Buscar

A_construcao_do_eu_na_Modernidade_Da_Ren(1)

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 132 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 132 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 132 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

A con stru çã o d o 
eu na M odern idad e
Da Renascença 
ao Século X IX
Pedro Luiz Ribeiro de Santi
O cHoíoi. 
ÊtUfom
V Q ue características deste século são re su lta d o s d e m udanças dc fut 
ocorridas nos últimos cinqüenta anos? A sensação d c fcagmenlaçào do eu 
v isão que as pessoas têm dc si m esm as é r e s u lt a d o p a rticu la r de su 
personalidade ou é um padrão geral na sociedade con tem p orân ea?
Diversas mudanças na culnira nos u ltim es 300 anos fizeram com qu 
f o s s e altamente desgastada nossa capacidade de o lh a p n o s O mom ento em q 
vivepios c dc com preenderm os as ra í/es de s u .ls crises no passado. Os teni| 
•atuais têm essa mistura de grande desenvolvim ento t e c n o ló g ic o e uma cnorm 
carência de reflexão filosófica. Há problema- estr itam en te atuais, mas as bus 
' d a atualidade vêm de longe.
Pedro Luiz Ribeiro de Santi. neste A construção do «e na M otlernuU uk\ 
ífo rf ie ce uma ferramenta para professores e a limos q u e pretendam tratar o temp 
I atua l com uma perspectiva histórica. Com olhos v o lta d o s para os pm i-vdenttÀ 
E d a Psicologia como uma área cientifica, de Santi acab a por fazer um resumo d 
h is tó ria do p en sam en to f ilo só fico nos ú ltim o s 500 a n o s . A le itu ra d 
| fundamentação para que alunos de Psicologia possam compreender o surgiment 
S d e sua própria profissão, mas tam bém fornece m ater ia l para que alunos 
interessados de quaisquer outras áreas possam com preend er as raízes da vi sã 
d o fiomem de si mesmo no século XXI Com e x em p lo s n a m úsica, nu literatura! 
" i pintura e no com portamento, de Santi narra a trajetória da construção 
ópria imagem do homem.
Asaocnçôo catarineose <te Ensino
■045518* 1501
A oanrfii nSo Uft eo ní
Pedro Luis Ribeiro de Santi, plrsantifiruol.cojn.br 
C Pedro Luís Ribeiro de Santi. 19%, 2000,2003,2001, 2005,2009.
Dados Imcrnackinais de CulittoKttçiUi «U Publicação (61P) 
(Câm ara Brasileira du Livro, SP. Brasil)
1 5 0 .1 de S a n t i , P ed ro L u ís R i b e i r c .
5235c A Construção do 'eu' r.a
Modernidade. Da Renascença ao 
século XIX / Pedro Luis Ribeiro de 
Kanti. -- Ribeirão Preto : Holos, 
Editora. 1990. 134 p. : 11. ; 21
1. 1 5 0 .1 . 2 . P s i c o lo g i a - T e o r i a . 
I . T í t u l o .
ISBN 85 8 6 6 9 9 -C4-7 CDD
789566 699047
Primeira capa: Mtchcfongvlu. O despertar du escreve". Um Je quatro escravos 
c.iculpidos /mr Lfichelan&do para o túmulo de Júlio ll A obro, inacabada, sugere 
ifuc o acruvo procura libertar-se do pedra,
Uhíma capa: Ammboldo. “A primavera "
fTssOüÛ AOCATARtNÊ .r 'Ta íNSwaJ 
MUOTECACMIAU.
*S9-W»,! J<*
\ 08181 i J c.jQf/aw-sç|
2009
Proibida a reprodução tnial ou parcial.
Os infratores scrào processados na fürmi tia lei.
Hiikrs Edituni
Rua Coronel Fernando Ferreira l eite 102 
14.026-020 Ribciriio Preto , SP 
Telefone. 0.++ I6.3234.K0H3 ! Fax: 0.++. 16.3234.8084 
Pmail holo«@holoscdito*a.cünü)r
w ww. ho lo sed 11 ora.co in.br
‘Todos neste mundo dizem eu, eu, eu. Se você fi/cr alguma pergunta, você 
obterá corno resposta, eu li/, cu vim, cu vt, eu expenenciei Quem é esse eu-1 
Se você reconhecer o divino comum nos milhões de pessoas, entâo você 
compreenderá o verckideiro cu <rm você Entào, isso trará transformação 
social.” (Sathya Sai Babá)
4
Pedro I.uis Ribeiro de Satui
SUM ÁR IO
P r e f á c io d e l . u í s C lá u d io F ig u e ir e d o 7
1. In trodução 9
2. A Passagem da Idade M édia ao R enascim ento 13
3 .0 H um anism o no R enascim ento 20
4 O Encontro com a Multiplicidade 25
5 Os P rocedim entos de C ontenção de Eu 36
6. A Posição de C ritica à A parência 47
7. O D iscurso do M étodo 58
8. O Eu c o N àn -b u 68
9 O s M oralistas do Século X V II 76
1 0 .0 Público e o Privado 83
11. Tem pestade c ím peto: O Rom antism o 91
12. A A uto-C ritica da R azão 99
13.0 Positivismo 102
14. O s D iversos C am inhos para a Psicologia 107
15. Figuras do R om antism o no século XIX 110
16. A lguns D esdobram entos que Levaram ã Psicologia 120
17. C onsum ação da C rise da Subjetividade 124
18 . C o n c lu s ã o 131
19. Bibliografia 132
5
A Construção do eu na Modernidade
Pedro Luis Ribeiro de Santi
PREFÁC IO
conteúdos dc Teorias c Sistemas Psicológicos ou de 
História da Psicologia, disciplinas que integram os Cursos de Psicologia 
no Brasil, estão cada vez mais valorizados e vêm sofrendo nos últimos 
tempos algumas transformações muito positivas.
H oje reconhece-se que estas m atérias nào podem ser 
consideradas com i secundárias e marginais, mas que ocupam lima 
posição fundamental na formação do psicólogo, h preciso que o aluno 
de Psicologia c futuro profissional saiba inserir-se e inserir suas 
crenças c práticas em um contexto histórico e social muito complexo 
e sem o qual nossas teorias, habilidades c técnicas nào poderiam ter 
vindo a existir e a funcionar com alguma eficácia
Na m edida cm que as m atéria s m encionadas fo ram 
conquistando uma maior consideração, foram também mudando de 
fisionom ia Não se trata mais de apenas transm itir aos alunos 
informações lacluais sobre autores e obras célebres da História da 
Psicologia (o que é importante), nem de apenas rastrear a origem 
das idems psicológicas nos campos da filosofia cdas cicncias naturais 
(o que também c de interesse). Trata-se agora de con textual izar 
histórica c sociologicamente o nascimento e o desenvolvimento tio 
universo psi, de form a a tornar in te lig íve is as p roduções e 
transformações teóricas e técnicas desse campo.
Assim sendo, as disciplina de Teorias e Sistemas, História da 
Psicologia c. cm a guns casos, como tia USr. Psicologia Geral, além 
de colocarem os alunos em contato com as diversas escolas c 
correntes da Psicologia contem porânea cm seus processos de 
constituição e mudança, passaram a desempenhar a importantíssima 
tarefa dc colocá-los cm contato com os complexos culturais de que 
as Psicologias faz;m jxute.
Tal com o sào oferecidas na UNTP e na USP (enlre muitos 
outros exemplos cue conheço, mas dc que não estou tão próximo).
7
A Construção do eu na Modernidade
estas disciplinas converteram-se em oportunidades indispensáveis de 
aproximar o alunado do vastissimo eatnpode fenômenos culturais no 
qual se formaram as subjetividndes modernas e contemporâneas. 
Foi neste campo c cm resposta às diversas demandas provenientes 
destas subjetividades que as Psicologias foram sendo criadas e 
desenvolvidas.
Quando se tenta, contudo, oferecer uma disciplina com este 
alcance e esta ambição, depara-se com uma dificuldade operacional: 
como organizar didaticamente uni material tào diverso quanto é, de 
fato, necessário -textos de filosofia, textos dc religião, textos de 
literatura (ficção e poesia), composições musicais e reproduções de 
obras dc ano-, de modo a oferecer aos alunos uma viagem rica, 
interessante mas viável e relativaroentc segura pelos terrenos da 
cultura ocidental moderna? O trabalho de Pedro Luiz Ribeiro de Santi 
é um coadjuvante valiosissimo para o professor que enverede por 
este caminho e sc coloque estas questões.
Aqui encontram-se exemplos bem escolhidos dos complexos 
culturais que. do século XVI em diante, foram condicionando as 
formas de viver c experimentar o mundo dos homens ocidentais. 
Estes exemplos, hem ordenadas c bem interpretados nas suas linhas 
mais decisivas mediante comentários breves nius elucidativos do 
Autor, retratam os quadros sucessivos em que nos fomos tornando o 
que hoje somos.
Trata-sc. portanto, de uma contribuição generosa para o ensino 
da Psicologia e que, estou certo, terá uma boa acolhida pelos 
professores c alunos que com ela tiverem contato.
ju lh o , 199# 
I uís C láudio Figueiredo
Livre Docente dc Psicologia Geral 
Universidade de São Paulo
8
Pcdru Luis Ribeiro de Santi
1
IN TRODUÇÃO
F
1—/ste livro nasceu dc uma pesquisa iniciada et» agosto de 
1995 que tinha a finalidade dc produzir material didático pani o curso 
“ Teoriase Sistemas Psicológicos” , que ministro no primeiro ano do 
curso de Psicologia desde 1992. lk>a parte deste canso c dedicado 
ao estudo das condições que levaram ao surgimento da Psicologia, 
no final do século XIX.
Desde então, tenho tentado ampl iar este trabalho, organizando 
textos, combinando trechos dc obras dc comentadores c adicionando 
novos textos originais dc cada época. Combinando a preocupação 
com a abertura dc vias de comunicação com os alunos e uni interesse 
pessoal, com freqüência uso outros recursos que não apenas textos 
teóricos, como literatura geral, filmes, referencias à ‘história dos 
costumes' e, muito especial mente, a audição de música dc época. 
P-ssa reunião entre uma Linguagem teórica c mais abstrata com outras 
m ais im ediatas e prazerosas não apenas mostrou-se produtivo, 
atendendo um pouco uma das necessidades mais comuns do estudante 
universitário de hoje. o aumento de sua cultura geral. Pia também 
deixa evidente para o aluno a relação entre os problemas filosóficos 
ilas várias épocas, que se refletem cm toda a expressão humana - 
dos hábitos á arquitetura, da música à visão dc si mesmo
Tenho procurado digerir esta experiência dc mais dc quatro 
anos através da produção dc um texto didático. Para isso, há que se 
pagar o preço de uma simplificação inevitável, quando se compilam 
fontes fragmentadas e, sobretudo, quando se tenta tomar urr texto 
sobre u historia do pensamento humano acessível á linguagem Je 
alunos dc graduação.
