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Gêneros textuais: Crônicas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISDB GOVERNO de Pernambuco. Secretaria de Educação e Esportes. Língua Portuguesa: Gêneros textuais: Crônicas. – Recife: Secretaria de Educação e Esportes, 2020. 17 p.: il. 1º Ano Ensino Médio. Educa-PE. Fascículo 7. 1. Literatura. 2. Ensino. 3. Gênero textual. 4. Crônica. I. Título. CDU – 869.0:37 Elaborado por Hugo Carlos Cavalcanti | CRB-4 2129 Expediente Governador de Pernambuco Paulo Henrique Saraiva Câmara Vice-governadora de Pernambuco Luciana Barbosa de Oliveira Santos Secretário de Educação e Esportes de Pernambuco Frederico da Costa Amancio Autor Prof. Italo Batista de Queiroz Revisão de Língua Portuguesa Prof.ª Aline Vieira de Oliveira Couto Projeto gráfico Clayton Quintino de Oliveira Diagramação Hugo Carlos Cavalcanti As imagens e ilustrações creditadas foram utilizadas para fins exclusivamente educacionais, conforme a Lei 9.610/98. Introdução ao gênero literário Crônica Você já leu uma crônica em um jornal ou revista ou ainda em blogs da internet? Alguma vez você ouviu crônicas em programas de rádio ou televisão? Ler ou ouvir uma crônica é, de forma espontânea, fazê-la sem compromisso, para despertar sensações e emoções requintadas e desfrutar de boas risadas, pensar sobre a vida cotidiana, e até quem sabe fazer as pazes com certas frustrações da vida moderna. Mas, o que é mesmo uma crônica? Seria um relato de experiência? Algum tipo de conto? Ou apenas uma coluna produzida em um jornal com um toque de poesia? Olá, caro aluno, tudo bem com você? Cá estamos de volta para dar continuidade aos estudos sobre os gêneros textuais. Desta feita, conheceremos os princípios básicos do gênero literário Crônica. Vamos nessa?! Fo n te: C lip m art.co m Fo n te : C lip m ar t. co m Venha comigo que juntos iremos descobrir mais sobre esse gênero literário tão simples e tão grandioso! Fonte: /www.canva.com 1 Fo n te : C lip m ar t. co m Fo n te: C lip m art.co m Para início de conversa, vamos ler um texto publicado por Ivan Ângelo para a Revista Veja, em 25 de abril de 2007, que traz explicações bastante decisivas para uma melhor compreensão do gênero em questão. Esse texto surgiu da necessidade de distinguir o gênero crônica de outros gêneros textuais que logo foram confundidos por seus leitores. Atente para uma leitura cuidadosa e faça anotações em seu caderno de suas impressões sobre o conceito do gênero crônica e suas principais características. Esse exercício de reflexão é importante, pois, como diz a educadora Madalena Freire (1996), “O registrar de sua reflexão cotidiana significa abrir-se para seu processo de aprendizagem”. Sobre a crônica Por Ivan Angelo Uma leitora se refere aos textos aqui publicados como “reportagens”. Um leitor os chama de “artigos”. Um estudante fala deles como “contos”. Há os que dizem: “seus comentários”. Outros os chamam de “críticas”. Para alguns, é “sua coluna”. Estão errados? Tecnicamente, sim – são crônicas –, mas… Fernando Sabino, vacilando diante do campo aberto, escreveu que “crônica é tudo que o autor chama de crônica”. A dificuldade é que a crônica não é um formato, como o soneto, e muitos duvidam que seja um gênero literário, como o conto, a poesia lírica ou as meditações à maneira de Pascal. Leitores, indiferentes ao nome da rosa, dão à crônica prestígio, permanência e Fo n te: C lip m art.co m Fo n te : C lip m ar t. co m 2 força. Mas vem cá: é literatura ou é jornalismo? Se o objetivo do autor é fazer literatura e ele sabe fazer… Há crônicas que são dissertações, como em Machado de Assis; outras são poemas em prosa, como em Paulo Mendes Campos; outras são pequenos contos, como em Nelson Rodrigues; ou casos, como os de Fernando Sabino; outras são evocações, como em Drummond e Rubem Braga; ou memórias e reflexões, como em tantos. A crônica tem a mobilidade de aparências e de discursos que a poesia tem – e facilidades que a melhor poesia não se permite. Está em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para cá. O professor Antonio Candido observa: “Até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e pela originalidade com que aqui se desenvolveu”. Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem estrangeira: “É nosso familiar essay, possui tradição de primeira ordem, cultivada desde o amanhecer do periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas da época”. Veio, pois, de um tipo de texto comum na imprensa inglesa do século XIX, afável, pessoal, sem cerimônia e no entanto pertinente. Por que deu certo no Brasil? Mistérios do leitor. Talvez por ser a obra curta e o clima, quente. A crônica é frágil e íntima, uma relação pessoal. Como se fosse escrita para um leitor, como se só com ele o narrador pudesse se expor tanto. Conversam sobre o momento, cúmplices: nós vimos isto, não é leitor?, vivemos isto, não é?, sentimos isto, não é? O narrador da crônica procura sensibilidades irmãs. Fo n te : C lip m ar t. co m Fo n te: C lip m art.co m 3 Se é tão antiga e íntima, por que muitos leitores não aprenderam a chamá-la pelo nome? É que ela tem muitas máscaras. Recorro a Eça de Queirós, mestre do estilo antigo. Ela “não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando”. A crônica mudou, tudo muda. Como a própria sociedade que ela observa com olhos atentos. Não é preciso comparar grandezas, botar Rubem Braga diante de Machado de Assis. É mais exato apreciá-la desdobrando-se no tempo, como fez Antonio Candido em “A vida ao rés-do-chão”: “Creio que a fórmula moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma”. Ainda ele: “Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”. Elementos que não funcionam na crônica: grandiloqüência, sectarismo, enrolação, arrogância, prolixidade. Elementos que funcionam: humor, intimidade, lirismo, surpresa, estilo, elegância, solidariedade. Cronista mesmo não “se acha”. As crônicas de Rubem Braga foram vistas pelo sagaz professor Davi Arrigucci como “forma complexa e única de uma relação do Eu com o mundo”. Muito bem. Mas Rubem Braga não se achava o tal. Respondeu assim a um jornalista que lhe havia perguntado o que é crônica: – Se não é aguda, é crônica. F o n te : C lip m ar t. co m 4 Origem da Crônica Viu como a crônica é um gênero textual tão flexível e singular que pode se utilizar de outras “máscaras”, ou seja, de outras formas textuais típicas de outros gêneros como a poesia, o conto, o relato, a memória literária. Contudo, não se confunde com nenhum deles, já que este gênero é bastante peculiar, como todos os gêneros do discurso. Vamos, então, a mais algumas definições e caracterização deste gênero. A etimologia da palavra crônica vem do vocábulo “khrónos” (Grego - Cronos é o deus grego do tempo) ou “chronos” (latim), que significa “tempo”. O sentido desta palavra “tempo” (“chronica”) é empregado pelas antigascivilizações romanas devido à função comunicativa de fazer registro de acontecimentos históricos verídicos, em ordem cronológica. Deste modo, o “tempo” era um gênero que se aproxima hoje da notícia, porquanto se limitava apenas aos registros informativos sem, contudo, interpretá-los. No Brasil, por volta do século XIX, a crônica veio nesse formato informativo, com publicações direcionadas exclusivamente às mulheres, mas com espaço insignificantemente na parte inferior da página de um jornal. A crônica começa a se moldar para um formato mais literário conforme as contribuições de grandes escritores da época, como Machado de Assis e José de Alencar, que mesclavam suas produções com temas do cotidiano de suas gerações ora mais jornalísticas ora mais literárias. Fo n te : h tt p s: // b r. ve xe ls .c o m / 5 Fo n te : C lip m ar t. co m Fo n te: C lip m art.co m Pertencente ao texto literário, a crônica se constrói em torno da linguagem conotativa (figurada), da subjetividade da realidade, da função poética e do uso de figuras de linguagem. Entretanto, o que este gênero se distingue dos demais gêneros categorizados como literários? É que a crônica parece ser o gênero que mais nos aproxima do dia a dia, ao trazer uma narrativa com linguagem simples e leve, de forma despretensiosa, partilhando de um olhar observador e sutil ao fazer um recorte de um acontecimento para ampliar, como uma espécie de lupa, nossa visão daquilo que nos parece ser banal ou vulgar. Assim, a crônica nasce e se alimenta dos acontecimentos corriqueiros da vida. Observe esta definição feita pelo escritor e crítico literário brasileiro Davi Arrigucci Júnior (1987, p.55): “às vezes a prosa da crônica se torna lírica, como se estivesse tomada pela subjetividade de um poeta do instantâneo que, mesmo sem abandonar o ar de conversa fiada, fosse capaz de tirar o difícil do simples, fazendo palavras banais alçarem vôo”. Que definição precisa sobre o gênero crônica! De fato, a linguagem da crônica é tomada por um tom lírico, que emite a singularidade observada pelo narrador, como se fosse Fo n te : C lip m ar t. co m Fo n te : C lip m ar t. co m 6 uma conversa com o leitor, que amplia seus horizontes para enxergar dos eventos simples e vulgares o mais sutil detalhe que encanta e emociona. A Crônica literária busca introduzir alguma tensão junto a um desfecho inesperado ao destacar algum evento ou aspecto do cotidiano, com o objetivo de provocar a reflexão e de despertar sentimentos no leitor. Normalmente, os assuntos cotidianos abordam