas podem ter sido tomadas diante desse conlmnto. Uma e mais convencional e reassegura as certezas sobre si; consideraria a diferença «na erro. Se o outro pensa de forma diferente da minha, ele está errado; cahe. por isso. catequizá-lo, conduzi-lo á verdade. Caso ele se recuse, justifica-sc a utilização de meios, digamos, mais convincentes, dado que se trata de seu próprio bem. A chamada “conquista da América” mostrou muito bem como se processa isso e quais são suas conseqüências, com um extem inio nuissivo de culturas. A outra atitude parece ser tnais auto-críiica e parece ter tido um lugar considerável no Renascimento. Diante do confronto com a verdade do outro, acaba-sc por se colocar cm questão a própria verdade, nâo para substitui-la, mas para tomá la não mais como única, mas com uma dentre as possíveis. Ou ambas a verdades são válidas, ou ambas inválidas. Ilá um brilhante estudo dc Todorov sobre este tema. em A conquista da Am érica. Nele é analisada a questão do confronto eom o outio através do que considera ter sido, mais do que o maior genocídio já perpetrado, um acontecimento fundador da Modernidade. 26 Gabriel Rossi 1'edm I .uís R:hcm> de Sanli A tese de Todorov é a de que tanto os espanhóis quanto os nativos tinham ama absoluta incapacidade dc enirar em contato com o outro enquanto tal. Cada um tomava o outro de modo auto-reíerente: alguns astecas tomavam Corte? como o deus e imperadorQuetzakoatl, cujo retomo estava predito: os nativos de nações dominadas violentamente pelos astecas viam tão somente a troca de um algoz mais violento por um outro erroneamente tomado como itKtios violelo. Quanto aos espanhóis, ou tomavam os nativos como objeto desumanizado, a scr escravizado ou morto gratuita mente, ou pensavam ter encontrado na América o paraíso terrestre, ou ainda insistiam -como Colombo- na crença de que haviam de alcar.çado as Índias, denominando os nativos de “indios". De toda a forma, os espanhóis realizaram a conquista, subjugaram os nativos de muitas etnias (c aniquilaram completamente outras >, que possuíam uma população quantitativamente muito super.oi a de soldados espanhóis. Além disso, o imperador asteca Montezuma cntrcgou-se aos espanhóis c parece ter entregue sua nação sem resistência. Eis uma bela passagem na qual Todorov interpreta este fato: “O cncontm de Montezuma com Cortcz. dos índios com os espanhóis, ê. unlcs de mais r.ada, um encontro humano; c não há razão para surpresa se os especialistas da comunicação humana levam a melhor Mas essa vitória, dc que somos todos originários, europeus e americanos dá ao mesmo tempo urn grande golpe em nossa capacidade dc nos sentirmos ern harmonia com 0 mundo, de pertencer a uma ordem pré- estabelecida; tem por efeito recalcar profundarneme ú comunicação do homem com o mundo, produziT a ilusão de que tuda comunicação é comunicação inter-humana; u silêncio dos deuses pesa no campo dos europeus tar.to quarto no dos indios Cunhando dc um lado, o europeu perdia de outro: ímpondo-se em toda a Terra pelo que era sua superioridade, arrasava cm si mesmo ,1 capacidade dc integração no mundo Durante os séculos seguimos sonhará com o bom selvagem; mas o selvagem já estava morto, ou assimilado, c o sonho estava condenado á esterilidade. A vitòna já trazia em si 0 germe dc sua derrota, mas Corte/ não podia saber disso.” (p. 93-94) 27 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Construção do eu nu Modernidade* A vitória dos espanhóis teria se dado por sua maior habi I idade cm entendei o modo de pensar do outro, tirando proveito disso. Todorov insinua que este teria sido o mais importante fator da dornttwção do europeu sobre o mundo: ele seria capa/ de dissimular e mentir. Em nossos termos, ele ê eapa2 de criar um distanciamento entre sua ação e sua intenção, de acordo com seus interesses. Todorov chega a comparar a caoaeicadc comunicativa dcCortez com as prescrições dc M aquiave! em O p rín c ip e , escrito na mesma cpoca. Nesta habilidade com unicativa, neste auto-distanciamcnto e neste uso puramente funcional da linguagem, estarU fundada a Modernidade. Temos, como em relação a Rabclais. uma posiçào intermediária: o europeu teria uma quase total incapacidade dc entrar em contato com a alteridade, buscando dominar e assimilar o outro; por outro lado, ele parece ter sido m ais capaz que outros povos paia sair de seu próprio ponto de vista e procurar compreender o do outro, ainda que para domina-lo. Todorov também indica que os europeus cstariam acostumados a operar um descentramento, desde que