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BIOÉTICA Samantha Brum Leite Diretrizes e normas em pesquisa em saúde Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer a importância das normas e dos procedimentos aplicados às pesquisas em saúde. � Identificar o contexto histórico do surgimento dos primeiros códigos para pesquisa em saúde e sua influência sobre as normas atuais. � Explicar os principais conceitos das normas e dos procedimentos vigentes no Brasil. Introdução Neste capítulo, você vai estudar sobre as diretrizes e normas em pesquisa em saúde. As pesquisas envolvendo seres humanos, materiais biológi- cos e animais seguem uma regulamentação por meio de documentos internacionais e leis, decretos, resoluções, portarias, normas e diretrizes de caráter nacional. Esses códigos para a execução de pesquisa foram desenvolvidos após mobilizações da comunidade científica mundial diante de atrocidades que ocorreram em estudos realizados com seres humanos. Para garantir que a realização está dentro dos padrões, existem co- mitês de ética em pesquisa e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), cujo objetivo é orientar as pesquisas que são realizadas, como fiscalizar e, ainda, aplicar penalidades quando apresentar incoerências. Desse modo, você aprenderá quais são os principais documentos inter- nacionais criados, quais são as legislações vigentes no Brasil e quais são os conceitos fundamentais que devem ser conhecidos e seguidos pelos pesquisadores. Normas e procedimentos aplicados às pesquisas em saúde Segundo as Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas En- volvendo Seres Humanos, a expressão “pesquisa relacionada à saúde” refere- -se às atividades destinadas a melhorar ou contribuir para o conhecimento generalizado da saúde no âmbito mais clássico da pesquisa com seres huma- nos, como a pesquisa observacional, os ensaios clínicos, os biobancos e os estudos epidemiológicos. Conforme o dicionário Aurélio, a palavra diretrizes significa “linhas a partir das quais um plano é traçado. Metas ou propósitos que direcionam um trabalho; objetivos. Conjunto de normas e critérios que determinam e direcionam o desenvolvimento ou a criação de alguma coisa; procedimentos”. Já a palavras normas representa “princípio que serve de regra, de lei: normas escolares. Modelo, exemplo a ser seguido; padrão: normas da empresa. Aquilo que determina um comportamento, conduta, ação; regra”. Desse modo, fica claro que as diretrizes e normas em pesquisa em saúde estão associadas a um conjunto de regras a serem seguidas, a fim de conduzir as pesquisas realizadas na área da saúde, a nível tanto nacional quanto mundial (CIOMS, 2018). Quando se trata de diretrizes e normas, existe uma relação com a regu- larização dos procedimentos realizados em pesquisa, as quais podem ser envolvendo seres humanos, materiais biológicos ou animais. Atualmente existem legislações que regem a pesquisa no Brasil e documentos que regem a pesquisa em caráter internacional. A regulamentação é oriunda de resoluções, decretos, portarias, normas, diretrizes e leis cujos objetivos estão associados à orientação aos pesquisadores de como realizar as etapas da pesquisa e à determinação de penalidades pelo não cumprimento das normas. Para as pesquisas envolvendo seres humanos, são seguidos os princípios utilizados na bioética. Segundo Goldim (2006, p.91), “[...] bioética é uma reflexão compartilhada, complexa e interdisciplinar sobre a adequação das ações que envolvem a vida e o viver”, sendo eles autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. A autonomia baseia-se no que o participante de pesquisa julga ser o melhor para si, representa poder de decisão sobre o que é melhor para o seu corpo e para a sua vida. A não maleficência tem como preceito o não causar mal e/ou danos ao indivíduo. O princípio da beneficência está intimamente relacionado Diretrizes e normas em pesquisa em saúde2 com o da não maleficência e consiste em maximizar os benefícios e minimizar os danos. Já a justiça baseia-se na proteção e integridade dos indivíduos com igualdade no tratamento. Esses princípios foram criados a partir do Relatório de Belmont, em 1978, com o intuito de guiar as pesquisas realizadas com seres humanos. No entanto, foi em 1979, com a obra Principles of biomedical ethics de Beauchamps e Childress, que os princípios se estenderam para a prática médica (BRASIL, 2012; JUNQUEIRA, 2012). As pesquisas com animais são orientadas pelos Princípios de Russell- -Burch, reconhecido