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2016 Políticas sociais em Habitação Profª. Silvana Braz Wegrzynovski Copyright © UNIASSELVI 2016 Elaboração: Profª. Silvana Braz Wegrzynovski Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: 360 W411p Wegrzynovski; Silvana Braz Políticas sociais em habitação/ Silvana Braz Wegrzynovski : UNIASSELVI, 2016. 228 p. : il. ISBN 978-85-7830-971-8 1.Serviço social. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. III aPresentação A disciplina que se inicia neste momento no curso de Serviço Social, Políticas Sociais em Habitação, tem como objetivos a apresentação da história da habitação popular no Brasil, contextualizando o desenvolvimento urbano; a discussão das políticas públicas na área da habitação social e o enfoque em torno da atuação e dos desafios para o profissional do Serviço Social. A disciplina Políticas Sociais em Habitação é essencial para o curso de Serviço Social, pois apresentará eixos fundamentais para entendermos de que forma aconteceu a estruturação dos espaços urbanos. Para compreender melhor essa estruturação, faz-se necessário estudarmos as principais sequelas do sistema capitalista no processo de urbanização das nossas cidades brasileiras e seus reflexos sociais. No contexto da sociedade em que estamos inseridos, precisamos ter a clareza de que uma das bandeiras de luta da sociedade brasileira é a questão social do direito à moradia, pela legalidade dessa e por políticas públicas que atendam a esta demanda. A atuação do assistente social, diante das políticas de habitação de interesse social, é fundamental para a implementação dessa, pois o profissional trabalha diretamente com a população beneficiária. Esta disciplina mostrará determinadas propostas de mobilização social para o enriquecimento do trabalho do assistente social, de forma a orientá-lo em sua trajetória profissional. Vamos aos estudos! Profª. Silvana Braz Wegrzynovski IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA V VI VII UNIDADE 1 – A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO ............................................................................................................ 1 TÓPICO 1 – O AVANÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL NO MEIO URBANO ..................... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 A CIDADE E SUAS DIVERSIDADES............................................................................................. 4 RESUMO DO TÓPICO 1....................................................................................................................... 14 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 16 TÓPICO 2 – A CIDADE: LEGAL x ILEGAL ...................................................................................... 17 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 17 2 A EXCLUSÃO SOCIAL E DO DIREITO A CIDADE ................................................................... 17 RESUMO DO TÓPICO 2....................................................................................................................... 33 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 35 TÓPICO 3 – A VIOLÊNCIA URBANA E A SEGREGAÇÃO AMBIENTAL ............................... 37 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 37 2 A VIOLÊNCIA URBANA x DESENVOLVIMENTO URBANO ............................................... 37 RESUMO DO TÓPICO 3....................................................................................................................... 46 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 48 TÓPICO 4 – A CIDADE OCULTA ....................................................................................................... 49 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 49 2 A CIDADE OCULTA ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO: A REALIDADE BRASILEIRA ......49 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 58 RESUMO DO TÓPICO 4....................................................................................................................... 61 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 63 UNIDADE 2 – A DEMANDA DA HABITAÇÃO NO BRASIL ..................................................... 65 TÓPICO 1 – DIREITO À MORADIA NO BRASIL COMO UM PROCESSO DE LUTAS E CONQUISTAS ................................................................................................................. 67 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 67 2 MORADIA: LUTAS E CONQUISTAS ............................................................................................ 68 RESUMO DO TÓPICO 1....................................................................................................................... 79 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 81 TÓPICO 2 – OS MARCOS LEGAIS DO DIREITO À MORADIA .............................................. 83 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 83 2 ENTENDENDO OS MARCOS LEGAIS DO DIREITO À MORADIA .................................... 83 RESUMO DO TÓPICO 2.......................................................................................................................94 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 96 sumário VIII TÓPICO 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS, PLANOS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL E OS FINANCIAMENTOS HABITACIONAIS ...................................... 97 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 97 2 BREVE HISTÓRICO DA POLÍTICA DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL À SUA EFETIVAÇÃO ....................................................................................................................... 98 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 114 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 116 TÓPICO 4 – UM NOVO OLHAR PARA POLÍTICA HABITACIONAL ................................... 119 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 119 2 OS PLANOS LOCAIS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL E O PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA ....................................................................................................... 120 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 137 RESUMO DO TÓPICO 4..................................................................................................................... 140 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 142 UNIDADE 3 – A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL NA POLÍTICA DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL ................................................................ 145 TÓPICO 1 – A EFETIVAÇÃO DO TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NA POLÍTICA DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL ....................................... 147 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 147 2 SERVIÇO SOCIAL x PRÁTICA x TEORIA x POLÍTICA DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL ........................................................................................................................ 147 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 156 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 157 TÓPICO 2 – A TRAJETÓRIA HISTÓRIA DO TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NA POLÍTICA DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL E AS DIRETRIZES ATUAIS ............................................................................................ 159 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 159 2 SERVIÇO SOCIAL: A SUA ATUAÇÃO NA POLÍTICA DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL ........................................................................................................................ 159 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 169 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 172 TÓPICO 3 – A ADAPTAÇÃO DO TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NA PNHIS .... 173 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 173 2 TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NA PNHIS, SEU COTIDIANO ............................ 174 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 187 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 189 TÓPICO 4 – OS AVANÇOS E DESAFIOS DO TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NA PHIS ......................................................................................................... 191 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 191 2 O DESAFIO DO ASSISTENTE SOCIAL NA PHIS .................................................................... 192 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 205 RESUMO DO TÓPICO 4..................................................................................................................... 