A esperança maior deste In ro é a dc convidar, dc um lado. 
os alunos dc Psicologia a pensar nas relações dessa área de 
pensamento com o restante do conhecimento c em suas condições 
de surgim ento . De outro , co n v id a r o pú b lico le ito r geral u
A Construção do eu na Modernidade
compreender e refletir um pouco sobre a história dos problemas 
filosóficos que resultaram no perfil do século XX. Nesse sentido, a 
Psicologia é apenas uma faceta de um contexto mais geral com o 
qual todos têm co n ta to A lastam o -n o s de um a posição 
“ substancialista”, que levasse a crer que o mundo psíquico seja uma 
coisa dem a e imutável, a qual a ciência fmalmente teria vindo 
desvela*. Assim, colocamos no livro a questão da construção do muudo 
psicológico, assim como a Psicologia como uma instância de produção 
de conhecimento cientifico Ao menos, creio que este livro permite 
introdu/ir os alunos â idéia de que a compreensão da questão 
psicológica é muito anterior á sua formulação cm lima linguagem 
científica. Ao público leigo geral, compreender que. antes oa visão 
de si mesir.o que se tem hoje na cultura ocidental, já houve inúmeras 
maneiras diferentes de ver a si mesmo e de compreender a posição 
do homem no universo.
*
Desde que o homem pensa, ele pensa sobre si mesmo, sobre 
o que é alma, desejo, liberdade, etc. Mas foi apenas no final do século 
XIX qie surgiram os projetos de se realizar uma ciência da mente, 
iu>$ moldes que conhecemos hoje. Parti uir.a primeira aproximação 
com o campo da Psicologia, é essencial que se procure pensar no 
motivo pelo qua! nasceu a demanda por um profissional, dentro dos 
moldes da ciência, para dar coma das crises de identidade ou do 
controb dos comportamentos.
Como se sabe, a Psicologia é composta de utna grande 
quantidade de teorias diferentes, que mal conseguem se comunicar 
entre si. Este estado não parece ser passageiro, mas próprio da 
Psicologia e de outras ciências humanas. Ao compreendermos o 
sentido do surgimento da Psicologia, talvez também possamos 
entender o motivo dessa dispersão.
Essa história è imer.sa Ela remonta à filosofia grega e 
acompanha toda a reflexão filosófica posterior e, mai.s recentemente, 
alcança as teorias psiquiátricas até o inicio de nosso século. Por isso, 
tomamos algumas teses sobre o assunto para organizar nosso 
percurso. Está longe de nossa pretensão realizarmos uma obra
10
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Pedro Luis Ribeiro de Santi
to talizadora ou sequer cc nos aproxim arm os disso . Trata-se 
simplesmente de perseguir um fio nesta rede. na esperança de que 
ele convide os leitores ti explorar outras vias. Como será possível 
perceber cada época tem um número de correntes de pensamento 
paralelas e um número de formas dc expressão desses pontos de 
vista. A seleção dos autores e temas obedeceu àorientação dc alguns 
comentadores clássicos, dc um lado. e a motivos menos nobres, dc 
outro, como o ponto de v ista do conhecimento prévio do autor. Muitas 
discussões essenciais sào apenas mencionadas, como a questão da 
Modernidade, algumas passagens da própria história: muitas questões 
paralelas às vezes sequer sào mencionadas. Peço desculpas ao leitor 
mais bem informado e reafirmo o caráter meramente didático deste 
projeto.
A tese hàsica que orienta este percurso é a de l.uis Cláudio 
Figueiredo, cm "Psicologia. Uma introdução"* Fie propõe a idéia 
de que houve duas pré-condições para o surgimento dc uin projeto 
de Psicologia conto ciência. A primeira seria o surgimento de uma 
noção clara de subjetividade privada (ou seja. una afirmação da idéia 
de que as pessoas sào indivíduos livres e. enquanto tais, indivisíveis, 
separados, independentes un3 dos outros c donos de seus destirtos 
A segunda seria a de que essa concepção de sujeito teria entrado em 
crise, gerando assim um sujeito cm crise de identidade c a procura 
dc um profissional que lhe pudesse restituir a estabilidade. Ue 
momento, essa tese poce parecer obscura. mas gradativamente ela 
irá sendo explicitada.
Dc uma forma genérica, podemos dizer que a n oçio dc 
subjetividade privada data do inicio da Modernidade, ou se|u. do 
Renascimento. Será justamente na passagem da Idade Média para o 
Renascimento que iniciaremos esse percurso. A afirmação do sujeito 
chegará a seu ponto máximo no século XVII e, a partir de então, 
iniciará uma longa crise até o tlnal do século XIX.
No final do século XIX. surgirão os m m eiros projetos de
O livro "Psicologia. Unia fnirodução. Figueiredo. L.C. 1991. EDUC, Sào 
Paulo” :òi rccditudo como "Psicologia. Uma (nova) introdução. Figueiredo. 
L.C & pedro. 1998, Sào Paulo. ED U C Apói a primeira versào publicada. 
Figueiredo já desenvolveu teses mais complexas s*bre o lema, como em *1 
invenção do Psicológuo
11
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Consuxiçào do eu na Modernidade
Psicologia, já com algumas características definitivas da diversickde 
que marca esta ciência Wundt cria condições para a eriaçào de uma 
Psicologia experimental, enquanto Freud cria a Psicanálise. A esta 
lese, que mostra os modos de afirmação do eu ccsdc o século XVI, 
acrescento uma observação minha; a de que, desde o inicio do 
Renascimento, alguns autores já se dedicam a mostrar as fracucias 
e insuficiências do eu Isto indicaria a possibilidade de que a 
Modernidade incluísse proccd .mcntos de auto-crítica e dissolução do 
eu, além dos clássicos procedimentos dc 
auto-afirmação.
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
2
1'cct x) Lu is R IHelro de Surti
A PASSAGEM 
DA IDADE M ÉD IA 
AO RENA SC IM ENTO
Nesta parle, m ua-se de es por que nossa 
concepção aluai do que seja o "eu” não cm 
posshei na Idade Média
Renascimento, como já é clássico dizer-se. nasce o 
hum anism o moderno. De acordo com a tese de l.uis C láudio 
Figueiredo, seria neste período que passaria a se afirm ar uma 
concepção de subjetividade privada -a í incluída a idéia de liberdade 
do homem e de sua posição como centro do mundo Voltemos alguns 
passos: o que significa dizer que a noção de ‘subjetividade pri\ ada‘ 
passa a ex istir? P or que tal co n cep ção não seria p o ssív e l 
anteriormente, no mundo medieval?
Pode provocar alguma estranheza a idéia de que a noção de 
privacidade não existisse em um num determinado momento. Nossa 
intimidade, nossa existência enquanto sujeitos isolados -ou. até mais. 
solitários— parece no-, clara, certa. "T e r u m tempo para si” , sem estar 
trabalhando ou estudando (produzindo, dc urn modo geral),possui 
um grande valor em nossas vidas’ . Certamente, essa é uma das
* A privacidade tomará diversos aspectos: em primeiro lugar temos nosso 
pensamentos, que tmrilas vezes anotemos em segredo: se lemos uma casa 
ou um quarto para nós, pode-se ouvir uma música, amimar gavetas, estar 
com uma roupa confortável (muitas vezes velha c acabada, mas neste caso 
nào há problema, pois não há ninguém olhando): se dividimos nosso quarto 
com outras pessoas, sempre podemos tomar um longo banho, fazer a barba 
ou as unhas, ou outras coisas mais
13
Gabriel Rossi
A Construção do eu na Modernidade
poucas coisas pckts quais lutamos hoje -ti preciso garantir nossa 
privacidade, diante da aha exigência atual para que dediquemos toda 
a nossa energia c tempo às atividades consideradas “úteis” . Há até 
quem diga, e nào são poucos, que nosso excessivo individualismo è 
um cos grandes problemas da convivência social atual. Dentre os 
problemas que derivariam disso, poderíamos enumerar: a imposição 
dos interesses pessoais sobre os coletivos, a insensibilidade ao que 
nào nos di2 respeito imedialamentc. a solidão, a falta dc um sentido 
para a vida, o desrespeito generalizado às leis, o crescimento com o 
reação a tudo isso dc m ovim entos ideológicos ou religiosos 
dogmáticos e violentos, caracterizados pela intolerância para com 
aquilo que c diferente dc si ou do grupo, ctc.
Existem as nações, grupos religiosos, familiares, ctc, mas a 
menor unidade seria a pessoa. O termo ‘indivíduo’ remete a isto, 
somos o “átomo” indiviso do mundo humano. Este sentimento de 
individualidade se mostra, em outro exemplo caricato, quando estamos 
prolundamente infelizes e nos sentimos incompreendidos, passando 
por uma dor que provavelmente ninguém jamais passou antes. Se 
um amigo a quem confidenciamos nossa dor diz nos com preender e 
já ter passado pela mesma experiência, enchemo-nos de orgulho e 
reagimos dizendo que clc nào entendeu nada, nosso sofrimento é 
incomparavelmente maior que o dele!
Assim, quer pelos valores positivos, quer pelos negativos que 
lhe atribuamos, parece-nos certo que o sujeito isolado c a unidade 
básica dc valor e referência de tudo. Ainda assim, sc dermos uma 
olhada na história dos costumes ou da filosofia, veremos que rtcin 
sempre foi assim. Esta afirmação do “eu” parccc ter-se construído 
gradativamcnte. através dc séculos’ . ü “eu” nem sempre foi soberano.
Sc nos dirigíssemos à filosofia da Grécia clássica (scculo V 
A.Cd. certamente já encontraríamos algo que poderíamos chamar 
dc humanismo, como uma valorização do ser humano já nào submetido 
ao poder dos deuses (como na filosofia dc Sócrates ou no teatro de 
Euripcdes), a criação do direito e da dem ocracia, etc. Mas o
1É sempre bastante compl srado aftnnamuw que detenmnada idéia tenha surgido 
pela primeira vez em tal momento ou em determinado autor Sempre achamos 
alguém que jã afirmara tal idéia aníenonncntc. Este recuo parece ser infinito. 
Assim, sempre trabalhamos com uma margem dc aproximação o, vale dizer, erro.
14
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Pediu) Lu is Ribeiro ile Santi
humanismo, entendido como a colocação do homem como medida 
dc todas as coisas e centro do mundo, parece ter tomado a forma 
que tem lioje no Renascimento, surgindo dc dentro da Idade Media
A inda que não entrem os cm detalhe na discussão do 
pensamento medieval ou grego, vale a pena destacarmos dguns 
momentos privilegiados na direção da tese que desenvolvemos. Fm 
uma obra recer.te, chamada As Juntes do Self, Charles Taylor realiza 
uma análise profunda do nascimento do sentimento característico da 
Modernidade: o de que possuímos uma inlerioridade.