como princípio dos 3Rs do inglês replacement, reduction e refinement. A palavra replacement (substituir) institui a substituição dos animais por outros métodos alternativos; reduction (reduzir) representa a di- minuição do número de animais utilizados e refinement (refinar) os protocolos experimentais para minimizar a dor ou o estresse, sempre que for possível. Pesquisadores acreditam que poderiam ser 5Rs, de modo a incluir respect e relevance, representando, respectivamente, respeito com o comportamento de cada espécie e manipulação e instalações adequadas e relevância ao justificar o uso animal e pensar até que ponto os procedimentos e resultados podem ser extrapolados para a realidade de um tratamento para o ser humano ou outro animal (UNIFESP, 2015; GUIMARÃES; FREIRE; MENEZES, 2016). Observe a Figura 1. Figura 1. Os 3Rs da pesquisa com animais. 3Diretrizes e normas em pesquisa em saúde Legislação em pesquisa em saúde no Brasil Todas as pesquisas realizadas no Brasil devem respeitar a legislação vigente. As diretrizes são importantes, pois orientam os pesquisadores sobre as etapas a serem seguidas para a realização dos estudos, como realizar o processo de consentimento livre e esclarecido no recrutamento de participantes e elucidar sobre os possíveis riscos e benefícios associados, e informam as atribuições e competências dos órgãos regulatórios em pesquisa. Durante a década de 80, foram criadas resoluções com o intuito de instaurar uma regulamentação dos projetos de pesquisa realizados pelas instituições de saúde no país e cuja avaliação seria por um comitê de ética e pelo Comitê de Segurança Biológica. No entanto, em razão do desrespeito às normas e denúncias de abusos realiza- dos pelos pesquisadores, na década seguinte publicou-se uma nova resolução (HARDY et al., 2004). O Ministério da Saúde pelo Conselho Nacional de Saúde determinou pela Resolução nº 196, de outubro de 1996, a qual aprovou as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, atualizada pela Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, os fundamentos éticos e científicos a serem respeitados nas pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil. Para regularizar as pesquisas no Brasil há os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) que trabalham na avaliação de todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos durante todo o processo de execução dos estudos. A Conep analisa projetos com a manipulação de gametas, pré-embriões, embriões e organismos geneticamente modificados (OGMs) (BRASIL, 2012). Já o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) monitora os experimentos realizados com modelo animal junto com a Comissão de Ética no Uso de Animais. A execução de pesquisas envolvendo animais segue a Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008, conhecida popularmente como Lei Arouca (BRASIL, 2008). Qualquer pesquisa que seja realizada no Brasil envolvendo seres humanos deve seguir os preceitos da Resolução nº 466/12 e envolvendo experimentação animal deve seguir a Lei nº 11.794/08, sendo exigência a descrição do uso para a publicação de artigos científicos. Diretrizes e normas em pesquisa em saúde4 Todos os estudos realizados no Brasil são registrados na Plataforma Brasil, que é uma base nacional e unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos para todo o sistema CEP/Conep. Ela permite que as pesquisas sejam acompanhadasem seus diferentes estágios – desde sua submissão até a aprovação final pelo CEP e pela Conep, quando necessário –, possibilitando inclusive o acompanhamento da fase de campo e o envio de relatórios parciais e dos relatórios finais das pesquisas (quando concluídas). O sistema permite, ainda, a apresentação de documentos também em meio digital, propiciando ainda, à sociedade, o acesso aos dados públicos de todas as pesquisas aprovadas. Pela internet é possível o acesso a todos os envolvidos, por meio de um ambiente compartilhado, às informações em conjunto, diminuindo de forma significativa o tempo de trâmite dos projetos em todo o sistema CEP/Conep. Para maiores informações, acesse o link a seguir. https://qrgo.page.link/U3UqZ Além das pesquisas envolvendo seres humanos e animais, há uma legislação específica para o uso de OGMs e do uso de células-tronco embrionárias para objetivo tanto científico quanto terapêutico. A primeira foi a Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, que estabeleceu normas de biossegurança para regular a manipulação e o uso no país. No entanto, é considerado como marco legal no Brasil a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, e o Decreto nº 5.591, de 24 de novembro de 2005, que implementaram as normas pertinentes, sendo reconhecida como a Lei de Biossegurança. Como disposição preliminar e geral, a lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente. De forma complementar, foi criada a Portaria nº 2.201, de 14 de setembro de 2011, que estabeleceu as Diretrizes Nacionais para Biorrepositório e Biobanco de Material Biológico Humano com Finalidade de Pesquisa (BRASIL, 2010; 2005; 2011). 