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2018 Fundamentos Históricos do direito Prof.ª Ivone Fernandes Morcilo Lixa Copyright © UNIASSELVI 2018 Elaboração: Prof.ª Ivone Fernandes Morcilo Lixa Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 340 L693f Lixa, Ivone Fernandes Morcilo Fundamentos históricos do direito / Ivone Fernandes Morcilo Lixa. Indaial: UNIASSELVI, 2018. 200 p. : il. ISBN 978-85-515-0122-1 1.Direito. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. Impresso por: III apresentação Os historiadores Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878- 1956), em meio às guerras mundiais, formaram uma parceria intelectual que muito contribuiu para a concepção de História que temos nos dias de hoje. O ambiente marcado por grandes tragédias e perdas humanas exigia dos pensadores explicação e eles foram capazes de perceber que a história poderia ser um caminho possível para compreender aqueles tempos difíceis e dolorosos. Marc Bloch, com a ocupação nazista na França e por ser judeu, abandona a Universidade e torna-se um militante da resistência francesa. Preso pela Gestapo, foi torturado e fuzilado em 16 de junho de 1944, deixando inacabado um livro sobre metodologia, “Apologia da História ou O Ofício do Historiador”, que foi publicado em 1949 pelo parceiro Febvre, como obra póstuma. Bloch inicia a obra com uma pergunta feita por seu filho, à época uma criança: para que serve a história? A resposta a esta interrogação permite explicar que o historiador tem a obrigação de difundir e esclarecer quando fala tanto para doutores como para estudantes iniciantes. Nas palavras de nosso autor, para responder a uma pergunta aparentemente simples, o “historiador é chamado a prestar contas” (BLOCH, 2002, p. 41), é chamado a explicar qual sua função, sua área de atuação, mesmo em se tratando da mais difícil das ciências, sempre em movimento. Afinal, o que é história? Para Bloch, história não é o estudo do passado – “passado” é um termo vago e amplo –, mas a ciência dos homens, e seu objetivo é estudar a ação dos homens no tempo. O historiador não estuda o “passado”, uma vez que presente e passado estão sempre sob o domínio do tempo. Estuda onde tudo começa: o presente, e assim compreende o passado. Do conhecido para o desconhecido. Uma tarefa que deve ser norteada pela permanente crítica, para não cair no erro de confiar em evidências sem comprovação de verdade. Por fim, conclui Bloch que assim é definido o ofício do historiador: estudar o homem em função do tempo desde o olhar presente, compreendendo o passado e desvelar a verdade, mesmo que sofra desilusões. DICAS O livro de Marc Bloch está disponível em: <https://bibliotecaonlinedahisfj. files.wordpress.com/2015/02/bloch-m-apologia-da-histc3b3ria.pdf>. É uma interessante leitura! IV Com essa reflexão preambular iniciaremos o estudo da história do direito. Através da realidade do direito brasileiro atual, vamos retomar sua trajetória histórica. Em tempos tão difíceis como o que estamos vivendo no país, quando, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2014, 9,6% das crianças e adolescentes viviam em casas sem o mínimo de saneamento (água, luz e esgoto); um a cada cinco jovens de 15 a 29 anos não trabalha e não estuda; 4,3 milhões de trabalhadores domésticos sequer possuem carteira de trabalho, ou seja, vamos partir de um tempo e um espaço em que, ainda, direitos garantidos são negados para uma grande parcela da população. Tempo em que se fala muito em Direitos Fundamentais, Democracia e Cidadania, mas desde uma realidade brutal que coloca o Brasil como o 10º país em desigualdade social. Não restam dúvidas: é urgente a tarefa de pensar o direito brasileiro e redefinir sua trajetória!!! Tarefa difícil e árdua, mas necessária. FIGURA 1 – DESIGUALDADE SOCIAL FONTE: Disponível em: <http://chert-poberi.ru/interestnoe/kak-vyglyadit-so cialnoe-neravenstvo-v-raznyx-gorodax-i-stranax.html>. Acesso em: 8 jan 2018 Assim, com vistas a um futuro mais generoso e justo, vamos, desde esse presente que exige explicação, compreender o passado! Afinal, é essa a tarefa do historiador do direito! V Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA VI VII UNIDADE 1 - HISTÓRIA E DIREITO ................................................................................................ 1 TÓPICO 1 - DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA ...................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 OBJETIVOS E MÉTODO DO ESTUDO DA HISTÓRIA DO DIREITO .................................. 6 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 9 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 10 TÓPICO 2 - UBI SOCIETAS, IBI IUS? ................................................................................................... 11 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 11 2 OS PRIMEIROS NÚCLEOS HUMANOS ........................................................................................ 13 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 17 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 18 TÓPICO 3 - O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO) ..................................................................... 19 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 19 2 O DIREITO DIVINO DOS EGÍPCIOS ............................................................................................ 21 3 O DIREITO HEBRAICO: O SAGRADO ALICERCE DE UMA NAÇÃO ................................. 24 4 O CÓDIGO DE HAMURABI: UMA PRECIOSAHERANÇA DA MESOPOTÂMIA ............ 26 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 29 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 30 TÓPICO 4 - O MUNDO GREGO ANTIGO ....................................................................................... 31 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 31 2 A CONCEPÇÃO DE DIREITO E JUSTIÇA GREGA .................................................................... 37 3 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E JUDICIAL DE ATENAS ....................................... 42 4 O HELENISMO ..................................................................................................................................... 45 RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 48 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 49 TÓPICO 5 - O LEGADO ROMANO .................................................................................................... 51 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 51 2 A FORMAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA: A BASE DO DIREITO ROMANO ............................. 54 3 OS PERÍODOS POLÍTICOS E AS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS .............................................. 63 4 O LEGADO ............................................................................................................................................ 69 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 71 RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 74 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 75 UNIDADE 2 - PENSAMENTO JURÍDICO MEDIEVAL E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO NA MODERNIDADE ................................................................................ 77 TÓPICO 1 - O NAUFRÁGIO DA CIVILIZAÇÃO ANTIGA: A FORMAÇÃO DA IDADE MÉDIA ........................................................................................................... 79 sumário VIII 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 79 2 O CRISTIANISMO .............................................................................................................................. 80 3 A BARBARIZAÇÃO DO COTIDIANO ........................................................................................... 83 4 A EMERGÊNCIA DO PLURALISMO MEDIEVAL ...................................................................... 87 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 91 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 92 TÓPICO 2 - O DIREITO CANÔNICO: ELEMENTOS CARACTERIZADORES ...................... 93 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 93 2 A REFORMA GREGORIANA: MARCO DO DIREITO CANÔNICO ...................................... 96 3 OS CONCEITOS DE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA .............................................................. 