210 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 212 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 215 1 UNIDADE 1 A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de: • entender o avanço da desigualdade social no meio urbano; • analisar a cidade considerada legal com a cidade considerada ilegal; • compreender o que é a violência urbana e a segregação ambiental; • despertar um olhar crítico para a cidade oculta. A Unidade 1 está dividida em quatro tópicos. Para um melhor aprofundamento do conteúdo e para fixar melhor seus conhecimentos, no final de cada tópico você terá oportunidade de realizar as atividades propostas. TÓPICO 1 – O AVANÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL NO MEIO URBANO TÓPICO 2 – A CIDADE: LEGAL X ILEGAL TÓPICO 3 – A VIOLÊNCIA URBANA E A SEGREGAÇÃO AMBIENTAL TÓPICO 4 – A CIDADE OCULTA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 O AVANÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL NO MEIO URBANO 1 INTRODUÇÃO Neste primeiro tópico será discutido como aconteceu o processo de crescimento excludentes das cidades, ou seja, período onde as cidades começaram a se estruturar de forma diferenciada, através do processo de industrialização brasileira, que ocorreu entre as décadas de 1930 até 1980. Foram cinco décadas em que o crescimento populacional urbano se expandiu de tal forma que marcou negativamente toda a década de 80, que ainda contou com o fim do desenvolvimentismo e com novas emergências dos arranjos econômicos internacionais, ampliando descontroladamente o índice de desigualdade social. A importância de realizar primeiramente esse resgate histórico se concretiza pela necessidade de compreender, em outro momento desta importante disciplina, como evoluíram as políticas públicas de habitação e a fundamental atuação do assistente social. O desenvolvimento urbano nos centros populacionais, como as cidades, é decorrente de toda uma história social, cultural, econômica e política que permeou o Brasil durante todo o seu desenvolvimento, até os dias atuais. Entender esse contexto é necessário para conseguir realizar uma leitura das questões sociais emergentes, como no caso a habitação. As demandas habitacionais são frutos de todo o processo de segregação urbana, oriunda do crescimento das cidades. Sendo assim, neste primeiro momento é importante entender o processo de urbanismo nas cidades, para compreendermos as políticas públicas de habitação. Então, chegou a hora de buscar novos conhecimentos. Bons estudos! UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 4 2 A CIDADE E SUAS DIVERSIDADES FIGURA 1 – CIDADE E SUAS DIFERENÇAS FONTE: Disponívelem: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0103-40142003000200013>. Acesso em: 25 fev. 16. Ao analisar as grandes cidades do Brasil através das áreas construídas em todo o seu território, pode-se constatar que o uso ilegal do solo e a ilegalidade das edificações em solo urbano podem chegar a mais de 50% da área construída, como é visto nos grandes centros urbanos. Essa é uma informação empírica e fundamentada no conhecimento adquirido cotidianamente pelos diversos meios de comunicação social que existem, porém basta realizar uma pesquisa nos cadastros de imóveis de cada cidade para se constatar tal realidade. O grande elo que existe entre as normas e os fatos constituídos em uma cidade provoca um olhar crítico para a maioria dos técnicos e analistas que atuam sobre as questões urbanas, pois existe uma realidade que é ignorada pela maioria dos governantes. Para a classe dominante, o correto é que o Estado tenha uma atuação de punição para quem mão cumpre as normas. Essas normas, fundamentadas na “legalidade”, historicamente beneficiam determinados grupos sociais, ou políticos, em conformidade com o jogo de interesses que, na maioria das vezes, fica de acordo com os detentores de poder e de riqueza. As cidades vêm desenvolvendo e avançando nos cadastros das áreas de ocupação irregular, através de setores de monitoramento que têm como objetivo fiscalizar os loteamentos clandestinos, invasões de áreas públicas, construções em áreas de risco e núcleos de favelas. Porém, ainda existem muitas cidades brasileiras que não possuem nenhuma ação para esse monitoramento, onde os cadastros municipais estão incompletos e defasados. A falta de um cadastro dessas áreas gera uma cidade ilegal e inexistente, pois o poder público não pode intervir nessas áreas. Nesse sentido ela existe como espaço, mas inexiste como cidade legal, onde a população que reside neste espaço não possui o direito de ter um endereço fixo e o poder público não pode intervir de forma oficial. TÓPICO 1 | O AVANÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL NO MEIO URBANO 5 Muitas cidades vêm aumentando qualificadamente e quantitativamente o número de profissionais técnicos para atuarem nas áreas consideradas ilegais, e estes trabalham diretamente nessas áreas, colocando em prática a teoria que vivenciaram quando acadêmicos das mais diversas formações. O planejamento urbano tem se tornado uma prática que vem considerando cada vez mais o mercado imobiliário, através de leis que regulamentam o uso e o zoneamento do solo. Essas propostas, chamadas de “solo criado”, vêm, desde as décadas de 1970 e 1980, envolvendo diversos pensadores com as mais diferentes ideologias, refletindo sobre o acúmulo de análises e de soluções para a resolutividade de vários conflitos, que são gerados entre a propriedade privada e a ocupação ilegal e irregular das áreas urbanas. Na década de 1990, as cidades começaram a efetivar os Planos Diretores (PDs), que objetivavam de forma geral uma totalidade do urbano e do urbanismo moderno. Conforme Maricato (1995, p. 22-23): A incorporação do conceito pós-moderno de fragmentação, valorizando o desenho urbano, não implica necessariamente na visão alienada do planejamento oficial, em encarar a cidade real que exige intervenção emergencial menos generalizante e abstrata. Para grandes áreas do território urbano esta regulamentação nada significa. Gestão e não simples regulamentação, operação, ação administrativa e não apenas planejamento de gabinete é o caminho para a prevenção das tragédias cotidianas que vitimam moradores dos morros e encostas que deslizam a cada chuva, ou moradores das beiras dos córregos atingidos por enchentes, ou bairros inteiros atingidos por epidemias. O distanciamento que existe entre quem pensa a consolidação da cidade nos poderes executivos municipais e quem exerce o controle urbanístico é visível em todos os aspectos. Como, por exemplo, a aprovação e liberação das plantas de construção e o poder policial sobre a ocupação das áreas irregulares. São dissolvidas ou diluídas pelas práticas do favoritismo e do pragmatismo dos interesses individuais e são mediadas pela corrupção que, infelizmente, acaba denegrido a imagem do poder público. Novamente citando Maricato (1995, p. 23): A legislação detalhista e "rigorosa" contribui para a prática de corrupção e constitui um exemplo paradigmático da contradição entre a cidade do direito e a cidade do fato. Pois em um ambiente onde ‘a infração, além de infração, é norma e a norma além de norma é infração, como se deveria esperar de uma contravenção sistemática’, qual é o papel das leis que pretendem regulamentar procedimentos detalhados do universo individual do interior da moradia, quando a maior parte das moradias e do contexto urbano constitui um imenso universo clandestino que ignora normas mais gerais e básicas? UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 6 Essas práticas favorecidas, que têm sempre um cunho político e eleitoral, são usufruídas não só pelo Poder Executivo, com o famoso “dar o jeitinho”, como também pelo Poder Legislativo, que se aproveita dessas práticas. O correto seria o Poder Legislativo ajustar a legislação conforme a realidade, ou propor, dentro da legalidade, alterações possíveis diante da realidade com a lei, e não usufruir de determinada situação. Esse clientelismo que se alastra nos poderes Executivo e Legislativo municipais fortalece o crescimento das ocupações ilegais, pois a população que reside nesses locais fica à mercê da vontade do poder público. Essas áreas são desprovidas de qualquer infraestrutura para atender as necessidades básicas de moradia. UNI As comunidades formadas em áreas de ocupação irregular são estruturadas por trabalhadores que estão excluídos do direito à cidade, pelo sistema capitalista. Para conseguir sobreviver neste sistema, buscam as alternativas oferecidas pelo próprio sistema. Acabam ocupando áreas irregulares, e não conseguem obter de forma alguma a posse legal da área ocupada. Sem a escritura legal, ficam carentes de investimentos de infraestrutura da parte do poder público. Para resolver essas questões, como, por exemplo, famílias em áreas irregulares que não conseguem o acesso legal de instalação da rede pública de energia e nem a autorização para ser instalada em suas moradias, acabam dando “um jeitinho” e puxam um “gato”, de outro vizinho que possui luz em casa, ou que puxou o “gato” da própria rede pública. Esses chamados “gatos”, “rabichos”, se alastram em toda a área ocupada, gerando um alto consumo e podendo até causar um acidente por curto circuito. Mesmo que sejam instalações visíveis aos olhos dos gestores, não se adota nenhuma intervenção para impedir, proibir ou legalizar as áreas de ocupação irregular através de projetos de reurbanização. A falta de interesse político se dá, pois esses assentamentos são um mecanismo inesgotável de clientelismo eleitoral praticado há muitos anos no Brasil. Como profissional de Serviço Social, trabalhei na relocação de famílias de áreas de risco