O ponto dc partida da análise dc Taylor c Platão. Tnta-se
de mostrar como, para ele, a razão c a percepção de uma ordem 
absoluta. Ser racional significa ver a ordem como cia é. Não há 
com o ser racional e estar enganado sobre a natureza ao mesmo 
tempo. Podemos já reconhecer aqui o nível dc certeza pelo qual aspira 
a Modernidade, representada sobretudo pela figura de Descartes. 
No entanto, enquanto para Descartes a ordem está 'dentro ' de nós, 
para Platão ela resicc no absolutamente Bom.
H em Santo A gostinho que Taylor encontra a grande 
passagem para a inferioridade Santo Agostinho c assustadoramente 
moderno, considerando que viveu entre os scculos IV' e V dc aossa 
era. Todo o seu pensamento seria permeado pelas noções dc Tnterno- 
extem o’: espirito/matéria, alto/batxo, etem o/tcm poral. imutável/ 
m u tan te , e tc . A qui ap arece um m ovim ento inéd ito : com a 
desvalorização do corpo e de tudo o que é m undano, com a 
correspondente valorização da alma como algo interno, a basca por 
Deus passa a ser feita dentro de nós. Deus não deve ser procurado 
no que vemos, mas no próprio olhar. Lie sei ia a própria luz interior. 
Santo Agostinho estaria, com isto, inaugurando uma experiência 
radical:
"A reflexão radical traz paru o primeiro plano uma espécie tJe 
presença para a pessoa, que c inseparável do fato de esta 
pessoa scr o agente da experiência, algo cujo acesso ê, par 
sua própria natureza, assimétrico: há uma diferença crucnl 
entre a forma dc cu experimentar minha ;»li\ idade, pensamento 
e sentimento, e a fu mia pela qual você ou qualquer outro o 
faz: É isso que rr.e toma um scr que pode lalur de si na primeira 
pessoa”, (p. 174}
15
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Coustmção do eu na Modernidade
A experiência passa a ser altamente subjetivada e dependente 
de nós. A tradição moderna teria levado esia concepção ao extremo, 
passando a rcfcrir-se a objetos internos c. ao mesmo tempo, a um 
‘eu penso' totalmente separado do ' externo’. Mas isto já é adiantar 
demais nossa discussão.
Em uma imagem que reconhecemos como caricatural e 
bastante insuficiente da concepção de mundo medieval no Ocidente 
apenas com o pano dc fundo para introduzirm os as idéias do 
R enascim en to -, poderíam os d izer que ela se caracteriza por 
considerar o mundo organizado cm tomo dc um centro. 1 laverin uma 
o rdem ab so lu ta , rep re sen tad a p o r D eus e Seus leg ítim o s 
representantes na terra; a Bíblia e a Igreja. Cada coisa existente 
estaria relacionada necessariamente a esta ordem superior. Em última 
instância, cada ser formaria parte de uma grande engrenagem que 
seria a criação divina. Aí sc encontraria o sentido de tw lo\
A possibilidade da crença na liberdade humana é muito restnta. 
já que tudo faz parte dc um plano maior, de um tixlo perfeito disposto 
por Deus. A noção de justiça na Idade Média, por exemplo, c a da 
colocação de cada ser no lugar que lhe é próprio. Tatnpoueo haveria 
lugar para a privacidade. Ma m edida em que a onipresença e a 
< misci èticia são atributos de Deus. nada poderia ser mantido em segredo 
e nunca estudamos sozinhos: pecar cm pensamento já é pecar,
MUSICA - Cunlu C rcgoríanu
A audição e compreensão do canto gregoriano presta-se de 
forma exemplar a tentativa dc apresentar o espírito medieval. Ele c 
um canto em uníssono, ou seja. trata-se dc um coral onde todos cantam 
rigorosamente a mesma coisa. Sua letra é, invariavelmente, um texto 
sagrado e já conhecido pelos ouvintes: trata-se da reafirmação do já
‘ Issc rcmctc á parábola segundo a çual um passante veria vários homens 
erguendo uma parede; um deles de aparência destilada e outro está visivelmente 
satisfeito. O passante pergunla a cada um o que está fazendo; o primeiro responde 
“estou empilhando tijolos” t o segundo “estou construindo uma catedral” O 
segundo sente-sc parle dc uma obra maiur. o sentido de sua ação transcende em 
muito o imediato, está ligado a um lodo (o rtligúrc, de leligião -religar.l. O 
primeiro está só, o sentido de sua ação es gota-se nela mesma.
IA
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Pedro Luís Ribeiro de Santi
sabido e da apresentação dc um mundo sem novidades, Associando- 
se ao caráter da letra, não lia propriamente uma melodia, mas apenas 
uma sinuosalinha melódica que nào se repete; nào há refrão ou 
passagens bruscas, de fonra que o ouvinte não consegue "segurar- 
se” em nada. Ele nào pode se locali/ar e nào deve "prestai a ten çã o” 
ou estar consciente do que ouve, mas se deixar levnr por este mar ou 
rebanho. Hoje, ouvimos o canto gregoriano de forma muito diferente 
da que o caracteriza; nós o utilizamos para meditar, ou relaxar.
De forma geral, poderíamos dizer que, na música, a melodia 
liga-se ao que há de mais espiritual -o sopro da voz, o sublime, a uma 
nota que se sustenta idêntica c linear. O ritmo, cm oposição, representa 
mais proximamente o corpo e seus movimentos, ele chama à dança, 
ao que é mais instável. Na Grécia, a música era atribuída a Dioniso, 
deus da embriaguez, do vinho, do teatro, etc. Ela conteria, assim, um 
elemento diabólico, excitante. Ao ser assimilada pela igreja, o que é 
atribuído ao Papa Gregóric, no século VI D.C., a música é filtrada, 
retirando-se dela ao máximo seus elementos ritmicos; ela passa a se 
restringir á pura emissão vocal, sem haver sequer instrumentos dc 
acompanhamento 5 6.
Ainda no contexto medieval, surge um outro iipo de música 
que, dc outra forma, reafirma a certeza e a necessidade dc um centro 
e de uma referência externa. Nela, a voz da melodia e acompanhada 
por uma segunda, que sustenta uma mesma nota. chamada lbordão' 
(segundo Aurélio, “uma nota grave, prolongada e constante” , mas 
"também um pau grosso qi.e serve como arrimo, amparo”). Trata-se 
propriamente de manter uma referência, um centro em tomo do qual 
a melodia pode voltear sem juinais se p e r d e r J á se encontra nesse
5 A respeito desta teoria sobre a música, ver () som e o senado, de J.M. 
Wisnick ( I 989). Ao longo des.e texto, sempre que fizer alguma referência à 
música, procurarei indicar ao menos um exemplo em nota de rodapé, com o 
tiiuki da peça e a fonte a que recorri. Como exemplos de Canto Gregoriano, 
procure ouvir as faixas “Roraie coetí" e "Ave \f«rw ", do ‘Cantos do Pró­
prio do 'Gradual? Romatum'", no Cf) “Corno Gregoriano. Cboralschola 
Jes Wiener Hofburgkapelle, Plmnograru, 1984”.
6 Como exemplos, ouça a faria Natus est, extraído do CD "Nova C antua. 
Canções Latinas da Alia idade Média, Harmonia Mundi, 1990” e a faixa 
Pwsque bete dana* n e>m\ extraído do CD "LoveS fludoru. Música do 
Codex Montpdlier -Século XIII, Harmonia Mundi, 1994”
1 7
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Construção do cu na Modernidade
último tipo de música a raiz do cânone -música com duas ou mais 
vozes na qual a mesma melodia é cantada de forma defasada entre 
elas e repetida, de form a que sempre se pode ouvir cada Frase 
m usical- e da polifonia do Renascimento.
TF .XTO A N E X O - John ofSallsbury (Sécu lo X íl)
No texto que se segue ptxle-sc ver a rigidez de um mundo 
concebido como hierarquizado por unia ordem superior. Não cabe 
ao homem questioná-la ou pretender escolher ou mudar o lugar que 
lhe cabe.
O COR PO SO C IA L (“T h e Bodv S o d a l”)
"U ma comunidade, de acordo com Plutarco. é um certo corpo 
dotado de vida pelo benefício do favor divino, que opera 
impelido pela mais elevada eqüidade c que c regulado pelo 
que pode ser chamado de poder moderador da razáu. Aqueles 
que em nos estabelecem e implantam a prática da religião c 
nos transmitem a devoção a Deus. preenchem o lugar dn 
alma nu corpo da comunidade. E assim, aqueles que presidem 
a prática da religião devem ser considerados e venerados 
como a alma do corpo. Pois, quem duvida de que os ministros 
da santidade de Deus sào Seus representantes? Além disso, 
desde que a alma é como se fosse o príncipe do corpo e 
legisla sobre todo o restante, etnAo aqueles aos quais nosso 
autor chama os prefeitos da religião presidem 0 corpo inteiro...
O lugar da cabeça no corpo da comunidade é ocupado 
peUi príncipe, que se submete apenas a !>eus e àqueles que 
estilo a Seu serviço e O representam na torra, da mesma forma 
que, no corpo humane, a cabeça c animada e governada pela 
almu. O lugur do coração c preenchido pelo senado, do qual 
procede o ir.ííio de boas c mas obras. Os deveres dc olhos, 
ouvidos e língua sào cumpridos pelos juizes e governadores 
das províncias. Oficiais e soldados correspondem ás mãos. 
Aqueles que sempre servem ao príncipe sáo semelhantes aos 
flancos. Oficiais financeiros e comerciantes podem ser 
comparados com o estômago e os intestinos.. Os camponeses 
correspondem aos pcs. que sempre semeiam a terra, e precisam 
mais especifica mente dos cuidados c das preocupações da
18
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Pedro Luís Ribeiro de Sant:
cabeça, já que, enquanto caminham sobre u tc-ni trabalhando 
com seus corpos, eles sc deparam fieqilenternaitc com pedras 
de hcsilação e, por isto, mercccrr. mais ajudas proteção que 
os demais com toda justiça, desde que são eles que erguem, 
suster.tiun c movem adiante o peso de todo o corpo...
Entãc, c só então, a saúde da comunidade será sólida 
c florescente quando os membros mais aliou protegem os 
mais baixos, e os mais baixos respondem fiel e plena mente na 
mesma medida ás justas demandas de seus superiores, de 
modo que todos c cada um operassem como que membros 
uns dos outros por u ra espécie de reciprocidade, c cada um 
considerasse que seu próprio interesse era mais bem atendido 
por aquilo que ele soubesse ser mais vantajoso para os 
outros”.
4
O que pretendemos destacar deste texto é a concepção de 
uma relação orgânica entre todos os seres, sua irterdependência. 
Em tal universo, não faz sentido pensarmos que uma pessoa teria a 
liberdade de optar pelos rumos de sua vida. O homem nâo seria, 
assim, propriamente sujeito.