99 4 O PROCESSO INQUISITORIAL ....................................................................................................100 5 A CRENÇA NA VERDADE REAL ..................................................................................................106 6 O DIREITO COMUM MEDIEVAL .................................................................................................109 RESUMO DO TÓPICO 2 .....................................................................................................................115 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................116 TÓPICO 3 - A MODERNIDADE: UM CENÁRIO DE TRANSFORMAÇÕES ..........................117 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................117 2 AS COSMOVISÕES JURÍDICAS MODERNAS .........................................................................117 3 O PROCESSO DE DOMINAÇÃO COLONIAL ..........................................................................120 4 O DIREITO DA CONQUISTA ........................................................................................................121 RESUMO DO TÓPICO 3 .....................................................................................................................127 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................128 TÓPICO 4 - O DIREITO MODERNO E O POSITIVISMO JURÍDICO .....................................129 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................129 2 O MODELO POLÍTICO LIBERAL MODERNO .........................................................................129 3 O DIREITO E A ORIENTAÇÃO EXEGÉTICA ............................................................................137 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................145 RESUMO DO TÓPICO 4 .....................................................................................................................147 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................148 UNIDADE 3 - A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO ..........................149 TÓPICO 1 - AS RAÍZES HISTÓRICAS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA .................151 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................151 2 O DIREITO INDÍGENA ...................................................................................................................152 3 O DIREITO COLONIAL BRASILEIRO .........................................................................................152 4 AS ORDENAÇÕES DO REINO.......................................................................................................154 RESUMO DO TÓPICO 1 .....................................................................................................................158 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................159 TÓPICO 2 - A ORDEM JURÍDICA COLONIAL BRASILEIRA ...................................................161 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................161 2 A ESTRUTURA JURÍDICA DO BRASIL COLÔNIA ..................................................................163 RESUMO DO TÓPICO 2 .....................................................................................................................174 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................175TÓPICO 3 - O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL ...................................................................................................177 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................177 IX 2 A CULTURA JURÍDICA NACIONAL: O BACHARELISMO ..................................................180 RESUMO DO TÓPICO 3 .....................................................................................................................185 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................186 TÓPICO 4 - OS DESAFIOS DO DIREITO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO .......................187 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................187 2 A DIFÍCIL CONQUISTA DE DIREITOS .......................................................................................190 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................192 RESUMO DO TÓPICO 4 .....................................................................................................................194 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................195 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................197 X 1 UNIDADE 1 HISTÓRIA E DIREITO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • definir a relação História e Direito; • discutir a metodologia do estudo da História do Direito; • identificar os objetivos do estudo da História do Direito; • refletir acerca dos elementos históricos do direito moderno ocidental; • identificar as características e contribuições do mundo antigo para o pen- samento jurídico moderno; • compreender a particularidade do direito no mundo greco-romano e seu legado à modernidade. Esta unidade está dividida em cinco tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA TÓPICO 2 – UBI SOCIETAS, IBI IUS? TÓPICO 3 – O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO) TÓPICO 4 – O MUNDO GREGO ANTIGO TÓPICO 5 – O LEGADO ROMANO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA 1 INTRODUÇÃO Ao longo da história, nas distintas etapas e diversas sociedades encontramos formas de controle e proteção de valores que possibilitam a vida comum. Esses valores, ou bens jurídicos, são amparados e garantidos por um conjunto de normas jurídicas definidas conforme a ordem social, política e/ou econômica que se encontra em contínua mudança, e por esta razão as normas jurídicas vão reconhecendo as alterações de acordo com a época e as relações definidas no substrato social. UNI A vida social é regida por diversas normas, preceitos, que definem condutas (morais, religiosas, culturais etc.), dentre as quais as normas jurídicas. Normas jurídicas são distintas das demais por dois fatores principais: emanam de uma autoridade política competente e possuem poder coercitivo. Em outras palavras, em primeiro lugar, as normas jurídicas são estabelecidas por órgãos ou instituições legítimas politicamente, portanto, distintas de normas morais. Como segundo fator, as normas jurídicas são impostas, com uso da força se necessário for, de forma a persuadir as pessoas a agirem de modo a atender às finalidades ou objetivos estabelecidos pelos órgãos políticos definidos. Assim, as normas jurídicas devem ser acatadas e colocadas à disposição dos indivíduos e da coletividade para fazer valer interesses e necessidades, bem como proteger seus bens de distintas naturezas e características. Desde tal perspectiva, surgem algumas perguntas que devemos responder inicialmente: é possível estudar esse conjunto de normas que vão definindo o direito? Como estudar esse fenômeno social que chamamos de direito? Para que estudar direito? As distintas respostas que podem ser dadas recaem em alguns pontos comuns: a necessidade de conhecer o direito, de determiná-lo, estabelecer a relação com as ideias e/ou valores e/ou interesses do grupo social em que se insere. Exatamente essa é a função dos pesquisadores do direito, e desde as investigações vão sendo redefinidos conceitos operacionais que são utilizados para definir e fundamentar a norma jurídica adequada do caso concreto. UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO 4 Dessa maneira, vai sendo definida a cultura jurídica de um determinado grupo em um determinado tempo. Segundo Wolkmer (2007, p. 5), cultura jurídica pode ser definida como “representações padronizadas da (i)legalidade na produção das ideias, no comportamento prático e nas instituições de decisão judicial, transmitidas e internalizadas no âmbito de determinada formação social”. Portanto, o conjunto de normas e procedimentos, considerados justificáveis e apoiados ou não pela força instituída, vão padronizando condutas e construindo a concepção de direito. Pode-se compreender direito como fenômeno sociocultural produzido e reproduzido desde um contexto histórico. Pode-se conceituar a História do Direito como parte da História geral que examina o Direito como fenômeno sociocultural, inserido num contexto fático, produzido dialeticamente pela interação humana através dos tempos, e materializado evolutivamente por fontes históricas, documentos jurídicos, agentes operantes e instituições legais reguladoras (WOLKMER, 2007, p. 5). Vamos então percebendo que o campo do estudo da história do direito não é o da dogmática jurídica, que delimita conceitos desde concepções indiscutíveis e estáveis, mas um campo partilhado por outras disciplinas (teoria do direito, sociologia jurídica, antropologia jurídica, ciência política etc.) que permite compreender o contexto e as forças históricas, sociais, políticas, intelectuais, culturais etc., que definem as normas jurídicas vigentes. NOTA Há autores que diferenciam dogmática de zetética jurídica. Dogmática jurídica pode ser definida como campo de estudo acerca dos conceitos operacionais do direito (“verdades” preestabelecidas) usados para solucionar na prática controvérsias jurídicas, portanto, é um estudo limitado, a grosso modo, à norma positivada. A zetética jurídica problematiza os dogmas e verdades jurídicas, questionando as premissas que definem a dogmática. Nessa perspectiva, a história do direito estaria no campo da zetética, uma vez que não apenas problematiza a dogmática jurídica contemporânea, como busca reconstruir as ideias e práticas jurídicas em determinado contexto histórico. Em síntese, o objetivo da história do direito é compreender a construção do direito atual, desde a