para um loteamento público. As dificuldades técnicas foram muitas. Uma delas é o apadrinhamento do Poder Legislativo com essa população. A população não consegue perceber que a questão da moradia, de infraestrutura básica, são direitos garantidos na Constituição Federal de 88, e que essa população não deve favor eleitoral para ninguém. Os vereadores diziam, com todas as letras, que os moradores podiam utilizar a luz, com rabicho, pois ele tinha contato pessoal no órgão responsável. E assim, a comunidade vivia presa ao favoritismo eleitoral. TÓPICO 1 | O AVANÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL NO MEIO URBANO 7 O surgimento de novas leis que vêm sempre articuladas com os interesses do poder público e do mercado imobiliário acaba colocando em conflito a atuação do Poder Judiciário, que tem como objetivo assegurar os direitos garantidos em leis. A questão da ocupação urbana vem,a cada dia, ganhando mais destaque na atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público. São casos que envolvem sérias negociações entre os governos municipais, estaduais e o Poder Judiciário, por vários anos. O senso comum afirma que o Poder Judiciário vem atuando de forma flexível nas questões urbanas e nos casos de ocupações de terras, porém este conceito, desde os anos de 1980, mostra que não é real, pois vários casos que aparecem diariamente na mídia levam para outras conclusões. É importante, diante disso, analisar os intransigentes conflitos nas disputas pelas terras urbanas entre os poderes Judiciário e Executivo. Em muitos casos de ocupações irregulares do solo urbano, a atuação do Poder Judiciário torna a negociação pacífica entre ocupantes e proprietários. Porém, em outros casos, onde existe uma ação de despejo, muitos proprietários não são sensíveis às questões sociais, e utilizam meios mecânicos para destruir as construções edificadas em seus terrenos, com ou sem moradores dentro. Em casos de ocupações em áreas particulares, o poder público não pode intervir. Nestes casos, o que de fato ocorre é que os proprietários legais das terras ganham judicialmente o direito de reintegração de posse de sua propriedade e não entram em acordo com os moradores. DICAS Caro acadêmico, neste link: http://www.conjur.com.br/2012-jan-30/pinheirinho- direito-propriedade-atender-funcao-social você poderá ver elementos verídicos da realidade vivenciada no Brasil, diante da questão da posse da terra. UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 8 Sendo esta leitura de relevância para nossos estudos, apresentamos um comentário a respeito (MAIOR, 2012): O que aconteceu na localidade conhecida por Pinheirinho, em São José dos Campos, município que possui um dos maiores orçamentos per capita do Brasil, pode ser considerado uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em nosso país. Querem dizer que tudo se deu em nome da lei, mas com tal argumento confere-se ao Direito uma instrumentalidade para o cometimento de atrocidades e tenta-se fazer com que todos os cidadãos sejam cúmplices do fato. Só que o Direito não o corrobora. Senão, vejamos. Na base jurídica do ato cometido, está, dizem, o direito de propriedade. Um terreno foi invadido, obstruindo-se o direito da posse tranquila ao seu titular, e, portanto, precisa ser desocupado. Simples assim. Mas o direito de propriedade, conforme previsto constitucionalmente, deve atender à sua função social (artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal). Sem esse pressuposto, nenhum direito de propriedade pode ser exercido. A Constituição ainda garante a todos os cidadãos, como preceito fundamental, o direito à moradia (artigo 6º, inserto no Título II, do Capítulo II, da CF). Perante a situação acima relatada, o próprio Poder Judiciário não consegue aplicar as leis e, por algumas vezes, antes de tentar aplicá-las, realiza acordos como mecanismos de negociação. A decisão judicial vem de encontro com o fim do clientelismo, já citado anteriormente. Muitos dos imóveis que possuem valores irrisórios no mercado imobiliário acabam sendo ocupados de forma irregular e se estruturam sem a intervenção do Estado, independentemente da sua localização geográfica. Quando uma comunidade se desenvolve em área ilegal e começa a ser valorizada por determinados fatores urbanísticos, as relações que se fundam passam a ser regidas pelas legislações federais, estaduais e municipais, conforme a demanda que se apresenta. A diversidade que existe nas cidades e que está oculta (cidade real) para a burguesia ou até mesmo para a classe média, acaba sendo uma área restritiva para as pessoas, ficando isoladas dos centros urbanos. Essa cidade real é decorrente de todo o processo histórico de formação das cidades, e que aconteceu por meio do êxodo rural. O Brasil passou por diferentes momentos em relação ao crescimento de favelas. A taxa de crescimento populacional na década de 90 chegou a ser superior às cidades em sua totalidade. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2014, p. 7) problematiza a oscilação da população que vive em favelas, em diferentes capitais brasileiras, de 2000 até 2010, concluindo que: TÓPICO 1 | O AVANÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL NO MEIO URBANO 9 Uma comparação direta entre os censos 2000 e 2010 indica o grau de incompatibilidade dos dados de aglomerados subnormais. O número de domicílios nas áreas de favelas teria dobrado (passando de 1,6 milhão para 3,2 milhões), e a população residente em favelas teria crescido 75%, passando de 6,5 milhões em 2000 para 11,4 milhões em 2010. Isto é, os residentes de favelas teriam crescido de 3,8% da população nacional em 2000, para 6% em 2010. Um processo de favelização tão intenso seria incompatível com a melhoria dos indicadores socioeconômicos, redução da pobreza e da desigualdade registrados na última década. Desde o início do século XX, as políticas públicas no Brasil, voltadas para o planejamento urbano, sempre tiveram como objetivo resolver as demandas sociais da população residente em favelas e nos cortiços, através da retirada dessas pessoas das áreas consideradas valorizadas pelo mercado imobiliário, sem levar em consideração as questões sociais. Autores como Sevcenko (1993), Vaz (1994), Barboza (1995) e Maricato (1995) afirmam que essa prática vem sendo aplicada nas reformas urbanas higienistas que tiveram início no período da República, continuando durante período populista e varguista até a ditadura militar. O interesse econômico é o principal foco das questões das ocupações ilegais, onde o jogo de poder é nítido e sem muita flexibilidade. Diante disso, ocorre uma certa desinformação e desinteresse sobre as condições de habitação e da miséria urbana, gerando assim uma omissão da realidade sobre a exclusão social. Outro fator, além do econômico, que omite as questões sociais por falta de informação, é a atuação representativa das entidades ambientalistas, sendo essa, quase que em sua maioria, em oposição ao mercado imobiliário. Isto significa que muitos militantes dos movimentos ambientalistas são contrários à urbanização e à regularização das áreas ocupadas ilegais, sendo favoráveis à remoção dessas pessoas de um modo geral. E não consideram todo o contexto social e econômico dessas famílias. Segundo Maricato (1995, p. 14): Podemos afirmar, entretanto, sem temer exageros, que a abstração em relação à realidade urbana brasileira, que está presente em toda a sociedade, está também, fortemente presente, nas entidades ecológicas, que, embora reconhecendo os males de uma concentração demográfica considerada "excessiva", desconhecem a real dimensão da ocupação anárquica do solo e as contradições que são inerentes a esse processo. Esse "desconhecimento" sobre a realidade próxima é acompanhado de uma construção ideológica da representação sobre o urbano, que repete a marca das “ideias fora do lugar”, também entre muitas das entidades ambientalistas, atrasando a urgente e necessária defesa do meio ambiente. UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 10 No Brasil, a maioria das temporadas de chuvas acontece em diferentes regiões e tempo, são infelizmente marcadas por grandes tragédias urbanas, ocasionadas pelos fenômenos ambientais, como as enchentes, desmoronamentos, vendavais, chegando a ocasionar diversas mortes. Esses fenômenos ambientais, até alguns anos atrás, eram comuns de acontecerem somente nas grandes cidades, mas se acompanharmos as mídias, percebemos que estas tragédias ambientais estão em todos os lugares. FIGURA 2 – TRAGÉDIA AMBIENTAL DE 2008 NO VALE DO ITAJAÍ FONTE: Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2016/02/depois- de-tragedias-rio-e-santa-catarina-decidiram-apostar-na-prevencao-4965861.html>. Acesso em: 27 fev. 16. Quando a mídia apresenta e repete uma notícia sobre uma tragédiaambiental, em momento algum consegue fazer uma análise ou referenciar o processo descontrolado do uso do solo, nem mesmo fazer uma análise da conjuntura em que se encontravam as famílias afetadas, desconsiderando as questões sociais. As questões climáticas há algum tempo vêm afetando não somente a população considerada de baixa renda que mora em encostas, mas sim toda a sociedade, sem escolher lugar. DICAS Caro acadêmico, para entender melhor, assista ao vídeo deste link: <https:// www.youtube.com/watch?v=V1jtBvdxMgg&ebc=ANyPxKoWXLQM1auqC5G1688Sbn_ fQNhtJF3Pn6T-AB0DhqsG8f6adGwkNeihxFxaoHCQS_ZuzwErQi5BiPwC3nwxmCWNiNxg>. TÓPICO 1 | O AVANÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL NO MEIO URBANO 11 Revelando a história de formação das cidades, torna-se necessário ressaltar os movimentos urbanos que se destacaram durante os anos 70 no Brasil. Esses movimentos tinham o apoio de intelectuais, e como visavam transformação das cidades, através das ideias da Assembleia Nacional Constituinte, cobravam uma Reforma Urbana. A busca pela Reforma Urbana teve início em 1960, através dos setores progressistas da sociedade que exigiam propostas de mudanças estruturais das questões fundiárias, e que focavam na concretização da Reforma Agrária. Sendo constituída a proposta inicial da reforma urbana em 1963, através do Instituto dos Arquitetos do Brasil (Observatório Internacional do Direito à Cidade), porém não foi viabilizada em decorrência do golpe militar de 1964. Nas décadas de 70 e 80, os temas da Reforma Urbana reaparecem novamente, juntamente com os movimentos populares de luta pela moradia, centralizados em alguns bairros de diversas cidades. A consolidação desses movimentos, nacionalmente, se concretizou na década de 80. Devido aos rumos da conjuntura política, estes movimentos se fortaleceram, ganhando maior visibilidade e relevância nas decisões políticas. Conforme afirma Gohn (2007, p. 278): Na prática surgem novas lutas, como pelo acesso à terra e por sua posse, pela moradia, expressas nas invasões, ocupações de casas e prédios abandonados; articulação dos movimentos dos transportes; surgimentos de organizações macro entre as associações de moradores; movimentos de favelados ou novos movimentos de desempregados; movimentos pela saúde. A Igreja Católica foi fundamental neste período, contribuindo com o lançamento do documento “Ação Pastoral e o Solo”, que defendia ideologicamente a função social da propriedade urbana, se tornando um referencial na luta pela Reforma Urbana. Entre as décadas de 70 e 80, o Estado incorporou os movimentos sociais através dos partidos políticos, visando o monitoramento das ações desses movimentos e até mesmo a criação de diferentes entidades para fins políticos, e que serviam como trampolim para a negociação e cooptação de lideranças populares. Em janeiro de 1986, os movimentos populares e pastorais, através das entidades de assessoria, lançaram o Movimento Nacional pela Constituinte, que incide na articulação de várias plenárias e reuniões de trabalho, focando a iniciativa popular. Este período contou com a participação de vários segmentos profissionais, que compuseram um corpo técnico e reformista, que defendia a democratização do planejamento e da gestão das cidades, com a participação dos mesmos. Esse movimento foi riquíssimo no sentido de envolver a sociedade civil, pesquisadores universitários, representantes de entidades e sindicatos de classe, técnicos ligados à área de planejamento urbano e poder público, num debate sobre os rumos das cidades. UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 12 ESTUDOS FU TUROS Na próxima unidade será aprofundado como se procedeu a organização desses movimentos. Para Maricato (1995), a expectativa em torno do desenvolvimento e evolução urbana no Brasil foi cenário para a superação do modelo arcaico, antigo, pelo sistema capitalista. A urbanização foi marcada pelo modelo acelerado e concretado do desenvolvimento moderno, que a partir dos anos 80, com o crescimento econômico, teve diversas sequelas negativas, como, por exemplo: a baixa qualidade de vida, a predação do meio ambiente, aumento da miséria social, da violência urbana, entre outros. A autora continua apontando que o desenvolvimento industrial no Brasil, se assegurou categoricamente a partir da chamada Revolução de 1930, convencionou o crescimento urbano com o industrial através dos regimes arcaicos de produção agrícola. O chamado " pacto estrutural”, entre antigos proprietários rurais e a burguesia urbana, aprovou mudanças sem rupturas e a convivência de políticas contraditórias. Com a nova correlação de forças sociais que foram amadurecendo no Brasil neste período, requereu-se a reformulação do aparelho estatal, a regulamentação da relação trabalho e capital e novas regras de crescimento do mercado interno. O Estado passa a desenvolver um modelo centralizador, inventor e protecionista do processo de acumulação urbano-industrial, e institui uma legislação trabalhista, elencando alguns privilégios para o trabalhador urbano sobre o trabalhador rural. Para Maricato (1995, p. 19): Alguns fatos estão na base do gigantesco processo de migração que ocorreu no território brasileiro, neste século, do campo para as cidades: a referida concentração fundiária em primeiro lugar, seguida da introdução de tecnologia em certos setores da produção rural destinada principalmente à exportação e também o desprezo pelo avanço das relações trabalhistas no campo. O processo de migração, para Santos (1993, p. 74), significa: De 1940 a 1980 a população urbana passa de 26,35% do total para 68,86%. No final desse período, aproximadamente 40 milhões de pessoas (33,6% da população) haviam migrado do local de origem. Somente entre 1970 e 1980 incorporam-se à população urbana mais de 30 milhões de novos habitantes. Em 1960 havia no Brasil duas cidades com mais de 1 milhão de habitantes: São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1970 havia cinco, em 1980 dez e em 1990 doze. TÓPICO 1 | O AVANÇO DA DESIGUALDADE SOCIAL NO MEIO URBANO 13 O fenômeno da metropolização das cidades esteve diretamente ligado com o crescimento industrial em todo o território brasileiro, resultando na industrialização, urbanização, crescimento da classe média, fixação do salário e produção de bens de consumo duráveis. Consequentemente, o Brasil, pós- década de 50, formou um “simulacro” da modernidade em torno do crescimento urbanístico das cidades. Torna-se perceptível que atualmente as cidades refletem o resultado do processo industrial que foi instalado, e que está fundamentado na intensa exploração entre a força de trabalho e a exclusão social. DICAS Para um aprofundamento dos temas desse tópico, sugerimos que você leia o seguinte livro, que analisa a propriedade urbanística e a edificabilidade em terrenos urbanos, investigando as funções do plano urbanístico e do potencial construtivo na busca de cidades sustentáveis. 14 Neste tópico, vimos que: • As cidades vêm desenvolvendo e avançando nos cadastros das áreas de ocupação irregulares, através de setores de monitoramento de áreas irregulares, que têm como objetivo fiscalizar os loteamentos clandestinos, invasões de áreas públicas, construções em áreas de risco e núcleos de favelas. • Muitas cidades vêm aumentando qualificadamente e quantitativamente o número de profissionais técnicos para atuarem nestas áreas consideradas ilegais. • Na década de 1990, as cidades começaram a efetivar os Planos Diretores (PDs), que objetivavam de forma geral uma totalidade do urbano e do urbanismo moderno. • A imprecisão e incoerência que estão marcadas nas ações do Poder Executivo e Legislativo acabam afetando diretamente o Poder Judiciário, pois é esse que tem como dever garantir os direitos assegurados em lei. • A questão da ocupação urbana vem a cada dia ganhando mais destaque na atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público. • Perante a situação acima relatada,o próprio Poder Judiciário não consegue aplicar as leis e, por algumas vezes, antes de tentar aplicá-las realiza acordos como mecanismos de negociação. • A diversidade que existe nas cidades e que está oculta (cidade real) para a burguesia ou até mesmo para a classe média acaba sendo uma área restritiva para as pessoas, ficando isoladas dos centros urbanos. • Desde o início do século XX, as políticas públicas no Brasil, voltadas para o planejamento urbano, sempre tiveram como objetivo resolver as demandas sociais da população residente em favelas e nos cortiços, através da retirada dessas pessoas das áreas consideradas valorizadas pelo mercado imobiliário, sem levar em consideração as questões sociais. • O interesse econômico é o principal foco das questões das ocupações ilegais, onde o jogo de poder é nítido e sem muita flexibilidade. • No Brasil, a maioria das temporadas de chuvas acontece em diferentes regiões e tempo, são infelizmente marcadas por grandes tragédias urbanas, ocasionadas pelos fenômenos ambientais, como as enchentes, desmoronamentos, vendavais, chegando a ocasionar diversas mortes. RESUMO DO TÓPICO 1 15 • Relevando a história de formação das cidades, torna-se necessário ressaltar os movimentos urbanos que se destacaram durante os anos 70 no Brasil. • Esses movimentos tinham o apoio de intelectuais, e como visavam transformação das cidades, através das ideias da Assembleia Nacional Constituinte, cobravam uma Reforma Urbana. • A expectativa em torno do desenvolvimento e evolução urbana no Brasil foi cenário para superação do modelo arcaico, antigo, pelo sistema capitalista. • A urbanização foi marcada pelo modelo acelerado e concretado do desenvolvimento moderno, que a partir dos anos 80, com o crescimento econômico, teve diversas sequelas negativas, como, por exemplo: a baixa qualidade de vida, a predação do meio ambiente, aumento da miséria social, da violência urbana, entre outros. • Com a nova correlação de forças sociais que foram amadurecendo no Brasil neste período, requereu-se a reformulação do aparelho estatal, a regulamentação da relação trabalho e capital e novas regras de crescimento do mercado interno. • O Estado passa a desenvolver um modelo centralizador, inventor e protecionista do processo de acumulação urbano-industrial, e institui uma legislação trabalhista, elencando alguns privilégios para o trabalhador urbano sobre o trabalhador rural. • O fenômeno da metropolização das cidades esteve diretamente ligado com o crescimento industrial em todo o território brasileiro, resultando na industrialização, urbanização, crescimento da classe média, fixação do salário e produção de bens de consumo duráveis. 