situações como uma viagem, a (re)ação de alguém, uma pessoa ou detalhe observados em um local peculiar: no ônibus, na rua, na praça, na escola, na padaria, no cemitério, dentre outros. Em outros casos, os acontecimentos corriqueiros versam uma narrativa singular de mazelas sociais de uma determinada localidade. Não é uma narrativa que busca moralizar, ou seja, ensinar maneiras de certo e de errado. Não anseia instruir sobre comportamentos ou como as pessoas devem viver. Ao invés disso, a crônica expõe o acontecimento para propor uma análise de comportamentos e de estilos de vida. Na produção da crônica, é preciso apresentar um acontecimento corriqueiro sob uma perspectiva particular, recorrendo à linguagem literária e à ficcionalidade (verossimilhança, semelhante ao que é verdadeiro) da ação do episódio narrado e observado pelo autor. Em outros termos, é preciso muito mais que relatar um acontecimento, pois o autor além de descrever um episódio insere em seu texto recursos linguísticos como figuras de linguagem para tornar aquilo que é meramente corriqueiro em algo encantador, visto com bastante subjetividade e singularidade pelo observador. Em meio a tantos acontecimentos corriqueiros, o Fo n te: w w w .b lo gd e le n gu aje .co m / Fonte: Clipmart.com 7 cronista fixa, por meio de um ajuste em sua lente de observação, aquele evento que atrai sua atenção e que pode ser repartido com o leitor, visando acender nele distintas sensações e emoções, bem como conduzi-lo à reflexão da vida. Por isso, a importância de se trabalhar o gênero crônica em sala de aula é desenvolver a competência crítica do aluno com relação ao aprimoramento do seu olhar para a análise dos mais diversos episódios vivenciados em seu dia a dia. Os textos caracterizados como relatos possuem a tipologia narrativa e descritiva, assim como o gênero crônica. São relatos de cenas vividas ou observadas, mas não se configuram como crônicas literárias. Já que, em um relato, o narrador apenas organiza o tempo e o espaço da ação que observou ou viveu. Ao passo que, a crônica literária constroi uma narrativa ao introduzir um conflito e um desfecho. Assim, o enredo se apresenta com um olhar bastante singular do autor e busca encaminhar o leitor para alguma surpresa. Quanto à distinção entre a crônica e uma notícia jornalística, aquela possui caráter literário, em contrapartida a notícia apenas predispõe de um texto objetivo que visa informar algum acontecimento. A crônica tem a possibilidade de fazer uma releitura pessoal e singular de um evento, com a utilização de linguagem coloquial, marcas linguísticas de variações regionais, com um tom lírico, satírico, humorístico ou crítico. A crônica é um gênero literário porque possui uma característica típica das obras literárias: a tentativa de entender o mundo, Agora, observe algumas distinções entre o gênero crônica, o relato e a notícia 8 Fo n te : C lip m ar t. co m Fo n te : C lip m ar t. co m Aspectos do gênero literário Crônica de recortar um episódio vivido a fim de refletir e compreender os acontecimentos, as ações, as emoções, os costumes, as crenças. O cronista ao fazer um recorte de episódio singular, único e especial (visto que desvenda muito sobre a vida), utiliza-se da narração em primeira ou em terceira pessoa. Assim, é o tipo de narrador quem determinará o tempo verbal para a construção do enredo. Se o cronista vive o evento narrado, a crônica se fará com um narrador-personagem, e, portanto, com uso de verbos flexibilizados na 1ª pessoa do singular. Caso o cronista seja um observador perspicaz que acompanha de fora da história um evento recortado, como um flash fotográfico que captura apenas um detalhe de um imenso cenário, a produção literária será traçada por um narrador- observador. A narrativa acontece de forma descontraída, com uso de linguagem simples, como uma conversa fiada para aproximar ao máximo o cronista do leitor, de forma que este desperte emoções e sensações distintas frente aos acontecimentos vistos pelo cronista com um olhar bastante singular. Desta maneira, há uma reconstrução do evento recortado pelo cronista e narrado com marcas linguísticas de tempo (predominantemente no passado) e lugar (uma esquina, um bar, um cinema, uma feira livre, uma praça, um quarto). Fo n te: C lip m art.co m Fo n te : C lip m ar t. co m 9 Fo n te : C lip m ar t. co m Quanto ao aspecto descritivo, o narrador mostra-se com o olhar atento para o detalhe, para os pormenores da vida. Assim, na descrição dos cenários, o narrador nos conduz pela narração e/ou descrição como se estivesse utilizando uma “lente de observação” e nos fazendo perceber em seu “olhar” a apresentação de uma suposição ou interpretação particular