articulação de fatores ao longo do tempo, reexaminando suas fontes de produção, as concepções, técnicas e instituições que o foram elaborando e legitimando. Assim, trata-se de um estudo essencialmente crítico que possibilita interpretar o direito desde a identificação dos valores consolidados e reproduzidos historicamente. TÓPICO 1 | DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA 5 Considerando História não como narrativa de acontecimentos, mas expressão de experiências humanas que definem mudanças estruturais coletivas que não tratam simplesmente de investigação sobre personagens individuais, como os “heróis” ou “personagens”, mas de como a trama da vida move os indivíduos comuns desde desejos, necessidades, valores e interesses a criarem aspirações coletivase romperem com estruturas e modelos dominantes. Trata-se, assim, de romper com o conceito de que História é uma mera narrativa de atos individuais, mas estudar História desde a possibilidade de mudanças do presente. É um ato de recusa de verdades absolutas e destinos imutáveis preestabelecidos, uma forma de adquirirmos a consciência das forças que nos levam coletivamente a agir desde as experiências vivenciadas. FIGURA 2 – AS SUFRAGISTAS FONTE: Disponível em: <http://www.50emais.com.br/37809/>. Acesso em: 20 nov. 2017. DICAS O filme “As Sufragistas” reproduz a luta das mulheres inglesas em 1912 pelo direito ao voto. Narra a vida política de Emmeline Pankhurst (1858/1928), nascida em Londres, que liderava o movimento com entusiasmo, usando desde a diplomacia até a violência. Depois de serem ignoradas pelo Parlamento inglês, as mulheres saíram pelas ruas em passeatas, quebravam o que achavam pela frente, tocavam fogo nas caixas do correio! O filme é uma lição de história! Deixa claro que os direitos são conquistados coletivamente! UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO 6 2 OBJETIVOS E MÉTODO DO ESTUDO DA HISTÓRIA DO DIREITO O estudo da história do direito é a possibilidade de descobrir um fascinante universo, descobrir caminhos que foram percorridos por distintas civilizações ao longo do tempo e foram encontrando no direito o instrumento necessário para continuarem a vida em comum. Sem dúvida, nossa formação acadêmica exige compreender o presente desvelando os valores e as práticas jurídicas consolidadas ao longo do tempo, ampliando, assim, nossa cultura jurídica, sendo o estudo histórico do direito um importante elemento para o saber formativo e distinto do conjunto de disciplinas dogmáticas que constituem o ensino jurídico. O importante historiador do Direito, António Manuel Hespanha, destaca que enquanto as disciplinas dogmáticas visam “criar as certezas acerca do direito vigente, a missão da história do direito é problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo” (HESPANHA, 2005, p. 21). A história do direito realiza sua função ao contribuir para a elaboração de uma perspectiva que compreenda o fenômeno do direito enquanto produto das relações e contextos sociais – econômicos, políticos etc. – localizados temporalmente, e assim é assegurada a formação crítica dos juristas. Em que pese a disciplina de História do Direito estar presente nos cursos de Direito brasileiros em geral, talvez seja necessário ampliar sua função, sobretudo quando se tem em conta a necessidade de servir de instrumento de revisão das fontes legislativas e práticas das instituições jurídicas com vistas a alinhar o direito com as necessidades e condições sociais. Em suma, a finalidade essencial da História do Direito é a interpretação crítico-dialética da formação e da evolução das fontes, ideias norteadoras, formas técnicas e instituições jurídicas, primando pela transformação presente do conteúdo legal instituído e buscando nova compreensão historicista do Direito num sentido social e humanizador (WOLKMER, 2007, p. 6). Estudar História do Direito desde uma perspectiva não linear – a que não concebe a história como acumulação progressiva de saber, mas como rupturas, avanços e retrocessos –, além da importância para a formação acadêmica, permite identificar forças e valores que vão conferindo legitimidade ao direito, e para tal tarefa é necessário estabelecer estratégias e caminhos metodológicos adequados. TÓPICO 1 | DIREITO E HISTÓRIA: APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA 7 NOTA A concepção linear da história do direito compreende o presente como uma espécie de “celebração” do passado. O presente como única possibilidade inevitável do passado, de uma espécie de “padrão” universal de evolução. A “naturalização” e “sacralização” do presente é uma deformação histórica, pois o presente não é uma imposição do passado, mas o resultado de dinâmicas escolhas humanas. A “neutralização” da história constrói para os juristas uma lógica de direito abstrata e erudita sem preocupação com a finalidade maior do direito: a concretização de necessidades e proteção de bens humanos concretos. Em que pese a longa tradição da historiografia formalista nas faculdades de Direito em fins da década de 60 e ao longo dos anos 70, foi sendo definido um novo marco metodológico desde a criticidade e revisão dos modelos teóricos consolidados. Trata-se da emergência de uma corrente mais questionadora dos historiadores, problematizando a ingenuidade intelectual e a forma através da qual compreendem a realidade desde modelos deformados meramente teóricos. Este movimento, denominado Nova história, teve como “força” propulsora alguns eventos, tais como a renovação do pensamento crítico – “nova teoria crítica” da Escola de Frankfurt –, que problematizou a neutralidade ideológica, demonstrando que toda atividade humana é sempre política; a metodologia inovadora da Escola Francesa dos “Annales” – que contribuiu no campo do estudo do direito para uma visão interdisciplinar e relacional da história, concebendo a história do direito como parte da história social. A emergência do pensamento crítico latino-americano com pensadores como Paulo Freire, Franz Hinkelammert, Enrique Dussel, Antonio Carlos Wolkmer, entre outros, que são considerados matrizes de internalização da criticidade na cultura jurídica, representando uma espécie de “via alternativa” mais próxima de nossa realidade. Muitos outros se somam para uma mutação radical da historiografia em geral e jurídica, em particular, definindo, assim, uma opção metodológica desmistificadora que inclui a complexidade e diversidade da vida social no processo de edificação histórica do direito. IMPORTANT E “Escola de Frankfurt” é uma corrente de pensamento que emerge no contexto político e histórico muito problemático. Em meio à ascensão do nazismo na Alemanha e ao stalinismo na Rússia, um grupo de intelectuais vinculados ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, alinhados ao que foi se denominando Teoria Crítica, passa a produzir obras, pesquisas e análises sociais entre os anos 1920 a 1970 desde um marxismo heterodoxo. Para conhecer melhor sobre a Escola de Frankfurt e A Teoria Crítica, você pode consultar: <http://brasilescola.uol.com.br/filosofia/a-escola-frankfurt-introducao-historica.htm>. UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO 8 NOTA O nome Escola dos Annales refere-se a um grupo de historiadores liderados por Lucien Febvre e Marc Bloch, que se organizaram em torno do periódico francês Annales d'histoire économique et sociale (Anais de história econômica e social), no qual eram publicados seus principais trabalhos. O principal objetivo desses historiadores era a problematização do positivismo histórico dominante e o desenvolvimento de um tipo de História que levasse em consideração novas fontes para a pesquisa histórica, como a sociologia, a economia, a semiologia etc., considerando a história como a ciência do presente e não do passado, investigando as transformações e rupturas sociais ao longo do tempo. A nova concepção das fontes, funções e concepções de Direito conduz à revisão crítica da análise e estudo do passado das instituições jurídicas e das práticas de controle, problematizando o modelo contemporâneo. Desde aí, o Direito Moderno é compreendido desde uma nova perspectiva que permite identificar os fatores e elementos políticos, sociais, econômicos e culturais subjacentes ao processo histórico desenvolvido entre os séculos XVI a XIX na Europa que acabou por definir a cultura jurídica dominante nos dias de hoje. Em síntese, o que atualmente se compreende por Direito é resultado do contexto histórico europeu moderno organizado desde a consolidaçãodo capitalismo liberal que foi definindo uma estrutura política e jurídica estatal centralizada, modelo este que, por conta da expansão colonizadora, foi colocado em marcha a partir do século XIV. O fundamento nuclear do Direito Moderno é o individualismo liberal, expressão maior do valor moral da sociedade burguesa emergente, que coloca o homem como ser individual autônomo e formalmente livre. Nessa dinâmica histórica, a ordem jurídica é instrumentalizada como estatuto de uma sociedade que proclama a vontade individual, priorizando formalmente a liberdade e a igualdade de seus atores sociais (WOLKMER, 2007, p. 30). ESTUDOS FU TUROS Como adiante será melhor estudado, “Modernidade” é definida como um modelo civilizatório construído desde a Europa entre os séculos XIV a XIX, que veio a substituir o modo de vida medieval. Tem como características o predomínio de concepções políticas e jurídicas liberais individualistas. Considerando a história do direito como campo de estudo que tem como objetivo a compreensão do presente a partir da revisão crítica do passado, evidencia-se a finalidade maior de nossos estudos: rever historicamente as experiências do direito com vistas a adquirir uma consciência do Direito Moderno mais humanizadora e libertária. 