16 1 O clientelismo é caracterizado como marca especialmente distintiva da República Velha, onde exercia uma relação dominante de articulação entre o sistema político e a sociedade, além de ser referência generalizada para o comportamento político e social daquele tempo (SILVA, 2007, p.40). No entendimento de Grahan apud Seibel e Oliveira (2006, p.136), o clientelismo constituiu a trama de ligação da política no Brasil do século XIX. Durante a primeira república, a vitória eleitoral sempre dependeu do uso competente dessa forma de relação, que incidia sobre a distribuição de cargos oficiais, sobre a concessão de proteção e outros favores, em troca de lealdade política e pessoal. FONTE: Disponível em: <http://pensamentoplural.ufpel.edu.br/edicoes/10/08.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2016. Diante da contextualização acima, produza um texto, de no mínimo 10 linhas, conceituando as consequências do Clientelismo político, para o desenvolvimento das cidades. 2 (Adaptado de ENADE, 2010) O Serviço Social como profissão vem ganhando espaços nas discussões inerentes às questões ambientais. A discussão ambiental como política pública, traz diversas possibilidades de estudos interdisciplinares que proporcionam reflexões ligadas ao desenvolvimento urbano, à preservação do meio ambiente e à geração de renda, consideram a importância das questões para a sociedade, e acabam criando oportunidades de atuação profissional para o assistente social. Essas ações acontecem através de mobilização, organização das populações que estão de certa maneira ameaçadas em decorrência da degradação do seu meio ambiente em que vivem ou de educação, visando assim a preservação. A educação ambiental, nesse contexto, passa a ser entendida como um dos mecanismos mais importantes para a edificação de valores, conhecimentos, habilidades e atitudes, e que acaba tendo como objetivos: a) Valorizar somente as práticas preservacionistas pelo senso comum. b) Abonar o sigilo sobre dados ambientais que possam causar prejuízos às comunidades e que comprometam a segurança nacional. c) Valorizar a influência dos povos detentores de consciência ambiental sobre os crescentes procedimentos de destruição do meio. d) Favorecer a responsabilização do poder público na preservação do equilíbrio. e) Instigar e fortalecer uma consciência crítica sobre a problemática ambiental e social. AUTOATIVIDADE 17 TÓPICO 2 A CIDADE: LEGAL x ILEGAL UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, este segundo tópico tem o objetivo de apresentar e basear os conceitos que estão fundamentados na cidade através da legalidade e ilegalidade. O direito à cidade, que deveria garantir para toda a população o acesso às políticas públicas básicas, não consegue se concretizar por diversos interesses. Fator que acaba refletindo na exclusão social. A questão da legalidade e da ilegalidade faz parte da nossa vivência em sociedade. Para podermos comprovar o direito de posse e a legalidade de algum bem material, caso não se possua, vive-se na ilegalidade, longe de se ter um endereço fixo e de se conseguir o título de propriedade. Porém, no cotidiano, o profissional de Serviço Social, independentemente de sua área de atuação, irá encontrar demandas relacionadas à cidade, seja ela legal ou ilegal, pois todo o cidadão está inserido em um espaço, urbano ou rural. 2 A EXCLUSÃO SOCIAL E DO DIREITO A CIDADE Durante os anos de 1940, os representantes políticos brasileiros visavam as cidades como sendo o mecanismo de avanço da modernidade, sobre o modelo arcaico que o representava. Nos anos de 1990, essas mesmas cidades que tinham um potencial de urbanização e de industrialização refletiram a figura de um espaço como o avanço da violência urbana, dos maus tratos à criança e ao adolescente, do tráfico de drogas e de pessoas, da poluição e do desmatamento ambiental. Sob o ideário positivista, do lema ordem e progresso, o processo de industrialização e urbanização tinha como propósito abrir caminho para a independência brasileira, que por muitos séculos teve a dominação coronelista. UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 18 Com o desenvolvimento econômico e o processo de urbanização, a evolução da sociedade sofreu o aumento da pobreza em todas as regiões do país. A sociedade, como um todo, passou a ser dependente do processo de urbanização e de progresso, deixando para trás o modelo da República Velha. O desenvolvimento urbano passou a ser visto como o futuro das cidades, através dele seria possível a realização de conseguir um emprego, de ter o amparo do Estado na assistência social, lazer, cultura, habitação e de constituir uma família com mais filhos, pois as oportunidades eram muitas. Porém o resultado foi outro. Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil conseguia atender as demandas que existiam para os imigrantes e migrantes, através da inserção econômica e da melhoria da qualidade de vida, entretanto essas possibilidades foram extintas. Como consequência da extinção dessas oportunidades sociais, culturais e econômicas, aumentou consideravelmente a exclusão social da população em situação de vulnerabilidade social. Diante das condições precárias de sobrevivência, essa população excluída foi obrigada a se isolarem relação a espaço de habitabilidade, formando os chamados “bolsões de pobreza”, “ilhas” no meio do espaço urbano. Uma das expressões mais importantes desse processo de exclusão social foi a segregação ambiental. A segregação ambiental, como parte ativa da exclusão social, aconteceu devido a dificuldades de acesso da população aos serviços de infraestrutura urbana, diminuição do mercado de trabalho e de profissionalização, a disseminação da violência urbana, aumento da discriminação racial, aumento da violência contra mulheres e crianças, escassez dos serviços de lazer e cultura e burocracia para se ter acesso à justiça. Diante das demandas acima citadas, não se consegue determinar um perímetro preciso entre a “população excluída” e a “população incluída”. Essa dificuldade se estabelece no Brasil através dos trabalhadores do setor secundário, com as indústrias de modelo fordista, sendo eliminados do mercado imobiliário privado e passando a habitar as favelas. Essa exclusão é fruto do processo de industrialização, pois as cidades, além de não darem conta de atender a demandas da população, o Estado não cumpre seu papel como mentor das políticas públicas, e as indústrias brasileiras, com os baixos salários para os trabalhadores. Florestan Fernandes (1977, p. 30), refletindo sobre as classes sociais que estão alicerçadas na América Latina, afirma que os “dinamismos nucleares e determinantes” nas sociedades evidenciam as relações “mais adiantadas e ativas do regime de classes". Segundo o autor, existem algumas especificidades nas relações entre a sociedade capitalista europeia e norte-americana, e as sociedades latino- americanas "não se organizam para um desenvolvimento autônomo da economia, da sociedade e da cultura". Ele ainda continua pontuando: TÓPICO 2 | A CIDADE: LEGAL x ILEGAL 19 Ela (a ordem social competitiva) reconhece a pluralização das estruturas econômicas, sociais e políticas como "fenômeno legal". Todavia, não a aceita como "fenômeno social" e, muito menos, como "fenômeno político". Os que são excluídos do privilegiamento econômico, sociocultural e político também são excluídos do "valimento social “e do "valimento político". Os excluídos são necessários para a existência do estilo de dominação burguesa, que se monta dessa maneira. (FERNANDES, 2005, p. 222) A divisão externa e interna do capital excedente econômico, que é uma consequência de vantagens e regalias no desenvolvimento do pensamento burguês, ou seja, heranças do sistema colonial que ficaram enraizadas no processo de modernização e urbanização da sociedade brasileira, trouxe a exclusão das classes sociais de baixa renda no seu processo histórico e social. NOTA Este processo negou a existência de uma classe social formada por cidadãos, com direitos sociais que deveriam ser respeitados. Para Maricato (1995, p. 30): A exclusão social não é passível de mensuração, mas pode ser caracterizada por indicadores como a informalidade, a irregularidade, a ilegalidade, a pobreza, a baixa escolaridade, o oficioso, a raça, o sexo, a origem e, principalmente, a ausência da cidadania. A questão da ilegalidade é um dos instrumentos que permite a criação de critérios para impor conceitos fundamentais para a compreensão da conjuntura, como, por exemplo, o conceito de exclusão, de segregação