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Carlos Rodrigues Brandão Francis Silva de Almeida Iolanda Rodrigues Nunes Sueli Teresinha de Abreu Bernardes Fundamentos da Educação Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube F962 Fundamentos da educação / Francis Silva de Almeida... [et al.]. – Uberaba : Universidade de Uberaba, 2019. 246 p. : il. Programa de Educação a Distância – Universidade de Uberaba. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7777-902-4 1. Educação. 2. Educação – Pensamento crítico. 3. Professores. I. Brandão, Carlos Rodrigues. II. Universidade de Uberaba. Programa de Educação a Distância. III. Título. CDD 370 © 2019 by Universidade de Uberaba Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Universidade de Uberaba. Universidade de Uberaba Reitor Marcelo Palmério Pró-Reitor de Educação a Distância Fernando César Marra e Silva Coordenação de Graduação a Distância Sílvia Denise dos Santos Bisinotto Editoração e Arte Produção de Materiais Didáticos-Uniube Editoração Patrícia Souza Ferreira Rosa Revisão textual Erlane Silva Nunes Diagramação Jessica de Paula Ilustrações Acervo Uniube Projeto da capa Agência Experimental Portfólio Edição Universidade de Uberaba Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário Carlos Rodrigues Brandão Pós-doutorado em Antropologia pela Universidade de Perúgia, Itália. Pós -doutorado em História Contemporânea pela Universidade de Santiago e Compostela (USC), Espanha. Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB). Especialização em Educação pelo Centro Regional de Educación Fundamental para la America Latina (CREFAL), México. Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade CAtólica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Francis Silva de Almeida Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Especialização em Docência nos Ensinos Médio, Técnico e Superior pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi/Instituto Passo 1). Graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás). Professor de Filosofia e Cultura Religiosa no Ensino Médio do Colégio Marista Diocesano de Uberaba. Professor do curso de Pedagogia a distância da Universidade de Uberaba (Uniube). Membro do grupo de estudos e pesquisa sobre a Formação Ética do Professor (FEP), vinculado ao Programa de Pós-graduação, Mestrado em Educação, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Iolanda Rodrigues Nunes Mestrado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Mestrado em Ciências e Valores Humanos pela Universidade de Uberaba (Uniube). Especialização em metodologia do ensino da Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduação em Pedagogia e Letras pela Sociedade de Ensino Superior de Nova Iguaçu. Atualmente é professora de Educação Infantil na Rede Pública Sobre os autores do Município do Rio de Janeiro. Possui ampla experiência na área da Educação com ênfase em Administração de Unidades Educativas. Sueli Terezinha de Abreu Bernardes Doutorado e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestrado em Ciências e Valores Humanos pela Universidade de Uberaba (Uniube). Especialização em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade de Uberaba (Uniube). Especialização em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialização em Psicologia pela Pontifícia Universidade de Minas Gerais (PUC-Minas). Graduação em Filosofia (licenciatura) pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras “Santo Tomás de Aquino” (Fista). Apresentação .............................................................................................................VII Capítulo 1 O humano no homem: pressupostos teóricos ..................... 1 1.1 O que é o ser humano? ........................................................................................... 4 1.2 O ser humano e os outros seres vivos .................................................................. 13 1.3 O desenvolvimento humano .................................................................................. 22 1.3.1 As teorias do desenvolvimento humano (inatismo, ambientalismo e interacionismo) ............................................................................................. 23 1.4 O ser humano: sujeito e objeto do conhecimento ................................................. 29 1.4.1 Do senso comum ao conhecimento científico ............................................. 31 1.5 O ser humano: um ser histórico, político e social .................................................. 35 1.6 Considerações finais.............................................................................................. 40 Capítulo 2 O professor na transição de paradigmas educacionais .... 45 2.1 Balizas e princípios do nosso estudo .................................................................... 47 2.2 Escutando a voz dos poetas.................................................................................. 55 2.3 Por que o foco no professor .................................................................................. 57 2.4 A educação sob a ótica tradicional e a progressista ............................................ 59 2.4.1 Tendências teóricas e concepções de educação ........................................ 68 2.4.2 Pedagogia liberal e pedagogia progressista ............................................... 71 2.5 As situações dialógicas, solidárias e interativas de educar .................................. 74 2.5.1 Cenas, cenários e gestos da educação no paradigma emergente ............. 78 2.6 A construção partilhada do conhecimento na experiência da pesquisa na docência ........................................................................................................... 89 2.6.1 Dimensões da pesquisa na docência .......................................................... 92 2.6.2 A relação professor- aluno em um trabalho de pesquisa na docência ....... 98 2.6.3 O conhecimento que se cria junto ............................................................. 103 2.7 Considerações finais............................................................................................ 109 Capítulo 3 A formação do pensamento crítico ................................... 115 3.1 Filosofia e Educação: definindo conceitos ......................................................... 117 3.2 O problema filosófico e o problema pedagógico ................................................ 126 Sumário 3.2.1 A Filosofia como elemento do processo de ensino-aprendizagem ......... 129 3.3 Escola: experiência e memória ......................................................................... 