5Diretrizes e normas em pesquisa em saúde O início da ética em pesquisa A ética em pesquisa em saúde atual teve como base o Código de Nuremberg, de 1947, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Declaração de Helsinque de 1964 e suas versões de 1975, 1983, 1989, 1996, 2000, 2008 e 2013, o Relatório de Belmont, de 1978, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997, as Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos – Council for Interna- tional Organizations of Medical Sciences (CIOMS)/Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1982 e suas versões 1993, 2002, 2009 e 2016, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, de 2003, e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005. Esses documentos são fundamentais para o estabelecimento de normas que respeitem a integridade física e mental dos participantes de pesquisa, bem como os materiais genéticos dos indivíduos. O Código de Nuremberg foi o precursor de todos os documentos interna- cionais, envolvendo pesquisa em seres humanos. Ele foi fruto do julgamento conhecido como Tribunal de Nuremberg, que condenou 23 pessoas, sendo 20 delas médicos que estiveram envolvidos nos experimentos realizados nos campos de concentração na Alemanha, no período da Segunda Guerra Mundial. Entre os crimes listados encontram-se: a manutenção de vítimas desnudas em temperaturas baixíssimas por mais de 10 horas ou em tanques de água congelada; a infecção de pessoas saudáveis por meio de picadas de mosquitos da malária; a submissão de vítimas à inalação do gás mostarda; o não tratamento de pessoas feridas, com a intenção de verificar o processo da gangrena; e a esterilização diária de vítimas (ALBUQUERQUE, 2013). É necessário entender o contexto histórico no qual os fatos ocorreram, visto que na sociedade alemã da época, a política do nazismo imperava, sendo que a raça ariana era considerada superior às demais. Logo, no pensamento da época, a realização de pesquisas, sobretudo com os judeus, não era considerada um crime, pois eles não eram reconhecidos como seres humanos. Consideraram-se os atos como um crime contra a humanidade e de guerra, que originou então o Código de Nuremberg com o objetivo de promover uma reflexão ética a respeito. Com o documento, foi determinada a necessidade do consentimento livre e esclarecido e de limites na pesquisa para manter a integridade física dos participantes, atentando para o risco de morte ou invalidez permanente. Ainda, foram criadas as bases para os princípios bioéticos e ficou determinado que apenas pessoas qualificadas na área poderiam conduzir os experimentos (TRIBUNAL INTERNACIONAL DE NUREMBERG, 1997). Diretrizes e normas em pesquisa em saúde6 Outro documento fundamental que é marco para a condução de pesquisa clínica no mundo é a Declaração de Helsinque, em sua primeira versão, desen- volvida pela Associação Médica Mundial, em 1964, durante sua 18ª assembleia em Helsinque, na Finlândia. A Declaração partiu do reconhecimento de algu- mas falhas associadas ao Código de Nuremberg, cuja origem foi motivada, sobretudo, pelos julgamentos que ocorreram no Tribunal de Nuremberg. Desse modo, complementou os preceitos já determinados pelo Código de Nuremberg e acrescentou princípios básicos a serem estabelecidos e normatização da diferença entre pesquisa científica, daquela cujo objetivo é terapêutico. Com os anos, a Declaração de Helsinque foi sendo atualizada a fim de acompanhar a evolução da condução das pesquisas a nível internacional. A sua versão de 1975 culminou com o caso de Tuskegee e reforçou a necessidade do consentimento voluntário e esclarecido pelos participantes. Em suas versões posteriores, incluíram a necessidade da criação de comitês de ética para a análise dos projetos e obrigatoriedade de aprovação após avaliação ética prévia por comitê independente dos protocolos de pesquisa (ALBUQUERQUE, 2013; HARDY, 2004; KOTTOW, 2008). A Declaração de Helsinque prevê as orientações