seu centro religioso, Jerusalém, era. dc fato, fora de seu continente. N’a conclusão dc sua obra, Todorov apresenta-nos esta formulação paradigmática sobre a questão do outro: “Pois o outro deve ser descoberto. Coisacicna de espanto, já que o homem nunca está só, e niu seria o que é sem sua dimensão social. E, no entanto, é assim: para a criança que acaba dc nascer, seu mundo õ 0 mando, c o crescimento é uma aprendizagem da exterioridade e da sociabilidade, pode- se dizer, um pouco grosseiramente, que a vida humana está contida entre dois extremos, aquele onde o eu invade o mundo c aquele onde o mundo acaba absorvendo o eu, na forma dc cadáver ou dc cinzas. F, corno a descoberta do Outro tem vànrxs graus, desde o outro coino objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro comu sujeito, igual ao eu, mas diferente dele, com infin itas nuançai intermediárias, podc-sc muito bem passar a vida toda sem nunca chegar ã descoberta plena do outro {supondo-se que ela possa ser plena). Cada um de nós deve recomeçá-la. pur rua vez; as expencncias anteriores não nos dispensam disso. Ma? podem ensinar quais silo os eleitos do desconhecimento, (p. 243) 28 Gabriel Rossi Pedro Luis Ribeiro de Saot i Sc voltamos agora a imagem da têira e do comércio, veremos que aqui impera o convívio com uma inédita diversidade de coisas. Essa festa, no entanto, traz u problema», referido antes, de atribuição dc um valor justo a cada coisa. As coisas estão fora de seus contextos, onde talvez possuíssem um valoi justo, mas nesse encontro fortuito da leira já não se pode pensm ern seu valor original. Ainda nesse sentido, pcnsc-sc na reação das pessoas diante do relato dos viajantes sobre as coisas incríveis que viram. Uma vez mais, a credulidade das pessoas seria ahaiada. Como distinguir relatos confiáveis de outros mentirosos ou fantasiosos? A descrição de um tamanduá parecerá tão absurda ou possível quanto a de um dragão do mar; os relatos sobre cidades feitas de ouro (o Eldorado) tocarão nas fantasias sobre o paraíso reencontrado nessas terras distantes e selvagens (onde, em se plantando, tudo dá...). PIN TU R A - Roseli e Arrim hoUlo Reíértmo-nos, na parte anterior, a artistas como da Vinci c Michelartgelo. Nesta, o pintor que nos ocorre é Bosch. Ele nasceu em 1450, quase no mesmo ano que Leonardo da Vinci (1452), mas, enquanto da Vinci parece estar em casa no Renascimento, fiosch parece sofrer mais os efeitos da fragm entação. Seus biógrafos informam-nos que Boscli nasceu justamente diante de uma feira, mas ele não se sentia em casa. Parece que seu mundo de valores era medieval c que, ao abrir suas janelas, lhe parecia estar assistindo o apocalipse, o caos. Assim, curiosamente, ele acaba expressando melhor que seus contemporâneos a fragmentação do século. Suas pinturas mostram corpos dilacerados, em corr.binaçõcs alucinadas. Com freqüência, ele c tomado como um pré-surrealista, mas ele provavelm ente acreditava ser um h iper-realista , m ostrando a degradação dos tempos, o fim do mundo da ordem. Há outro pintor que trabalha a fragmentação, mas -talvez por ter nascido já no século XVI, quase XO anos depois dc B osch- sem o m esm o tum apocalíptico. Ele c A rcim boldo, com suas composições dc retratos utilizando fragmentos de coisas. Sua série mais conhecida é a das quatro estações, onde con stró i expressões humanas combinando elementos típicos dc cada epoea. O efeito è 29 Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Construção <io eu r.a Modernidade grotesco, mas divertido e instigante e parecerá uma ilustração perfeita para um tipo de música a que ro s referiremos na próxima parte, chamado "Las Ensaiadas”. Enfim, justamente da crise no final da Idade Media, resulta essa falta de critérios absolutos, que gera uma crescente insegurança, Numa citação dc Montaigne, um dos mais importantes pensadores do século XVI. encontramos uma articulação do que temos dito: "Em verdade o homem c de natureza muito pouco dclinicla, estranhamente desigual e diverso. Dificilmente o julgaríamos dc maneira decidida c uniforme”" M Ú S IC A - A P O M F O N ÍA A polifonia é um tipo dc música típica do Renascimento. Assim como o canto gregoriano expressava bem o espírito medieval, a polifonia encarna seu tempo O termo significa "muitas vozes” e é justamente como se n coro em unissono do gregoriano sc tivesse estilhaçado; cada voz canta uma melodia diferente, por vezes também uma letra diferente Podem scr quatro ou muitas mais vozes, gerando um efeito ruidoso, quase já nào musical. No entanto, elas