134 3.3.1 O papel da escola no contexto político-social brasileiro .......................... 139 3.4 Considerações finais .......................................................................................... 147 Capítulo 4 Redes e teias do saber: cultura, educação e sociedade ......................................................................151 4.1 Cultura popular, arte e movimentos sociais ........................................................ 153 4.2 Educaçãopopular ................................................................................................ 166 4.3 Educação como cultura, educação e cultura ...................................................... 168 4.3.1 Aprendizes de feiticeiros ............................................................................ 168 4.3.2 Feiticeiros de aprendizes ........................................................................... 171 4.3.3 A pedagogia escolar ................................................................................... 174 4.4 Pessoa e cultura .................................................................................................. 178 4.5 Professor como recriador da cultura ................................................................... 188 4.5.1 Quem ensina? ............................................................................................ 190 4.5.2 Resumindo nosso diálogo .......................................................................... 193 4.5.3 Antes de nos despedirmos ......................................................................... 194 Capítulo 5 Ética e formação ética do professor ................................199 5.1 Ética e moral: demarcações conceituais ............................................................. 202 5.2 Ética, liberdade e consciência ............................................................................. 207 5.3 Ética e práxis educativa ....................................................................................... 217 5.4 Considerações finais............................................................................................ 229 A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. Hannah Arendt Prezado(a) aluno(a), seja bem-vindo(a) à disciplina Fundamentos da Educação. Com a leitura deste livro, iniciamos uma trajetória de buscas e construção de sentidos que nos permitirá compreender a Educação como um campo de estudos formado por intersecções. Os diferentes saberes que se atravessam na interface entre a Antropologia, a Filosofia e a Sociologia nos revelam a natureza dinâmica do fenômeno educativo e, por isso mesmo, sua compreensão como construção histórico-cultural projetada no interior das relações humanas. Aprender não é mais representar o mundo, como postulavam os gregos ou os modernos. Por isso, o caminho ao qual nos dedicaremos será mediado de questionamentos, tantos e tão emaranhados que, em algum momento dessas leituras, poder-se-ia dizer: há mais perguntas do que respostas. De fato, essa é a ideia que une os diferentes autores deste livro. Diferentes pessoas, com distintas formações acadêmicas e experiências de pensamento; diferentes modos de sentir, pensar e agir diante do mundo; singularidades. Ao lado deles, partilho o juízo de que todo processo de busca e construção passa, direta e necessariamente, pela capacidade de formular problemas e colocar questões antes de qualquer enunciado. Apresentação VIII UNIUBE O que é a educação? O que significa educar? Quais os sentidos e as dimensões da educação? De que modo a educação nos permite construir imagens do estar-no-mundo humano? Que imagem temos nós da educação? E a escola, que papel ela possui? Com estas primeiras questões, admitimos o ponto de partida que orientará as conversações que esta leitura nos propõe: a educação, fenômeno tipicamente humano, caracteriza-se pelo conjunto das ações e influências intencionais e mutuamente exercidas entre pessoas, cujo propósito concorre para a construção dos contextos sociais, econômicos, culturais e políticos de uma sociedade. Em última análise, a questão que se coloca diz respeito ao modo como a intrínseca relação entre o trabalho, a história e a cultura se desenvolve no interior do fenômeno educativo: isto porque, se, de um lado, encontram-se as políticas educacionais como instrumento de institucionalização desta relação, do outro, destaca-se a ideia de cultura como lugar, fonte de que se nutre o processo sócio-histórico de construção da sociedade. No primeiro capítulo, intitulado “O humano no homem: pressupostos teóricos”, o autor se propõe a refletir sobre o ser humano em suas diferentes dimensões, e o modo como ele se relaciona com os seus pares, com a sociedade e a natureza em busca de humanizar-se. Essa busca, tal como se compreende, caracteriza-se como itinerário de autoconhecimento e evidencia a relação dialética Eu-Outro como espaço privilegiado para a construção da consciência de ser e estar no mundo, do mundo como lugar de complexidade, das dinâmicas de interação cultural e de todo o estado de coisas que esboça o homem como ser inacabado, em vias de tornar-se sempre novo, múltiplo e diferente. Neste capítulo, o autor enfatiza ainda o estudo das principais diferenças entre o ser humano e os demais seres vivos, contemplando os aspectos e os fatores que intervêm no desenvolvimento humano, destacando, para tanto, as teorias do desenvolvimento humano e suas principais correntes: inatismo, ambientalismo e interacionismo. UNIUBE IX A par das questões que cercam a educação como campo de constantes mudanças, os autores do segundo capítulo, “O professor na transição de paradigmas educacionais”, discutem os conceitos de paradigma, paradigma tradicional e paradigma emergente. Nesse contexto, analisam de que modo e, em que medida, as diferentes tendências teóricas da educação têm sustentado a compreensão e orientação da prática educacional brasileira. Questionam, ainda, a forma da relação professor- aluno-conhecimento ante a pesquisa e a construção compartilhada dos saberes nos ambientes de aprendizagem, tendo em conta o reconhecimento dessas interações como abertura sensível, crítica e criativa capaz de refletir uma postura de admiração e busca constante. No terceiro capítulo, “A formação do pensamento crítico”, o autor indaga a relação entre filosofia e pedagogia no âmbito da educação escolar, e, a partir daí, os limites e as possibilidades dessa relação no processo de formação do pensamento crítico. O itinerário teórico proposto pelo autor coloca em questão não só o papel que a escola e o professor desempenham nesse