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Literatura Africana em Língua Portuguesa Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Vivian Steinberg Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Silvia Albert A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa • Ana Paula Tavares, Paulina Chiziane e Vera Duarte; • Anexo I. · Identificar particularidades das escritas de autoria feminina na li- teratura africana de língua portuguesa; · Explorar as temáticas e o contexto de produção das narrativas e as poéticas de autoria feminina dentre as escritoras: Ana Paula Tavares, Pauline Chiziane e Vera Duarte. OBJETIVO DE APRENDIZADO A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Ana Paula Tavares, Paulina Chiziane e Vera Duarte A escrita de autoria feminina tem a particularidade de portar como foco ou atenção a condição feminina, além da condição humana: motivo de toda e qual- quer literatura. Nesta unidade, falaremos de uma escrita contemporânea de autoria feminina nas literaturas africanas de língua portuguesa. Para isso, faremos um recorte que levará em consideração em primeiro lugar o tempo, ou seja, a condição da contemporaneidade; em segundo, a situação política-geográfica nas literaturas africanas, ou seja, a localização espacial e cultural de países específicos, limita- dos e “unificados” pela língua portuguesa - fator cultural e social, que tem por característica ser a língua do colonizador adotada e, ao mesmo tempo, ser o elemento unificador depois de guerras civis, pós-independência; e, por fim, mas não menos importante, a literatura de autoria feminina, que se coloca de outra perspectiva, diferenciada de qualquer viés canônico ou centralizador. Direcionaremos esse estudo, então, para as literaturas angolana, moçambicana e cabo-verdiana, restringindo-o às autoras: Ana Paula Tavares, Paulina Chiziane e Vera Duarte. Partindo dessa especificidade, temos dois focos principais: o lugar - África: Ango- la, Moçambique e Cabo-Verde e a escrita contemporânea de autoria feminina. De acordo com a escritora Paulina Chiziane, é diferente o feminismo negro do branco, e aqui, não vou me deter na diferença entre escrita de autoria femi- nina e feminismo, porque a autora ao nomear feminismo poderia tanto estar falando da escrita feminina quanto do feminismo. Quanto a esse tema, vale lem- brar apenas que a mestre e filósofa Djamila Ribeiro, ativista do Feminismo Ne- gro brasileiro, afirma que precisamos sempre falar de Feminismos, não há uma condição homogênea. De fato, a palavra feminista está relacionada historica e culturalmente à mulher branca. Por isso, é preciso nomear o feminismo negro para nomear uma realidade, levando em conta tanto mecanismos antissexistas quanto antirracistas. Voltando ao tema desta unidade, são muitas as questões a aprofundar, con- forme se faz a leitura dessas autoras africanas de língua portuguesa, de modo a aproximar subjetividades. Chamo a atenção para essa diversidade de aspectos, inclusive para a negritude, vista nas outras unidades. A hereditariedade, os valores culturais e a memória afetiva dos negros africanos são diferentes da dos brancos, que de alguma forma, são descendentes de europeus com raízes judaico-cristãs, e têm uma perspectiva cultural baseada na cultura greco-romana e ocidental. Essa questão ficará mais clara quando nos determos na literatura de Paulina. É uma reflexão fundamental a ser feita no Brasil, por termos heranças em comum, é uma maneira de nos compreendermos mais profundamente. 8 9 Sobre esse tema é importante ler a tese “Do corpo ao texto: a mulher inscrita/ escrita na poesia de Hilda HiIst e Ana Paula Tavares”, de Maílza Rodrigues Toledo e Souza que trata sobre as poéticas de Hilda Hilst, poeta brasileira e Ana Paula Tavares, poeta angolana. A acadêmica parte de estudos pós-colonialistas e de estudos sobre o(s) feminismo(s). Disponível em: https://goo.gl/hAAW74. Ex pl or Isto posto, entraremos no estudo das autoras mencionadas. Ana Paula Tavares Ana Paula Tavares, angolana, é uma autora de dois mundos: o europeu, Portu- gal, onde vive, e o africano, Lubango, província de Huíla, onde nasceu, em Angola. Sua literatura está toda voltada para sua “aldeia”, segundo ela. Ana Paula Ribeiro Tavares nasceu em Lubango, província da Huíla, a 30 de Outubro de 1952. Passou parte da sua infância naquela província, onde fez os seus estudos primários e secundários. Iniciou o seu curso de História na Facul- dade de Letras do Lubango (hoje ISCED - Lubango), terminando-o em Lisboa. Em 1996 concluiu o Mestrado em Literaturas Africanas. Atualmente vive em Lisboa, onde lecciona na Universidade Católica de Lisboa. Sempre trabalhou ligada à área cultural, tendo atuado como profissional em diferentes áreas da cultura como a Museologia, Arqueologia e Etnologia, Pa- trimônio, Animação Cultural e Ensino. Participou em simpósios, congressos, comissões de estudo e elaboração de inúmeros projetos da área cultural. Foi De- legada da Cultura no Kwanza Norte, técnica do Centro Nacional de Documen- tação e Investigação Histórica (hoje Arquivo Histórico Nacional), do Instituto do Patrimônio