convivem. A través do século X VI, vai aum entando a cap ac id ad e dos compositores de harmonizá-las. Há um a peça de especial interesse dentro do que temos trabalhado. Ela sc chama Voulez ouyr les cris de Paris? (“Querem ouvir os gritos dc PansT’), deClément Janequin1-'. Nela, emee cantores perguntam-nos. por um minuto, sc queremos ouvir os gritos de Paris, Suas vozes são um pouco d e fa sad as en tre si. m as tudo c compreensível. Após a introdução, há um breve silêncio e então começamos a ouvir uma gritaria onomatopaica que se passa numa feira, com vários vendedores chamando a atenção para o seu produto. Eventual rr.cntc. as vozes unem-se por instantes cm tomo de um tema para, cm seguida, se dispersarem de novo. Adiante, outro tema surge e. novamente, desagrega-sc, como muna rapsódia. Tudo é muito 11 Ensaios, t , Cap. I. p. 14. 11 Voulez ou)r les cris de Paris? c La RatatUe, extraídas de “Les cris de Paris, Harmonia Muoclí. 1982”. 30 Pedro Luis Ribeiro de Sunti engraçado c carnavalesco (c inevitável pensarmos na situação da gravação em um estúdio moderno, em que músicos educados na rigidez dc conservatórios grasnem, gritem e. é claro, desafinem, com a leitura rigorosa da partitura). O centro da produção poli fônica 6 a Espanha que, por ter sofrido a invasão muçulmana, traz em sua cultura muitos elementos assimilados. Há músicas de uma extrema melancolia, lamentando a perda da felicidade e da ordem (idas viagens e guerras11. Em anexo, está o começo de um dos livros ttiais dehochados do século XVT. N e le p o d em o s reconhecer, d e sd e a referência constante no Renascimento ã cultura clássica grega, até o tom irreverente r. visceral do mundo menos idealizado e n a is próximo da experiência imediata dos pra/eres do corpo Trata s? de um mundo de exageros, deboche e excessos, habitado por gigaites. T E X T O A N E X O - François /tabelais C A RG Â N TU A E PANTAGRDEL “AO LEITOR Antes mesmo de In . leitor amigo. Despojai-vos de ioda má vontade. Não escandalizeis, peço, comigo: Aqui não há nem mal nem falsidade. Sc o mérito é pequeno, na verdade, outro intuito nau tive. no entretanto, A não ser rtr, e lazer nr portanto. Mesmo das aflições que nos consomem Muito mais vale o nsc do que o pranto Ride, amigo, que rir c próprio do homem.” (p. 31). •'PRÓUXJO DO AUTOR Bchedorc» ilustrese preciosíssimos bexiguentos ípois a Vos, não a outros se dedica o meu engenho]: Akébiades. no diálogo dc Platão intitulado O Banqueit, louvando o seu '* Ouça Rodrigo Martinez, Pues fíie/t, para éfia, Por las vrVm/í dc Sfadrid 6 Al aiva ivnid, extraidas de “£ / Concioaero de Paiaeio, dc grupo Herpérion XX, AstréC'Audi vis. I991" 31 Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Construção do cu 11a Modernidade preceptor Sòcialcs (sem controvérsia, príncipe dos filósofos), entre outras coisas disse scr clc semelhante aos "silcnos". SUcrtos, para os antigos eram caixinhas, tais como as que hoje vemos nas vendas dos boticários, tendo pintadas umas figuras alegres e frívolas, como liarpius. sátiros, gansos ajaezados, lebres chifrudas, paios com cangalhas, bodes voadores, veados atrelados e outras figuras semelhantes, nascidas da imaginação, próprias para provocar o riso como fazia Sileno, mestre do excelente fiaeo. Dentro delas, porém, guardavam-se drogas valiosas corno o bálsamo, a âmbar- cinzento, 0 amorno, o almíscar, jóias c outras preciosidades. Tal se dizia scr Sócrates, porque, queni o visse por fora. e estimando apenas a aparência exterior, nâo lhe daria mini mo valor tanto clc era feio de corpo c ridículo em sua aparência, com nariz pontudo, olhosdc boi. cara de bobo, simples cm seus modos, rústico em suas vestes, parvo de riquezas, infeliz com as mulheres, inapto para todos os ofícios da república, sempre rindo, sempre tomando seus tragos, por causa disso, senipie brincalhão, sempre dissimulando o seu divino saber. Quem abrisse aqucái caisj, porém, lá dentro encontraria um bálsamo celeste e inaprcciãvel um emendimento mais que humano, virtudes maravilhosas, coragem tnvcncivci sobriedode sem igual, contentamento certo, segurança perfeita, incrível desprendimento com ivlncao n tudo que os humanos tanto ptvzairt, ludo aquilo que tanto oobiçant c em prol do quê correm, trabalham, navegara c batalham Se não acreditais, por que não fareis o mesmo com estas novas e divertidas crônicas':' Eis que. ditando-as, não pensei senão em vós, que porventura hebeis como eu bebo. forque, nu 001 oposição deste livro senhonl, não perdi, e jamais ompníguéi um outro tempo, do que aquele