processo, mas, também e, principalmente, o modo como a demanda por sentido se insere nesse curso formativo e assinala a extensão da vida ética e política na qual professor e aluno encontram- se inseridos. Assim orientada, a formação que inclui a consciência crítica é evidenciada como condição à promoção do protagonismo dos sujeitos que se relacionam no processo de construção de conhecimento, e se destaca como evidência de uma educação escolar capaz de formar sujeitos intelectualmente emancipados, politicamente engajados e socialmente solidários. Nos desdobramentos do quarto capítulo, denominado “Redes e teias do saber: cultura, educação e sociedade”, os autores nos chamam atenção para as experiências de subjetividade através das quais os homens se constituem sujeitos e elaboram suas visões de mundo. Do mesmo modo, destacam a relação entre a escola e suas margens, evidenciando como X UNIUBE os aspectos socioeconômicos, filosóficos e culturais interferem na relação que a escola mantém com a sociedade e no modo como a sociedade constrói e projeta suas visões de escola. Nos entremeios dessa relação, os autores destacam o papel desempenhado pelas políticas públicas e o modo como as diferentes concepções de educação e escola se arranjam como elementos do discurso pedagógico brasileiro. No quinto e último capítulo, “Ética e formação ética do professor”, o autor realiza as demarcações conceituais que conduzem à compreensão das dimensões da ética e da moral como campos epistemológicos distintos, para, a partir daí, colocar a questão da formação ética do professor e a importância de suaatuação como sujeito de uma práxis que se encontre vinculada ao fortalecimento das relações democráticas e dos direitos humanos. O capítulo encontra-se dividido em dois grandes arranjamentos teóricos: no primeiro, são realizadas incursões conceituais sobre ética, moral, liberdade e consciência, como fundamentos da dialética do Eu-Outro; no segundo, são tecidas discussões que perpassam a formação e a atuação docente, tendo em conta a regência da ação educativa como manifestação do ethos. No desdobramento das reflexões propostas pelo autor, o mundo é compreendido como o lugar da formação dos valores que orientam o agir ético. Esses valores são construídos como experiência que se entretece no interior das relações humanas: atravessamento das memórias e narrativas, ato intencional e complexo marcado por inúmeros desdobramentos e permeado de desejo e singularidade; algo que se passa com pessoas, entre as pessoas e, precisamente por isso, cria relações de aprendizagem. Por fim, sublinhamos as ideias de Hannah Arendt, destacadas na epígrafe desta apresentação, para corroborar a dimensão ética atinente à educação no tempo presente. Ética do cuidado: cuidar-de-si, cuidar-do- Outro; admitirmos a responsabilidade pela formação de sujeitos capazes de assumirem o mundo como lugar, casa-comum. Para tanto: reconhecer UNIUBE XI que os princípios de uma prática educativa criada na medida de um mundo duradouro, encontram-se, hoje, mediados por uma realidade de intensas transformações; compreender os novos paradigmas da educação, e reconhecer que o papel da educação escolar não pode se limitar à transmissão dos conhecimentos historicamente produzidos e acumulados; resistir à desconstrução da memória como processo de “desengajamento”, ao mesmo tempo, e com a mesma urgência com que devemos resistir às rígidas estruturas que tendem à ortodoxia do pensamento, do homem e da sociedade. Bons estudos! Francis Silva de Almeida Introdução O humano no homem: pressupostos teóricosCapítulo1 Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar o seu saber em torno do homem de modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de modo tão rápido e fácil. É também verdade, porém, que nenhuma época soube menos que a nossa que coisa seja o homem. Jamais o homem assumiu um aspecto tão problemático como em nossos dias. (Martin Heidegger) Propomos, neste capítulo, criar espaços que nos permitam pensar os conceitos de homem e humanidade como problemas que se constituem em entremeios: uma complexidade entretecida nos viéses teórico-conceituais da filosofia, da antropologia, da sociologia e da psicologia. Por esse motivo, compreendemos que seja necessário esclarecer dois importantes pontos: primeiro, por que situamos nosso objeto num entremeio, e, a partir disso, por que nos interessa circunstanciá-lo como um problema teórico- -conceitual que se constitui no atravessamento de diferentes campos do conhecimento? O desenho de uma intersecção entre a filosofia, antropologia, sociologgia e psicologia ilustra o que chamamos de entremeio. Trata-se, para falarmos com Deleuze e Guattari (1995), de um intermezzo que faz uso de diferentes saberes para se produzir. O 2 UNIUBE termo intermezzo diz respeito aos novos espaços de produção que se originam da conexão entre os pontos de um rizoma. Segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 37), “um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. [...] o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e... e... e...’” (grifo dos autores). O rizoma é o espaço da variação e dos deslocamentos cujo movimento desconstrói as estruturas estanques e hierarquizadas dos saberes suprimindo os aspectos do poder, da importância e das prioridades da circulação do conhecimento (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Nesse sentido, cumpre destacar: não temos como objetivo apresentar um panorama dos vários tipos de explicações e seus respectivos embasamentos teóricos sobre o homem e sua condição humana, mas, ao contrário, situar as bases de uma hermenêutica que nos permita enunciar múltiplas possibilidades de conexões, aproximações e percepções teórico-conceituais sobre o homem e os processos que lhe permitem humanizar-se. Dito de outra maneira, propomos, no atravessamento dos campos epismológicos da filosofia, da antropologia, da sociologia e da psicologia, considerar as tessituras históricas, sociais e culturais que fixam as formas de expressão por meio das quais o homem se torna humano. Tal como compreendemos, esse fundamento nos permitirá a análise teórica da natureza social do homem e do seu desenvolvimento sócio-histórico. Precisamente por isso, o modo como propomos pensar o humano no homem marca um processo atravessado de movimento, ressonâncias, tensões, potencialidades, desejos e sensações que operam “uma espécie de experimentação tateante [...] da embriaguez ou do excesso.” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 58). UNIUBE 3 Aproveitamos para esclarecer que, em algumas passagens deste capítulo, utilizamos trechos retirados de nossa dissertação de mestrado – Filosofia e fazer filosófico no Ensino Médio: ressonâncias e deslocamentos em Deleuze-Guatari – apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no ano de 2016. Ao final deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • descrever e discutir os diferentes aportes teóricos que conceituam homem, humanidade e cultura; • reconhecer os processos de produção e apropriação da cultura enquanto aspectos modeladores da condição humana; • compreender as teorias do desenvolvimento humano, suas relações com a aprendizagem e os fatores que intervêm nesse processo; • explorar as conceituações que conduzem à compreensão do homem como sujeito histórico, político e social. 1.1 O que é o ser humano? 1.2 O ser humano e os outros seres vivos 1.3 O desenvolvimento humano 1.3.1 As teorias do desenvolvimento humano (inatismo, ambientalismo e interacionismo) 1.4 O ser humano: sujeito e objeto do conhecimento 1.4.1 Do senso comum ao conhecimento científico 1.5 O ser humano: um ser histórico, político e social 1.6 Considerações finais Objetivos Esquema 4 UNIUBE O que é o ser humano?1.1 O que é ser humano? Como ocorre o processo de tornar-se humano? O que diferencia o ser humano dos demais seres vivos? Questões como essas nos inquietam, ainda hoje, tanto quanto inquietaram os filósofos da antiguidade clássica. Foi nesse período, aproximadamente entre os séculos V e IV a. C., que o esforço de teorização dessas questões tomou forma e modificou sensivelmente os modos de conceber e representar o homem e os seus sentidos de ser-no-mundo. Ora, se o pensamento filosófico pré-socrático destacava o kósmos (Universo) como problema a ser reconhecido, com Sócrates e os sofistas as indagações sobre o homem e sua natureza, bem como a natureza das virtudes morais, deram origem ao que hoje reconhecemos como antropologia filosófica. Chamamos de antropologia filosófica a disciplina particular que se desenvolve no interior da própria filosofia como busca pela compreensão do anthropós (homem) à luz da metafísica. Trata-se, portanto, da investigação da estrutura essencial do homem, que, nesse sentido, toma para si as características de uma antropologia da essência e não das características humanas. Por isso, inclusive, ela se distingue da antropologia mítica, poética, teológica, e científica natural ou evolucionista. SAIBA MAIS As interpretações da antropologia filosófica se constituem no campo da ontologia na medida em que coloca o “ser” no centro de suas investigações. Nesse sentido, o homem torna-se para si mesmo o tema de toda a especulação filosófica: interessa estudar o homem para compreender tudo o que a ele se relaciona: afinal, o que é ser humano? Ontologia Do grego onthos, que significa ente; e logoi, derivação da palavra logos, que significa fundamento, palavra,razão, discurso (portanto, da ordem do racional, do que pode ser dito e compreendido; diz respeito à palavra- pensamento que revela o conhecimento de alguma coisa.). Enquanto ramo da filosofia, a ontologia é o estudo metafísico que se ocupa da investigação do ser enquanto ser. Trata, portanto, da natureza, realidade e existência dos entes (LALANDE, 1999). UNIUBE 5 No poema a seguir, refletimos com Drummond a complexidade dessa questão. O homem, bicho da terra tão pequeno Chateia-se na terra Lugar de muita miséria e pouca diversão, Faz um foguete, uma cápsula, um módulo Toca para a lua Desce cauteloso na lua Pisa na lua Planta bandeirola na lua Experimenta a lua Coloniza a lua Civiliza a lua Humaniza a lua. Lua humanizada: tão igual à terra. O homem chateia-se na lua. Vamos para marte - ordena a suas máquinas. Elas obedecem, o homem desce em marte Pisa em marte Experimenta Coloniza Civiliza Humaniza marte com engenho e arte. Marte humanizado, que lugar quadrado. Vamos a outra parte? Claro - diz o engenho Sofisticado e dócil. Vamos a vênus. O homem põe o pé em vênus, Vê o visto - é isto? 6 UNIUBE Idem Idem Idem. O homem funde a cuca se não for a júpiter Proclamar justiça junto com injustiça Repetir a fossa Repetir o inquieto Repetitório. Outros planetas restam para outras colônias. O espaço todo vira terra-a-terra. O homem chega ao sol ou dá uma volta Só para tever? Não-vê que ele inventa Roupa insiderável de viver no sol. Põe o pé e: Mas que chato é o sol, falso touro Espanhol domado. Restam outros sistemas fora Do solar a col- Onizar. Ao acabarem todos Só resta ao homem (estará equipado?) A dificílima dangerosíssima viagem De si a si mesmo: Pôr o pé no chão Do seu coração Experimentar Colonizar Civilizar UNIUBE 7 Humanizar O homem Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas A perene, insuspeitada alegria De con-viver. (DRUMMOND, 2004, p. 718-19) Há, aqui, uma constatação indiscutível: o homem é uma realidade extremamente complexa, um emaranhado de problemas de toda ordem. Por isso, no intento de realizar conexões, aproximações e percepções teórico-conceituais sobre o homem e os processos que lhe permitem humanizar-se, buscamos, no problema antropológico, as bases que nos permitem discutir o problema da natureza humana. Para tanto, destacamos três importantes perspectivas: a cosmocêntrica, a teocêntrica e a antropocêntrica. Na perspectiva cosmocêntrica, o centro da observação é o kósmos (Universo). É a perspectiva da filosofia pré-socrática que coloca o homem no interior mundo. Logo, para conhecer a natureza humana é preciso conhecer o Universo. Por seu lado, a perspectiva teocêntrica toma o theos (Deus) como ponto central de sua observação. Trata- -se da perspectiva da filosofia cristã patrística e escolástica. Logo, para conhecer a natureza humana é preciso conhecer a Deus, e, conhecendo-o, considerar o quanto foi permitido ao homem conhecer sua humanidade. Já a perspectiva antropocêntrica toma como referência central o próprio homem, o anthropós. É a perspectiva da filosofia moderna que, no resgate do humanismo clássico, evidencia o homem como sujeito portador da dignidade de ser humano. A ênfase dada ao homem na perspectiva antropocêntrica marca o movimento de reafirmação da razão e da capacidade que o homem possui de conhecer e representar sua experiência de ser e estar no mundo humano. EXPLICANDO MELHOR 8 UNIUBE No entanto, há que considerar o seguinte: os diferentes métodos empregados pela antropologia elaboraram, ao longo da história, diferentes compreensões do homem e das condições de sua humanização. Para Mondin (1980), são quatro os principais tipos de classificação da antropologia e, consequentemente, das respostas que aí se produzem as questões que cercam ora a definição de uma natureza humana – como no caso das antropologias metafísicas e