Cultural. Sobre sua história e sua escrita ela diz: A Huíla desempenhou um papel particular em «termos» de cheiros, sons, cores, canções que me marcaram muito do ponto de vista estéti- co. Essa era procura. Por outro lado, eu vivi esse tempo no limite entre duas sociedades completamente distintas – e talvez não tenha consegui- do compreender nenhuma das duas. Por isso, tentei refletir e escrever sobre partes de uma e partes de outra que me marcaram fundamental- mente. A Huíla, tal qual era na minha juventude, era o limite entre duas sociedades bem distintas: a sociedade europeia – é uma cidade com muitas características europeias: uma cidade de planalto, onde faz frio, e verde... E, por outro lado, uma sociedade africana que era ignorada pela cidade europeia. In: Michel Laban. Angola. Encontro com Escritores. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1991, II vol. p. 8499 UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Ana Paula Ribeiro Tavares tem poemas escritos em diversos jornais e revistas an- golanos e internacionais como em Portugal, Brasil, Cabo Verde. As suas obras publi- cadas são: Ritos de Passagem (1985), O Sangue da Buganvília (1998), O Lago da Lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-Votos (2003), A Cabeça de Salomé (2004), Os olhos do homem que chorava no rio – em coautoria com Manuel Jorge Marmelo (2005), Manual para amantes desesperados (2007), Como velas finas na terra (2010). No Brasil, há a antologia Amargos como os frutos. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011. Inclui 6 livros anteriores de Ana Paula Tavares: Ritos de Passagem (1885), O Lago da lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos (2003), Manual para amantes desesperados (2007) e Como velas finas na terra (2010). Inexplicavelmente, escolheram o nome Paula Tavares para a edição brasileira de sua obra reunida, quando a poeta é mais conhecida por Ana Paula Tavares. Ao falar sobre a “Literatura angolana no feminino”, Inocência Mata refere-se à “maturidade que a escrita etnograficamente ritualística de Paula Tavares ex- pressa... desde o título, passando pela significação do texto pictórico da capa o macro-poema de cada obra anuncia um intenso lirismo – poesia lírica no sentido de conter uma experiência individual e uma subjetiva postura mental perante a realidade do mundo.” Mais adiante a crítica literária diz: “há um apelo à imagina- ção, pelo recurso a imagens sinestésicas (mistura de imagens sensoriais, como na poesia de Paula Tavares, principalmente na citação de frutos para simbolizar as características femininas)...” (In: Inocência Mata. Literatura Angolana: Silêncios a Falas de Uma Voz Inquieta. Lisboa, Mar Além, 2001, p. 113, 116) Ana Paula Tavares recolhe, segundo ela, histórias das mulheres angolanas, que sempre silenciaram seu desejo, sua sensualidade. Procura, nas vozes individuais, quem são essas mulheres, com quem se relacionam, quantos segredos trancam nos armários. Pois, elas têm suas vidas traçadas, quando vão casar, com quem etc. Passou a ser uma mulher publicada a partir de Ritos de Passagem, quando ti- nha 30 anos. Pra ela, a publicação desse primeiro livro também é um rito de pas- sagem: passou do segredo, do privado, para o público de coisas feitas de silêncio. A linguagem de Tavares é marcada pela oralidade e pela musicalidade. Disse que guarda na memória sons, línguas que não domina, não compreende, mas o som está assimilado à sua língua do poema. Em um verso de O lago da lua, Tavares escreveu: “pássaros que povoam a gar- ganta” (Tavares, 1999, p.17) da mulher angolana. Através da encenação no corpo da linguagem de um desfraldar-se do corpo da mulher, tecendo, palavra após pa- lavra, uma nova relação entre a mulher angolana e seu discurso, seu desejo e sua auto-representação. Com a palavra, Ana Paula Tavares: [...] às vezes há sons que, no universo da língua portuguesa, não encon- tro... Há sons que eu penso que são característicos de uma língua banto, que sempre andou a minha volta e na qual eu não penetrei porque não a falo. Talvez por isso sinta tanta necessidade de inventar palavras que não existem em português. 10 11 Sempre observei com gosto a alquimia generosa da língua portuguesa engrossando o canto umbundu, sorrindo com humor quimbundu ou incorporando as palavras de azedar o leite, próprias da língua nyaneka. (Tavares, O sangue de bunganvília, 1998, p.13) Podemos ver aí, que a língua forjada implode os cânones da língua do colo- nizador. A tradição versus modernidade; a oralidade versus a escrita; Angola versus o mundo. Uma das suas preocupações é o resgate de uma auto-afirmação feminina como sujeito amoroso em contraste com a necessidade literária de “construir a nação”. Tanto nos poemas como nas crônicas, a autora dispende uma atenção para o trabalho feminino, os mais elementares, apreendidos na imprescindibilidade de sua execução. Ex.: São as oleiras de mãos que parecem asas” (O sangue de bungavília, p. 63), são as mais velhas que, ao preparar o funge e outras iguarias, dão provas de transportar “a secreta ciência dos sabores” (p.50). “Diluem-se os mitos