9 Neste tópico, você aprendeu que: • Direito é um produto histórico e social. • Apenas é possível compreender os fundamentos, valores e finalidades das normas jurídicas se houver uma contextualização histórica. • O que atualmente identificamos como direito é produto do processo histórico da modernidade, desenvolvido a partir dos séculos XVIII e XIV no mundo europeu e que acabou por tornar-se um modelo dominante. • A análise e discussão histórica acerca do direito possibilita uma revisão crítica e humanizadora do direito. RESUMO DO TÓPICO 1 10 1 Considere a seguinte afirmação: “Examinar e problematizar as relações entre a História e o Direito reveste-se hoje da maior importância, principalmente quando se tem em conta a percepção da normatividade extraída de um determinado contexto histórico definido como experiência pretérita que conscientiza e liberta o presente” (WOLKMER, Antonio Carlos. Paradigmas, historiografia crítica e direito moderno. In: Revista Fac. Direito, Curitiba, n. 28, 1994/95, p.55-67). Tendo como referência o estudo realizado, responda à seguinte questão: Qual a importância atual de problematizar a relação entre História e Direito? AUTOATIVIDADE 11 TÓPICO 2 UBI SOCIETAS, IBI IUS? UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO O clássico estudioso do direito Jean Carbonnier (1908-2003) afirma que nós, juristas, sofremos de uma espécie muito peculiar de temor ou insegurança: o medo do vazio do direito. Para o referido autor: Quando um intruso (da mesma espécie, o que merece ser destacado) se introduz na zona assim delimitada, desencadeia uma reação violenta no titular de um direito. Na profundeza obscura destes instintos – instintos separatistas, antigregários, que empurram o indivíduo a isolar-se da espécie e a rechaçar o contato com seus semelhantes – nós não vacilaríamos em buscar a raiz natural (natural é aqui animal) do direito subjetivo (CARBONNIER, 1974, p. 15). NOTA Ubi Societas, Ibi Ius – Onde há sociedade, há direito. A concepção de Carbonnier é uma maneira de pensar que ajuda a enfrentar o temor, a insegurança, muito arraigada no meio acadêmico, que reafirma a crença de que o ser humano possui “naturalmente” laços políticos além do biológico, como se as duas dimensões da existência se confundissem. Uma crença herdada desde o pensamento grego, para a qual os romanos deram uma forma jurídica: ubi societas, ibi ius (onde há sociedade há direito), que se transformou em dogma, passado de geração em geração, até chegar aos dias de hoje, fazendo com que não sejamos capazes de conceber outra forma de conviver em sociedade sem o modelo de direito e Estado que conhecemos. Em outra vertente, muitos historiadores do direito não concebem o Direito como fenômeno natural, mas produto histórico e político, sendo suas diferentes formas de expressão resultante de relações humanas variáveis no tempo e espaço. UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO 12 Pode-se afirmar que o direito é um artifício social que tem sua origem relacionada a formas de organização complexas quando os conflitos não são mais entre indivíduos isolados, mas sim de ordens estruturais que colocam em risco a própria comunidade em sua totalidade. Isso significa que o direito surge quando as normas de convivência são definidas pelos vínculos mais próximos, como os de parentesco, em que a ancestralidade comum, real ou fantasiosa, era o que definia as regras de convivência e regulamentações, vínculos legitimados por relatos míticos, representações metafóricas de práticas que foram se internalizando e sendo reproduzidas no grupo social. Somente a partir da complexidade social é que se exige a cooperação mais numerosa para a realização de tarefas impossíveis para um número pequeno de indivíduos que já havia dominado a natureza. FIGURA 3 – “LINHA DO TEMPO” DA EVOLUÇÃO HUMANA Pré-História Mesolítico 10 mil Paleolítico Paleolítico Inferior Paleolítico Médio Paleolítico Superior Neolítico Idade dos metais Civilização 6 mil 4 mil10 mil 40 mil150 mil4 milhões 160 mil Mesolítico • Pedra lascada e polida. • Transformações climáticas. • Primeiros sedentários. • Transformação do alimento (cozinhar e fazer pães). Revolução Neolítica: Descoberta da agricultura. • Pedra polida. • Sedentarismo. • Formação das aldeias. • Domesticação de animais. • Comunismo primitivo: propriedade coletiva. • Tecelagem e cerâmica. • Patriarcado. • Pintura: vida em sociedade. Idade dos metais: cobre, bronze e ferro. • Guerras entre aldeias. • Surgimento da escravidão. • Fim do comunismo primitivo. • Divisão do trabalho: artesanato, agricultura e pecuária. • Arte megalítica: Stonehenge. • Revolução urbana: surgem as primeiras cidades (Jericó e Satal-ayuti) Civilização • Cidades desenvolvidas. • Sociedade extratificada. • Produção de excedentes. • Comércio. • Escrita. • Formação do Estado: servidão coletiva e escravidão. Paleolítico - características • Nomadismo. • Coletores. • Caça e pesca. • Matriarcado. • Pintura representando a caça e a fertilidade. Homo sapiens idaltu (ancião) •Possível antecessor do H.S.S. •Descoberto na África em 2003 •Parentesco genético Australopitecus • (4 a 2,5 milhões). • Boizei, Afarensis e Robustus. • África. • Bípede. • Utiliza utensílios. Homo habilis • (2,5 a 1,5 milhões) • África • Produção de utensílios. Homo erectus • (1,5 milhões a 300 mil) • Pitecantropus, Sinantropus e Java. • África, Ásia e Europa • Domínio do fogo e uso de ferramentas desenvolvidas. • Desenvolvimento da linguagem. H. sapiens cromagnon • (50 mil a ??) • África, Ásia, Europa e Oceania. • Utiliza o silex. • Mais robusto e mais inteligente, talvez nosso ancestral. H. sapiens sapiens • (desde 120 mil até hoje) • Todos continentes, inclusive a América. • Arte e magia. • Pintura rupestre = caça e fertilidade. • Escultura = Vênus. H. sapiens neaderthal • (150 a 30mil) • África, Ásia, Europa e Oceania. • Mora em cavernas. • Primeiras sepulturas. • Pontas de lanças. • Arco, flecha e anzóis. FONTE: Disponível em: <http://turmadahistoria.blogspot.com.br/2011/08/linha-de-tempo-da-pre- historia.html>. Acesso em: 20 nov. 2017. Como pode ser observado pela “linha do tempo” acima demonstrada, os humanos modernos (Homo sapiens) são os últimos sobreviventes de um longo processo de adaptação e luta pela sobrevivência. Seres frágeis (animais sem garra e de pouca velocidade), sem o mínimo de organizaçãoe uso de ferramentas, não são capazes nem de matar animais sedentários. O homem moderno trouxe consigo a proliferação de ferramentas que permitiu às comunidades humanas assentamento em colônias em cavernas e campos abertos, com sólidas casas feitas de pedras, estacas de madeira e ossos. TÓPICO 2 | UBI SOCIETAS, IBI IUS? 13 Existem exemplares de ossos e marfins entalhados, serrados, moídos e polidos com destreza que datam de 33 mil anos atrás!!! ATENCAO 2 OS PRIMEIROS NÚCLEOS HUMANOS Desde estudos arqueológicos é possível afirmar que a última espécie humana sobrevivente desde o Paleolítico Superior – em torno de 9 mil anos – encontrou nas grandes planícies fluviais e nos sítios litorâneos o ambiente propício para o desenvolvimento da agricultura e domesticação de animais. Pouco a pouco, as relações sociais, unidas por complexas redes de parentesco, tornam- se hierarquizadas e a realização de tarefas cotidianas, como irrigação, cultivo e colheita, vai dando lugar a formas de organização social com poderosos mecanismos unificadores de comportamentos, que se transformam em normas de controle. A partir do quarto milênio a.C. surgem no Oriente Próximo as primeiras civilizações: Mesopotâmia, Egito, Palestina, Fenícia e Persa. Estas ocuparam uma região que ficou conhecida como Crescente Fértil, limitada entre os rios Tigre, Eufrates e Nilo. FIGURA 4 – CRESCENTE FÉRTIL: BERÇO DA CIVILIZAÇÃO FONTE: Disponível em: <http://www.infoescola.com/geografia/crescente-fertil/>. Acesso em: 12 nov. 2017. UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO 14 Além da estratégica passagem entre a África, Europa e Ásia, a região possuía uma rica biodiversidade e a presença de rios que forneciam abundância de água para irrigação, além de servir de meio de comunicação. UNI Os estados que atualmente possuem terras localizadas no Crescente Fértil são: Iraque, Jordânia, Líbano, Síria, Egito, Israel e Palestina, além da parte sul da Turquia e da área mais ocidental do território do Irã. A sofisticação técnica, como a astronomia para estabelecer um calendário preciso para controle da agricultura, matemática e hidráulica para as obras de irrigação e