para médicos em relação à pesquisa biomédica envolvendo seres humanos. Veja na lista a seguir as declarações que já foram criadas: � Declaração de Helsinque I – 18ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, Helsinque, Finlândia, junho de 1964. � Declaração de Helsinque II – 29ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, Tóquio, Japão, outubro de 1975. � Declaração de Helsinque III – 35ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, Veneza, Itália, outubro de 1983. � Declaração de Helsinque IV – 41ª Assembleia Geral da Associação Médica Mun- dial, Hong Kong, setembro de 1989. � Declaração de Helsinque V – 48ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, Oeste de Somerset, República da África do Sul, outubro de 1996. � Declaração de Helsinque VI – 52ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, Edinburgo, Escócia, outubro de 2000. � Declaração de Helsinque VII – 59ª Assembleia Médica Mundial, em Seul, Coreia do Sul, outubro de 2008. � Declaração de Helsinque VIII – 64ª Assembleia Médica Mundial, em Fortaleza, Brasil, outubro de 2013. 7Diretrizes e normas em pesquisa em saúde O Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas, em colaboração à OMS, elaborou o documento Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos, primeiramente em 1982. O objetivo do documento foi criar diretrizes para orientar o desenvol- vimento de pesquisa biomédica envolvendo seres humanos para aplicação em países em desenvolvimento, conforme condições socioeconômicas, legais e administrativas. A necessidade de adequar o documento se deu pela expansão do HIV/AIDS e, em 1993, a segunda versão das Diretrizes foi divulgada. Nos anos subsequentes, novas versões foram elaboradas com base nas pesquisas que eram desenvolvidascom populações vulneráveis, ensaios clínicos financiados externamente e executados com locais de recursos limitados. A publicação na versão de 2016 é distribuída em 25 diretrizes seguidas de comentários complementares, conforme a diretriz, sobre considerações gerais, valor social, valor científico, qualificação dos pesquisadores, respeito aos direitos e ao bem-estar, conflito de interesse, riscos e benefícios individuais em potencial, vulnerabilidade de mulheres, pesquisadores, instituições de pesquisa, comitês de ética em pesquisa, monitoramento, compartilhamento de dados, publicação e divulgação dos resultados da pesquisa (PADILHA et al., 2005; CIOMS, 2018) (Quadro 1). Diretriz Assunto Diretriz 1 Valor científico e social e respeito aos direitos Diretriz 2 Pesquisa em locais com poucos recursos Diretriz 3 Distribuição equitativa de benefícios e ônus na seleção de indivíduos e grupos em pesquisa Diretriz 4 Potenciais riscos e benefícios individuais da pesquisa Diretriz 5 Opção de controle em ensaios clínicos Diretriz 6 Cuidados com as necessidades de saúde dos participantes Diretriz 7 Envolvimento da comunidade Diretriz 8 Parceria colaborativa e capacitação para pesquisa e para sua revisão Quadro 1. As 25 Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos de 2016 (Continua) Diretrizes e normas em pesquisa em saúde8 Fonte: Adaptado de CIOMS (2018). Quadro 1. As 25 Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos de 2016 Diretriz Assunto Diretriz 9 Indivíduos aptos a dar consentimento informado Diretriz 10 Modificações e dispensa do consentimento informado Diretriz 11 Coleta, armazenagem e uso de material biológico e dados relacionados Diretriz 12 Coleta, armazenagem e uso de dados em pesquisas de saúde Diretriz 13 Reembolso e compensação para participantes de pesquisa Diretriz 14 Tratamento e compensação de danos relacionados à pesquisa Diretriz 15 Pesquisa com pessoas e grupos vulneráveis Diretriz 16 Pesquisa com adultos incapazes de dar consentimento informado Diretriz 17 Pesquisa envolvendo crianças e adolescentes Diretriz 18 Mulheres como participantes em pesquisas Diretriz 19 Grávidas e lactantes como participantes em pesquisas Diretriz 20 Pesquisa em região de desastre ou surto de doença Diretriz 21 Ensaios clínicos randomizados controlados (cluster randomized trials) Diretriz 22 Dados obtidos em ambiente on-line e ferramentas digitais em pesquisas de saúde Diretriz 23 Requisitos para estabelecer comitês de ética em pesquisa e revisar protocolos Diretriz 24 Responsabilização pública pela pesquisa em saúde Diretriz 25 Conflitos de interesse (Continuação) 9Diretrizes e normas em pesquisa em saúde Os documentos internacionais, como o Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque, são