vazios de um feminismo retórico ou de um tradicionalismo exotizan- te, para dar lugar à visão de um grupo que intervém na sociedade em que está inserido. Dessa maneira, Ana Paula não fala pelas mulheres de sua terra ou de outras, fala com elas, reconhece-lhes o lugar que elas ocupam. É uma maneira de denunciar uma das muitas injustiças dos tempos que não param de correr”. (Chaves, Angola e Moçambique, p. 112) Mais uma vez, vamos ouvi-la: Canto de nascimento Aceso está o fogo prontas as mãos o dia parou a sua lenta marcha de mergulhar na noite. As mãos criam na água uma pele nova panos brancos uma panela a ferver mais a faca de cortar Uma dor fina a marcar os intervalos de tempo vinte cabaças de leite que o vento trabalha manteiga a lua pousada na pedra de afiar Uma mulher oferece à noite o silêncio aberto de um grito sem som nem gesto apenas o silêncio aberto assim ao grito solto ao intervalo das lágrimas 11 UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa As velhas desfiam uma lenta memória que acende a noite de palavras depois aquecem as mãos de semear fogueiras Uma mulher arde no fogo de uma dor fria igual a todas as dores maior que todas as dores. Esta mulher arde no meio da noite perdida colhendo o rio enquanto as crianças dormem seus pequenos sonhos de leite. (Tavares, O lago da lua, 1999) Um outro tema contemporâneo explorado por Ana Paula Tavares é em rela- ção à hipocrisia celebrada pela mídia. Em “A princesa e os meninos à volta da fogueira”, crônica de O sangue de bunganvília, descreve “o contraponto entre a gravidade do drama vivido pelas crianças angolanas e o exercício sem pudor de uma bondade de ocasião faz emergir a face cruel de uma imagem emoldurada pelo brilho. A mercantilização da dor de quem não tem nada para vender revela até onde pode chegar o abuso dos ‘civilizados’”. A narradora destaca a inviabilidade da própria fantasia quando as feridas da guerra são o pão de cada dia. (in: CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: expe- riência colonial e territórios literários. São Paulo: Atelie, 2005. p. 112 ) Sobre o primeiro livro de Ana Paula Tavares: Leituras: Ana Paula Tavares - Ritos De Passagem Importante acessar esse vídeo e escutar a entrevista com Ana Paula Tavares, falando sobre esse livro e uma leitura da própria autora, “A manga” – relacionando a fruta e a sensuali- dade, o desejo. Disponível em: https://youtu.be/UV2jErtOUXk 1. Conexões entre a Literatura Brasileira e a Angolana | Ana Paula Tavares (Universi- dade de Lisboa. Disponível em: https://youtu.be/-1XCfcdtO_I 2. Ana Paula Tavares, escritora angolana, na Bienal do Livro de Brasília (2012). A po- etisa fala sobre o papel das mulheres na literatura africana, em especial na poesia. Ela res- salta o trabalho de resgate que fez para levar as vozes femininas das escritoras africanas para outras realidades. Disponível em: https://youtu.be/OETY2dU9IEs 3. De viva voz. Poetas, actores e outros convidados dizem poesia sua e de outros. Poemas de Ana Paula Tavares. Centro Cultural de Belém | Sala Luís de Freitas Branco | 22 de Março de 2009. Disponível em: • https://youtu.be/5v2Jepyzom8 • https://youtu.be/8yFE-l5z1HA Ex pl or 12 13 Pauline Chiziane A escritora quando declarada a primeira romancista moçambicana, logo retru- ca, explicando que a literatura dela é contar histórias. Com isso, situa a sua escrita junto à tradição oral, das contadoras de história, que contavam histórias à volta de uma fogueira. Com esse relato, além de contemplar uma tradição moçambicana, resgata a sua avó, que contava história à volta da fogueira. Nasceu em Manjacaze, Gaza, sul de Moçambique,em 4 de junho de 1955. Como “fonte” inspiradora, Pauline cita essa avó, que traz uma cultura ancestral, de histórias à roda da fogueira, era um momento mágico - mesmo que as histó- rias tinham fundo moralizantes: os meninos bonzinhos e os maus. Se comportas- se, como prêmio figuraria nas histórias da avó como personagem bom e ganharia no final um prêmio. Se, ao contrário, não se comportasse, também figuraria na história da avó, mas como personagem mau, e teria um castigo. No campo falava a sua língua materna, o chope, e, quando se mudou para a cidade, aprendeu o português na escola, enquanto nas ruas falava o ronga, a lín- gua nativa de Maputo. “Sou chope, o meu pai era alfaiate de esquina, só depois arranjou uma barraca. A minha mãe sempre foi camponesa, às vezes ficava uma semana sem vir à casa, a tratar da machamba (plantação de mandioca)”. A voz da escritora moçambicana Paulina Chiziane é serena, mas o orgulho das origens é indisfarçável. Aprendeu a língua portuguesa na escola da missão católica. Aos 20 anos, cantou o hino da independência moçambicana, gritou contra o imperialismo e o colonialismo e, depois, com a guerra civil (1975-1992) que arrasou o país, desencantou-se. Por isso, os seus livros nem sempre falam diretamente da guer- ra, mas de um país destruído, da miséria de seu povo, da superstição, dos rituais religiosos e da morte. Participou ativamente da vida política de Moçambique como membro da Fren- te de Libertação de Moçambique (Frelimo), na qual militou