construção torna-se patrimônio intelectual importante para a sobrevivência do grupo, e concentra-se nas mãos de grupos ou castas privilegiadas (sacerdotais, guerreiras, reais...), que terão grupos subalternos, em não raras vezes conquistados pela força militar, encarregados da sobrevivência própria e dos “eminentes”. O avanço da agricultura permite a produção de excedentes econômicos permanentes, uma massa de trabalhadores subalternos produzindo e a dominação militar assistindo, no interior e entre os grupos, conflitos que deveriam ser neutralizados. A fim de conter ou mesmo neutralizar as forças desagregadoras que colocam em risco o modo de organização e dominação social, são definidas forças neutralizadoras, dentre as quais consta o direito. Entretanto, as formas de controle impostas não se originam somente pela violência física, mas pela aceitação da dominação por conta da supremacia cultural, pelo estágio organizativo e tecnológico materialmente mais avançado dos grupos dominantes. Assim, vão se institucionalizando os modos de poder, dando origem às distintas formas de ordem política e jurídica das antigas sociedades. O poder político e jurídico nas primeiras civilizações vai assumindo as seguintes funções: • Garantir a submissão e trabalho compulsório dos grupos subalternos. • Difundir a ideologia da aceitação obtendo consenso e interiorização das relações de poder. • A manutenção do status quo dos grupos privilegiados. A ideologia de aceitação é fundamental para reduzir, ou mesmo invisibilizar, a violência coercitiva. Nesta etapa, as cosmogonias religiosas, os arquétipos, foram os meios mais eficientes para os grupos religiosos desempenharem a função neutralizadora. Seguramente, por esta razão o poder político e jurídico assume uma natureza sagrada, mediadora entre as divindades e os humanos. Na clássica obra “A Cidade Antiga”, Fustel de Coulanges demonstra que a origem do direito antigo está relacionada a rituais, crenças religiosas e tradições que se impunham acima da vontade dos homens, e os deuses estavam presentes na vida diária comandando a cidade. Diz Fustel: TÓPICO 2 | UBI SOCIETAS, IBI IUS? 15 A religião, que exercia tão grande império sobre a vida interior da cidade, intervinha com igual autoridade em todas as relações que as cidades tinham entre si. É o que se pode ver observando como os homens daqueles tempos declaravam guerra, faziam as pazes e celebravam alianças. Duas cidades eram duas associações religiosas que não tinham os mesmos deuses. Quando estavam em guerra, não eram apenas os homens que combatiam; os deuses também tomavam parte na luta. E não se julgue que isso seja mera ficção poética. Houve entre os antigos uma crença muito arraigada e viva, em virtude da qual cada exército carregava consigo seus deuses. Estavam convencidos de que eles combatiam com os soldados, que os defendiam, e eram por eles protegidos (COULANGES, 2004, p. 181-182). NOTA Cosmogonia é especulação, idealização, sobre a origem do mundo constituída por narrativas mitológicas que se aproximam de religião. Os mitos, em geral, atribuem a divindades virtudes e poderes indiscutíveis. Mitos – da palavra grega mytus – são narrativas de múltiplas versões opostas ao real, mas mantidos vivos e perpetuados pelo grupo social. DICAS Obra “A Cidade Antiga”, de Fustel de Coulanges. Disponível em: <http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Fustel%20de%20Coulanges-1. pdf>. Acesso em: 20 nov. 2017. Portanto, não é difícil compreender porque nos primórdios da humanidade a natureza religiosa das formas de controle acaba por definir como intérpretes das leis os sacerdotes. As manifestações do direito e as formas de sanção são marcadas por fortes ritualismos e atos simbólicos que acabam confundindo justiça com magia, e desde aí as práticas vão avançando de forma dinâmica até a identificação de direito com lei. Em síntese, dos costumes, do poder doméstico e da religião daqueles “primeiros tempos” foi se institucionalizando a sucessão hereditária das autoridades reais e fortalecendo o poder das cidades sobre as aldeias. UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO 16 O autor Gilissen (2001) indica que as principais características do direito dos povos sem escrita podem ser: • A marca do direito dos povos antigos é a diversidade, uma vez que cada comunidade possuía seus costumes próprios e o isolamento. • A transmissão das regras de convivência pela tradição oral. • A forte relação de justiça com religiosidade. • Por não ser escrito, o direito antigo é bastante limitado quanto à abstração e generalidade, sendo, em geral, reproduções de casos concretos. • Identificação de direito com moral e religião. • As fontes do direito relacionadas a costumes, práticas ancestrais, preceitos verbais etc. 17 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • O direito é um fenômeno cultural que surge na medida em que as relações humanas tornam-se mais complexas. • Nos primórdios da civilização não há separação entre direito, religião e moral, uma vez que há uma mesma fonte de produção das normas de regulação social: o sobrenatural. • Com diversidade é possível identificar elementos comuns entre as distintas formas de direito nos povos antigos. 18 Considere a figura abaixo: AUTOATIVIDADE FONTE: Disponível em: <http://cultura.culturamix.com/curiosidades/ as-primeiras-sociedades>. Acesso em: 20 nov. 2017. Com base na representação acima, quais os elementos que você pode considerar relacionados ao surgimento do direito e por quê? 19 TÓPICO 3 O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUSE EGITO) UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A passagem das formas arcaicas de sociedade para as primeiras grandes civilizações está relacionada como o surgimento das cidades, a invenção e domínio da escrita, o advento do comércio e uso de moeda. Os documentos escritos mais antigos começam a aparecer em torno de 3000 a.C. no Oriente Próximo, na Mesopotâmia e no Egito. Portanto, pouco a pouco a transmissão oral, que acabou por preservar a memória cultural e identidade dos povos antigos, adquire forma através da escrita. Um dos documentos jurídicos mais antigos escritos da humanidade é o Código de Ur-Nammu, criado por um rei sumério de mesmo nome, escrito em torno de 2050 a.C., “ano em que Ur-Nammu fez justiça na terra”, que incluía regras sobre impostos, procedimentos de tribunais e leis cerimoniais. Leis que se aplicavam somente a mulheres escravas e castigos cruéis, como ter o insolente a boca lavada com sal, aplicação de multas pecuniárias, embora limitadas e atualmente absurdas, foram importantes avanços para o estabelecimento de limites ao poder real. FIGURA 5 – FRAGMENTO DO CÓDIGO DE UR-NAMMU FONTE: Disponível em: <https://hypescience.com/10-documentos-mais-antigos- do-seu-tipo/>. Acesso em: 20 nov. 2017. 20 UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO Observe bem o tipo de escrita econtrada no código de Ur-Nammu. Trata- se do que se chama escrita cuneiforme, em forma de cunha, criada pelos sumérios por volta do ano 3500 a.C. Juntamente com a escrita egípcia, os hieróglifos formam as mais antigas inscrições escritas em tabuletas de argila. NOTA Escrita cuneiforme é o nome dado a certos tipos de escritas feitas com auxílio de cunhas. Inicialmente, eram marcas bastante simples, posteriormente se tornando mais abstratas e mais sofisticadas, graças ao trabalho dos antigos escribas. Ajustando a posição relativa da tabuleta ao estilete, o escriba poderia usar uma única ferramenta para fazer uma grande variedade de signos. FIGURA 6 – ESCRITA CUNEIFORME FONTE: Disponível em: <http://universodahistoria.blogspot.com. br/2010/07/escrita-cuneiforme.html>. Acesso em: 20 nov. 2017. Dos povos do Oriente Próximo destacam-se: • Egito: embora não tenham transmitido propriamente códigos, os egípcios legaram fontes indiretas nos textos sagrados e narrativas literárias e, ainda, foi a primeira civilização a transmitir um sistema de normas individualistas. • Mesopotâmia: a região compreendida entre os rios Tigre e Eufrates foi ocupada sucessivamente por distintos povos, como os sumérios, acadianos, hititas e assírios, que redigiram “códigos” com regras de direito bastante sofisticadas e com algum nível de abstração. • Hebreus: povo antigo que legou nos Livros Sagrados preceitos jurídicos, posteriormente perpetuados pela Bíblia cristã. Brevemente, vamos a seguir destacar alguns aspectos dessas extraordinárias culturas antigas. TÓPICO 3 | O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO) 21 2 O DIREITO DIVINO DOS EGÍPCIOS A civilização egípcia foi uma das mais influentes na antiguidade. Ao longo do Vale do Rio Nilo, considerado por Heródoto (484 a.C.