naturalistas –, ora a definição de uma condição humana – como no caso das antropologias historicistas e existencialistas. As antropologias metafísicas, que se valem do método metafísico, são aquelas que se situam no pensamento de Platão, Aristóteles, Plotino, Agostino, Tomás de Aquino, Descartes, Spinoza, Leibnitz etc. Nelas, a natureza do ser humano é marcada pelo dualismo corpo e alma, e a essência humana antecede sua existência material. Nessa perspectiva, o corpo representa para a alma um cárcere que só pode ser encerrado com a morte, haja vista que a vida humana, terrena e mundana, é apenas uma peregrinação para o estágio final, para o qual a alma se destina. Contudo, enquanto o homem se encontra vivo, ele representa a união indissolúvel de um corpo mortal com uma alma ideal e imortal. Trata-se de um dualismo psicofísico que inscreve o corpo humano como extensão do mundo sensível e a alma, como extensão do mundo ideal. As antropologias naturalistas, que se valem do método positivo- -científico, são aquelas que se situam no pensamento de Darwin, Comte, Spencer, Freud. Nelas, a natureza humana é marcada pela organicidade da matéria, bem como pelas relações que o homem mantém com meio natural. UNIUBE 9 Sublinha-se, então, a noção de hilemorfismo, segundo a qual todas as coisas são resultantes de dois princípios que, embora diferentes, são comunicantes e complementares: a matéria – princípio físico de que todas as coisas são constituídas –, e a forma – o princípio metafísico que determina que as coisas sejam aquilo que elas são. Por isso, o homem é ao mesmo tempo sôma e psyché, síntese perfeita entre corpo e alma. A busca pelo sentido do humano, evidenciada pelas antropologias metafísicas, e naturalistas têm em vista a definição de natureza humana, ou seja, daquilo que caracteriza e singulariza o ser humano desde o seu nascimento. Nessa perspectiva, o que o ser humano faz ao longo da vida é transformar em ato todas as potencialidades que lhes são inerentes. Essas potencialidades ilustram o que Mondin (1980) chama de dimensões da natureza humana. Para o autor, a construção dos sentidos de ser humano ocorre no atravessamento das diferentes potencialidades presentes no homem. É, pois, no entretecimento dos aspectos da razão, da linguagem, do jogo, da vontade, da técnica, do trabalho, da cultura, da religião e da sociabilidade que o humano presente no homem se destaca como realidade a ser (re)conhecida, como possibilidade hermenêutica da natureza humana em suas diferentes formas. As antropologias historicistas, que se valem do método histórico, são aquelas que se situam no pensamento de Vico, Marx, Groce, Gadamer. Nelas, a natureza humana se constitui no processo Sôma Palavra de origem grega que exprime a noção de corpo. Psyché Na mitologia grega, é uma divindade que representa a personificação da alma. Exprime, portanto, a noção das estruturas não corpóreas, ou seja, relativas à alma humana. Da palavra psyché tem origem a palavra psychologie – psicologia: ciência que, em termos gerais, se ocupa dos estados e das disposições psíquicas de um ser ou de uma classe de seres (LALANDE, 1999). 10 UNIUBE histórico no qual o homem se encontra inserido. O movimento da própria história e a ação do homem como seu principal agente são, com efeito, o meio pelo qual os processos de humanização surgem como síntese das experiências sociais e culturais que o homem vive. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a condição humana é modificada em cada época da história, ela é também constituída pelos aspectos particulares de cada cultura e de cada sociedade. Logo, se a condição humana se constitui no interior da própria história, é esse o movimento que lhe permite tomar consciência de sua própria historicidade (MONDIN, 1980). As antropologias existenciais, que se servem do método fenomenológico, são aquelas que identificam a maior parte das antropologias mais recentes. Entre elas destacam-se pensadores como Scheler, Heidegger, Sartre, Ricouer, Merleau-Ponty, Marcel. Nelas, as condiçõesde humanização do homem são discutidas do ponto de vista da existência, que, passa então a preceder a essência. Nessa perspectiva, o ser humano não tem uma essência ao nascer, mas vai construindo aquilo que é ao longo de sua vida, de sua existência. Ora, se não há nada de universal que caracterize e defina o ser humano, então não se trata mais de pensar a natureza humana, mas as condições reais de sua humanização. Atento a essas questões, Merleau-Ponty (2006) propõe a desconstrução do paradigma cartesiano do cogito que subjaz a existência à substância do pensamento e situa a compreensão da consciência no próprio corpo: corpo-sujeito. A ideia de corpo-sujeito revela uma realidade intencional do sujeito. Trata-se do contraponto da noção de corporeidade criada por Merleau-Ponty em oposição à ideia de corpo-objeto ou corpo- máquina evidenciada da tradição cartesiana. O corpo-sujeito é corpo- consciência que transborda as experiências expressivas do corpo na experiência vivida. UNIUBE 11 Na obra Fenomenologia da Percepção, o filósofo ressalta a ideia de que a consciência do corpo se constitui das percepções criadas a partir do conhecimento que ele mesmo produz, portanto, das representações de sua exterioridade. Por isso, segundo Merleau- -Ponty (2006), o conhecimento não pode ser reconhecido fora das experiências vivenciadas pelo corpo que se encontra, sempre, recortado pela historicidade. O corpo que conhece e que o faz nos atravessamentos da história é, portanto, um fenômeno situado, pois “tudo o que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada.” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3). Na ideia de condição humana não há uma noção determinada de ser humano, mas uma abertura de sua compreensão que está de acordo com a diversidade de suas ações. Por isso, no sentido de aprofundar um tanto mais a discussão sobre a condição humana, buscamos em Hannah Arendt (1906-1975) uma importante contribuição: o conceito de vida activa. Em A condição humana, Arendt (2008) designa três atividades humanas fundamentais: o labor, o trabalho e a ação. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano [...]. A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade que corresponde ao artificialismo da existência humana [...]