durante a juventude, tendo sido eleita nas primeiras eleições multipartidárias em 1994. Mas trocou a vida partidária para se dedicar à escrita, ao trabalho na Cruz Vermelha e à pu- blicação das suas obras, provavelmente, desiludida com o machismo que ainda marca as relações políticas no país. Pauline afirma que é complicado ser escritora moçambicana. A escrita é um lugar de prazer, mas quando se é africano, se reconhece que outras literaturas po- dem ofuscar ou fazer desaparecer os valores que são da própria cultura, da terra moçambicana, entende porque os africanos tornam-se militantes, incluindo-se. Ela escreve para preservar alguma coisa que pode desaparecer, assim recolhe histórias, dá voz ao outro, sendo que às vezes, esse outro é o seu imaginário, suas histórias. Por exemplo, escreveu a história de um curandeiro, primeiramente fez 13 UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa o registro oral, depois escreveu o relato a partir desse encontro, é uma forma de recolha de memórias. Além da escuta das histórias, dos costumes e da cultura dos antepassados, Pauline escreve sobre questões femininas, dá voz às mulheres, mas ela disse que encontrou resistência inclusive por parte das próprias mulheres que diziam: “que feminismo! Mulheres não são assunto para a literatura; literatura é um espaço para a grandeza da alma”. A argumentação apresentada nos mostra a que ponto essa voz é calada. O pioneirismo de Pauline está vinculado a esse contar histórias de mulheres, colocá-las em foco, escutá-las, perceber a perspectiva delas, a autora incluída. Num depoimento que a escritora deu para a TV Brasil, declarou que sua escrita amadureceu por ter participado da “FRELIMO” (Frente de Libertação de Moçambique) e mais, contou que escreveu Ventos do Apocalipse durante a guerra civil, trabalhava para a Cruz Vermelha e, no dia seguinte após um mas- sacre numa aldeia, uma senhora quando a viu desmaiou, ela ficou preocupada, aproximou-se e a senhora ficou pior ainda. Então percebeu que o problema não era físico, a mulher achou Pauline muito parecida com sua filha que tinha sido massacrada no dia anterior. Dessa dor, da dela e da senhora, escreveu o livro. Para curar sua própria dor, para retirar essa mágoa “de dentro”. Niketche, uma história de poligamia conta a história de Rami, uma mu- lher do sul do país, de origem católica e “bem colocada na vida”, descobre que seu marido tem outras mulheres; primeiro pensou que era só uma, em seguida descobre que tem mais três, ou seja, ele tinha quatro amantes e muitos filhos com cada uma. Ela se sente um lixo, procura vários caminhos, inclusive encon- trar as amantes: “parte numa viagem de reconhecimento das outras mulheres, diante da prática poligâmica de seu marido Tony. Cada uma delas, de uma parte diferente do país, na visão da narradora, metaforiza a possibilidade de uma união nacional, cujo eixo centralizador seria a figura do homem das cinco casas. Ela diz em seu livro: “Mas sós já somos uma variação, em línguas, em hábitos, em culturas. Somos uma amostra de norte a sul, o país inteiro nas mãos de um só ho- mem. Em matéria de amor, o Tony simboliza a unidade nacional”. VALENTIM, Jorge. Paulina Chiziane: Uma Contadora de Histórias no Ritmo da (Contra-) Dança. Disponível em: https://goo.gl/mYyzBT.Ex pl or Rami, procura as mulheres, primeiro em pé de guerra, para logo entender que todas eram vítimas. “Primeiro das instituições colonizadoras”, sobretudo igreja e o sistema que “gritaram heresias” contra a prática dos ritos tradicionais, tentando “destruir um saber que nem eles tinham”. (VALENTIM, id. ibidem) 14 15 Depois, visita aulas de amor. Tem como confidente e conselheiro um espelho: será aquele que reflete sua alma? Podemos fazer várias analogias com o objeto espelho, inclusive relacionar com a ideia de completude que buscamos ao nos ver refletidos, melhor, o desejo de completude, além de ter marcas do feminino. Num terceiro momento, Rami, como vingança, planeja, no aniversário de Tony, seu marido, uma festa, na qual comparecem todas as mulheres e seus filhos, vestidos a caráter - exatamente como nos moldes tradicionais moçambi- canos: todas as mulheres vestidas iguais, com toda a pompa... Elas conseguem deixar o Tony com medo, na frente de seus poderosos amigos e parentes, e melhor, conseguem apagar “o manto da invisibilidade”. Ou seja, a poligamia, que acontece em todos os lares da narrativa, quando em cenas sociais, era considerada pecado. Os homens negavam ter mais de uma mulher, ou seja, todas as outras, incluindo os filhos, eram invisíveis para toda a sociedade, então a fidelidade era uma grande hipocrisia. Assim que Rami se vin- ga do marido, expondo-o perante à sociedade que estava vinculado, ao mesmo tempo exige que todas as mulheres e seus filhos sejam reconhecidos através da presença e dos trajes de gala que todas usavam no dia do aniversário. Ela faz um balanço: “Trazer essas mulheres para aqui foi uma autêntica dança, um acto de coragem, um triunfo instantâneo no jogo de amor”. Não é à toa, que niketche refere-se a um ritual de iniciação sexual feminina, a uma dança sensual