- 425 a.C.), o “pai da história”, como “dádiva dos deuses”, o Egito se edificou como extraordinário reino organizado em pequenas províncias – nomos – e governado pelo faraó, um deus vivo. Além de desenvolverem técnicas agrícolas eficazes, eram excelentes matemáticos, experientes na área da medicina, na astronomia e, sobretudo, legaram para a posteridade preciosas obras arquitetônicas e de engenharia. Entretanto, o fato é que, apesar de toda essa grandiosidade e extraordinário legado no campo do direito, os egípcios foram mais tímidos quando consideramos seus “vizinhos” do Oriente Próximo, uma vez que o que se espera é que a condição de domínio cultural e político fosse acompanhada de sofisticação jurídica. Os poucos documentos propriamente jurídicos que restam, além da péssima conservação ao longo do tempo, dificultam a reconstrução e sistematização do direito egípcio antigo. Entretanto, resumidamente pode-se afirmar que a fonte principal do direito era a vontade do faraó, que contava com um grupo de “conselheiros” presidido pelo vizir, espécie de chanceler, que administravam um vasto e próspero império. Da “boca” do faraó era pronunciada o Maat (direito), símbolo da justiça. Ao que parece, os egípcios acreditavam em uma espécie de lei ou ordem universal eterna basilar do próprio poder, de natureza divina a qual o faraó tinha o dever de velar. Segundo o historiador de direito Jonh Gilissen (1995, p. 53): Maat é o objetivo a prosseguir pelos reis, ao sabor das circunstâncias. Tem por essência ser o equilíbrio, o ideal, a esse respeito, é por exemplo fazer que as duas partes saiam do tribunal satisfeitas. Como é neste preceito que reside a verdadeira justiça, Maat pode ser traduzido por Verdade e Ordem, como Justiça propriamente dita. FIGURA 7 – DEUSA MAAT FONTE: Disponível em: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/maat-deusa- metis-dos-egipcios-por-artur.html>. Acesso em: 12 nov. 2017. 22 UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO A Figura 7 é uma representação da deusa Maat. Observe que está com as asas abertas, pronta para voar, como a alma dos mortos e acompanhar a barca solar de seu irmão Rá. Esposa de Tot, possui na cabeça a pena da verdade, que pesava sobre todos no momento do julgamento do morto quando ela colocava sua pluma sobre um dos pratos da balança e no outro oposto o coração do falecido. Se os pratos ficassem em equilíbrio, a alma seguia sua viagem. Se o coração fosse mais pesado, era devolvido para Ammut (deusa do inferno, criatura parte hipopótamo, parte leão e parte crocodilo) para ser devorado. NOTA Maat – termo de origem copta, que é um sistema de escrita originado no século IV a.C. no Egito – que expressa uma espécie de idealização filosófica de justiça relacionada com verdade e ordem, que deveria orientar as decisões dos governantes. FIGURA 8 – A PENA DE MAAT É O CONTRAPESO PARA O CORAÇÃO DO MORTO FONTE: Disponível em: <http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/08/ maat-deusa-metis-dos-egipcios-por-artur.htm>. Acesso em: 12 nov. 2017. Há uma bela estória preservada por antigos papiros que serve como fonte de compreensão para a prática da justiça egípcia. Trata-se do “Conto do Camponês Eloquente”, datada de 2070 a.C., que mostra como as palavras sábias e justas convencem e encantam e que a indignação com a injustiça e com a maldade humana é própria da condição do homem ao longo da história. TÓPICO 3 | O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO) 23 IMPORTANT E “Conto do Camponês Eloquente” trata-se de um antigo conto que pode ser sintetizado da seguinte maneira: O camponês andava pelo Egito, com seu jegue, vivendo de pequenos serviços que prestava nas fazendas, mas ao passar por uma certa propriedade, foi surpreendido pelo administrador local que, por maldade, queria tomar o animal do pobre homem. Para lograr êxito, o perverso homem jogou um longo tecido no chão, forçando o camponês a desviar o caminho e passar pela plantação, destruindo parte do que pertencia ao dono da fazenda. O administrador puniu o camponês, retendo seu animal e os poucos bens que o pobre possuía e o agrediu, certo de que sairia impune da injustiça que cometera. Inconformado, o camponês foi até a vila, onde vivia o proprietário da área; foi recebido e fez sua queixa. O proprietário encantou-se com os argumentos do camponês. Pelo prazer de ouvir tão bom orador, adiava a solução do caso para poder ouvir os belos e bons argumentos. Até que, por fim, o camponês recorreu ao faraó, que também encantado, ordenou que um escriba copiasse os argumentos do camponês bem-falante. O caso permanecia aberto. Irritado, o camponês deixou a cidade, desesperadocom a injustiça que sofria, e o dono das terras ordenou que se capturasse o pobre homem. Para espanto do pobre homem, o proprietário-juiz atendeu sua súplica, ordenando a devolução do seu animal e dos bens sequestrados pelo injusto administrador. Determinou também que este último entregasse ao camponês tudo o que possuía. O administrador ficou pobre, como o camponês que um dia humilhou. Em recompensa, o camponês passou a administrar a propriedade. Em geral, os historiadores costumam considerar que o povo egípcio era adepto de punições curiosas e cruéis, chegando a serem sádicas. A flagelação era adotada em muitos casos, assim como o uso de varas para arrancar confissões. Abandono à voracidade dos crocodilos, estrangulamento, decapitação, embalsamamento vivo e empalhamento eram formas de execuções. Muitos autores ressaltam importantes institutos jurídicos, como Família, considerada a célula social por excelência, era restrita ao pai, mãe e filhos menores que ganhavam emancipação após certa idade; o Testamento, que permitia total liberdade de deixar a salvo a reserva hereditária dos filhos. Os bens móveis e imóveis eram passíveis de alienação, havendo comum prática de comércio, evidenciando atividade contratual frequente. Em síntese, a sociedade egípcia dominada pelas castas sacerdotais foi marcada por toda uma cultura desenvolvida a partir da profunda religiosidade dominada por um poder teocrático cuja obrigação era preservar o princípio de Maat. Suas crenças e cultos serviam de base para toda organização política e jurídica, bem como na literatura, arte, medicina e astronomia. 24 UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO FIGURA 9 – GRAVURA NA PAREDE DO TEMPLO: OFERENDA A MAAT FONTE: Disponível em: <https://www.projuris.com.br/como-era-o-direito-no- egito-antigo>. Acesso em: 20 nov. 2017. Nas paredes dos templos se poderia ver o faraó fazendo suas oferendas a Maat e aceitando suas dádivas. 3 O DIREITO HEBRAICO: O SAGRADO ALICERCE DE UMA NAÇÃO Chama-se direito hebraico (Mischpat Ibri) ao conjunto de regras dos antigos israelitas, povo de origem semita, marcado por sua natureza e origem divina. Desde o monoteísmo é uma lógica de direito que tem como núcleo a Torah (Pentateuco), composta por cinco livros sagrados: Gênesis (BereshitI), Êxodo (Shemot), Levítico (Va-yikra), Números (Ba-midbar) e Deuteronômio (Debarin). São no total 613 leis que compõem a Torah, sendo 365 preceitos negativos e 248 positivos. Segundo a tradição, Moisés é a figura-símbolo da nação israelita, escolhido por Deus para receber a revelação do Decálogo – dez mandamentos –, que acabou se tornando o grande princípio ético, jurídico e religioso desse povo e assumido pelo cristianismo. TÓPICO 3 | O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO) 25 FIGURA 10 – MOISÉS COM AS LEIS – QUADRO DE REMBRANT (MUSEU DE BERLIM) FONTE: Disponível em: <https://institutopoimenica.com/2012/09/17/ moiss-e-as-tbuas-da-lei-rembrandt/>. Acesso em: 12 nov. 2017. Segundo as escrituras sagradas, todo fundamento de justiça é divino e somente em Deus ela é perfeita e absoluta. Tendo como referência principal o amor ao próximo e a caridade, o justo é aquele que dá o melhor de si para agir segundo as leis de Deus, ajudando no progresso da humanidade sem medir esforços para ajudar ao próximo. As leis hebraicas, assim como outros povos da antiguidade, de caráter civilista, diziam respeito a negócios entre particulares, ao uso do penhor como garantia de débito, não permitindo a exploração de seu próximo, razão pela qual alguns bens imprescindíveis para a sobrevivência eram impenhoráveis, não podendo ser cobrada dívida no ambiente doméstico para não humilhar a família. “Se emprestares alguma coisa a teu próximo, não invadirás a casa para te garantires com algum penhor. Ficarás do lado de fora, e o homem a quem emprestaste, te trará fora o penhor” (Dt. 24:10-11). Na Torah estão os principais institutos jurídicos do povo hebreu, tais como: • Família: de estrutura patriarcal, o pátrio poder era vitalício. As filhas poderiam ser vendidas como escravas e havia a previsão de servidão por dívida. A esposa poderia ser comprada e paga com moedas ou serviços, podendo ser a mulher repudiada, o que não ocorria com os homens, cuja punição apenas existia em caso de adultério praticado com mulher casada. • Sucessão: as mulheres não tinham direito sucessório e apenas o primogênito tinha direito à herança. • Penal: o conceito de crime e castigo era de natureza religiosa, tendo como pena comum a morte por apedrejamento. São considerados crimes graves os delitos contra a divindade – como idolatria e 26 UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO blasfêmia –, contra seu semelhante – lesões corporais, homicídio etc. –, delitos contra a propriedade – roubo, falsificações, furto; os contra a honestidade – adultério, sedução etc. –, e contra a honra – falso testemunho e calúnia. • Penas: desde penas corporais, como pena de morte e flagelação, até a excomunhão, além do uso da famosa pena de talião: • Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25). Destaca-se que o direito talmúdico – doutrina, estudo e interpretação dos livros sagrados – ainda é pouco estudado em nosso meio acadêmico, o que, por sua complexidade, sem dúvida, constitui um imenso legado à modernidade, sobretudo pela sua inserção no cristianismo ocidental, como adiante será estudado. 