que gasto para tomar a minha refeição corporal, a saber, bebendo e comendo. São estas as horas mais adequadas para escrever sobre essas altas matérias e ciências profundas, como hem fez sabei' Homem, paradigma dc todos os tilõlogos, c Ênto, pai dos poetas Jatinos. assim como testemunha Horacio. embora um grosseirão tenha dito que os seus “Odrcs"' cheiravam mais a vinho do que a azeite. Coisa idêntica disse um bulio dos meus livros; mas merda para ele1 O odor de vinho. õ. como ê mais saboroso, mais agradável, avais atraente que o do azeite1 32 Pixlro l ms Ribeiro de Sann Bosch, "O Juízo Final” (c. 1500). Cheias dejigurus irnagtnàrias e muitas grotescos. f tu c t lança mão de uma grande liberdade estética, com dt-uorções fisicas, para representar os distorções de caráter. (jiatto, “A Cura de Lázaro " fc. 1305). Giotto introduz na pintura uma expressividade e uma dramaticidttde inexistente em períotfax anterior cia pintura, mus suo temática ainda era centraitnenie religiosa. Da linci. "As Proporções da Figura Humana" O homem jtossn gradativamente a ser a medida de todas as coisas O cvrp/j humano c valorizado e é apresentado em proporções geométricas. 33 A Construção do eu na Modernidade Rvmhrandi, “A lição de anatomia do Dr. Tulp " (16321. O jogo do !u: (daro/escum) permite rim foco objetim sobre o objeto da pintura. Nuda disperso a percepção. Assim como no pro/cto carlexiuna, temos a busca por representações claras e distintas. 34 Arcimbofdo, "A primavera ". O to do è formado por um con/ttnio de fragm entos evo cativas da estação. A representação e poiifõnica e pede diversas perspec- tivas de ívdin Pedro Luís Ribeiro de Sanü l; sinto-me muito muis lisonjeado, quando se diz que gasto mais vinho do que azeite, do que ficou Dcmóstenes quando dele disseram que gustuvu mais azeite do que vinho. Para mim, só me sinto honrado e jubiloso por ter fama de sei um bom copo e um hom companheiro: graças a isso sou bem recebido cm todos os bons grupos de pantagruclistas. ( ..) li agora di v erli-vos. meus queridos, e lede alegremciue. para satisfação do corpo c beneficio dos rins. Mas escutai, sem vergonhas e que n úlcera vos corroa: tratai de beber poí mim, que eu começarei, sem mais demora ” fp. 33-361 + Vemos, com Rabclais, a valorização do nso e de toda forma de prazer corporal, em confronto com a tendência nascente (e que dominará o século X VII) dc só respeitar a seriedade, a contenção e a mente. Talvez convenha lembrar exatamente neste momento, como Umbcrto Eco deixa claro, no eixo de seu romance uO Nome da Rosa”, o risco que a visão ortodoxa considerava liavcr no riso, também no final da Baixa Idade Média. Na tentativa de conter o riso -o prazer > observ amos o esforço em obter o aulo-controle. Ao mesmo tempo, vemos a valorização renascentista da cultura greco-romana. Q lIfS ttks para discussão 1 Qual c a importância da feira dc rua no universo do Renascimento? 2 Que tipo dc reação foi gerada pelo confronto com outras culturas? 3. Por que no Renascimento o homem perdeu suas certezas? A Construção do «ru na Modernidade 5 OS PROCED IM ENTO S DE CONTENÇÃO DO EU Acompanhamos, nesta parte, algumas das medulas tomadcs para o restabelecimento de referencias ftarr a colocação do homem no mundo. Elas estarão voltadas ao próprio eu. na figura do auto-controie. A J T x . nova valorização do ser humano e a imposição de que ele construa sua existência e descubra valores segundo os quais viver, aliada a toda a dispersão c fragmentação do mundo, que apontamos acima, levarão a tentativa de criação de mecanismos para o dominio c formação do eu. É na formação destes procedimentos - ‘modos de ser"- que poderemos começar a reconhecer os rumos que levarão à Psicologia, Citando uma vez mais Figueiredo: “(...) t.k> importantes ou até mais importantes do que a abertura de espaços de liberdade mdividua. com se vê acontecendo ao longo do processo dc desintegração tios 'civilizações fecha das’, são as tentativas de circunscrever estes espaços. Assim sendo, as experiências subjetivas nn sentido moderno do termo e que vieram a se converter em objeto dc um saber c de uma intervenção psicológicos devem a sua emergência tanto ás vivências de diversidade e ruptura como às tentativas dc orde nação e costura, ou seja, a todas ai praticas reformistas que bnphcavam urna subjetividade indivkualizada c uma tensão sus tentada entre áreas ou dimensões de ] herdade e áreas ou dimen sões dc submissão. (...)Como se vê, o ‘ indivíduo', ao contrato do que o termo sugere, nasce da dispersão c traz uma cisão interior inscrita em sua natl)reza.'’l', 14 .4 invenção do psicológico, p, 59. 