e erótica: “é a dança do sol e da lua, dança do vento e da chu- va, dança da criação”. Executada ao “som ritmado dos batuques”. “Constitui uma espécie de expressão autêntica da feminilidade moçambicana, numa parte do país onde o mundo é essencialmente matriarcal” (o norte de Moçambique). A partir daí, estabelece-se um contraponto - ou melhor, uma contradança - com a tradição da região sul, dominada pelo patriarcalismo, espaço de origem da protagonista Rami. A autora estabelece um outro ritmo cultural na realização dessa história. Uma das questões fundamentais na poética de Pauline, notória em Niketche, uma história de poligamia, é em relação à cultura opressora do colonizador que abafou as culturas locais, o que teve graves consequências, porque não é possível simplesmente oprimir uma tradição. Nesse romance o título refere-se a uma tra- dição africana, a poligamia, prática reprimida pelo cristianismo dos colonizado- res. Não que Pauline defenda essa prática, mas questiona o seu desenvolvimento reprimido, ou simplesmente abafado, agora praticado sem nenhum pudor, e sem o cerimonial que lhe acompanhava ancestralmente. Se antes as mulheres eram objetos a serem negociados, agora, simplesmente, passam à invisibilidade sem nenhum direito. Ou seja, havia uma tradição,que era seguida com todo um ritual respeitoso, agora reina o caos, prejudicando ainda mais as camadas mais desprivi- legiadas, como as mulheres e as crianças. Um caos inconsciente de suas raízes, de sua história. Há um resgate da sacralidade da poligamia, um retorno a essas leis, já que é disso que se trata, numa ordem, com as regras especificadas. 15 UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Ao longo da narrativa, conta como as mulheres são maltratadas, não reconhe- cidas, injustiçadas desde o nascimento, e tudo parece normal, sempre foi assim e pronto, gritam os ancestrais e a lei, tanto as ancestrais africanas quanto as cristãs. Pauline canta e denuncia, ela sabe que a única possibilidade é pela escrita, é a palavra gravada denunciadora de um sistema injusto e caótico, onde as lideranças não se entendem. É a voz que não se cala. E ela conta histórias de mulheres, tal como uma Sherazade da África. Como agente unificador, há a língua portuguesa, que embora seja a língua do colonizador, a qual a própria autora aprendeu quando foi à escola, ela reconhece que essa é uma possibilidade para além de sua escrita. É importante ler: Paulina Chiziane - contadora de estórias e memórias Gosto de dizer que a minha literatura é isso: contar histórias. Aquilo que outras mulheres fazem dançando e cantando, eu faço escrevendo, como as velhas que através da via oral continuam a contar histórias à volta da fogueira. Eu apenas trago a escrita, de resto não sou diferente das mulheres da minha terra, das mulheres do campo. (Paulina Chiziane, Entrevista ao Maderazinco). Disponível em: https://goo.gl/1sjKcN. Ex pl or Para saber quem é Paulina Chiziane. Disponível em: https://youtu.be/ZH4pfDfToSg. Ex pl or Importante ler também: 1. Os artigos: a. Aspectos da oralidade em Niketche, uma história de poligamia, de Paulina Chiziane . Jéssica Fabrícia da Silva. In.: Revista Crioula nº 20 – 2º semestre/2017. Disponível em: DOI: 10.11606/issn.1981-7169.crioula.2017.134823. b. Paulina Chiziane: Uma Contadora de Histórias no Ritmo da (Contra-) Dança de Jorge Valentim (UFSCar). In.: ABRIL – Revista do Núcleo Estudos de Literaturas Portuguesa e Africanas da UFF, Vol. 1, n° 1, agosto de 2008. Ex pl or Vera Duarte Vera Duarte (Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Martins) é jurista, procu- radora da República, a primeira mulher magistrada em Cabo Verde, desembarga- dora; membro do Secretariado executivo da OMCV, membro dirigente da Asso- ciação dos escritores, Presidente do Centro de Direitos Humanos e Cidadania em Cabo Verde e em 2008, segundo Simone Caputo, foi Ministra da Educação e do Ensino Superior. Enfim, Vera Duarte exerce(u) cargos públicos, sendo a pioneira, como mulher, a ter esse destaque. 16 17 O pioneirismo de Vera Duarte não se atém à literatura, sua atuação no contex- to social é marcante, sagrando-se como a primeira mulher a entrar para a carrei- ra da Magistratura em Cabo Verde, a atuar como Juíza Conselheira no Supremo Tribunal de Justiça do país e a participar da Comissão Africana para o Direito do Homem e dos Povos. Assim, sua atuação enquanto profissional do Direito, principalmente em defesa das mulheres cabo-verdianas – de quem se considera, inclusive, uma “intérprete” –, alia-se ao gosto pela escrita, tomada também como “uma forma de a mulher lutar”, como afirma na já citada entrevista: É uma personagem muito rica e não é em vão que dizemos que, em Cabo Verde, estamos por viver praticamente um matriarcado, porque a mulher está na luta, vai a todas as lutas, a todos os campos de batalha, e apanha, mas levanta-se e vai outra vez; penso que isso lhe dá uma força muito grande. E é por isso que, numa determinada altura, a escrita também apareceu como uma forma de a mulher lutar; além de ser uma manifes- tação artística, é também uma forma de a mulher lutar. Andamos