PINTURA - (iiotto
Questões para discussão
1. Qual c a diferença entre a raeditaçàu solitária dc um monge medieval e a
experiência de solidão dc um homem do scculo XX?
2. Procure identificar alguma forma atual dc entender o inundo que sena
impensável na Idade Média.
3. Hoje ainda existe a idéia de “corpo social"?
19
3
A Construção <lo cu na Modernidade
O H UM AN ISM O 
NO R ENA SC IM ENTO
\'esta parte, introduzimos o tema da 
valorização do homem como um todo e de 
coda indivíduo, no Renascimento, &n função 
da perda das referências sólidas medievais
In ic ie m o s esta parte por unia definição de humanismo:
“O tetmo ‘humanismo’ ê derivado de humanitas, que no tempo 
de Cícero (106 43 a.C.) designava a educação do homem 
enquanto considerado em sua condição propriamente 
humana, correspondendo á palavra grega fxiideia: a educação 
por meio de disciplinas liberais, relativas a atividades 
exclusivas do homem e que o distinguiam dos animais. (...)
As chamadas ‘humanidades1 - poética, retórica, história, ética 
c política- possam, desse modo, a constituir, sob a inspiração 
dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o 
homem paro o exercício da liberdade." (...)
“Outro fundamento do humanismo renascentista foi a 
convicção de que o inundo natural 6 o reino do homem. Esse 
naturalismo conduziu, paraleliur.ente á afirmação tio valor 
espiritual do homem e que o torna livre, á exaltação do valor 
do corpo t dos seus prazeres."7
Fica ev idente, pela passagem acima, que houve uma mudança 
na concepção do lugar do homem no mundo. Há agora uma grande 
valorização do homem c, ao mesmo tempo, a idéia de que cie tem 
que buscar uma formação, ele deve sc constituir enquanto humano.
7 José Américo Pessãnha, "VkJa e obra” (p. vi). Em Erasmo de Rotterdan, 
Coleção “Os Pensadores”, 1991,
20
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Pedro Luís Rihciro de Sauti
Se o homem nào nasce com seu destino predestinado, ele se deve 
formar, educar. Nasce a necessidade do “cuidado de si”.
É comum que tenhamos uma nuçào da passagem da Idade 
Média para o Renascimento em termos de história: com a diminuição 
do poder da igreja c advento da reforma, a crise do sistema feudal e 
o nascimento das cidades e rotas de comércio, a expansão marítima, 
etc. Masrararneiite consideram-se as mudanças dc modo de vida 
das pessoas implicadas nessas transformações politicas e econômicas. 
HA toda uma linha de investigação h istórica, cue se dedica 
especiftcamente ao escudo da história dos costumes, da vida cotidiana 
das pessoas e, o que nos interessa mais no momento, da idéia que 
elas tiniram dc si mesmas.
Tudo leva a crer que a diminuição do poder da igreja c a abertura 
operada sobre o mundo fechado dos feudos foi acompanhada por uma 
crise da concepção fechada de mundo que vigorava. Se os honens 
acreditavam ter um ponto de referência externo (um centro do muido) 
sobre o qual podiam se apoiar, agora já não podiam cor.tar com essa 
certeza. Numa nova caricatura, poderíamos dizer que, sob um poder 
absoluto, não liá liberdade, o que é terrível, embora seja rclativairiente 
fácil “compreender' o muncio, pois há referencias claras: o que c certo e 
o que é errado está prc-definido, cabendo, no máximo, tomar um partido 
ou outro. Já num mundo aberto, sem referências absolutas, surge a idéia 
ce liberdade, mas ao mesmo tempo, a de solidão e responsabilidade. Se 
o homem nào pode mais contar com uma resposta dada por uma 
autoridade absoluta, ele deverá buscar ou construir suas próprias respostas, 
liste ê um dos principais deméritos do humanismo.
Isso não quer dizer que o homem do Renascimento fosse 
ateu, mas. de certa tómia. Deus parece ter se afastado para o céu. 
deixando o mundo a cargo dos homens. Na Idade Média, é truito 
comum a representação plástica do mundo como uma esfera cujo 
centro é Deus, Cristo ou, o que é tnenos ortodoxo, a Virgem Maria; 
já no Renascimento, há inúmeras representações do mundo nas quais 
Deus paira sobre ele, que tem agora ao centro o próprio homem.
É também comum que no Renascimento comecem a surgir 
as assinaturas dos artistas em suas obras de arte, o que quase não 
existia no período anterior Quando pensamos nos pintores mais antigos 
que conhecemos no ocidente moderno, vem-nos a mente Ciiotto, por
21
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A CanstnçSo Jo cu na Mixianidade
exemplo, ainda que ele estivesse bciratulo o Renascimento, tendo 
vivido entre os séculos X O c XIV'. Nào era o ser humano que criava, 
cie era apenas um instrum ento da criação divina: com o numa 
representação do Papa Grtgório, na qual o Espírito Santo lhe sopra a 
música que esul a escrever,
No contexto renascentista, nào há mais apenas uma certa 
cena bíblica que importa, mas a m io do sujeito que deixa sua marca 
na obra. Assim, surgem os nomes mais conhecidos do Renascimento, 
como Leonardo da Vinci ou Michc.angelo, que, mais que artistas, 
são gênios dc inúmeros talemos. Sào homens que se formam e que 
deixam seu traço pessoal tia obra que criam. Sem sofrer restrições 
por parte da igreja cm suas investigações sobre a anatomia humana 
ou sobre os astros, o homem ahre-sc para um mundo novo -quer cm 
suas viagens |>e!o mundo, quer pelo estudo da natureza.
Em anexo, trechos dc um livro de 14#6. bastante expressivo 
como concepção do humanismo renascentista.
T E X T O ANEXO - Pico Delia M irando!a
D IS C U R SO S O B R E A D IG N ID A D E D O H O M EM
“Já o sumo pui. Deus arquiteto, linha construído, segundo 
leis de arcana sabedoria, este lugar do mundo como nós o 
vemos, augustissimo templo da divindade. Tinha embelezado 
a zona supcr-cclcstc com inteligências, avivado os globos 
êtéreos com alma? eternas, povoado com unia multidão dc 
animais dc toda a espécie as partes vis e termenutres do mundo 
inferior. Mas. consumada a obra. o Artífice desejava que 
houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra 
lào grande, que amasse a beleza c admirasse a sua grandeza 
Por isso. uma vez tudo realizado, como Moisés e Timcu 
atestam, pensou por último em enaro homem. Dos arquétipos, 
contudo, não ficara nenhum sobre o qual modelar a nova 
criatura, nem dos tesouros Unha algum para oferecer cm 
herança ao novo tiiho, nem dos lugares de todo o mundo 
restara algum no qual se sentasse este contemplador do 
universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído 
nos sumos, nos médios t nos ínfimos graus. Mas não teria 
sido digno da paterna potência não se superar, como sc fosse
22
Gabriel Rossi
Pedro Luis Ribeiro de Santi
inábil, na sua última obra. não era próprio da sua paciência 
permanecer incerta numa obn necessária, por falta de decisão, 
nem seria digno do seu bcrcfico amor que a quem estava 
destinado a louvar nos outros a liberdade divina fosse 
constrangido a lamcnta-lacm si mesmo.
bstabelecen, portanto, o óptimo Artífice que, àquele a 
quem nada dc cspecificamerle próprio podia oferecer, fosse 
comum tudo o que linha sido dado parcclarmente aos outros. 
Assim, tomou o homem como obra dc natureza indefinida e, 
colocando-o no meio do murdi. talou-lhc deste modo: ‘Ó Adão» 
não te demos nem unt lugar determinado, nem um aspecto que 
te seja preprio, nem tareia alguma especifica, a fim dc que 
obtenhas e possuas aquele lu&ar, aquele aspecto, aquela tarefa 
que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a 
tua decisão A natureza bem definida dos Outros seres é 
refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não 
será constrangido por nenhum? limitação, dcte-tninu-la-ás pata 
ti, segundo o teu arbítrio, a tnço poder tc entreguei. Coloquei- 
te no cer.tno do munco para qje daí possas olhar melhor tudo 
que há no mundo. Não tc fizemos celeste nem terreno, nem 
mortal ncir. in lorlal. a fim de que tu, árbitro e soberano artífice, 
te plasmasses e <e informtsses. na forma que tivesses 
seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos sares que 
são as bestas, poderá regenerar-te ate as realidades superiores 
que são divinas, por decisão to teu ânimo’
"Quem não admirará este nossocamaleão?" (p. 51-53) 
“Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para 
que compreendamos, a partir do momento em qnc nascemos, 
nu condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever 
é pteocuparmo-nos sobretudo coir. isto: que não se diga de 
nos que eslímdo em tal honra, não nos demos conta dc nos 
termos tornado semelhantes ás bestas e aos estúpidos 
j umentos de carga." (p. 55 f
*
Assim , a fc cm Deus não loi abalada, mas agora ele c 
cr.tendido como um criador que paira por sobre sua obra. que passa 
a ter vida própna. liberdade. L>eus está “antes" do mundo como criador
" Fm Pico delia MirandoJa, Discurso sobre a Ji^nuiode do hdntcm.
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Construção do eu na Modernidade
c "depois” d d c como juiz, mas é visto como tendo criado o mundo e 
o deixado funcionar por suas próprias lets. Daí surgirá a possibilidade 
do conhecimento das leis naturais; sc Deus interviesse a cada 
momento com milagres, seria impossível o projeto de conhecimento 
e previsão sobre os fenômenos naturais. Já a liberdade, dom maior 
dada ao larmetn, fará com que ele tenha que passar a tentar descobrir 
os caminhos do bem, definir o que c certo e errado. Este é o campo 
da moral, que será muito estudado nos séculos seguintes.
A colocação do homem no ceniro do mundo nos traz ainda a 
idéia dc que todas as coisas existem pam sua contemplação e uso 
Tomj-se natural para o homem matai' animais ou devastar a natureza 
na medida de seu interesse A relação do homem com relação ao 
mundo se tomará cada vez mais a de exclusão. O homem jutga-se 
quase como Deus, relativamente acima do mundo, e as coisas (c 
mesmo o corpo humano) serão tomadas como objetos.
Figueiredo’ observa a peculiaridade dessa posição do homem 
Tdc c o centro c é livre para tomar-sc o que quiser, mas ele não è 
propriamente nada. Há uma negatividade no homem e é justamente 
es.se vazio que ocupa o lugar do centro; o mundo já não é fechado, já 
não há estabilidade possível, o homem deve contmuamcntc tomar- 
sc, constituir-se, mover-se:
"Este imenso espaço de liberdade será lambem o 
espaço das virtudes que consistem desde então no bom uso 
desta liberdade,è ainda o espaço de urna aventura scir. 
destino certo, sem arrimos nem garantias. É, finalmemc, o 
espaço insólito da ignorância, da ilusão, do erro. da duvida e 
da suspeita.” (p, 24)
QuMtks para discussão
I. Como foi possível conciliar a crença em um Deus onipotente c a crença na 
liberdade do homem'1 
2- Como u valorização do homem contribuiu para o aumento do conhecimento 
sobre a natureza?