marcos para o desenvolvimento de pesquisas cientificas, no entanto, eles não substituem os regulamentos a nível nacional. No Brasil, a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, é a legislação vigente e em sua elaboração já considerou diversos documentos importantes e que representam a base para os estudos envol- vendo seres humanos no país. Abusos em pesquisa em saúde Em 1947, após a Segunda Guerra Mundial, as pesquisas realizadas na Alemanha nazista foram julgadas no Tribunal de Nuremberg, o que deu origem ao primeiro documento internacional para a aplicação da ética nos estudos científicos. Anos mais tarde, em 1964, de modo a melhorar a execução de pesquisas envolvendo seres humanos, respeitando os direitos humanos, foi elaborada a Declaração de Helsinque, a qual é atualizada regularmente. Logo, em 1972, quando a comunidade conheceu o caso Tuskegee por meio de uma denúncia, já existiam documentos reconhecidos internacionalmente que identificavam o estudo como abusivo e fora dos padrões éticos em pesquisa. O estudo Tuskegee foi realizado no Estado do Alabama, nos Estados Unidos da América do Norte, e representa um dos maiores abusos da pesquisa cien- tífica. Foi iniciado em 1932, durou 40 anos e envolveu 600 homens negros e agricultores, sendo 399 portadores de sífilis e 201 livres da doença. O objetivo do estudo era elucidar a história natural da infecção, entretanto, um estudo com 2.000 indivíduos já havia sido realizado na Noruega e publicado em 1929 com os dados. Mesmo assim, o estudo foi financiado pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos e mesmo após a descoberta da penicilina (década de 40) como um medicamento eficaz para o tratamento da doença, a população infectada foi impedida de obter tratamento adequado. Para que o controle do estudo ocorresse, uma lista com a identificação dos participantes foi incluída nos centros de saúde do país. Assim, mesmo em outra região, não receberiam o tratamento adequado. A pesquisa foi inadequada em diversos âmbitos e mesmo com as publi- cações periódicas dos resultados, nunca foi questionada pela comunidade científica. No início, justifica-se o não tratamento, pois não era conhecido um terapêutico comprovado para a sífilis, entretanto, os participantes do estudo Diretrizes e normas em pesquisa em saúde10 desconheciam a sua condição clínica, sendo o diagnóstico informado como “sangue ruim”. Recebiam em troca pela participação uma refeição quente nas visitas do estudo e pagamento para os custos com funeral. Em sequência à omissão de diagnóstico ocorreu o não tratamento da doença e a consequente falta de assistência. O estudo de Tuskegee só foi interrompido após a denúncia do repórter Jean Heller, que publicou no New York Times, em 26 de julho de 1972, sobre os absurdos ocorridos, no qual apenas 74 pessoas sobreviveram (REVERBY, 2012; GOLDIM, 1999; KIPPER, 2010). Em resposta ao caso Tuskegee, o governo e o parlamento dos Estados Unidos criaram a Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos em Pesquisas Biomédicas e Comportamentais e em conjunto com a Comissão Consultiva Nacional de Bioética elaboraram o Relatório Belmont, em 1978, cuja importância foi a determinação dos princípios bioéticos que norteiam as pesquisas envolvendo seres humanos até hoje. O relatório, portanto, determinou que as pesquisas respeitem os participantes, sejam benéficas para a sociedade e equilibradas em relação aos riscos e benefícios (KOTTOW, 2008). Normas e procedimentos no Brasil As pesquisas preconizam assegurar a integridade e o bem-estar dos partici- pantes dos estudos, respeitando os princípios bioéticos, devendo prevalecer em relação aos interesses da ciência. Para orientar os pesquisadores na realização de seus estudos, a Resolução nº 466/12 é um documento base no Brasil e apresenta alguns termos e definições, tais como: Consentimento livre e esclarecido – anuência do participante da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, bene- fícios previstos, potenciais riscos e incômodo que esta possa acarretar. Benefícios da pesquisa – proveito direto ou indireto, imediato ou posterior, auferido pelo participante e/ou sua comunidade em decorrência de sua par- ticipação na pesquisa. Dano associado ou decorrente da pesquisa – agravo imediato ou posterior, direto ou indireto, ao indivíduo ou à coletividade, decorrente da pesquisa. 