. O trabalho produz um mundo artificial de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade. A ação, única condição que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, 12 UNIUBE ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. [...] A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. (ARENDT, 2008, p. 15, grifos nossos). As atividades descritas por Arendt correspondem às condições básicas de humanização do homem enquanto aspectos gerais e fundamentais de sua própria existência. Desse modo, enquanto o labor assegura não apenas a sobrevivência individual de cada ser humano, mas também a vida da própria espécie, o trabalho e seu produto exprimem a durabilidade da vida em seu caráter transitório; já a ação manifesta a condição que se empenha em fundar e preservar os corpos políticos. O labor (manutenção da vida), o trabalho (produção de algo novo) e a ação (atividade política) – como formas predominantes da vida como estado vivido – se inscrevem na ação do corpo como extensão da matéria do mundo. Trata-se, segundo a filósofa, “de atividades fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra.” (ARENDT, 2008, p. 15). PONTO-CHAVE Ainda a esse respeito, Arendt (2008) chama atenção para o fato de que o labor, o trabalho e a ação constituem-se como formas básicas da vida que foi dada ao homem. Há, portanto, algo mais que compreende a condição humana: tudo o que compõe o estado de coisas em que o homem se encontra inserido e com o qual ele mantém permanente contato torna-se condição de sua existência. Dito de outro modo: tudo o que homem produz, material ou simbolicamente, e que adentra o mundo humano de modo espontâneo ou por força de sua própria ação torna-se parte da condição humana. UNIUBE 13 Nesse sentido, a objetividade do mundo e a condição humana complementam-se uma a outra: “a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontado de artigos incoerentes, um não mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana.” (ARENDT, 2008, p. 17). O ser humano e os outros seres vivos1.2 O que distingue o homem dos demais seres vivos? A elaboração de uma resposta que comporte assinalar as principais diferenças entre o ser humano e os demais seres vivos encontra apoio em diferentes campos de conhecimento. Na Biologia, partimos da premissa de que pertencemos a uma espécie animal e que, tal como os demais seres vivos, somos portadores de uma estrutura biológica. Na Antrapologia, reconhecemos que o ser humano não se encerra em sua estrutura biológica; ele é também produto da cultura. Na Filosofia, destacamos as diferentes formas de representação da experiência de ser e estar no mundo como processo consciente. Na Sociologia, identificamos a complexidade das relações que ele perfaz com a natureza e a sociedade. Com a Biologia, aprendemos que, para se desenvolverem, os seres vivos apresentam habilidades que se manifestam de acordo com sua necessidade de adaptação ao ambiente. Por exemplo, os camaleões, que possuem admirável capacidade de alterar a coloração de sua pele. Essa mudança possui funções na sinalização social e em reações a temperatura e outras condições, bem como em camuflagem. Camaleões tendem a apresentar cores mais escuras quando irritados, ou na tentativa de assustar ou intimidar os outros, enquanto os machos mostram padrões multicoloridos mais leves quando cortejam as fêmeas. Temos clareza de que boa parte dos comportamentos dos animais resulta de uma reação instintiva, ou seja, do impulso natural e 14 UNIUBE interior que faz com que um animal execute, de modo não racional, atos adequados às necessidades de sobrevivência própria, da sua espécie ou da sua prole. É o que se nota, por exemplo, na atividade das abelhas nas colmeias. Entretanto, algumas espécies apresentam comportamentos mais flexíveis, como no caso dos animais domésticos. Nestes, os eventos de imprevisibilidade dos comportamentos impulsionam, inclusive, a crença de que estejam conscientes de sua reação. Nesse ponto, há que considerar o seguinte: embora alguns animais apresentem traços de inteligência, o uso da razão, enquanto faculdade que permite o encadeamento de raciocínios que conduzem uma determinada compreensão e a elaboração de juízos, diz respeito a uma característica exclusivamente humana. No campo da razão ocorrem as relações entre as exigências lógicas humanas e os dados provenientes do mundo dos fenômenos e da existência, conforme percebidos pelo homem. A esta razão humana, chamamos de racionalidade. Nesse sentido, é precisamente a racionalidade que distingue o homem dos demais seres vivos. Em A Evolução Cultural do Homem, Childe (1975) analisa as diferenças a respeito das formas de sobrevivência e adaptação entre o homem e o animal. Para o autor, enquanto os animais tornam sua sobrevivência mais eficiente de acordo com a adaptação de suas características biológicas ao ambiente em que estão inseridos, o homem, por meio da racionalidade, cria e compartilha técnicas que permitem a superaçãodas adversidades do ambiente. Essa distinção fica ainda mais clara quando recordamos o domímio do fogo pelo homem primitivo. Quando o homem obteve o controle do fogo, uma variedade de novas formas de sobrevivência em relação ao ambiente natural tornaram-se possíveis, como: afastar animais selvagens, cozinhar UNIUBE 15 alimentos, deslocar-se durante a noite. O controle do fogo permitiu ao homem entender melhor a natureza para controlá-la em seu favor. Notamos: O ser humano pode ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer criatura [...]. Mas fogo, roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios e armas de fogo não são parte do corpo do homem. Eles não são herdados no sentido biológico. O conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso legado social. Resulta de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da linguagem – fala e escrita. (CHILDE, 1975, p. 40). Ora, não há dúvidas que também o homem, embora em desvantagem física em relação à maior parte dos demais seres vivos, apresenta reflexos e instintos vinculados à estrutura biológica que caracteriza sua espécie. No entanto, essas características não lhe bastam, pois, diferente dos demais seres vivos, o homem não nasce pronto pelas “mãos da mãe natureza”. Ou seja, o ser humano não é apenas um ser biológico produzido pela natureza, mas, para além disso, um ser que modifica o estado da natureza, isto é, a condição natural das coisas definidas pela natureza. Esse processo de transformação da natureza pelo trabalho chamamos cultura, artifício por meio do qual o homem cria e representa simbolicamente sua existência, produzindo-se e representando-se por meio das relações que mantêm com os símbolos. Para White (apud LARAIA, 1986, p. 55), “todo comportamento humano se origina no uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou nossos ancestrais antropoides em homem e fê-los humanos. [...] O comportamento humano é comportamento simbólico”. Com efeito, a cultura é o que distingue e distancia os domínios do mundo humano (simbólico e representado) e do mundo animal (natural). 