social, ambiental, cultural, econômica, política. Esses conceitos acabam sendo utilizados pelos diversos grupos sociais conforme o interesse de cada um. Como, por exemplo, um governo municipal pode desenvolver uma política de habitação municipal utilizando-se da sua realidade social, ambiental e outras. Quando se trata da ilegalidade diante das questões relacionadas à propriedade de terra, meio rural e urbano, a questão ambiental tem sido eixo prioritário nas tomadas de decisões, tanto pelo poder público como pelo poder jurídico, e depois vêm os eixos do desenvolvimento social. O autor Baldez (2003) enfatiza que, até os anos de 1850, a forma legítima de conseguir o direito de posse de terra no Brasil acontecia através da ocupação. Para o autor, ainda, a situação do trabalhador livre era acompanhada da emergência de legislação sobre o uso da terra, que iria oferecer garantia e continuidade do comando e domínio dos latifundiários sobre a produção dessa. UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 20 A estruturação, fortalecimento e o crescimento do mercado imobiliário estão diretamente ligados ao surgimento de leis específicas para as questões urbanas, conforme o interesse de cada grupo. No final do século passado, os municípios foram obrigados a elaborar Códigos Municipais de Posturas. Mesmo sendo uma lei que existe desde o período colonial, não tinha a obrigatoriedade de ser elaborada, e sempre teve o objetivo de ordenar a complexidade existente na vida urbana. Consequentemente, com o crescimento acelerado do meio urbano, os Códigos de Posturas tiveram uma determinada perda de importância, como também desenvolveram uma função de subordinação de algumas áreas da cidade para o capital imobiliário, resultando na expulsão da classe trabalhadora assalariada do centro da cidade. Entretanto, o Código de Posturas se fortaleceu após a Constituição Federal de 1988, quando os municípios passaram a assumir novas funções nas estruturas da política nacional, crescendo elevadamente as posturas municipais em todo o país. Sendo assim, este código teve um papel fundamental na segregação do espaço urbano. Todo o contexto diante das questões existentes entre mercado fundiário, legislação e exclusão social que se evidenciavam nas grandes metrópoles está cada vez mais visível em todas as cidades brasileiras, através da ocupação desordenada em áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário, independentemente de ser área privada ou pública, situadas nas encostas dos morros, na beira de córregos, nas áreas em quota de enchente ou de risco, regiões completamente poluídas ou áreas de proteção ambiental. Conforme o Censo Demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 6.329 aglomerados subnormais, favelas, que são em sua maioria superpovoadas, e ainda não estão localizadas nos mapas geográficos, considerados como vazios cartográficos. FIGURA 3 - LOCALIZAÇÃO DAS FAVELAS FONTE: Disponível em: <http://www.fiapodejaca.com.br/wp-content/uploads/favela- do-Rio-de-Janeiro.jpg>. Acesso em: 2 mar. 2016. TÓPICO 2 | A CIDADE: LEGAL x ILEGAL 21 IMPORTANT E O Censo 2010 mostra as características territoriais dos aglomerados subnormais e suas diferenças das demais áreas das cidades. Dados do Questionário da Amostra do Censo 2010 evidenciam desigualdades entre a população que residia em aglomerados subnormais (assentamentos irregulares conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos e palafitas, entre outros) e a que morava nas demais regiões dos municípios, diferenças estas que se evidenciavam também entre as cinco grandes regiões do país. Enquanto 14,7% da população residente em outras áreas tinha concluído o Ensino Superior, nos aglomerados esse percentual era de 1,6%. A informalidade no trabalho também era maior nos aglomerados (27,8% dos trabalhadores não tinha carteira assinada) em relação às outras áreas da cidade (20,5%). As desigualdades também se manifestavam em relação aos rendimentos: 31,6% dos moradores dos aglomerados subnormais tinham rendimento domiciliar per capita até meio salário mínimo, ao passo que nas demais áreas o percentual era de 13,8%. Por outro lado, apenas 0,9% dos moradores dos aglomerados tinham rendimento domiciliar per capita de mais de cinco salários-mínimos, percentual que era de 11,2% nas demais áreas da cidade. Os resultados da Amostra do Censo para os aglomerados subnormais incluem ainda informações sobre escolarização, posse de bens no domicílio e tempo de deslocamento para o trabalho. Em 2010, o Brasil tinha 15.868 setoresem aglomerados subnormais (cerca de 5% do total de setores censitários), que somavam uma área de 169,2 mil hectares e comportavam 3,2 milhões de domicílios particulares permanentes ocupados nos 6.329 aglomerados subnormais identificados. Para ampliar o conhecimento da diversidade dos aglomerados subnormais do país, foi realizado no Censo Demográfico 2010, pela primeira vez, o Levantamento de Informações Territoriais (LIT). O conhecimento dos aspectos territoriais dos aglomerados subnormais é importante complemento à caracterização socioeconômica dessas áreas. O LIT mostrou que 52,5% dos domicílios em aglomerados subnormais do país estavam localizados em áreas predominantemente planas (1.692.567 domicílios), 51,8% tinham acessibilidade predominante por ruas (1.670.618 domicílios), 72,6% não possuíam espaçamento entre si (2.342.558) e 64,6% tinham predominantemente um pavimento (2.081.977). Essas e outras informações estão disponíveis na publicação “Censo Demográfico 2010 – Aglomerados Subnormais – Informações Territoriais” (acessível em http://www.ibge.gov. br/home/estatistica/populacao/censo2010/aglomerados_subnormais_informacoes_ territoriais/default_informacoes_territoriais.shtm) e nas tabelas de resultados da Amostra do Censo 2010 para Aglomerados Subnormais, publicadas no Banco de Dados Agregados do IBGE (SIDRA) (acessível em http://www.sidra.ibge.gov.br/cd/CD2010RGAADAGSN.asp). FONTE: Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br/noticias- censo.html?view=noticia&id =3&idnoticia=2508&busca=1&t=censo-2010-mostra-caracteristicas-territoriais-aglomerados- subnormais-suas-diferencas-demais-areas-cidades>. Acesso em: 2 mar. 2016. UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 22 A imprecisão que existe entre o legal e o ilegal vai além da totalidade do conjunto da sociedade, pois não se pode referenciar como um “Estado paralelo”, e sim como uma realidade bem mais intrínseca do que aquela que estamos acostumados a visualizar. No decorrer da história da urbanização das cidades, o Brasil constituiu dois vieses diversificados: de estruturação e acumulação de material, e com a multiplicidade das classes sociais. Mesmo com uma vasta legislação que visa a regularização da urbanização, o Brasil, ainda não consegue evoluir nesta questão, por falta de interesse dos poderes públicos, que tratam o direito à cidade como uma troca de favores meramente políticos. Quando falamos em segregação urbana, podemos afirmar que ela é multidimensional e que a dificuldade do acesso à terra, tanto na área urbana quanto na rural, delineou decisivamente as áreas chamadas de “civilizadas” no Brasil. Juntamente, aconteceram transformações do modelo produtivo campal. Transformações essas que conduziram grande parte da população dependente do campo para as cidades em busca de sobrevivência, aumentando, assim, significativamente, as áreas periféricas dos centros urbanos. Alfonsin (2003, p. 70) afirma que “a terra é toda a hipótese da vida”, que mesmo com toda a sua importância, a história da humanidade mostra que a luta pela posse e propriedade da terra é um processo contínuo e histórico, pois este procedimento iniciou na antiguidade, com a valorização e individualização da terra como sendo um bem particular, e fortalecendo na Idade Moderna, mesmo como decisões jurídicas do Estado Democrático e de Direito. O processo de individualização e de mercantilização do uso da terra estrutura um dos cernes da exclusão populacional do meio rural, sendo definida como Questão Agrária, que é fundamentada com as relações determinadas como pré-capitalistas. Significando deste modo que o direito de continuar ou permanecer na terra foi alterado com o novo modelo capitalista, que mudou as relações entre o trabalho e o capital, permeados na livre concorrência econômica, visando absolutamente o lucro, pela inciativa privada. A ilegalidade mediante a posse da terra passa a ser vinculada diretamente como a questão da exclusão social. O autor Boaventura de Souza Santos (1993), em seu estudo da dimensão jurídico-social de Pasárgada, revela que a população residente em áreas irregulares tem medo de ser despejada, por isso acaba aceitando a situação de ilegalidade em que se encontra. TÓPICO 2 | A CIDADE: LEGAL x ILEGAL 23 NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURÍDICO-SOCIAL DE PASÁRGADA Boaventura de Souza Santos 1 INTRODUÇÃO Este texto faz parte de um estudo sociológico sobre as estruturas internas de uma favela do Rio de Janeiro, a que dou o nome fictício de Pasárgada. Tem por objetivo analisar em profundidade uma situação de pluralismo jurídico com vista à elaboração de uma teoria sobre as relações ente Estado e Direito nas sociedades capitalistas. Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a um período de ruptura social, como, por exemplo, um período de transformações revolucionárias; ou pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social - neste caso, a habitação. A favela é um espaço territorial, cuja relativa autonomia decorre, entre outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasileiro. Esta ilegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento da comunidade enquanto tal com o aparelho jurídico-político do Estado brasileiro. No caso específico de Pasárgada, pode detectar-se a vigência não oficial e precária de um direito interno e informal, gerido, entre outros, pela associação de moradores, e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade decorrente da luta pela habitação. Este direito não oficial - o direito de Pasárgada, como poderei chamar - vigora em paralelo (ou em conflito) com o direito oficial brasileiro e é desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a ordem jurídica de Pasárgada. Entre os dois direitos estabelece-se uma relação de pluralismo jurídico extremamente complexa, que só uma análise muito minuciosa pode revelar. Muito em geral pode dizer-se que não se trata de uma relação igualitária, já que o direito de Pasárgada é sempre e de múltiplas formas um direito dependente em relação ao direito oficial brasileiro. Recorrendo a uma categoria da economia política, pode-se dizer que se trata de uma troca desigual de juridicidade entre as classes cujos interesses se espalham num e noutro direito. A análise da ordem jurídica de Pasárgada circunscreve-se, no que interessa para este estudo, aos recursos internos que são mobilizados para prevenir e resolver conflitos decorrentes da propriedade ou posse da terra e dos direitos sobre construções (casas e barracos) que nesta se implantam. É através da análise dos tipos de conflito e dos seus modos de resolução que melhor se surpreende o direito de Pasárgada em ação, isto é, enquanto prática social. Esta análise, feita num certo momento do desenvolvimento de Pasárgada, requer, para ser completa, a inclusão de uma dimensão histórica. Mais concretamente, trata-se de saber como se constituíram e se desenvolveram, a partir da formação da favela, as normas e as formas jurídicas e os órgãos de decisão jurídica, UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 24 que hoje se centram à volta da associação de moradores e de outros polos de organização comunitária autônoma, que continuam a subsistir, ainda que de modo cada vez mais precário, anos depois do apogeu do desenvolvimento comunitário do início da década de 60. [...] As dificuldades da investigação histórica no domínio sociojurídico são inúmeras, sobretudo quando o objetivo é capturar a gênese das formas e estruturas jurídicas. As dificuldades são ainda maiores quando, como no caso presente, é quase total a carência de documentaçãoescrita. Para as obviar, recorri a entrevistas com os moradores mais antigos de Pasárgada e sobretudo com aqueles que ali viveram desde o início da comunidade. É sabido que este método sociológico tem muitas limitações e que o rigor do conhecimento através dele obtido é sempre muito problemático. E isto é tanto mais assim quando se trata de pesquisar "questões jurídicas" porque, consoante a perspectiva analítica usada pelo entrevistador, tais questões, ou se referem a fatos que não ultrapassam os umbrais de um quotidiano, por vezes longínquo, ou envolvem mitos e tabus à volta dos quais o conhecimento e o desconhecimento social se organizam estratégica e "caprichosamente". [...] OS MAUS E VELHOS TEMPOS Quando os primeiros habitantes se fixaram em Pasárgada em meados da década de 30, existia muita terra disponível. Cada morador demarcava o seu pedaço de terra e construía seu barraco, deixando em geral espaços abertos para o cultivo de verduras, plantio de árvores ou para criação de animais domésticos. Segundo os mais antigos moradores de Pasárgada, naquela época quase não existiam conflitos entre os habitantes envolvendo direitos sobre a terra e as habitações. "Não havia necessidade de brigas", dizem eles. Os barracos eram de construção muito primitiva, pouco valor tendo. Podiam ser construídos ou demolidos em questão de horas. Por outro lado, uma vez que existia muita terra desocupada, qualquer conflito relacionado com a posse da terra (limites, preferências e servidões) poderia ser evitado facilmente com a simples mudança de uma das partes do conflito para outro lugar no morro. Mas o povoado cresceu muito rapidamente e a qualidade das construções melhorou consideravelmente, de tal modo que na segunda metade da década de 40 eram já frequentes os conflitos envolvendo a propriedade e a posse da terra. Quando se pergunta aos moradores mais antigos a maneira como naquela época tais conflitos eram resolvidos, eles respondem invariavelmente: "violência, a lei do mais forte". Quando, a fim de evitar, em alguma medida, distorções de percepção e de memória, se procura obter informações com base num paralelo entre o modo como os conflitos eram tratados naquele tempo e como são tratados agora, é frequente obter-se uma resposta deste teor: "Oh! Agora é diferente. Agora as questões são tratadas em paz e tenta-se decidir de acordo com a justiça. Naquela época, eram resolvidas com facas e revólveres". Este tipo de resposta envolve ainda uma certa distorção, porque não é verdade TÓPICO 2 | A CIDADE: LEGAL x ILEGAL 25 que hoje em dia todos os conflitos sejam pacificamente resolvidos, muito embora não seja menos verdade em Pasárgada do que o é na sociedade brasileira em geral. À luz de informações obtidas e tendo em conta a possibilidade de distorção, é talvez seguro concluir que a probabilidade de relações sociais pacíficas envolvendo a propriedade e a posse da terra e o tratamento também pacífico dos conflitos decorrentes de tais relações é hoje muito mais elevada do que há 20 ou 30 anos. O aumento da violência, numa primeira fase da história de Pasárgada, resulta, obviamente, de uma pluralidade de fatores. Entre eles apenas se referem dois que têm mais pertinência para os objetivos do presente estudo: por um lado, a indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos de ordenação e controle social próprios do sistema jurídico brasileiro; por outro lado, a inexistência de mecanismos alternativos, de origem comunitária, capazes de exercer, ainda que de modo diferente e apenas nos limites da comunidade, funções semelhantes às dos mecanismos oficiais. No que respeita ao primeiro fator, a indisponibilidade diz-se estrutural, sempre que as suas razões transcendem ao domínio motivacional e, portanto, o nível de eventos da interação social, independentemente do grau de universalização desta. Entre os mecanismos oficiais de ordenação e controle social, serão referidos dois: a Polícia e os Tribunais. A Polícia não tinha delegacias em Pasárgada e, mesmo se as tivesse, é improvável que fossem solicitadas pela população para intervir em casos de conflito, e as delegacias policiais nas áreas urbanizadas próximas também não eram chamadas a agir. Quando se pergunta aos moradores mais antigos as razões porque eles não usavam os serviços da Polícia, eles primeiro riem pela surpresa que lhes causa tal pergunta - tão óbvia é a resposta -, depois fazem um esforço para expressar o óbvio. Desde os primórdios da ocupação do morro, a comunidade "entendeu" que estava numa contínua luta com a Polícia. Antes de os terrenos de Pasárgada passarem para o domínio público, várias foram as tentativas empreendidas pela Polícia para expulsar em massa os moradores. E mesmo depois disso, a sobrevivência da comunidade nunca esteve garantida, uma vez que se conheciam casos de remoção de favelas construídas em terrenos do Estado. Chamar a Polícia aumentaria a visibilidade de Pasárgada como comunidade ilegal e poderia eventualmente criar pretextos para remoção. Outros fatores contribuíram ainda para que a Polícia fosse vista como um inimigo pelos moradores de Pasárgada. Criminosos, suspeitos, vagabundos e em geral "maus elementos" eram considerados pela Polícia como formando uma considerável proporção da população de Pasárgada. Por conseguinte, pelo que contam desse tempo (que não é, neste aspecto, muito diferente do tempo presente), a Polícia fazia incursões repressivas, isto é, dava batidas na comunidade com muita frequência. Estas batidas eram tão ineficientes do ponto de vista de objetivos policiais quanto eram repugnantes para os moradores que delas eram vítimas. Aqueles que de fato eram "maus elementos" quase nunca UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 26 eram apanhados e as pessoas inocentes eram levadas com frequência para prisões de onde não eram libertadas a não ser através de suborno. Neste contexto, e mesmo colocando de lado perigos envolvidos, não existia qualquer propósito útil em chamar a Polícia em caso de conflito. Se a vítima, ou, em geral, a pessoa prejudicada chamasse a Polícia, sabia que esta provavelmente não se disporia a vir (a menos que por outros motivos tivesse nisso interesse) e, se viesse, o culpado e todas as relevantes testemunhas já teriam então desaparecido ou, se não, quando interrogadas, fugiam o possível para não fornecer quaisquer informações úteis. Por outro lado, o morador que chamasse a Polícia seria considerado traidor ou informante (caguete) pelos outros moradores e isso poderia fazer perigar a