muitos anos a dizer ‘a mulher é um ser igual’, portanto temos que fazer de tudo para que isso aconteça também na prática. De alguma forma, temos conseguido, o processo tem andado, mas à custa de muitos sacrifícios da mulher. Acho que é uma personagem interessante a mulher cabo- -verdiana. É uma mulher de luta. (DUARTE, 2009, entrevista 14/12/09) Além de Amanhã amadrugada, Vera Duarte publicou outras quatro obras, sendo O arquipélago da paixão (2001) e Preces e súplicas ou os cânticos da desesperança (2005) em poesia, A candidata (2003) em prosa e Cons- truindo a utopia: temas e conferências sobre Direitos Humanos (2007) uma coletânea de intervenções feitas pela autora ao longo de sua carreira jurí- dica. As mulheres, em suas obras, ocupam sempre uma posição de destaque, sendo-lhes por Vera Duarte realçados as lutas, os desejos e as subjetividades no contexto caboverdiano. Érica Antunes Pereira, “Vera Duarte: a mulher cabo-verdiana é uma personagem interes- sante”, in Scripta, Belo Horizonte, v.14, n.27, p. 105-202, 2 º sem. 2010. Disponível em: https://goo.gl/pc9rDY. E leia também: “Vera Duarte pertence à chamada novíssima geração de poetas cabo-verdianos, que se voltam ainda para questões de identidade, não mais redutíveis a mero nacionalismo, mas pensando o homem do Arquipélago no seio de peripécias ontológicas”. In.: GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: Literatura em chão de cultura. São Paulo: Ateliê Editorial; UNEMAT; Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2008. P. 173. Ex pl or A temática da mulher na poética de Vera Duarte muitas vezes está associada a uma voz feminina, combativa e sensual. É uma mulher cabo-verdiana do povo, que trabalha e cria/ transmite a cultura em prosa, aliada a uma profissão de fé neofeminista. Outra temática é o drama da emigração e do evasionismo, do exílio. As mulheres estão, pois, em destaque em sua obra, realçando as lutas, os desejos e as subjetividades no contexto cabo-verdiano. 17 UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Já em sua primeira obra, Amanhã amadrugada, publicada em 1993, a fronteira dos gêneros literários é quebrada, na medida que são apresentados poemas em prosa, constantes dos dois primeiros Cadernos que compõem o li- vro. São nomeados de “momentos ou exercícios poéticos”, em que uma longa confissão é expressa em fragmentos, uma das formas escolhidas para contar o que presenciou, experimentou, o que a emocionou; e de contar e colocar em exame a tragédia da mulher prisioneira de estereótipos interiorizados: À noitinha, qual feiticeira medrosa, percorro os meus interiores em bus- ca de saídas. Sem cessar perco-me nos meus labirintos. Não encontro resposta para os porquês que me atormentam. (...) Como diria o poeta, choro da dor de me saber mulher feita não para amar, mas para ser amada. Choro porque sou e amo. Por isso quero desvendar os universos proibidos e purificar-me. Penetrar nos bastidores da minha condição humana e lutar contra os preconcei- tos e a opressão que castram. Desprezar, com ódio acumulado, os fari- seus da minha história e voar, na plenitude do meu ser nascido livre, de encontro as aspirações da alma. (Duarte, Vera. Amanhã Amadrugada, “Momento XI - Esquisso, p. 39 e “Momento XII - Século Vinte, um Dia incerto de um tempo de mágoas, p.41. Montagem feita por Simone Caputo Gomes in “Cabo-Verde: mulher, cultura e literatura” in Cabo- -Verde Literatura em Chão de Cultura, p. 178) Vera Duarte afirmou numa entrevista que o processo da escrita “também é uma forma de a mulher lutar”, e, portanto, de (a)firmar-se como e enquanto tal na sociedade. Vamos ouvir mais algumas de suas palavras? Ai se um dia… Ai se em outubro chovesse a terra molhasse o milho crescesse e a fome acabasse Ai se o milho crescesse a fome acabasse o homem sorrisse e a terra molhasse Ai se o homem sorrisse A terra molhasse A fome acabasse E a chuva caísse Ai se um dia… 18 19 Acordaremos, camaradas, As chuvas de outubro não existem! O que existe É suor cansado Dos homensque querem O que existe É a busca constante Do pão que abundante virá Homens, mulheres, crianças Na pátria livre libertada Plantando mil milharais Serão a chuva caindo Na nossa terra explorada. (Duarte, Amanhã Amadrugada, p. 99) O futuro e a chuva redentora se constroem. A perspectiva evasionista, o sonho messiânico não têm mais lugar na sociedade de ação e liberdade; para mudar a sociedade, para erradicar a fome e a miséria, o caminho é a luta e o trabalho. Atenção também para a primeira parte do poema: há um ritmo bem marcado, o que nos leva à tradição. A poética de Vera Duarte não se esgota, a mulher se mostra prisioneira de es- tereótipos interiorizados. Leia: • PEREIRA, Érica Antunes. Vera Duarte: A mulher cabo-verdiana é uma personagem interessante. Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 4, p. 65-80, jul. 2011. ISBN 2176-381X. Disponível em: https://goo.gl/7rpRDW; • GOMES, Simone Caputo. Literopintar Cabo Verde: a criação de autoria feminina. Revista Crioula – no 3 – maio de 2008. Disponível em: https://goo.gl/Vb4U9A. Ex pl or Vera Duarte - Entrevista XII Jogo do Livro. Disponível em: https://youtu.be/Fy5ePLSUXSU. Ex pl or Para concluir, é importante olharmos para a escrita de autoria feminina nas literaturas de língua portuguesa concomitantemente para essa escrita de outras literaturas, não como efeito de comparação, mas de compreensão, de entender o quanto essa voz se faz importante, vital. Ecoa sempre a voz de Antígona, a primeira feminista? Ou a que desafiou a lei, representada pelo poder masculino? 19 UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Antígona é uma peça escrita pelo dramaturgo grego Sófocles que aborda alguns dos temas que sempre estarão presentes em qualquer sociedade humana, que são: a consciência individual; o poder do Estado; a obrigação ou não de aceitarmos todas as leis; e a própria existência de uma Lei natural que transcende à dos homens. Antígona fica sabendo que um dos seus irmãos mortos teve o direito à sepultura negado. Ambos haviam lutado durante a guerra civil pelo trono de Tebas. Creonte, que tomou o poder, decide que Polinices terá seu cadáver exposto às aves de rapina. Antígona revolta-se contra o decreto de Creonte e decide oferecer um sepul- tamento digno à seu irmão. Isto acontece porque sua consciência individual elevada traz para a tragédia a questão da Lei Natural, que terá tanta importân- cia futura no Cristianismo. A Lei dos Deuses permite que ela desobedeça às or- dens de Creonte porque são superiores e estão além de qualquer governo de qualquer época. Historicamente, a Lei Natural foi facilmente colocada de lado por governantes e instituições em várias ocasiões. O eterno conflito entre a consciência de cada um e as leis estabelecidas por Estados e governantes poderosos deu origem a muitas situações dramáticas. Creonte rapidamente condena Antígona à morte. Foi fácil para ele fazer isso. Fonte: https://goo.gl/3Qxohs 20 21 Anexo I A troca de cartas entre Ondjaki e Ana Paula Tavares Para tingir a escrita de brilhos lentos e silenciosos (troca de cartas) Carta 1 querida ana paula não sei exatamente onde estás, isto pensando que as frases que te queria entregar implicariam saber a tua localização geográfica, para depois equacionar a minha, mas logo entendi que não, que eu podia dizer estas coisas de outro modo, assim: escrevo-te de um certo sul, porque às vezes dentro de nós faz sul e acabo de fechar um livro com aquela sensação esquisita (humana?, metafísi- ca?) que concluir um livro traz — como se a pele se imbuísse de certo fechamento, os olhos pedissem calma à luz e os sons ficassem terrivelmente delicados de se dizer e de se ouvir talvez esta carta seja o que eu não soube pedir aos outros, alguns dias de silêncio ou então ficar tranquilo, vestindo – por dentro – roupas orientais, caminhar pela areia do mussulo, que é também a areia da infância, estar simplesmente quieto a modos que deitado e, de verdade ou não, deixar-me ser trespassado pelas lesmas, saltitado por gafanhotos, aterrizado por helibélulas, sonhado por andori- nhas, revisitado por falésias. as do sul. as do namibe. as falésias que os olongos nunca visitaram. e o mar. a missiva que te envio é o fechamento formal – já se lê – de “os da minha rua”, e talvez por isso este texto-janela (para sair de antigamente) seja um caos de palavras em vez do silêncio que eu pediria aos outros e que aqui, por afetos e inquietações revisitadas, aparece como mapa, bússola e onkhako para saber sair deste certo sul. como se tempo fosse um lugar, como se infância fosse um ponto cardeal eternamente possível. agora sim – mientras espero missiva tua – busco as rãs e invento pelos poros uma espécie de silêncio. ondjaki Ondjaki, 21 UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Carta 2 Também não sei onde estou, meu muito e ainda menino, porque a minha lo- calização geográfica é sempre um certo sul com montanha à volta e esteja onde estiver acerto os relógios do mundo, as bússolas de dentro para estar a sul mesmo quando a tempestade e o frio me acinzentam a alma e o vento (ah este vento) me desorienta os passos. Fico cansada de procurar lugar para me situar a sul todos os dias para encontrar as águas que conheço, reconhecer a manhã pelos cheiros, contornar as ameaças e acender o fogo. Não deve ser este o sítio próprio, nem o espaço aberto onde cresceram a Tchi, o Ndalu, o Bruno, o Tibas. Agora me lembro, meu muito menino, que, a bem dizer, esse lugar já não existe e ainda bem que o acabas de contar em livro porque as pessoas tenderão a lembrar Sucupira, Roque Santeiro e outros estranhos e improváveis mundos e a esquecer as ruas ex-disto e daquilo onde cresciam miúdos aos gritos a ver o mundo sem ninguém dar conta. Um tempo em que a cidade era a nossa casa, queríamos acreditar que andávamos a polir o futuro de forma tão sensível como se habitássemos a cidade de deus. Pela primeira vez me apetece a palavra para te contar dessa cidade que não era a minha, onde cheguei ainda antes de ter idade para a distância, o silêncio, as roupas orientais por dentro. Dava para desconfiar o mapa antigo escrito na cara com a infância em cicatriz na testa. Apetece-me, pois a palavra, meu muito menino, para te dizer