3. líntie o mundo medieval c o mundo renascentista, qual parece gerar mais 
angústia no homem? Por quê?
Em A invenção do psicólogo.
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
4
Pedro Luis Ribeiro dc Santi
O ENCONTRO C OM 
A M ULT IPL IC IDADE
Trabalhamos, testa parte, o encontro com a 
diversidade th. mundo. O confronto com a 
diferença fe~ cont que o homem se perguntasse 
sobre si.
D erivamos do lema anterior outro que o acompanha. 
Ainda segundo Figueiredo, a multipLidcade c uma característica do 
Renascimento. A abertura do mundo irouxe o conhecimento de 
civilizações novas, com seus costumes, I nguas, hábitos alimentares. 
etc. Isto, é claro, acompanha os novos valores segundo os quais o 
homem (cada um) deve buscar seu caminho. Citando novamente 
Figueiredo:
“Há algo de maravilhoso e inquictante na intinirude cias 
variações, O que se pode esperar íqj.tunainente dc um mundo 
infinilamentc diverso e surpreendente? Tudo. A credulidade 
c a liberdade dc imaginação do honrem renascentista não 
devem serjulgadas a partir de modelo 'científico* dos séculos 
posteriores; elas não sào índices de ingenuidade e ausência 
de espirito crítico. São forma* mad iras e tolerantes de relação 
com u diferença, as mais ajustadas a esse momento partic-ular 
de abertura do mundo."'*® (p 34>
Introduzimos com isso. uma outra imagem significativa do
A invenção do psicólogo, Essa imagem e as que se seguem ganham urna de 
suas melhores expressões na obra dc Rabclais. Gttrgántuu e Pantagruel (veja 
adiante).
9í.
A Construção cio eu na Modernidade
período, a feira de rua. Ainda que a feira já fosse uma instituição 
medieval, agora seu conteúdo está revestido com a abertura da Europa 
á diversidade cultural do mundo conhecido. Pode-se imaginar unia 
feira renascentista com as novidades trazidas das mais diversas partes 
do mundo recém-dcscobcrtas Aliir.er.tos básicos da cozinha, como 
a batata, o tomate, o cacau; temperos variados; tecidos e tinturas; 
pessoas e animais de diversas partes são trazidos á Europa no mesmo 
espirito de exotismo, A própria idéia de comércio, como intercâmbio 
de bens. circulação de mercadorias ou necessidade da criação de 
valores de troca, expressa bem o movimento da época. A feira dc 
rua contém um elemento de festa popular, desordem c gritaria diante 
de uma profúsào de mercadorias, Difícil nisto -c isto é significativo 
do período- devia ser a atribuição dc valor a cada coisa; quanto vale 
um cocar indigena. que importância ele tinhu em seu contexto original? 
Quanto vale uma pequena estátua que representa a divindade de 
uma certa cultura? Corno crcr na fídcdigntdade do produto oferecido?
Dc modo idêntico, podemos imaginar o espanto do liomcm 
ocidental ao deltoutar-se com as religiões e costumes distintos pelo 
mundo. Duas atitudes básicas podem ter sido tomadas diante desse 
conlmnto. Uma e mais convencional e reassegura as certezas sobre 
si; consideraria a diferença «na erro. Se o outro pensa de forma 
diferente da minha, ele está errado; cahe. por isso. catequizá-lo, 
conduzi-lo á verdade. Caso ele se recuse, justifica-sc a utilização de 
meios, digamos, mais convincentes, dado que se trata de seu próprio 
bem. A chamada “conquista da América” mostrou muito bem como 
se processa isso e quais são suas conseqüências, com um extem inio 
nuissivo de culturas.
A outra atitude parece ser tnais auto-críiica e parece ter tido 
um lugar considerável no Renascimento. Diante do confronto com a 
verdade do outro, acaba-sc por se colocar cm questão a própria 
verdade, nâo para substitui-la, mas para tomá la não mais como única, 
mas com uma dentre as possíveis. Ou ambas a verdades são válidas, 
ou ambas inválidas.
Ilá um brilhante estudo dc Todorov sobre este tema. em A 
conquista da Am érica. Nele é analisada a questão do confronto 
eom o outio através do que considera ter sido, mais do que o maior 
genocídio já perpetrado, um acontecimento fundador da Modernidade.
26
Gabriel Rossi
1'edm I .uís R:hcm> de Sanli
A tese de Todorov é a de que tanto os espanhóis quanto os nativos 
tinham ama absoluta incapacidade dc enirar em contato com o outro 
enquanto tal. Cada um tomava o outro de modo auto-reíerente: alguns 
astecas tomavam Corte? como o deus e imperadorQuetzakoatl, cujo 
retomo estava predito: os nativos de nações dominadas violentamente 
pelos astecas viam tão somente a troca de um algoz mais violento 
por um outro erroneamente tomado como itKtios violelo. Quanto aos 
espanhóis, ou tomavam os nativos como objeto desumanizado, a scr 
escravizado ou morto gratuita mente, ou pensavam ter encontrado na 
América o paraíso terrestre, ou ainda insistiam -como Colombo- na 
crença de que haviam de alcar.çado as Índias, denominando os nativos 
de “indios". De toda a forma, os espanhóis realizaram a conquista, 
subjugaram os nativos de muitas etnias (c aniquilaram completamente 
outras >, que possuíam uma população quantitativamente muito super.oi 
a de soldados espanhóis. Além disso, o imperador asteca Montezuma 
cntrcgou-se aos espanhóis c parece ter entregue sua nação sem 
resistência. Eis uma bela passagem na qual Todorov interpreta este 
fato:
“O cncontm de Montezuma com Cortcz. dos índios com os 
espanhóis, ê. unlcs de mais r.ada, um encontro humano; c 
não há razão para surpresa se os especialistas da comunicação 
humana levam a melhor Mas essa vitória, dc que somos todos 
originários, europeus e americanos dá ao mesmo tempo urn 
grande golpe em nossa capacidade dc nos sentirmos ern 
harmonia com 0 mundo, de pertencer a uma ordem pré- 
estabelecida; tem por efeito recalcar profundarneme ú 
comunicação do homem com o mundo, produziT a ilusão de 
que tuda comunicação é comunicação inter-humana; u silêncio 
dos deuses pesa no campo dos europeus tar.to quarto no 
dos indios Cunhando dc um lado, o europeu perdia de outro: 
ímpondo-se em toda a Terra pelo que era sua superioridade, 
arrasava cm si mesmo ,1 capacidade dc integração no mundo 
Durante os séculos seguimos sonhará com o bom selvagem; 
mas o selvagem já estava morto, ou assimilado, c o sonho 
estava condenado á esterilidade. A vitòna já trazia em si 0 
germe dc sua derrota, mas Corte/ não podia saber disso.” (p. 
93-94)
27
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Construção do eu nu Modernidade*
A vitória dos espanhóis teria se dado por sua maior habi I idade 
cm entendei o modo de pensar do outro, tirando proveito disso. Todorov 
insinua que este teria sido o mais importante fator da dornttwção do 
europeu sobre o mundo: ele seria capa/ de dissimular e mentir. Em 
nossos termos, ele ê eapa2 de criar um distanciamento entre sua 
ação e sua intenção, de acordo com seus interesses. Todorov chega 
a comparar a caoaeicadc comunicativa dcCortez com as prescrições 
dc M aquiave! em O p rín c ip e , escrito na mesma cpoca. Nesta 
habilidade com unicativa, neste auto-distanciamcnto e neste uso 
puramente funcional da linguagem, estarU fundada a Modernidade. 
Temos, como em relação a Rabclais. uma posiçào intermediária: o 
europeu teria uma quase total incapacidade dc entrar em contato 
com a alteridade, buscando dominar e assimilar o outro; por outro 
lado, ele parece ter sido m ais capaz que outros povos paia sair de 
seu próprio ponto de vista e procurar compreender o do outro, ainda 
que para domina-lo. Todorov também indica que os europeus cstariam 
acostumados a operar um descentramento, desde que seu centro 
religioso, Jerusalém, era. dc fato, fora de seu continente.
N’a conclusão dc sua obra, Todorov apresenta-nos esta 
formulação paradigmática sobre a questão do outro:
“Pois o outro deve ser descoberto. Coisacicna de espanto, 
já que o homem nunca está só, e niu seria o que é sem sua 
dimensão social. E, no entanto, é assim: para a criança que 
acaba dc nascer, seu mundo õ 0 mando, c o crescimento é 
uma aprendizagem da exterioridade e da sociabilidade, pode- 
se dizer, um pouco grosseiramente, que a vida humana está 
contida entre dois extremos, aquele onde o eu invade o mundo 
c aquele onde o mundo acaba absorvendo o eu, na forma dc 
cadáver ou dc cinzas. F, corno a descoberta do Outro tem 
vànrxs graus, desde o outro coino objeto, confundido com o 
mundo que o cerca, até o outro comu sujeito, igual ao eu, mas 
diferente dele, com infin itas nuançai intermediárias, podc-sc 
muito bem passar a vida toda sem nunca chegar ã descoberta 
plena do outro {supondo-se que ela possa ser plena). Cada 
um de nós deve recomeçá-la. pur rua vez; as expencncias 
anteriores não nos dispensam disso. Ma? podem ensinar quais 
silo os eleitos do desconhecimento, (p. 243)
28
Gabriel Rossi
Pedro Luis Ribeiro de Saot i
Sc voltamos agora a imagem da têira e do comércio, veremos 
que aqui impera o convívio com uma inédita diversidade de coisas. 
Essa festa, no entanto, traz u problema», referido antes, de atribuição 
dc um valor justo a cada coisa. As coisas estão fora de seus contextos, 
onde talvez possuíssem um valoi justo, mas nesse encontro fortuito 
da leira já não se pode pensm ern seu valor original.
Ainda nesse sentido, pcnsc-sc na reação das pessoas diante 
do relato dos viajantes sobre as coisas incríveis que viram. Uma vez 
mais, a credulidade das pessoas seria ahaiada. Como distinguir relatos 
confiáveis de outros mentirosos ou fantasiosos? A descrição de um 
tamanduá parecerá tão absurda ou possível quanto a de um dragão 
do mar; os relatos sobre cidades feitas de ouro (o Eldorado) tocarão 
nas fantasias sobre o paraíso reencontrado nessas terras distantes e 
selvagens (onde, em se plantando, tudo dá...).