36 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Pedro Luis Ribeiro de Santi Impoc-se ao homem, a partir ele agora, escolher o seu caminho. Essa escolha implica cm uma construção da identidade, e todos os exemplos mostram-nos como isso exige um esforço brutal, quase sobrehumano; o homem deve dominar a dispersão que o mundo 6. () carnaval de Rabelais será contido, o corpo c suas funções serão calados cm favor da coesão e da oídem do sujeito. Durante a Idade Media, era relativamente difícil explicar como era possível ser responsabilizado por pecar: se a pessoa não em livre e apenas cumpria os planos de Deus, como responsabiliza- la? No Renascimento, a questão pode ser equacionada de outra forma: Deus fez o homem Itvre para que ele possa ser julgado; ele pode e sco lh er um bom caminho e ser recompensado po: isso, mas pode ser desviado dele por tentações e dispersões - e o mundo rcnascetui sta as oferece em quan:idade e, então, ser responsabilizado e punido por isso. A questão passa a ser; o que eu devo ser? Como devo me fo m a r? F.m term os m ais p s ic o ló g ic o s , com o con stru ir uma identidade? Há vários exemplos de modos dc constituição de identidade no Renascimento. Talvez o mais conhecido seja o de Dom Quixote de La Mancha, personagem dc Cervantcs, que sc identifica com o ideal do cavaleiro attdante medieval e procura afirmar-se. A evocação deste exemplo já sugere que a afirmação de uma identidade coesa pode assemelhar-se à alucinação, na medida cm que cia deve impor- se sobre o inundo, ele próprio em frangaLhos. Passemos agora a um exemplo concreto de procedimento vislumbrado no século XVI para a constituição dc uma identidade coesa, que consiga nüo se deixai levar pela disnersào. O pensamento religioso, adaptando-se aos tempos como sempre, pnxluzirá. sobretudo através de Santo Inácio de Loyola. procedimentos para a afirmação da identidade sobre a dispersão do sujeito. guiando-o de volta a Deus. Santo Inácio converteu-se á religião já adulto. Ele havia sido militar, c uma das características mais marcantes que impôs a seu sistema foi a disciplina. Tendo fundado a Com panhia de Jesus, imprimiu um traço distintivo dos jesuitas até hoje, sua iniciativa prática e pregação militante. Santo Inácio parte do mundo renascentista, reconhecendo a liberdade hm rana, mas constataa perdição do homem e buscará 37 Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Construçilo do eu na Modernidade mostrar-lhe o caminho do reencontro com a ordem. Seu procedimento, propriamente humanista, taz. escola até hoje: o homem é livre para ser o que é e parece estar perdido; ele precisa e pode. portanto, dirigir sua livre vontade ao caminho correto para se encontrar. O que ele precisa e de um manual dc instruções, uma tccniCH para dirigir sua ação. Em Os Exercidos Espirituais, são propostos uma série de procedimentos, com a duração de 28 dias. cujo cumprimento rigoroso deverá levar o praticante à iluminação. Uma vez mais. vale a pena reproduzir alguns trechos da obra: TEXTO ANEXO - S a n to Ig n á cio de Loyola EX ERCÍCIO S ESPIRITUAIS “ I* Anotação. Por esta expressão, Exercícios Espirituais, enlendc-se qualquer modo dc cxainrnar a consciência, meditar, contemplar, oraj vocal ou menialmcnte, c outras atividades espirituais, dc que adiante falaremos. Porque; assim como passear, caminhar c correr são exercícios corporais, também sc chamam exercícios espirimais os diferentes modos de a pessoa sc preparar c dispor paru tirar de si todas as afeições desordenadas, e, lendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus. *ia disposição da sua vida para o bem da mesma pessoa.” (p. 11-2). ”5* Anotação. Muito aproveita ao exercitatue entrar neies com grande ânimo c liberalidade pum com seu Criador e .Senhor, ofercccndo-dic todo o seu querer e liberdade, para que sua divina majestade sc sirva de sua pessoa e dc tudo quanto possui, conforme a sua santíssima Vontade." (p. 15). “EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS PARA 0 HOMEM SE VENCER A SI MESMO E ORDENAR A PRÓPRIA VIDA. SEM SE DETERMINAR POR NENHUMA AFE1ÇÀO DESORDENADA** (p. 27). PRINCÍPIO E FUNDAMENTO O homem é criado paia louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua alma. E as outras coisas sobre a face d.t terra sào criadas para o homem, pura que o ajudem » alcançar o fitn para que é criado. Donde sc 38 Gabriel Rossi Pedro LuLs Ribeiro dc Saati segue que hà dc usar delas tanto quanto o ajudem a atingir o