para um fato. Deste modo, o observador transforma aquilo que parece ser vulgar em um recorte de acontecimento único e revelador. A descrição é fundamental para a produção de uma crônica, pois é nela que acompanhamos os movimentos do observador como se estivéssemos ao seu ladoou como se víssemos com seus próprios olhos. Assim, a construção do olhar leva ao leitor o sentimento de que o observador captura tudo que está a sua volta. O tom é semelhante aos softwares de fotos, que é capaz de produzir os efeitos de fotos antigas, de montagens, com pouca ou muita luz, de cores mais embranquecidas ou mais amareladas. A manipulação das fotos, assim como a construção de tons no texto, provém do efeito que se quer produzir no leitor. Um efeito de sentido que lhe cause admiração, um sorriso, uma reflexão, uma compaixão por algo ou por alguém, uma sensação de suspense e euforia, uma aspiração de pertencimento e de valor do lugar em que vive, etc.. O público-alvo e a situação de comunicação determinam a escolha e construção de um ou outro tom a seu texto, de acordo com os efeitos que pretendem produzir nesse leitor. Deste modo, o texto se constrói pela escolha das palavras, ora com um tom crítico ora com um tom humorístico. Ainda, podem surgir efeitos de sentido como o irônico ou Para finalizar, veremos sobre a caracterização do tom do texto: 10 Fo n te : C lip m ar t. co m lírico, ou até mesmo a construção de efeito de sentido com um tom saudosista. Desta maneira, a construção dos efeitos de humor e do tom lírico devem considerar o contexto em que esta produção literária irá circular, com a adequação precisa do tom, de modo a provocar no leitor sensações e reflexões. Iaí?! Gostou de estudar sobre este gênero literário? É realmente único, não é mesmo?! Já que a crônica nos faz sentir e refletir de forma encantadora coisas que nos são tão corriqueiras. Como você é uma pessoa que gosta de um desafio, irei propor a você a seguinte atividade: Leia a crônica a seguir e depois responda às questões que se segue. A última crônica Fernando Sabino A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Fo n te : w w w .u n iv e rs o d o sl e it o re s. co m 11 Fo n te : C lip m ar t. co m Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e 12 filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você...”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. O que achou da crônica? ▶ Você já viveu uma situação como a descrita na crônica? Ou conhece outra pessoa que vivenciou algo parecido? 13 ANGELO, Ivan. Sobre a crônica. Revista Veja São Paulo [on-line]. 2005. Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/cidades/sobre-cronica>. Acesso em 24 jun. 2020. ARRIGUCCI JUNIOR, David. Fragmentos sobre a Crônica. In: _____. Enigma e comentário: ensaios sobre Literatura e Experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.51-66. FREIRE, Madalena. Observação, registro e reflexão: instrumentos metodológicos 1. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996. SABINO, Fernando. A última crônica. In: Para gostar de ler: Crônicas. Volume 5. São Paulo: Ática, 2003. ▶ Alguma vez já comemorou um aniversário de forma diferente do tradicional bolo com velinhas? Como foi? ▶ Há algo que ficou difícil de entender? Esse desafio você não pode deixar de realizar. Leia novamente o texto e escolha um parágrafo em que o cronista conseguiu mexer com a sua emoção para apresentar aos seus familiares. Até a próxima! 14 Fo n te : C lip m ar t. co m Fo n te: C lip m art.co m https://vejasp.abril.com.br/cidades/sobre-cronica a) Foco narrativo: b) Cenário: 01 – Qual é o título do texto? Quem é o autor? 02 – Qual era a finalidade do autor ao entrar no botequim? 03 – De acordo com o texto, identifique: 11 15 c) Personagens principais: d) Tempo : 04 – Qual a profissão do narrador? Retire do texto que justifique a resposta. 05 – O narrador conta que entrou no botequim para tomar um café; mas qual era o real motivo? qual era o real motivo? sobre o gênero CRÔNICA, responda as perguntas abaixo: Fo n te: C lip artm ax.co m | C layto n Q u in tin o Fo n te: C lip m art.co m Fo n te : C lip m ar t. co mQUESTÃO 01 | “A última crônica”. Fernando Sabino. QUESTÃO 02| Tomar um café e recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. QUESTÃO 03 | a) Foco narrativo: 1ª pessoa; narrador-personagem. b) Cenário: Um botequim na Gávea. c) Personagens principais: Narrador; família (pai, mãe e filha). d) Tempo: A duração é o tempo do narrador tomar um café. QUESTÃO 04 | ESCRITOR. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. QUESTÃO 05 | Ele estava sem ideia para escrever uma crônica, adiava o momento. 16 18 17
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