PIN TU R A - Roseli e Arrim hoUlo
Reíértmo-nos, na parte anterior, a artistas como da Vinci c 
Michelartgelo. Nesta, o pintor que nos ocorre é Bosch. Ele nasceu 
em 1450, quase no mesmo ano que Leonardo da Vinci (1452), mas, 
enquanto da Vinci parece estar em casa no Renascimento, fiosch 
parece sofrer mais os efeitos da fragm entação. Seus biógrafos 
informam-nos que Boscli nasceu justamente diante de uma feira, 
mas ele não se sentia em casa. Parece que seu mundo de valores 
era medieval c que, ao abrir suas janelas, lhe parecia estar assistindo 
o apocalipse, o caos. Assim, curiosamente, ele acaba expressando 
melhor que seus contemporâneos a fragmentação do século. Suas 
pinturas mostram corpos dilacerados, em corr.binaçõcs alucinadas. 
Com freqüência, ele c tomado como um pré-surrealista, mas ele 
provavelm ente acreditava ser um h iper-realista , m ostrando a 
degradação dos tempos, o fim do mundo da ordem.
Há outro pintor que trabalha a fragmentação, mas -talvez 
por ter nascido já no século XVI, quase XO anos depois dc B osch- 
sem o m esm o tum apocalíptico. Ele c A rcim boldo, com suas 
composições dc retratos utilizando fragmentos de coisas. Sua série 
mais conhecida é a das quatro estações, onde con stró i expressões 
humanas combinando elementos típicos dc cada epoea. O efeito è
29
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Construção <io eu r.a Modernidade
grotesco, mas divertido e instigante e parecerá uma ilustração perfeita 
para um tipo de música a que ro s referiremos na próxima parte, 
chamado "Las Ensaiadas”.
Enfim, justamente da crise no final da Idade Media, resulta 
essa falta de critérios absolutos, que gera uma crescente insegurança, 
Numa citação dc Montaigne, um dos mais importantes pensadores 
do século XVI. encontramos uma articulação do que temos dito:
"Em verdade o homem c de natureza muito pouco dclinicla, 
estranhamente desigual e diverso. Dificilmente o julgaríamos 
dc maneira decidida c uniforme”"
M Ú S IC A - A P O M F O N ÍA
A polifonia é um tipo dc música típica do Renascimento. 
Assim como o canto gregoriano expressava bem o espírito medieval, 
a polifonia encarna seu tempo O termo significa "muitas vozes” e é 
justamente como se n coro em unissono do gregoriano sc tivesse 
estilhaçado; cada voz canta uma melodia diferente, por vezes também 
uma letra diferente Podem scr quatro ou muitas mais vozes, gerando 
um efeito ruidoso, quase já nào musical. No entanto, elas convivem. 
A través do século X VI, vai aum entando a cap ac id ad e dos 
compositores de harmonizá-las.
Há um a peça de especial interesse dentro do que temos 
trabalhado. Ela sc chama Voulez ouyr les cris de Paris? (“Querem 
ouvir os gritos dc PansT’), deClément Janequin1-'. Nela, emee cantores 
perguntam-nos. por um minuto, sc queremos ouvir os gritos de Paris, 
Suas vozes são um pouco d e fa sad as en tre si. m as tudo c 
compreensível. Após a introdução, há um breve silêncio e então 
começamos a ouvir uma gritaria onomatopaica que se passa numa 
feira, com vários vendedores chamando a atenção para o seu produto. 
Eventual rr.cntc. as vozes unem-se por instantes cm tomo de um tema 
para, cm seguida, se dispersarem de novo. Adiante, outro tema surge 
e. novamente, desagrega-sc, como muna rapsódia. Tudo é muito
11 Ensaios, t , Cap. I. p. 14.
11 Voulez ou)r les cris de Paris? c La RatatUe, extraídas de “Les cris de 
Paris, Harmonia Muoclí. 1982”.
30
Pedro Luis Ribeiro de Sunti
engraçado c carnavalesco (c inevitável pensarmos na situação da 
gravação em um estúdio moderno, em que músicos educados na 
rigidez dc conservatórios grasnem, gritem e. é claro, desafinem, com 
a leitura rigorosa da partitura).
O centro da produção poli fônica 6 a Espanha que, por ter 
sofrido a invasão muçulmana, traz em sua cultura muitos elementos 
assimilados. Há músicas de uma extrema melancolia, lamentando a 
perda da felicidade e da ordem (idas viagens e guerras11.
Em anexo, está o começo de um dos livros ttiais dehochados 
do século XVT. N e le p o d em o s reconhecer, d e sd e a referência 
constante no Renascimento ã cultura clássica grega, até o tom 
irreverente r. visceral do mundo menos idealizado e n a is próximo da 
experiência imediata dos pra/eres do corpo Trata s? de um mundo 
de exageros, deboche e excessos, habitado por gigaites.
T E X T O A N E X O - François /tabelais
C A RG Â N TU A E PANTAGRDEL
“AO LEITOR
Antes mesmo de In . leitor amigo.
Despojai-vos de ioda má vontade.
Não escandalizeis, peço, comigo:
Aqui não há nem mal nem falsidade.
Sc o mérito é pequeno, na verdade, outro intuito nau tive. no 
entretanto,
A não ser rtr, e lazer nr portanto.
Mesmo das aflições que nos consomem 
Muito mais vale o nsc do que o pranto 
Ride, amigo, que rir c próprio do homem.” (p. 31).
•'PRÓUXJO DO AUTOR
Bchedorc» ilustrese preciosíssimos bexiguentos ípois 
a Vos, não a outros se dedica o meu engenho]: Akébiades. 
no diálogo dc Platão intitulado O Banqueit, louvando o seu
'* Ouça Rodrigo Martinez, Pues fíie/t, para éfia, Por las vrVm/í dc Sfadrid 
6 Al aiva ivnid, extraidas de “£ / Concioaero de Paiaeio, dc grupo Herpérion 
XX, AstréC'Audi vis. I991"
31
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Construção do cu 11a Modernidade
preceptor Sòcialcs (sem controvérsia, príncipe dos filósofos), 
entre outras coisas disse scr clc semelhante aos "silcnos". 
SUcrtos, para os antigos eram caixinhas, tais como as que 
hoje vemos nas vendas dos boticários, tendo pintadas umas 
figuras alegres e frívolas, como liarpius. sátiros, gansos 
ajaezados, lebres chifrudas, paios com cangalhas, bodes 
voadores, veados atrelados e outras figuras semelhantes, 
nascidas da imaginação, próprias para provocar o riso como 
fazia Sileno, mestre do excelente fiaeo. Dentro delas, porém, 
guardavam-se drogas valiosas corno o bálsamo, a âmbar- 
cinzento, 0 amorno, o almíscar, jóias c outras preciosidades. 
Tal se dizia scr Sócrates, porque, queni o visse por fora. e 
estimando apenas a aparência exterior, nâo lhe daria mini mo 
valor tanto clc era feio de corpo c ridículo em sua aparência, 
com nariz pontudo, olhosdc boi. cara de bobo, simples cm 
seus modos, rústico em suas vestes, parvo de riquezas, infeliz 
com as mulheres, inapto para todos os ofícios da república, 
sempre rindo, sempre tomando seus tragos, por causa disso, 
senipie brincalhão, sempre dissimulando o seu divino saber. 
Quem abrisse aqucái caisj, porém, lá dentro encontraria um 
bálsamo celeste e inaprcciãvel um emendimento mais que 
humano, virtudes maravilhosas, coragem tnvcncivci 
sobriedode sem igual, contentamento certo, segurança 
perfeita, incrível desprendimento com ivlncao n tudo que os 
humanos tanto ptvzairt, ludo aquilo que tanto oobiçant c em 
prol do quê correm, trabalham, navegara c batalham
Se não acreditais, por que não fareis o mesmo com 
estas novas e divertidas crônicas':' Eis que. ditando-as, não 
pensei senão em vós, que porventura hebeis como eu bebo. 
forque, nu 001 oposição deste livro senhonl, não perdi, e jamais 
ompníguéi um outro tempo, do que aquele que gasto para 
tomar a minha refeição corporal, a saber, bebendo e comendo. 
São estas as horas mais adequadas para escrever sobre essas 
altas matérias e ciências profundas, como hem fez sabei' 
Homem, paradigma dc todos os tilõlogos, c Ênto, pai dos 
poetas Jatinos. assim como testemunha Horacio. embora um 
grosseirão tenha dito que os seus “Odrcs"' cheiravam mais a 
vinho do que a azeite.
Coisa idêntica disse um bulio dos meus livros; mas 
merda para ele1 O odor de vinho. õ. como ê mais saboroso, 
mais agradável, avais atraente que o do azeite1
32
Pixlro l ms Ribeiro de Sann
Bosch, "O Juízo Final” (c. 1500). 
Cheias dejigurus irnagtnàrias e muitas 
grotescos. f tu c t lança mão de uma 
grande liberdade estética, com 
dt-uorções fisicas, para representar os 
distorções de caráter.
(jiatto, “A Cura de Lázaro " fc. 
1305). Giotto introduz na pintura 
uma expressividade e uma 
dramaticidttde inexistente em 
períotfax anterior cia pintura, mus 
suo temática ainda era 
centraitnenie religiosa.
Da linci. "As Proporções da 
Figura Humana" O homem jtossn 
gradativamente a ser a medida de 
todas as coisas O cvrp/j humano 
c valorizado e é apresentado em 
proporções geométricas.
33
A Construção do eu na Modernidade
Rvmhrandi, “A lição de anatomia do Dr. Tulp " (16321. O jogo do !u: 
(daro/escum) permite rim foco objetim sobre o objeto da pintura. Nuda 
disperso a percepção. Assim como no pro/cto carlexiuna, temos a busca 
por representações claras e distintas.
34
Arcimbofdo, "A 
primavera ". O to­
do è formado por 
um con/ttnio de 
fragm entos evo ­
cativas da estação. 
A representação e 
poiifõnica e pede 
diversas perspec-
tivas de ívdin
Pedro Luís Ribeiro de Sanü
l; sinto-me muito muis lisonjeado, quando se diz que 
gasto mais vinho do que azeite, do que ficou Dcmóstenes 
quando dele disseram que gustuvu mais azeite do que vinho. 
Para mim, só me sinto honrado e jubiloso por ter fama de sei 
um bom copo e um hom companheiro: graças a isso sou bem 
recebido cm todos os bons grupos de pantagruclistas. ( ..)
li agora di v erli-vos. meus queridos, e lede alegremciue. 
para satisfação do corpo c beneficio dos rins. Mas escutai, 
sem vergonhas e que n úlcera vos corroa: tratai de beber poí 
mim, que eu começarei, sem mais demora ” fp. 33-361
+
Vemos, com Rabclais, a valorização do nso e de toda forma 
de prazer corporal, em confronto com a tendência nascente (e que 
dominará o século X VII) dc só respeitar a seriedade, a contenção e 
a mente. Talvez convenha lembrar exatamente neste momento, como 
Umbcrto Eco deixa claro, no eixo de seu romance uO Nome da 
Rosa”, o risco que a visão ortodoxa considerava liavcr no riso, também 
no final da Baixa Idade Média. Na tentativa de conter o riso -o 
prazer > observ amos o esforço em obter o aulo-controle. Ao mesmo 
tempo, vemos a valorização renascentista da cultura greco-romana.