seu fim. c há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. Pelo que é necessário tornar-nos indiferentes a respeito de todas us coisas criadas cm tudo aquilo que depende da escolha da nosso li\'re-arbítrio, e não lhe c proibido. IX* ta. nume ira que, dc nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante cm tudo o mais, desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduz ao fnn para que somos crindos." (p 28). "REGRAS PARA SENTIR VERDADEIRAMLNTE COMO SE DEVE NA IGREJA MILITANTE I" regra. Renunciando a lodo juízo própno, devemos estar dispostos c prontos a obedecer em tudo á verdadeira esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, a santa Igreja hierárquica, nossa màe.'’(p. 188) "9' regra. Louvar tlnalmente todos os preceitos da sarna Igreja, e estar disposto para procurar razões em sua defesa, e nunca para os criticar," “ 13* regra Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a ercr que o que nos parece braneo é negro, sc assim o determina a Igreja hierárquica; persuadidos de que entre Cristo Nosso Senhor -o esposo- e a Igreja -sua Esposa não ha senào um mesmo Espírito, que nos governa e dirige pura a salvação das nossas almas. Porque é pelo mesir.o Espírito c mesmo Senhor, autor dos dez mandamentos, que se dirige e governa a santa Igreja, nossa Mãe." "15* regra. Habitualn-jcnte nào devemos falar muito dc predestinação. Mas se cm alguma ocasião se falar disso, faça- sc de maneira que os simples fiéis não caiam em algum erro. Algumas vezes isso acontece, quando concluem: “Se já está determinado que me vou condenar ou salvar, nào são as minhas ações hoas ou más que hão de mudar esta determinação". E com este raciocínio tornam-se negligcnics e descuidam as obras que conduzem á salvação ç ao proveito espiritual das suas almas." (p. 192) “ 17* regra. Igualtnentc não devemos tnsistir tanto nn graça a ponto dc se produzir o veneno que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da fc c da graça, mediante o auxilio 39 Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Construção do eu na Modernidade divino, para maior louvor de sua divina Majestade, mas não de tal forma nem por tais modos, mormente cm nossos tempos tão perigosos, que as obras c o livrc-arbitrio sejam prejudicados ou mesmo negados." (p, 193). * Assim, u liberdade humana é reconhecida apenas para se lhe atribuir a causa da perdição humana. Curiosamenie, a salvação implica justamente em abrir mão de forma absoluta dessa liberdade, transferindo-a á autoridade religiosa com Ioda a boa-vontade c determinação. A submissão do sujeito deve ser absoluta, esse c o preço a pagar pelo repouso numa certeza sem conflitos. Exigc-.se disciplina, dedicação e, sobretudo, que se abra mão da própria experiência imediata em favor da palavra da Igreja. Se, ao fim dos 28 dias, a iluminação não chegou, isso nào se deve a uma falha do método, mas certamcnte à pouca fé e à fraqueza da vontade do excrcitantc'5. F. bastante visível o quanto parte daqui a inspiração de um gênero literário de bastante sucesso no final do século XX, chamado "Psicologia de auto-ajuda" A crença na liberdade humana absoluta, que d i/ que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos, envolve um forte sentimento dc culpa: se somos o que fazemos de nós, esta infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por nós, nós a merecemos. A premissa do título dc urn livro como “Só é gordo quem quer", poderia scr derivada em "só c pobre quem quer”, ou "Só é brasileiro quem quer", etc. A única determinação reconhecida para nosso scr é a própria vontade; todas as determinações históricas, sociais, genéticas, etc, são simplesmente negadas. A cada época, a falta de sentido dc nossa existência mostra- se preza fácil das “ au to rid ad es dc p lan tão ” a nos o ferece r generosamente seu manual de como viver. Mais importante do que esta produção, c a percepção de como a Modernidade parece implicar Santo Inácio antecipa dc forma espantosa alguns dos mais importantes pensadores do século XVII: Descartes e Hobbes. Mais perto dc nós. antecipa também as Psicologias humanistas ou dc auto-ajuda c ainda alguns cultos religiosos e procedimentos de Marketing. 