4 O CÓDIGO DE HAMURABI: UMA PRECIOSA HERANÇA DA MESOPOTÂMIA A região da Mesopotâmia é a região do Oriente Próximo que legou importantes escritos com relatos dos povos que lá habitaram desde o IV milênio antes de nossa era. Os sumérios foram os primeiros habitantes a terem a preocupação de desenvolverem um sistema de escrita, e por esta razão é possível que eles tenham sido os criadores dos primeiros códigos. O Código de Ur-Nammu, datado de aproximadamente 2040, é importante documento histórico constituído de leis registradas em um maciço de pedra – estela, palavra de origem grega (stela), que significa “pedra erguida” –, em monolitos com esculturas e/ou textos em relevo. FIGURA 11 – A ESTELA DE UR-NAMMU FONTE: Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/4461379 06816601475/>. Acesso em: 12 nov. 2017. TÓPICO 3 | O DIREITO DOS POVOS DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MESOPOTÂMIA, HEBREUS E EGITO) 27 Outros códigos foram encontrados na região, tais como as Leis de Eshnunna, datado de cerca de 1939 a.C., encontrado no sítio arqueológico de Tell Harmal. Bem como o Código de Lipit-Ishtar em língua suméria, com traços de escrita acádia, escrito por volta do ano 1860 a.C. Contudo, estudiosos chamam a atenção para o fato de que esses códigos, chamados de pré-hamurábicos, não formam propriamente um código no sentido moderno do termo, uma vez que as leis das cidades não eram tratadas em tais documentos. Além de que, a preocupação em sistematizar e organizar as leis em códigos é um fenômeno próprio da modernidade, como adiante veremos. De todos os antigos códigos da Mesopotâmia, sem dúvida, o mais destacado é o Código de Hamurabi, encontrado em 1902 pelo arqueólogo francês Jacques de Morgan no atual Irã e, atualmente, encontra-se no Museu do Louvre. Escrito em letras cuneiformes em um monólito de pedra, é certo que se trata de um conjunto de leis promulgadas pelo rei Hamurabi (1726 a.C. – 1686 a.C.), que governou a Babilônia transformando-a em um grandioso império. No preâmbulo do Código, com 282 artigos, se lê o seguinte texto: Quando o alto Anu, Rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos céus, determinador dos destinos do mundo, entregou o governo de toda a humanidade a Marduc; quando foi pronunciado o alto nomeda Babilônia; quando ele a fez famosa no mundo e nela estabeleceu um duradouro reino cujos alicerces tinham a firmeza do céu e da terra, por esse tempo Anu e Bel me chamaram, a mim Hamurabi, o excelso príncipe, o adorador dos deuses, para implantar justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo. Hamurabi, governador escolhido por Bel, sou eu; eu o que trouxe a abundância à terra; o que fez obra completa para Nippur e Dirilu; o que deu vida à cidade de Uruk; supriu água com abundância aos seus habitantes; o que tornou bela a nossa cidade de Brasíppa; o que encelerou grãos para a poderosa Urash; o que ajudou o povo em tempo de necessidade; o que estabeleceu a segurança na Babilônia; o governador do povo, o vservo cujos feitos são agradáveis a Anuit. A breve leitura nos permite compreender quem foi Hamurabi e suas virtudes como “executor da justiça”, “escolhido pelos deuses”, de “sabedoria incomparável” e tantos outros atributos que tornavam seu Código uma autêntica obra-prima para toda posteridade. 28 UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO FIGURA 12 – CÓDIGO DE HAMURABI FONTE: Disponível em: <https://i.pinimg.com/564x/42/ a1/25/42a125cc95523e92bb0c0dbcd278dbb6.jpg>. Acesso em: 12 nov. 2017. Acima está o preâmbulo e a figura de Hamurabi diante do deus sumério Shamash recebendo o Código, representado por uma régua. A seguir estão dispostos os artigos que evidenciam institutos jurídicos, como contratos, vendas, arrendamentos, empréstimos a juros, adoção etc., sendo bastante conhecidas as penas punitivas aplicadas, que variavam de mutilações à morte na fogueira, por enforcamento e empalamento. De todos os artigos, o mais conhecido é o 196, que diz: “Se alguém vazou o olho de um homem livre, ser-lhe-á vazado o seu também”. Repete a famosa lei de Talião, que, como já vimos, era referência comum nos povos antigos para aplicação das penas. DICAS Sugerimos a você conhecer melhor todos artigos do Código de Hamurabi, no site: http://www.ebanataw.com.br/roberto/pericias/codigohamurabi.htm. Você irá se surpreender com a riqueza jurídica deste documento! Em síntese, estudando brevemente os povos antigos, não é difícil perceber que, em diferentes momentos da história e sob distintas formas, vamos sempre encontrar um conjunto de normas que espelham os valores, a cultura, as relações de poder e o modo de vida da sociedade, e a esse instrumento magnificamente construído vamos chamar de Direito e Justiça, e em seu nome continuamos a marcha da história e edificamos nossas civilizações. 29 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • Os povos da Mesopotâmia elaboraram os primeiros códigos da humanidade de que se tem notícia. • Os hebreus criaram seu direito com base em sua profunda fé e religiosidade e legaram, através do cristianismo, princípios jurídicos relevantes à sociedade contemporânea. • Os egípcios, embora sem a mesma concepção de direito que os demais povos antigos, possuíam regras de conduta relacionadas com a crença na vida pós-morte. 30 1 Com base no estudo realizado, estabeleça uma relação entre o direito dos povos da Mesopotâmia, Egito e hebreus, destacando, no mínimo, dois aspectos convergentes e divergentes. AUTOATIVIDADE 31 TÓPICO 4 O MUNDO GREGO ANTIGO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO No mundo grego antigo, encontramos a semente das primeiras reflexões e indagações de natureza filosófica, política e jurídica a partir da qual floresceu o pensamento ocidental. Por exemplo, no campo da política, a cidade de Atenas legou ao mundo a ideia de democracia. Grandes pensadores tornaram- se permanente fonte intelectual a todas as gerações que os seguiram. O modo de vida, a cultura helênica corporificada nas majestosas obras literárias e os princípios e valores éticos fazem do antigo mundo grego seguramente um dos berços da humanidade. O mundo grego antigo, universo helênico, não era uma unidade, mas sim um conjunto de pólis independentes. FIGURA 13 – GRÉCIA NO SÉCULO V a.C. FONTE: Disponível em: <http://www-storia.blogspot.com.br/2014/05/as-grandes- guerras-no-mundo-grego.html>. Acesso em: 12 nov. 2017. 32 UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO A concepção de vida cosmopolita grega, a vida na pólis, desenvolveu-se lentamente a partir de um processo de sedentarização com a desagregação dos primitivos clãs. A origem no Período Micênico (1500-1100 a.C.) confunde-se com lendas e mitos que coincidem com a Idade do Bronze. Ao que se sabe, os antigos habitantes da região foram os aqueus, cários, jônios e dórios, provavelmente originários da Anatólia, com vínculos de parentesco que se espalharam após guerras locais. A geografia da região, caracterizada por montanhas e terras de pouca fertilidade e proximidade com o mar, fez com que esse povo se expandisse. UNI A península da Anatólia, “terra do hitita”, também conhecida como Ásia Menor, é banhada pelo mar Negro ao norte, o Mediterrâneo a oeste, o mar de Mármara a noroeste. Pode-se sintetizar a evolução histórica grega da seguinte forma: QUADRO 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA GREGA Período pré-homérico (1900-1100 a.C.) Período inicial de desenvolvimento cretense e minoico. A sociedade grega como conhecemos ainda não havia surgido. Período homérico (1100-700 a.C.) Este período é descrito pelo poeta Homero, que narra em suas histórias “Ilíada” e “Odisseia” a etapa fundacional do povo grego, em que mito, deuses e semideuses conviviam entre os homens. Período de obscuridade (1150- 800 a.C.) Etapa sem a utilização da escrita, o que dificulta sua descrição histórica. Período arcaico (800-500 a.C.) Consolida-se o conceito político de pólis, ao mesmo tempo em que é criado o alfabeto fonético e há o desenvolvimento urbano e econômico. Período clássico (500-338 a.C.) Auge do Império Grego, destacando as cidades-estados de Esparta e Atenas. Etapa marcada por dezenas de guerras internas (Guerra do Peloponeso) e externas (guerras médicas). Período helenístico (338-146 a.C.) Período marcado pela grande expansão macedônica, fazendo fundir-se a cultura grega com outras culturas orientais. FONTE: A autora Nas distintas pólis, mesmo nas grandes Atenas e Esparta, havia especificidades quanto aos modelos políticos que vigoraram em inúmeras ocasiões, são eles: • Tirania: Diferente do que entendemos hoje, a tirania caracterizava-se pela tomada do poder por um indivíduo nobre que elaborava leis e projetos