sua permanência na comunidade. Não existe razão para duvidar da exatidão deste relato, tanto mais que ele se refere a comportamentos e atitudes que continuam ainda hoje a constituir, em grande parte, o quotidiano das relações entre os moradores de Pasárgada e a Polícia. Apesar de ter agora delegacia em Pasárgada, a Polícia continua a desempenhar um papel mínimo na prevenção e na resolução de conflitos. Não obstante os seus esforços no sentido de uma aceitação mais positiva por parte da comunidade, continua a ser vista por esta como uma força hostil investida de funções estritamente repressivas. Para além da Polícia (ou em complemento à ação desta), os tribunais constituem outro mecanismo oficial de ordenação e controle social a que os habitantes de Pasárgada poderiam, em teoria, recorrer para prevenir ou resolver conflitos internos de natureza jurídica. Tal recurso estava, no entanto, igualmente vedado e várias são as razões apontadas pelos moradores mais velhos para tal fato. Em primeiro lugar, juízes e advogados eram vistos como demasiado distanciados das classes baixas para poder entender as necessidades e as aspirações dos pobres. Em segundo lugar, os serviços profissionais dos advogados eram muito caros. Segundo a descrição de um dos moradores, "nós estávamos brigando por barracos e pedaços de terra que, do ponto de vista dos advogados, não valiam nada.Além disso, quando você contrata um advogado, você é de uma classe mais baixa do que a dele e ele fica muito a fim de fazer acordos com outros advogados e com o juiz, que podem prejudicar os seus interesses. Então ele vem a você com aquele jeito de falar de advogado e tenta convencer que foi o melhor que ele podia fazer por você, e que, afinal de contas, o acordo não é tão mau assim. E você não pode fazer nada". Esta observação, embora referida a atitudes para com os advogados na época inicial de Pasárgada, baseia-se provavelmente em experiência e percepções adquiridas muito tempo depois. Em qualquer caso, pressupõe um conhecimento bastante íntimo da ação dos advogados que duvido fosse comum em Pasárgada há 20 ou 30 anos. Comum era (e continua a ser) a ideia de que os serviços dos advogados são muito caros e, por isso, longe do alcance das posses das classes mais baixas. Uma terceira razão invocada pelos moradores de Pasárgada para não recorrerem aos tribunais reside no fato de saberem desde o início que a TÓPICO 2 | A CIDADE: LEGAL x ILEGAL 27 comunidade era ilegal à luz do direito oficial, quer quanto à ocupação da terra, quer quanto aos barracos que nela iam construindo. Na expressão perspicaz de um deles, "nós éramos e somos ilegais". Recorrer aos tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitações não só era inútil como perigoso. Era inútil porque "os tribunais têm que seguir o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito". Era perigoso porque trazer a situação ilegal da comunidade à atenção dos serviços do Estado poderia levá-los a "nos jogar na cadeia". Esta série de observações requer uma análise detalhada, porque esclarece alguns aspectos básicos da gênese e estrutura da ordem jurídica interna de Pasárgada. A expressão "nós éramos e somos ilegais", que, no seu conteúdo semântico, liga o status de ilegalidade com a própria condição humana dos habitantes de Pasárgada, pode ser interpretada como indicação de que nas atitudes destes para com o sistema jurídico nacional tudo se passa como se a legalidade da posse da terra se repercutisse sobre todas as outras relações sociais, mesmo sobre aquelas que nada têm com a terra ou com a habitação. Tal seria o caso se, por exemplo, um conflito jurídico de índole estritamente pessoal não fosse levado à atenção dos operadores do sistema jurídico nacional, pela suspeita das partes de que a ilegalidade do seu status residencial afetasse desfavoravelmente o modo como o conflito seria processado pelos tribunais. Não tenho provas cabais do funcionamento deste mecanismo de feedback e julgo que seria muito difícil, senão impossível, obtê-las. Na verdade, apesar de a inacessibilidade dos tribunais em relação aos conflitos envolvendo terras ocupadas por favelas assumir aspectos peculiares à luz da inexistência ou nulidade legal dos respectivos títulos de propriedade e de posse, é necessário reconhecer que tal inacessibilidade é geral em relação aos problemas jurídicos das classes baixas, residindo ou não em favelas e constitui, por isso, uma das manifestações mais evidentes da natureza classista do aparelho jurídico do Estado numa sociedade capitalista. No entanto, em muitas entrevistas com os moradores de Pasárgada obtive declarações nas quais a ideia do mecanismo de feedback é subentendida. Eis uma declaração típica: "parece que, somente porque a terra não é nossa, o Estado não tem obrigação de nos fornecer água e luz elétrica e a Polícia pode invadir nossas casas quando bem entende. Existem mesmo patrões que recusam candidatos a emprego quando estes dão endereço numa favela". O significado implícito deste extrato de entrevista é que, de acordo com os princípios de justiça, a ilegalidade da posse da terra nas favelas não se deveria repercutir sobre a provisão de serviços públicos pelo Estado ou sobre o comportamento da Polícia e dos patrões. No contexto em que esta declaração foi feita, significa também que o mecanismo de feedback, embora existindo de fato, não é sequer legal em face do sistema jurídico oficial. Na realidade, o feedback é legal no que respeita à provisão de serviços públicos referidos. De acordo com as leis gerais e com as disposições do código urbano, o fornecimento por parte do Estado de serviços públicos, tais como água, esgoto, luz elétrica, pavimentação, é limitada a áreas cuja utilização tenha sido aprovada nos termos da legislação em vigor. UNIDADE 1 | A URBANIZAÇÃO DA PERIFERIA, UMA CONSEQUÊNCIA DO CAPITALISMO 28 No que respeita ao comportamento da Polícia, foi possível, depois de algumas entrevistas com policiais trabalhando noutras favelas, confirmar a disparidade entre o direito nos livros e o direito na prática. Indiferente ao disposto na lei, a Polícia tende a agir segundo o princípio de que, uma vez que os favelados estão ilegalmente domiciliados, não têm razões para reclamar quando a Polícia invade suas casas "no cumprimento do dever”. A análise da expressão "nós éramos e somos ilegais" parece indicar que a ideia de uma capitis diminutio geral (de uma ilegalidade quase existencial) e a prática social em que ela se espelhou e reforçou agiram como fatores bloqueantes do acesso aos tribunais. O estatuto (e, portanto, os limites) desta declaração de ilegalidade encontra-se precisado na expressão, também já mencionada, de que "os tribunais têm que observar o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito". Juntamente com a anterior, esta citação mostra a ambiguidade profunda da consciência popular do direito nas sociedades caracterizadas por grandes diferenças de classes. Por um lado, a apreciação realista de que o direito do Estado é o que está nos códigos e de que nem estes nem os juízes, que têm por obrigação aplicá-lo, se preocupam com as exigências de justiça social. Por outro lado, o reconhecimento implícito da existência de um outro direito, para além dos códigos e muito mais justo que estes, à luz do qual são devidamente avaliadas as condições duríssimas em que as classes baixas são obrigadas a lutar pelo direito à habitação. CONCLUSÃO Da discussão procedente conclui-se que, para além das razões diretamente econômicas, o estatuto de ilegalidade da comunidade favelada e o bloqueamento ideológico que lhe foi concomitante criaram uma situação de indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação e controle social. Esta situação poderia ter sido de algum modo neutralizada, se, entretanto, se tivessem desenvolvido na comunidade mecanismos internos, informais e não oficiais, capazes de articular e exercer uma legalidade e uma jurisdição alternativas para vigorar dentro da comunidade. Sucede, no entanto, que na fase da história de Pasárgada que estamos a analisar, tais mecanismos não surgiram e nem surpreende que assim tenha sido. A existência de tais mecanismos pressupõe um índice bastante elevado de organização comunitária, que obviamente não existia ao tempo. Mesmo hoje, numa altura em que Pasárgada é já uma velha e estável comunidade, a sua organização é ainda baseada numa pluralidade de redes de ação social frouxamente estruturadas. É de suspeitar que, quando a comunidade era muito mais jovem e ainda em processo de formação, a sua organização social fosse ainda mais precária e totalmente desprovida de qualquer polo centralizador. A indisponibilidade estrutural dos mecanismos oficiais da ordenação e controle social e a ausência de mecanismos não oficiais comunitários criaram uma situação que designarei por privatização possessiva do direito. É uma TÓPICO 2 | A CIDADE: LEGAL x ILEGAL 29 situação susceptível de ocorrer, por exemplo, em sociedades muito jovens constituídas à margem dos estatutos organizativos definidos, como é o caso da sociedade de fronteira, ou em sociedades em fase de ruptura (devido a revolução, guerra, etc.) e de desestruturação e reestruturação profundas. Esta situação caracteriza-se pela apropriação individual da criação e aplicação
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