40 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Gabriel Rossi Pedro Luis Ribeiro de Santi neste sentimento de va/io e cria a demanda por nos formarmos continuamente M ÚSICA - UMA PO LIFO N IA MAIS COM PORTADA Uma vez mais, a música nos auxiliará na exemplificação de um co n ce ito . No final do sécu lo X V I, a p o lifo n ia parece gradativamente tornar-se mais bem comportada. As vozes múltiplas vão sendo harmonizadas e não sc tem mais a impressão de ru do: elas simplesmente .sâo disciplinadas, dispostas de tal forma que componham um todo equilibrado, listamos a um passo da “fuga” (estilo próprio ao século XVIF). Mesmo as letras parecem mais comportadas, evocando a contra-reforma. Não será possível retomar ao universo do canto gregoriano, mas sera possível buscar orcem dentro da diversidade, como vimos através de Santo Inácio. F.is uma curiosa letra, composta por Mateo Flocha, HI Viejo, num gênero que tem o evocativo nome dc Las Ensaiadas. EL FUEGO1® - Ua (ca F lecha , L I lle jo Corrcd, corred. pecadores! No os tardeis a traer luego agua al fuego, agua ul fuego' fuego, fuego. fuego! Este fuego que se enciende es d maldito peccado. que al que no hulla ocupado sicmpre para st Io prende. Qualquier que de Dios pretende salvacíon, procure luego agua al fuego. agua al fuego "Et fuego" e "Ia i \egrina", extraídas dc "Las Ensaiadas, Sony M u ú c , 1991”. Ambas são ainda polifonias, compostas dc vários fragmentos temáticos c mesmo de vários idiomas, mas pode sc notar, cspecialmente na segunda, o quanto as vozes ja estâo harmonizadas, submetidas a tina composição rigorosa. Ouça também o inicioda "Missa Papae MarccUi". dc Paleslnna, extraída dc "Baroque. Paiestrina e Moateverdi, EMT Classes, 1995”. 41 A Construção do eu na Modernidinle Fucgo, fucgo, fucgo! Venid presto, pcccadores, a matar aqucstc fticgo; I laced penitencia lucgo de todos vuestros emires- Rcclamen essas campanas dentro cn vuestros coraçoncs. Dandán, dandán. dandán... Poné en Dios Ias aficiones, todas las gentes humanas. Dandán. dandán, dandán Uamad essos aguadores, luego, luego, sin lardar! Y ayúdennos a rnatar este fucgo, No os tardeis en tracr luego dcnlro de vuestru conciencia mil cargos de penitencia de buen' agua. y ansí matanõis Ia fragua dc vuestros maios deseos, y los cnemigos fcos huyrán. A expressão ‘salada" ê especialmente própria para delinir a polifonia, neste caso. Mesmo já sc tratando de urna música mais con tida , não faltam m isturas dc tem as m usicais, id iom as - aparentemente, trata-se de uma coleção de trechos dc canções unidos ao gosto do compositor. Já mais ao final do século, encontramos uma música propriam ente equilibrada e muito bonita, um dos melhores frutos da religião, a música sacra. * Tomemos agora outro exemplo hem mais cruel c naturalista de procedimento dc afirmação do sujeito; O P ríncipe, obra dc Maquiavel do começo do século XVI, Trata-se de uma sene de prescrições sobre como bem governar. Em nosso contexto -isto poderia sc tradu/ir assim: que tipo dc sujeito utri principc deve ser? Como deverã ser seu “euM?. Seu princípio c o de que o mundo (figurado pela figura do Gabriel Rossi Pedro l.nis Ribeiro de Sarri povo) é volúvel -voltando-se para aquilo que representar seu interesse mais imediato , sem memória, egoísta e, enfim, nau. A grande preocupação de Maquiavel c a fragmentação da Itália e a sua invasão por bárbaros. É necessária a imposição de um sujeito forte. O governante não tem outra opção que sc afirmar à força, criar alianças mais pelo temor do que pelo amor. como única forma tlc estabelecer uma umdade a dispersão O valor primeiro de tudo será a obtenção e manutenção do poder centralizado. Para tanto, não há que se ter vergonha por fa/er qualquer coisa nc*ie sentido, mesmo matar a quem quer que represente uma ameaça ao poder. O principio ético c o da afirmação do poder. Maquiavel foi tomado como imoral e desumano <de seu nome deriva o adjetivo 'm aquiavélico’, que atualmente significa ardiloso, maldoso). No entanto, se inserimos o discurso de Machiavcl nesse contexto de crise da té em um poder transcendente e entendemos o maio da dissolução, talvez tome-se mais compreensível a radicalidade e a urgência dc seus preceitos. Abaixo, seguem-sc trechos de O p rín c ip e . TEXTO ANEXO - M co ló M a ch ia reili C) PRÍNCIPE é que os homens, com satisfação, mudam dc senhor pensando melhorar c esta crença faz com que lancem mão dc armas contra o senhor atual, no que se enganam porque, pela própria experiência, percebem mais tarde ter piorado a situação.” (p. 11) "E quem conquista, querendo conserva-los (o poder c o domimo] deve adotar duas medidas: a primeira, fazer com que a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a outra, aquela de não alterar nem as suas leis nem os impostos: por tal forma, dentio dc mui curto lapso de tempo, o território conquistado passa a constituir um corpo todo com