16 UNIUBE A primeira definição de cultura foi formulada do ponto de vista antropológico e pertence ao pesquisador inglês Edward Tylor (1832- 1917). Para ele, o termo cultura determina “[...] todo o complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (TYLOR apud LARAIA, 1986, p. 25). Desse modo, e considerando-se o amplo sentido etnográfico que aí se observa, o termo cultura designa um duplo e importante movimento de produção, apropriação e transformação da experiência humana: de um lado, refere- -se aos diferentes processos e tessituras que compreendem e articulam a criação e a transmissão de uma visão de mundo, de conhecimento, de experiência de vida, de emoções; de outro, diz respeito à forma orgânica e intencional com que o homem estrutura uma relação com a natureza, e, a partir daí, define as formas de socialização nas relações com os outros e com o pensamento simbólico. SAIBA MAIS Logo, a cultura é o meio pelo qual o homem significa a sua existência criando um complexo conjunto de símbolos que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, as leis, os costumes e hábitos adquiridos na vida em sociedade. Corroborando essa perspectiva, Cassier (1977, p. 51) assim se pronuncia: Razão é um termo muito pouco adequado para abranger as formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas essas formas são simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como um animal rationale [racional], deveríamos defini-lo como um animal symbolicum [simbólico]. Desse modo, podemos designar sua diferença específica, e podemos compreender o novo caminho aberto ao homem: o da civilização. A cultura trata-se, portanto, de um fenômeno tipicamente humano que entretece as relações do ponto de vista da criação e transmissão de conhecimento – seja como antítese da natureza, com a criação de UNIUBE 17 uma condição humana –, e, nesse caso, concerne à herança social da humanidade a transmissão de usos e costumes de uma geração para outra. Nesse sentido, o caráter de aprendizado da cultura se constitui epistemologicamente na oposição à ideia de transição inata. Para Laraia (1986), as diferenças que individualizam os seres humanos não podem ser explicadas somente a partir das limitações impostas pelas questões biológicas ou ambientais, pois, para além da herança genética que o homem carrega consigo, toma evidência o complexo sistema simbólico constituído a partir das experiências vividas, acumuladas e transmitidas de geração em geração por meio da educação. Ou seja: não basta ao ser humano deter notável inteligência se não lhe for permitido o alcance material que assegure o exercício de sua criatividade. PONTO-CHAVE A esse respeito, notamos: O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e invenções. (LARAIA, 1986, p. 45). Trata-se, portanto, de um processo extrabiológico que permite ao homem diferenciar-se dos demais animais. Este processo, afirma Laraia (1986), tem origem na evolução neurológica dos primatas, que permitiu, por meio da combinação de uma visão estereocópica e da manipulação dos objetos, a abertura de uma percepção dos objetos inacessível aos outros animais. O fato de o ser humano ter dois olhos permite-lhe, através da estereoscopia, ter a noção de profundidade espacial, da distância a que se encontram os objetos, das relações entre cor, forma, peso e resistência. Assim, “[...] poder pegar e examinar um objeto atribui a este um significado próprio” (LARAIA, 1986, p. 54). Nessa perspectiva, 18 UNIUBE o surgimento da cultura encontra-se vinculado ao desenvolvimento da capacidade da abstração, que, por seu lado, reflete o desenvolvimento da inteligência – consequência das estimulações sensíveis que tornaram o cérebro mais volumoso e complexo. Corroborando essa perspectiva, Leslie White (1900-1975) considera que a passagem do estado animal para o estado humano ocorreu quando o cérebro do homem foi capaz de gerar símbolos. Visto dessa forma: (i) mais do que uma herança genética, a cultura determina o comportamento do homem e justifica suas realizações; (ii) o homem age de acordo com os padrões culturais, sendo a cultura o meio pelo qual o homem se adapta aos diferentes ambientes ecológicos; (iii) a aquisição da cultura está relacionada aos processos de apendizagem (socialização), que, por seu lado, determina o comportamento e a capacidade artística e profissional do ser humano; (iv) a cultura é um processo acumulativo que resulta da tessitura das experiências vividas pelos seres humanos ao longo da história. Informando esses pressupostos, Bock (2001) abaliza a discussão sobre o papel da cultura na produção das condições que permitem ao homem humanizar-se, ressaltando, entre outros aspectos, que o aparelho biológico do homem não basta para lhe garantir a vida em sociedade; ele precisará adequar-se ao meio por um processo de humanização. Para a autora: [...] as modificações hereditárias não determinam o desenvolvimento sócio-histórico do homem e da humanidade: dão-lhe sustentação. As condições biológicas permitem ao homem apropriar-se da cultura e formar as capacidades e funções psíquicas. A única aptidão inata do homem é a aptidão para a formação de outras aptidões. (BOCK, 2001, p. 170). UNIUBE 19 É precisamente nesse movimento de interação que o homem se constitui como um ser biológico e social, com características herdades e adquiridas, com aspectos individuais e sociais, com elementosda natureza e da cultura. Assim, ao adquirir várias aptidões e apropriando- -se do conhecimento produzido em sociedade, o homem garante sua sobrevivência buscando o bem-estar individual e coletivo. A propósito de tudo o que já se discutiu, colocamos a questão: quais são os processos através dos quais o homem se apropria da cultura? O esboço de uma resposta, que nos atenda no objetivo de reconhecer os processos de produção e apropriação da cultura enquanto aspectos modeladores da condição humana, exige, em primeiro lugar, reforçar algumas definições: primeiro, que a cultura designa um sistema simbólico, intencionalmente criado pelo homem com o propósito de definir os padrões de comportamento socialmente transmitidos; depois, que a dinâmica cultural (ou seja, os processos de mudança que arranjam novos modos e padrões de estabelecimento e agrupamento social, de organização política, das crenças e práticas religiosas etc.) é, por si mesma, um processo de adaptação (o homem é um animal, e como todo animal deve manter uma relação de adaptação ao meio em que vive). Reconhecemos que esse processo de adaptação ao sistema simbólico, que define os padrões de comportamente socialmente transmitidos seja, em última análise, um processo de apropriação, ou como afirmam as teorias antropológicas, de endoculturação (LARAIA, 1986). Etimologicamente, o prefixo “endo” vem do grego “endus”, que significa “para dentro”. Trata-se, portanto, do movimento de apropriação por meio do qual o homem toma para si os valores e padrões culturais do meio em que ele vive. Desse modo, a endoculturação está relacionada ao processo por meio do qual os indivíduos aprendem o modo de vida da sociedade na qual nascem, adquirem e internalizam um sistema de valores, normas, símbolos, crenças e conhecimentos. 