Q lIfS ttks para discussão
1 Qual c a importância da feira dc rua no universo do Renascimento?
2 Que tipo dc reação foi gerada pelo confronto com outras culturas?
3. Por que no Renascimento o homem perdeu suas certezas?
A Construção do «ru na Modernidade
5
OS PROCED IM ENTO S DE 
CONTENÇÃO DO EU
Acompanhamos, nesta parte, algumas das 
medulas tomadcs para o restabelecimento de 
referencias ftarr a colocação do homem no 
mundo. Elas estarão voltadas ao próprio eu. 
na figura do auto-controie.
A
J T x . nova valorização do ser humano e a imposição de que 
ele construa sua existência e descubra valores segundo os quais viver, 
aliada a toda a dispersão c fragmentação do mundo, que apontamos 
acima, levarão a tentativa de criação de mecanismos para o dominio 
c formação do eu. É na formação destes procedimentos - ‘modos 
de ser"- que poderemos começar a reconhecer os rumos que levarão 
à Psicologia, Citando uma vez mais Figueiredo:
“(...) t.k> importantes ou até mais importantes do que a abertura 
de espaços de liberdade mdividua. com se vê acontecendo ao 
longo do processo dc desintegração tios 'civilizações fecha­
das’, são as tentativas de circunscrever estes espaços. Assim 
sendo, as experiências subjetivas nn sentido moderno do termo 
e que vieram a se converter em objeto dc um saber c de uma 
intervenção psicológicos devem a sua emergência tanto ás 
vivências de diversidade e ruptura como às tentativas dc orde­
nação e costura, ou seja, a todas ai praticas reformistas que 
bnphcavam urna subjetividade indivkualizada c uma tensão sus­
tentada entre áreas ou dimensões de ] herdade e áreas ou dimen­
sões dc submissão. (...)Como se vê, o ‘ indivíduo', ao contrato 
do que o termo sugere, nasce da dispersão c traz uma cisão 
interior inscrita em sua natl)reza.'’l',
14 .4 invenção do psicológico, p, 59.
36
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Pedro Luis Ribeiro de Santi
Impoc-se ao homem, a partir ele agora, escolher o seu 
caminho. Essa escolha implica cm uma construção da identidade, e 
todos os exemplos mostram-nos como isso exige um esforço brutal, 
quase sobrehumano; o homem deve dominar a dispersão que o mundo 
6. () carnaval de Rabelais será contido, o corpo c suas funções serão 
calados cm favor da coesão e da oídem do sujeito.
Durante a Idade Media, era relativamente difícil explicar 
como era possível ser responsabilizado por pecar: se a pessoa não 
em livre e apenas cumpria os planos de Deus, como responsabiliza- 
la? No Renascimento, a questão pode ser equacionada de outra forma: 
Deus fez o homem Itvre para que ele possa ser julgado; ele pode 
e sco lh er um bom caminho e ser recompensado po: isso, mas pode 
ser desviado dele por tentações e dispersões - e o mundo rcnascetui sta 
as oferece em quan:idade e, então, ser responsabilizado e punido 
por isso. A questão passa a ser; o que eu devo ser? Como devo me 
fo m a r? F.m term os m ais p s ic o ló g ic o s , com o con stru ir uma 
identidade?
Há vários exemplos de modos dc constituição de identidade 
no Renascimento. Talvez o mais conhecido seja o de Dom Quixote 
de La Mancha, personagem dc Cervantcs, que sc identifica com o 
ideal do cavaleiro attdante medieval e procura afirmar-se. A evocação 
deste exemplo já sugere que a afirmação de uma identidade coesa 
pode assemelhar-se à alucinação, na medida cm que cia deve impor- 
se sobre o inundo, ele próprio em frangaLhos.
Passemos agora a um exemplo concreto de procedimento 
vislumbrado no século XVI para a constituição dc uma identidade 
coesa, que consiga nüo se deixai levar pela disnersào. O pensamento 
religioso, adaptando-se aos tempos como sempre, pnxluzirá. sobretudo 
através de Santo Inácio de Loyola. procedimentos para a afirmação 
da identidade sobre a dispersão do sujeito. guiando-o de volta a Deus.
Santo Inácio converteu-se á religião já adulto. Ele havia sido 
militar, c uma das características mais marcantes que impôs a seu 
sistema foi a disciplina. Tendo fundado a Com panhia de Jesus, 
imprimiu um traço distintivo dos jesuitas até hoje, sua iniciativa prática 
e pregação militante.
Santo Inácio parte do mundo renascentista, reconhecendo a 
liberdade hm rana, mas constataa perdição do homem e buscará
37
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Construçilo do eu na Modernidade
mostrar-lhe o caminho do reencontro com a ordem. Seu procedimento, 
propriamente humanista, taz. escola até hoje: o homem é livre para 
ser o que é e parece estar perdido; ele precisa e pode. portanto, 
dirigir sua livre vontade ao caminho correto para se encontrar. O que 
ele precisa e de um manual dc instruções, uma tccniCH para dirigir 
sua ação. Em Os Exercidos Espirituais, são propostos uma série 
de procedimentos, com a duração de 28 dias. cujo cumprimento 
rigoroso deverá levar o praticante à iluminação. Uma vez mais. vale 
a pena reproduzir alguns trechos da obra:
TEXTO ANEXO - S a n to Ig n á cio de Loyola
EX ERCÍCIO S ESPIRITUAIS
“ I* Anotação. Por esta expressão, Exercícios Espirituais, 
enlendc-se qualquer modo dc cxainrnar a consciência, meditar, 
contemplar, oraj vocal ou menialmcnte, c outras atividades 
espirituais, dc que adiante falaremos. Porque; assim como 
passear, caminhar c correr são exercícios corporais, também 
sc chamam exercícios espirimais os diferentes modos de a 
pessoa sc preparar c dispor paru tirar de si todas as afeições 
desordenadas, e, lendo-as afastado, procurar e encontrar a 
vontade de Deus. *ia disposição da sua vida para o bem da 
mesma pessoa.” (p. 11-2).
”5* Anotação. Muito aproveita ao exercitatue entrar neies 
com grande ânimo c liberalidade pum com seu Criador e 
.Senhor, ofercccndo-dic todo o seu querer e liberdade, para 
que sua divina majestade sc sirva de sua pessoa e dc tudo 
quanto possui, conforme a sua santíssima Vontade." (p. 15).
“EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS PARA 0 HOMEM SE 
VENCER A SI MESMO E ORDENAR A PRÓPRIA VIDA.
SEM SE DETERMINAR POR NENHUMA AFE1ÇÀO 
DESORDENADA** (p. 27).
PRINCÍPIO E FUNDAMENTO
O homem é criado paia louvar, reverenciar e servir a 
Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua alma. E as outras 
coisas sobre a face d.t terra sào criadas para o homem, pura 
que o ajudem » alcançar o fitn para que é criado. Donde sc
38
Gabriel Rossi
Pedro LuLs Ribeiro dc Saati
segue que hà dc usar delas tanto quanto o ajudem a atingir o 
seu fim. c há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. 
Pelo que é necessário tornar-nos indiferentes a respeito de 
todas us coisas criadas cm tudo aquilo que depende da 
escolha da nosso li\'re-arbítrio, e não lhe c proibido. IX* ta. 
nume ira que, dc nossa parte, não queiramos mais saúde que 
doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa 
que breve, e assim por diante cm tudo o mais, desejando e 
escolhendo apenas o que mais nos conduz ao fnn para que 
somos crindos." (p 28).
"REGRAS PARA SENTIR VERDADEIRAMLNTE
COMO SE DEVE NA IGREJA MILITANTE
I" regra. Renunciando a lodo juízo própno, devemos 
estar dispostos c prontos a obedecer em tudo á verdadeira 
esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, a santa Igreja 
hierárquica, nossa màe.'’(p. 188)
"9' regra. Louvar tlnalmente todos os preceitos da 
sarna Igreja, e estar disposto para procurar razões em sua 
defesa, e nunca para os criticar,"
“ 13* regra Para em tudo acertar, devemos estar sempre 
dispostos a ercr que o que nos parece braneo é negro, sc 
assim o determina a Igreja hierárquica; persuadidos de que 
entre Cristo Nosso Senhor -o esposo- e a Igreja -sua 
Esposa não ha senào um mesmo Espírito, que nos governa 
e dirige pura a salvação das nossas almas. Porque é pelo 
mesir.o Espírito c mesmo Senhor, autor dos dez mandamentos, 
que se dirige e governa a santa Igreja, nossa Mãe."
"15* regra. Habitualn-jcnte nào devemos falar muito dc 
predestinação. Mas se cm alguma ocasião se falar disso, faça- 
sc de maneira que os simples fiéis não caiam em algum erro. 
Algumas vezes isso acontece, quando concluem: “Se já está 
determinado que me vou condenar ou salvar, nào são as 
minhas ações hoas ou más que hão de mudar esta 
determinação". E com este raciocínio tornam-se negligcnics 
e descuidam as obras que conduzem á salvação ç ao proveito 
espiritual das suas almas." (p. 192)
“ 17* regra. Igualtnentc não devemos tnsistir tanto nn 
graça a ponto dc se produzir o veneno que nega a liberdade. 
Pode-se com certeza falar da fc c da graça, mediante o auxilio
39
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Construção do eu na Modernidade
divino, para maior louvor de sua divina Majestade, mas não 
de tal forma nem por tais modos, mormente cm nossos tempos 
tão perigosos, que as obras c o livrc-arbitrio sejam 
prejudicados ou mesmo negados." (p, 193).
*
Assim, u liberdade humana é reconhecida apenas para se 
lhe atribuir a causa da perdição humana. Curiosamenie, a salvação 
implica justamente em abrir mão de forma absoluta dessa liberdade, 
transferindo-a á autoridade religiosa com Ioda a boa-vontade c 
determinação. A submissão do sujeito deve ser absoluta, esse c o 
preço a pagar pelo repouso numa certeza sem conflitos. Exigc-.se 
disciplina, dedicação e, sobretudo, que se abra mão da própria 
experiência imediata em favor da palavra da Igreja. Se, ao fim dos 
28 dias, a iluminação não chegou, isso nào se deve a uma falha do 
método, mas certamcnte à pouca fé e à fraqueza da vontade do 
excrcitantc'5.
F. bastante visível o quanto parte daqui a inspiração de um 
gênero literário de bastante sucesso no final do século XX, chamado 
"Psicologia de auto-ajuda" A crença na liberdade humana absoluta, 
que d i/ que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos, 
envolve um forte sentimento dc culpa: se somos o que fazemos de 
nós, esta infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por nós, 
nós a merecemos. A premissa do título dc urn livro como “Só é gordo 
quem quer", poderia scr derivada em "só c pobre quem quer”, ou 
"Só é brasileiro quem quer", etc. A única determinação reconhecida 
para nosso scr é a própria vontade; todas as determinações históricas, 
sociais, genéticas, etc, são simplesmente negadas.