dessa cidade que se transforma do dia para a noite em cidades diferentes e outras e outras. Não, a figura daquelas bonecas que se abrem para revelar uma mais pequena e ainda mais uma e uma até ao infinito não serve a Luanda: cada cidade nova transborda da primeira, cerca-a de estranhas fronteiras com os seus mundos de ninguém e as suas línguas próprias tão suaves e sedutoras que nos habituamos a ouvir sem pensar nas mensagens, nos avisos à navegação e nos sinais. Assim se abriram janelas e fecharam portas para sempre. A surdez é uma coisa que acontece mesmo aos de bom ouvido. Por isso me calo, meu muito menino, para celebrar os teus contos. Tratas de antigamente com a doçura necessária. As palavras estão limpas e leem as linhas da cidade atentas já aos grandes ruídos. Recuperas das buganvílias os sopros e estás atento às acácias. O teu livro dá conta de como crescem em segredo as crianças. É o milagre das flores do embondeiro: habitam o mundo em concha por breves momentos e veem através da luz o milagre das pequenas coisas: uma lagartixa, os improváveis sapatos vermelhos de um miúdo no comício do primeiro de maio, as vozes das estrelas. Inscrevem o sublime nas cidades impossíveis, falam antes do futuro, caminham sem pressa pela água. Tens razão, meu muito menino, com as palavras pode-se aprender a sair de um tempo e de um lugar porque “a infância é um ponto cardeal eternamente possível”. Cuida das rãs e de ti Um abraço da ana paula 22 23 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos A amizade com os irmãos brasileiroshttps://youtu.be/4AGaqLQW24U Paulina Chiziane - A Páginas Tantas https://youtu.be/yYIwTj7afJA Sobre Contar Histórias | Justificando Entrevista Paulina Chiziane “A escrita é uma das maiores terapias” O Justificando Entrevista recebe Paulina Chiziane, escritora moçambicana premiada internacionalmente e indicada ao Prê- mio Nobel, para um bate papo com Joice Berth sobre romances, histórias e mulhe- res negras. https://youtu.be/aYfnwXeHoVk Filmes Cartas para Angola (Letters to Angola) Brasil e Angola: Duas margens do Atlântico, a mesma língua, um passado colonial em comum e muitas histórias compartilhadas. Pessoas separadas por um oceano trocam correspondências – alguns são amigos de longa data, outros nunca se viram e suas histórias se entrecruzam e contam sobre fluxos de migração, saudade, per- tencimento, guerra, preconceitos, exílio, distâncias. A busca da identidade e o fio da memória são conduzidos pela linha da afetividade, que une as sete duplas de in- terlocutores que o documentário nos apresenta: pessoas que traçaram suas histórias de vida entre Brasil, Angola e Portugal. https://youtu.be/w6J7tFkJ8RI 23 UNIDADE A Escrita Contemporânea de Autoria Feminina nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Referências CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Atelie, 2005. GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: Literatura em chão de cultura. São Paulo: Ateliê Editorial; UNEMAT; Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2008. ________. Literopintar Cabo Verde: a criação de autoria feminina. Revista Crioula – no 3 – maio de 2008. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ crioula/article/view/53909/57853>. LABAN, Michel. Angola. Encontro com Escritores. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1991, II vol. PEREIRA, Érica Antunes. Vera Duarte: a mulher cabo-verdiana é uma per- sonagem interessante, in Scripta, Belo Horizonte, v.14, n.27, p. 105-202, 2o. sem. 2010. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/ scripta/article/view/4331/4478>. RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo Negro? São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2018. SILVA, Jéssica Fabrícia da. Aspectos da oralidade em Niketche, uma história de poligamia, de Paulina Chiziane. Revista Crioula nº 20 - 2º semestre/2017. Disponível em: DOI: 10.11606/issn.1981-7169.crioula.2017.134823. TOLEDO E SOUZA, Mailza Rodrigues. Do corpo ao texto: a mulher inscrita/es- crita na poesia de Hilda Hilst e Ana Paula Tavares. Disponível em: <http://www. teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8156/tde-04022010-093352/>. VALENTIM, Jorge. Paulina Chiziane: Uma Contadora de Histórias no Ritmo da (Contra) Dança. ABRIL – Revista do Núcleo Estudos de Literaturas Portuguesa e Africanas da UFF, Vol. 1, n° 1, Agosto de 2008. Disponível em: <https://dialnet. unirioja.es/descarga/articulo/5616552.pdf>. Sites visitados Ana Paula Tavares, escritora angolana, na Bienal do Livro de Brasília (2012): <https://www.youtube.com/watch?v=OETY2dU9IEs>. De viva voz. Poetas, actores e outros convidados dizem poesia sua e de outros. Poemas de Ana Paula Tavares. Centro Cultural de Belém | Sala Luís de Freitas Branco. 22 de Março de 2009: <https://www.youtube.com/watch?v=5v2Jepy- zom8>, <https://www.youtube.com/watch?v=8yFE-l5z1HA&t=82s (2a. parte)> Conexões entre a Literatura Brasileira e a Angolana | Ana Paula Tavares (Univer- sidade de Lisboa): <https://www.youtube.com/watch?v=-1XCfcdtO_I> 24 25 Paulina Chiziane. 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