políticos, alguns para diminuir as desigualdades sociais, como divisão igualitária da terra e perdão de dívidas. • Democracia: Grande conceito político legado ao mundo ocidental que se exercia através da eleição de seus membros sorteados ou escolhidos entre os cidadãos. TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO 33 • Aristocracia ou oligarquia: Nesse modelo, o cargo de magistrado era hereditário e predominava a decisão dos conselhos. Ao longo da história grega floresceram como principais cidades: • Atenas: Principal cidade com forte desenvolvimento econômico. Berço da democracia e da filosofia, foi fundada pelo Jônios, liderou a liga das cidades democráticas (liga de Delos). • Esparta: Sua grande característica diz respeito à sua educação. Os meninos já eram treinados e educados com um único propósito: servir Esparta. Quando a criança completava sete anos de idade, a responsabilidade de orientá-lo não cabia mais aos seus pais e sim ao Estado espartano. FIGURA 14 – MENINO TRANSFORMADO EM SOLDADO FONTE: Disponível em: <http://kid-bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes- que-mostram-o-quao-dificil-era.html>. Acesso em: 12 nov. 2017. DICAS Neste site você encontra interessantes informações sobre o modo de vida espartano e quão difícil era viver naquela cidade enaquela época! Disponível em: <http://kid- bentinho.blogspot.com.br/2013/12/9-razoes-que-mostram-o-quao-dificil-era.html>. Acesso em: 20 nov. 2017. Em particular, os atenienses consideravam a vida pública, a vida na pólis, a forma mais perfeita de convivência humana que deveria ser aprimorada pelos homens. No período áureo da democracia (entre os anos 580 a 338 a.C.), os cidadãos, homens livres e iguais, deliberavam sobre seus destinos políticos. A concepção de cidadania grega é muito distinta da atual. Apenas eram cidadãos os nascidos em Atenas, homens e maiores de 20 anos, ficando excluídos os estrangeiros (metecos), as mulheres e a grande massa de escravos. Para os atenienses, o homem que não era político ou não se interessava pela política era um inútil. 34 UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO Reunidos na Ágora, espécie de praça pública, deliberavam com entusiasmo sobre as grandes questões da pólis, desempenhando o mesmo papel que hoje é reservado aos Parlamentos de Estado. Esse era o sentido de democracia: o cidadão decidindo diretamente sobre seu destino. Porém, se compararmos aos dias atuais, o procedimento não era democrático, uma vez que poucos participavam e decidiam. Segundo os historiadores, Atenas, por volta do ano 480 a.C., contava com 30.000 cidadãos (homens livres e adultos), 90.000 mulheres e crianças, e mais a grande massa de escravos e estrangeiros, somando um total de 150.000 habitantes. No auge dessa civilização, em 430 a.C., Atenas chegou a ter 250.000 habitantes, sendo 40.000 cidadãos, 120.000 mulheres e crianças, 20.000 estrangeiros e 60.000 escravos. FIGURA 15 – ÁGORA – SÍMBOLO DA DEMOCRACIA FONTE: Disponível em: <http://obviousmag.org/filosofia_tecnologia_arte_e_pensamento/ autor/>. Acesso em: 8 jan. 2018. Em Atenas, pelas constantes guerras e condições de saúde da época o índice de mortalidade era muito alto e, consequentemente, a longevidade era baixa. A cada 100 adultos com 20 anos, 70 viviam até 30, 25 até os 60 e somente 7 vivam até os 80 anos. A mortalidade era maior entre as mulheres porque a gestação e parto eram de alto risco. Os homens casavam-se, em geral, após o serviço militar, após os 30/40 anos e as mulheres perto dos 20. Os escravos trabalhavam ao lado de seus senhores na agricultura, no serviço doméstico e públicos, como burocratas, recebendo tratamento quase familiar, pouco se distinguindo dos homens livres, seja pela vestimenta, seja pela cultura ou modos. Os escravos eram prisioneiros de guerra e de pirataria, vendidos por mercadores estrangeiros, possivelmente capturados nas guerras. O que chama a atenção de muitos historiadores é que se tem poucas notícias de rebeliões de escravos, diferente de Roma, como veremos a seguir. TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO 35 Nas relações familiares se conhecia o divórcio recíproco, com iguais direitos para homens e mulheres. Praticavam de maneira legal o abandono de crianças. Diferenciavam-se na maneira de se vestir, tornando visível a diferença entre pobres e ricos, uma vez que as roupas tendiam a ser semelhantes para as mesmas classes sociais. Talvez por essa razão se considerava crime o furto de roupas no ginásio de esporte. A religiosidade grega era constituída por festivais, rituais, divertimentos, sacrifícios, oráculos etc. Era um tipo de religiosidade pouco dogmática e pouco doutrinária. Nos diz Finley (1998, p. 10) que: O que falta – exceto entre raros pensadores isolados, sem influência sobre o povo, como por exemplo, Platão e Epicuro – era um conjunto de doutrinas sistematicamente formulado, um dogma ou um credo. Assim, podia também ocorrer blasfêmia ou sacrilégio – mau procedimento para com os deuses, o que lhes provocaria a ira, se não fosse punido – porém nem ortodoxia nem heresia. Toda religiosidade grega era inerente ao politeísmo, que foi aumentando pelo acréscimo ao longo dos séculos de seres sobrenaturais – deuses, semideuses, espíritos, demônios, heróis etc. – com “personalidades” peculiares. Não era possível conhecer a todos e muito menos descrevê-los. Somente na Teogonia de Hesíodo constam 350 nomes. NOTA “Teogonia” é um termo que vem do grego “teo” (deus) e “gonia” (nascimento). Poema épico escrito provavelmente no século XIII a.C., possui 1.022 versos, estabelece uma ordem cronológica e hierárquica entre os deuses e demais entes mitológicos que faziam parte do imaginário grego da época. Trata-se de uma obra grandiosa, comparada às grandes narrativas de Homero. FIGURA 16 – TEOGONIA FONTE: Disponível em: <https://www.resumoescolar.com.br/historia/teogonia- de-hesiodo/>. Acesso em: 15 nov. 2017. 36 UNIDADE 1 | HISTÓRIA E DIREITO Cada comunidade cultuava suas divindades ou deuses protetores, para os quais havia cultos cívicos e cada família reconhecia a deusa Héstia, protetora do lar. Obedeciam aos oráculos e participavam das festividades promovidas pelo Estado ao ar livre. Faziam altares e muitos sacrifícios e nada se prendia a uma autoridade central. Não havia “igrejas”. Portanto, não havia seres humanos com missão divina. Nos diz Finley (1998, p. 13) que “a palavra grega hiereus (sacerdote) normalmente se refere a um celebrante leigo encarregado da administração do culto público”. Em Atenas, o mais importante celebrante era um Arconte, que recebia o nome de baliseus. Regras e procedimentos lhe eram impostos e ocupava o cargo por um curto período de tempo. NOTA “Arconte” eram os antigos magistrados, cargo reservado somente aos cidadãos e filhos da pólis. Politicamente, inexistia uma autoridade grega central. As pólis surgiram no período helênico, que foi a fase áurea. Antes disso, o mundo era constituído por pequenas comunidades autônomas que se autodenominavam poleis. Ocasionalmente, faziam alianças entre si para guerrearem entre si ou comercializarem, mas nunca a ponto de impor seus costumes ou cultura. Portanto, não havia uma uniformidade ou unidade entre os gregos antigos. Entendem muitos historiadores que esta autonomia e ausência de autoridade central contribuía para a preservação do modo de pensar e ser do povo grego, porque não havia contradição entre o “império” e o “súdito”, o que não despertaria sentimento ou necessidade de resistência. Porém, foi a política – vida na pólis – que permitiu florescer a civilização grega a partir do século VIII a.C. Após o longo período chamado de homérico, porque nos é permitido conhecer através das narrativas épicas de Ilíada e Odisseia, a realeza entra em crise, cedendo espaço à aristocracia, que se apropria progressivamente das prerrogativas de poder. Nesta fase, o poder é repartido entre as elites, que o desmembram em três funções: militar – exercida pelo Polemarco; administrativa – exercida pelo Arconte e religiosa – exercida pelo Arconte Baliseus. Neste primeiro momento, o poder começa a sair das mãos da aristocracia (esfera privada) e vai sendo transferido para a ordem pública. Assim, o poder não é mais exercido por uma pessoa. O poder – arché – passa a ser uma função cujo exercício é escolhido por tempo determinado e começa a ser apropriado pelos que possuíam direito de cidadania. Ao longo da história de Atenas, principalmente entre os séculos VIII e IV a.C., há uma crescente expansão das prerrogativas políticas para os homens livres, que vai edificar o grande legado TÓPICO 4 | O MUNDO GREGO ANTIGO 37 daquela civilização: a democracia, chamada como isonomia – igualdade perante a lei. Esse regime tornou-se complexo, caracterizado pela rotatividade de controle e exercício de poder, assegurando a maior participação possível. Esse regime teve como base as reformas políticas promovidas por Clístenes (509-508 a.C.), que democratizou os mecanismos de participação, csegundo os quais cada cidadão, em algum momento de sua vida, seria governante. Dessa maneira, rompiam-se
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