o principado antigo.” (p. 13) “E que, em verdade, não existe modo seguro para conservar tais conquistas, senão a destruição. E quem se tome senJior de uma cidade acostumada a viver livre e não a destrua. es|>er e ser destruído por cia, porque a mesma sempre 43 Gabriel Rossi Gabriel Rossi A Construção do eu nu Modernidade encontra, para apoio dc sua rebelião, o nome da liberdade c o de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja pelo decurso do tempo, seja por bcneficios recebidos. Por quanto se faça e proveja, se não se dissolvem ou desagregam os habitantes, eles nào esquecem aquele nome nem aquelas instituições, e logo, a cada incidente, a eles recorrem como fez Pisa cem anos apôs estar submetida aos florentmos" (p, 30). “Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer scnào a guerra e a sua organização e disciplina, pois que c essa a única arte que compete a quem comanda. E c ela dc tanta virtude, que nào só mantém aqueles que nasceram principes, como também muitas vezes faz os homens de condição privada subirem àquele posto: ao contrário, vé-se que, quando os principes pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o seu Estado,” (p. 85) “Resta ver agora quais devam ser os modos e o proceder dc um príncipe para com as súditos c os amigos c, porque sei que muitos já escreveram a respeito, duvido não ser considerado presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo assunto, máxime quando irei disputar essa matéria à orientação já por outros dada aos principes. Mas, sendo minlta intenção escrever algo de útil para quem por tal se interesse, pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos c nào à imaginação dos mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou conhecidos como tendo rcalmente existido Em verdade, há tanta diferença de como se vive e como se deveria viver, que aquele que abandone o que faz por aquilo que sc deveria fazer aprendera antes o caminho de sua ruma do que o dc sua preservação, eis que um homem que queira em todas as suas palavras fazer profissão de bondade, penler-sc-á em meio a tantos que não são bons. Donde è neeessáno, a um príncipe que queira se manler. aprender a poder nào scr bom e usar ou nào da bondade, segundo a necessidade ” (p. 89-90) “Um príncipe não deve, pois, temer a má íama dc cruel, desde que por ela mantenha seus súditos unidos c leais (P- 95) “Nasce dai uma questão: se é melhor scr amado que temido ou o contrario. A resposta é de que seria necessário 4 4 Gabriel Rossi Gabriel Rossi Pedro Luis Ribeiru de Santi ver uma coisa c ou Ira, mas, como é difícil reuni-las. em tendo que faltar uma das duas é muito mais segure ser temido do que amado. Isso porque dos liomens pode-se dizer, gcralmcntc, que sào ingratos, volúveis, simuladores, temenfes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus. ofcrcccm-tc o próprio sarguc, os bens, a vida. os filhos, desde que, como se disse acima,a necessidade esteja longe de ti: quando esta se avizinha, porem, revoltam- se. E o príncipe que confiou intciramcntc cm suas palavras, encontrando-sc destituído de outros meios do defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, sào compradas mas com elas não sc pode contar e, no momento oportuno: nào se toma possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que sc faça amar do que aquem sc faça temer, posto que a amizade é mantida por um vinculo de obrigação que, por serem os homens maus. é quebrado em cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor c mantido pelo receio de castigo que jamais sc abandona." (p. 96) “Náo se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim dc que a Itália conheça depois de tanto tempo, um seu redentor. Nem posso exprim ir com que amor ele teria recebido em todas aquelas províncias que tem sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede dc vingança, com que obstinada fé. com que piedade, com que lágrima?, (^uais portas se lhe fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual inveja se lhe oporia? Qual italiano lhe negaria c seu favor? A todos repugna este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência com aquele ânimo e com aquela esperança com que sc abraçam as causas justas (p. 146) * Sem dúvida, por mais que possa parecer esranho. há uma serie de pontos em comum entre este procedimento t o prescrito por Santo Inácio. Ainda que um afirme o valor do humano e o outro o retomo a Deus, ambos crêem na necessidade tia afirmação do sujeito através
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