11Diretrizes e normas em pesquisa em saúde Sujeito ou participante da pesquisa – indivíduo que, de forma esclarecida e voluntária, ou sob esclarecimento e autorização de seu responsável legal, aceita ser pesquisado. A participação deve se dar de forma gratuita, ressalvadas as pesquisas clínicas de fase I ou de bioequivalência. Pesquisa envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coleti- vamente, tenha como participante o ser humano, em sua totalidade ou partes dele, e o envolva de forma direta ou indireta, incluindo o manejo de seus dados, informações ou materiaisbiológicos. Pesquisador responsável – pessoa responsável pela coordenação da pesquisa e corresponsável pela integridade e pelo bem-estar dos participantes da pesquisa. Protocolo de pesquisa – conjunto de documentos contemplando a descrição da pesquisa em seus aspectos fundamentais e as informações relativas ao participante da pesquisa, à qualificação dos pesquisadores e a todas as ins- tâncias responsáveis. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – documento no qual é explici- tado o consentimento livre e esclarecido do participante e/ou de seu responsável legal, de forma escrita, devendo conter todas as informações necessárias, em linguagem clara e objetiva, de fácil entendimento, para o mais completo esclarecimento sobre a pesquisa a qual se propõe participar. Vulnerabilidade – estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida ou impedida, ou de qualquer forma estejam impedidos de opor resistência, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido. Apesar de os pesquisadores serem os principais responsáveis no desenvol- vimento de pesquisas em saúde, todos os preceitos éticos dispostos em normas e diretrizes devem ser respeitados também pelos patrocinadores, os quais apresentam grande participação no desenvolvimento científico. A qualidade de vida dos participantes de pesquisa, independentemente da sua condição clínica ou do risco de vulnerabilidade, são fundamentais para o avanço da ciência, o qual deve ser conduzido sempre respeitando os direitos humanos e a integridade física e moral de todos. Diretrizes e normas em pesquisa em saúde12 Todos esses conceitos devem ser respeitados, sobretudo em situações de vulnerabilidade, uma vez que (CIOMS, 2018, p. 129), de acordo com a Decla- ração de Helsinque, grupos e indivíduos vulneráveis “[...] podem apresentar maior probabilidade de ser prejudicados ou sofrer danos adicionais”. Logo, indivíduos em situação de vulnerabilidade podem apresentar problemas ao realizar o consentimento livre e esclarecido em decorrência da condição financeira, do nível de escolaridade, da condição clínica, do status social, além de poder estar associada, ao gênero, à sexualidade e à idade. As diretrizes e normas para a condução de pesquisas em saúde não são apenas com fins regulatórios, elas auxiliam no planejamento de políticas públicas de saúde e proteção de comunidades que são consideradas vulneráveis, tais como crianças, gestantes e lactentes, doentes e deficientes mentais, indivíduos de comunidades com baixo nível socioeconômico. ALBUQUERQUE, A. Para uma ética em pesquisa fundada nos direitos humanos. Revista Bioética, v. 21, n. 3, p. 412−422, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/bioet/ v21n3/a05v21n3.pdf. Acesso em: 18 ago. 2019. BRASIL. Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestru- tura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória nº 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5º , 6º , 7º , 8º , 9º , 10 e 16 da Lei nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Brasília, DF, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/ lei/l11105.htm. Acesso em: 18 ago. 2019. BRASIL. Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008. Regulamenta o inciso VII do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de animais; revoga a Lei no 6.638, de 8 de maio de 1979; e dá outras providências. Brasília, DF, 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/ lei/l11794.htm. Acesso em: 18 ago. 2019. 13Diretrizes e normas em pesquisa em saúde BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Brasília, DF, 2012. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/ resolucoes/2012/Reso466.pdf. Acesso em: 18 ago. 2019. BRASIL. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde. Marco legal bra- sileiro sobre organismos geneticamente modificados. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010. Disponível em: https://www2.fcfar.unesp.br/Home/CIBio/MarcoLegalBras.pdf. Acesso em: 18 ago. 2019. BRASIL. Portaria n°2.201, de 14 de setembro de 2011. 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