A cada época, a falta de sentido dc nossa existência mostra- 
se preza fácil das “ au to rid ad es dc p lan tão ” a nos o ferece r 
generosamente seu manual de como viver. Mais importante do que 
esta produção, c a percepção de como a Modernidade parece implicar
Santo Inácio antecipa dc forma espantosa alguns dos mais importantes 
pensadores do século XVII: Descartes e Hobbes. Mais perto dc nós. antecipa 
também as Psicologias humanistas ou dc auto-ajuda c ainda alguns cultos 
religiosos e procedimentos de Marketing.
40
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Pedro Luis Ribeiro de Santi
neste sentimento de va/io e cria a demanda por nos formarmos 
continuamente
M ÚSICA - UMA PO LIFO N IA MAIS COM PORTADA
Uma vez mais, a música nos auxiliará na exemplificação de 
um co n ce ito . No final do sécu lo X V I, a p o lifo n ia parece 
gradativamente tornar-se mais bem comportada. As vozes múltiplas 
vão sendo harmonizadas e não sc tem mais a impressão de ru do: 
elas simplesmente .sâo disciplinadas, dispostas de tal forma que 
componham um todo equilibrado, listamos a um passo da “fuga” 
(estilo próprio ao século XVIF). Mesmo as letras parecem mais 
comportadas, evocando a contra-reforma. Não será possível retomar 
ao universo do canto gregoriano, mas sera possível buscar orcem 
dentro da diversidade, como vimos através de Santo Inácio.
F.is uma curiosa letra, composta por Mateo Flocha, HI Viejo, 
num gênero que tem o evocativo nome dc Las Ensaiadas.
EL FUEGO1® - Ua (ca F lecha , L I lle jo
Corrcd, corred. pecadores!
No os tardeis a traer luego 
agua al fuego, agua ul fuego' 
fuego, fuego. fuego!
Este fuego que se enciende 
es d maldito peccado. 
que al que no hulla ocupado 
sicmpre para st Io prende.
Qualquier que de Dios pretende 
salvacíon, procure luego 
agua al fuego. agua al fuego
"Et fuego" e "Ia i \egrina", extraídas dc "Las Ensaiadas, Sony M u ú c , 
1991”. Ambas são ainda polifonias, compostas dc vários fragmentos 
temáticos c mesmo de vários idiomas, mas pode sc notar, cspecialmente na 
segunda, o quanto as vozes ja estâo harmonizadas, submetidas a tina 
composição rigorosa. Ouça também o inicioda "Missa Papae MarccUi". dc 
Paleslnna, extraída dc "Baroque. Paiestrina e Moateverdi, EMT Classes, 
1995”.
41
A Construção do eu na Modernidinle
Fucgo, fucgo, fucgo!
Venid presto, pcccadores, 
a matar aqucstc fticgo;
I laced penitencia lucgo 
de todos vuestros emires- 
Rcclamen essas campanas 
dentro cn vuestros coraçoncs.
Dandán, dandán. dandán...
Poné en Dios Ias aficiones, 
todas las gentes humanas.
Dandán. dandán, dandán 
Uamad essos aguadores, 
luego, luego, sin lardar!
Y ayúdennos a rnatar este fucgo,
No os tardeis en tracr luego 
dcnlro de vuestru conciencia 
mil cargos de penitencia 
de buen' agua. 
y ansí matanõis Ia fragua 
dc vuestros maios deseos, 
y los cnemigos fcos huyrán.
A expressão ‘salada" ê especialmente própria para delinir a 
polifonia, neste caso. Mesmo já sc tratando de urna música mais 
con tida , não faltam m isturas dc tem as m usicais, id iom as - 
aparentemente, trata-se de uma coleção de trechos dc canções unidos 
ao gosto do compositor. Já mais ao final do século, encontramos uma 
música propriam ente equilibrada e muito bonita, um dos melhores 
frutos da religião, a música sacra.
*
Tomemos agora outro exemplo hem mais cruel c naturalista 
de procedimento dc afirmação do sujeito; O P ríncipe, obra dc 
Maquiavel do começo do século XVI, Trata-se de uma sene de 
prescrições sobre como bem governar. Em nosso contexto -isto 
poderia sc tradu/ir assim: que tipo dc sujeito utri principc deve ser? 
Como deverã ser seu “euM?.
Seu princípio c o de que o mundo (figurado pela figura do
Gabriel Rossi
Pedro l.nis Ribeiro de Sarri
povo) é volúvel -voltando-se para aquilo que representar seu interesse 
mais imediato , sem memória, egoísta e, enfim, nau. A grande 
preocupação de Maquiavel c a fragmentação da Itália e a sua invasão 
por bárbaros. É necessária a imposição de um sujeito forte. O 
governante não tem outra opção que sc afirmar à força, criar alianças 
mais pelo temor do que pelo amor. como única forma tlc estabelecer 
uma umdade a dispersão O valor primeiro de tudo será a obtenção e 
manutenção do poder centralizado. Para tanto, não há que se ter 
vergonha por fa/er qualquer coisa nc*ie sentido, mesmo matar a 
quem quer que represente uma ameaça ao poder. O principio ético c 
o da afirmação do poder.
Maquiavel foi tomado como imoral e desumano <de seu nome 
deriva o adjetivo 'm aquiavélico’, que atualmente significa ardiloso, 
maldoso). No entanto, se inserimos o discurso de Machiavcl nesse 
contexto de crise da té em um poder transcendente e entendemos o 
maio da dissolução, talvez tome-se mais compreensível a radicalidade 
e a urgência dc seus preceitos. Abaixo, seguem-sc trechos de O 
p rín c ip e .
TEXTO ANEXO - M co ló M a ch ia reili 
C) PRÍNCIPE
é que os homens, com satisfação, mudam dc senhor 
pensando melhorar c esta crença faz com que lancem mão dc 
armas contra o senhor atual, no que se enganam porque, pela 
própria experiência, percebem mais tarde ter piorado a 
situação.” (p. 11)
"E quem conquista, querendo conserva-los (o poder 
c o domimo] deve adotar duas medidas: a primeira, fazer com 
que a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a outra, aquela 
de não alterar nem as suas leis nem os impostos: por tal forma, 
dentio dc mui curto lapso de tempo, o território conquistado 
passa a constituir um corpo todo com o principado antigo.”
(p. 13)
“E que, em verdade, não existe modo seguro para 
conservar tais conquistas, senão a destruição. E quem se 
tome senJior de uma cidade acostumada a viver livre e não a 
destrua. es|>er e ser destruído por cia, porque a mesma sempre
43
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
A Construção do eu nu Modernidade
encontra, para apoio dc sua rebelião, o nome da liberdade c o 
de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja pelo 
decurso do tempo, seja por bcneficios recebidos. Por quanto 
se faça e proveja, se não se dissolvem ou desagregam os 
habitantes, eles nào esquecem aquele nome nem aquelas 
instituições, e logo, a cada incidente, a eles recorrem como 
fez Pisa cem anos apôs estar submetida aos florentmos" (p, 
30).
“Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem 
outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer 
scnào a guerra e a sua organização e disciplina, pois que c 
essa a única arte que compete a quem comanda. E c ela dc 
tanta virtude, que nào só mantém aqueles que nasceram 
principes, como também muitas vezes faz os homens de 
condição privada subirem àquele posto: ao contrário, vé-se 
que, quando os principes pensam mais nas delicadezas do 
que nas armas, perdem o seu Estado,” (p. 85)
“Resta ver agora quais devam ser os modos e o 
proceder dc um príncipe para com as súditos c os amigos c, 
porque sei que muitos já escreveram a respeito, duvido não 
ser considerado presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo 
assunto, máxime quando irei disputar essa matéria à 
orientação já por outros dada aos principes. Mas, sendo minlta 
intenção escrever algo de útil para quem por tal se interesse, 
pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída 
dos fatos c nào à imaginação dos mesmos, pois muitos 
conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou 
conhecidos como tendo rcalmente existido Em verdade, há 
tanta diferença de como se vive e como se deveria viver, que 
aquele que abandone o que faz por aquilo que sc deveria 
fazer aprendera antes o caminho de sua ruma do que o dc sua 
preservação, eis que um homem que queira em todas as suas 
palavras fazer profissão de bondade, penler-sc-á em meio a 
tantos que não são bons. Donde è neeessáno, a um príncipe 
que queira se manler. aprender a poder nào scr bom e usar ou 
nào da bondade, segundo a necessidade ” (p. 89-90)
“Um príncipe não deve, pois, temer a má íama dc cruel, 
desde que por ela mantenha seus súditos unidos c leais 
(P- 95)
“Nasce dai uma questão: se é melhor scr amado que 
temido ou o contrario. A resposta é de que seria necessário
4 4
Gabriel Rossi
Gabriel Rossi
Pedro Luis Ribeiru de Santi
ver uma coisa c ou Ira, mas, como é difícil reuni-las. em tendo 
que faltar uma das duas é muito mais segure ser temido do 
que amado. Isso porque dos liomens pode-se dizer, 
gcralmcntc, que sào ingratos, volúveis, simuladores, temenfes 
do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres 
bem, são todos teus. ofcrcccm-tc o próprio sarguc, os bens, 
a vida. os filhos, desde que, como se disse acima,a necessidade 
esteja longe de ti: quando esta se avizinha, porem, revoltam- 
se. E o príncipe que confiou intciramcntc cm suas palavras, 
encontrando-sc destituído de outros meios do defesa, está 
perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não 
pela grandeza e nobreza de alma, sào compradas mas com 
elas não sc pode contar e, no momento oportuno: nào se 
toma possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo 
em ofender a alguém que sc faça amar do que aquem sc faça 
temer, posto que a amizade é mantida por um vinculo de 
obrigação que, por serem os homens maus. é quebrado em 
cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor c mantido 
pelo receio de castigo que jamais sc abandona." (p. 96)
“Náo se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim 
dc que a Itália conheça depois de tanto tempo, um seu 
redentor. Nem posso exprim ir com que amor ele teria recebido 
em todas aquelas províncias que tem sofrido por essas 
invasões estrangeiras, com que sede dc vingança, com que 
obstinada fé. com que piedade, com que lágrima?, (^uais portas 
se lhe fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual 
inveja se lhe oporia? Qual italiano lhe negaria c seu favor? A 
todos repugna este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa 
ilustre casa esta incumbência com aquele ânimo e com aquela 
esperança com que sc abraçam as causas justas (p. 146)
*
Sem dúvida, por mais que possa parecer esranho. há uma 
serie de pontos em comum entre este procedimento t o prescrito por 
Santo Inácio. Ainda que um afirme o valor do humano e o outro o 
retomo a Deus, ambos crêem na necessidade tia afirmação do sujeito 
através

Outros materiais