20 UNIUBE A endoculturação ilustra o modo pelo qual a cultura opera sobre o homem condicionando, além dos padrões de comportamento, sua visão de mundo, isto é, a forma como interpretamos o mundo em que vivemos. Conforme Laraia (1983, p. 67): “Ruth Benedict escreveu em seu livro O crisântemo e a espada que a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Homens de diferentes culturas usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas”. Ora, se a herança cultural construída ao longo das gerações é o que condiciona no ser humano os modos de sua compreensão da realidade, então a visão de mundo nada mais é que um conjunto de ações voltadas para a compreensão da dinâmica da relação do homem com o meio, com a determinação social e a evolução histórica dessa relação. Para Laraia (1986, p. 68): “O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado de uma determinada cultura.” Seguindo esse pressuposto, Moraes e Torre (2004, p. 22) informam que: Nossa maneira de ser, de sentir, pensar e agir, nossos valores, hábitos, atitudes e demais representações internas que permeiam as nossas relações com a realidade refletem a visão que temos do mundo, as representações interiores guardadas na memória que se explicitam através de conversações, negociações e diálogos que estabelecemos uns com os outros, com a natureza e com o sagrado. Em síntese: o ser humano é possuidor de uma natureza biológica, que, em contato com o meio social, possibilita-lhe aprender a agir, estabelecer relações com os outros, apropriar-se da cultura e incorporar os modos de ser de uma sociedade. Essas construções do ser, como humano, foram possíveis, ao longo do tempo, a partir do momento em que o ser humano despertou sua consciência de ser e estar no mundo. Como se nota, o que fundamentalmente distingue o ser humano dos demais seres UNIUBE 21 vivos é a cultura, e, com ela, a consciência que ele possui de sua própria condição. Segundo Freire (1967, p. 39): As relações que o homem trava com o mundo (pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam uma ordem tal de características que as distinguem totalmente dos puros contatos, típicos da outra esfera animal. Ora, se a cultura é o resultado de tudo o que homem produz por meio do trabalho para significar simbolicamente sua existência, então “não apenas o trabalho manual, mas o intelectual, o educacional, são igualmente geradores de cultura” (REZENDE, 1990, p. 63). Desse modo, a relação que a educação mantém com a cultura e a história constitui o território sobre o qual se desdobra a história do homem a partir dos significados que ele atribui à sua própria existência. “Educar-se é aprender a fazer a história, fazendo cultura. Isto é trabalho” (REZENDE, 1990, p. 63). Logo, a educação deve implicar, para o trabalho, o sentido mais profundo de produção da cultura pela transformação do homem e do mundo; para a cultura, o sentido da compreensão teórica e prática das relações humanas e do modo, como, a partir dessa trama, a existência é simbolicamente representada. Com efeito, é na educação e por meio dos processos educativos que reconhecemos o espaço de criação da consciência e da identidade de ser-no-mundo, “da compreensão do sentido do relacionamento dialético entre a estrutura do sujeito e a do mundo [...]. Somente esta compreensão permitirá o acesso dos sujeitos da educação à condição de sujeitos da cultura pela apropriação dos sentidos da existência” (REZENDE, 1990, p. 70). A educação está, portanto, num ponto de articulação entre o velho e o novo, entre o passado e o futuro, entre o homem e o mundo. 22 UNIUBE O desenvolvimento humano1.3 O desenvolvimento humano tem merecido a atenção de estudiosos de praticamente todas as épocas da humanidade. Para Bock (2001), o estudo do desenvolvimento humano se presta ao conhecimento das características comuns e díspares entre os indivíduos e tem como objetivo a observação e a interpretação dos comportamentos em relação aos diferentes espaços de apropriação da vida. Considerando que, em última análise, este processo faz referência ao conjunto das competências manifestadas em um determinado momento da vida do indivíduo e esse desenvolvimento se constitui sempre em um processo dinâmico, o desenvolvimento humano diz respeito tanto ao desenvolvimento mental quanto ao crescimento orgânico do indivíduo. E, para que a apropriação das características humanas aconteça, é preciso que ocorra atividade por parte do sujeito através de ações, operações motoras e mentais. No âmbito dessas discussões, ganha destaque o pressuposto de que o desenvolvimento humano é um processo contínuo marcado pela interação permanente do corpo com as dimensões psíquias e emociais (BOCK, 2001). Trata-se, por assim dizer, de uma compreensão teórica e metodológica complexa e que considera não só os estágios orgânicos, motores e cognitivos que afetam, circunstanciam e determinam o desenvolvimento humano, como também o papel que a cultura exerce na efetivação de atitudes, percepções e interações que permitem ampliar essa discussão, alcançando o espaço das relações afetivas, sexuais, morais, sociais, históricas e culturais. Essa perspectiva desperta atenção para uma visão dialógica, integrada, pluralística e complexa do desenvolvimento humano. UNIUBE 23 As teorias do desenvolvimento humano (inatismo, ambientalismo e interacionismo) 1.3.1 Para alguns teóricos, desenvolvimento e aprendizagem são processos idênticos que resultam da ação do meio sobre o indivíduo. Para outros, o desenvolvimento é resultante do amadurecimento progressivo de estruturas pré-formadas no indivíduo, enquanto a aprendizagem é um processo externo e independente do desenvolvimento. Existe ainda uma terceira via teórica que considera a aprendizagem e o desenvolvimento como dois processos complementares. De modo geral, aprender é um processo amplo e que diz respeito ao modo como o indivíduo se modifica em razão das experiências queele mantém com e no meio em que ele vive. Historicamente, a noção de aprendizagem é associada ao behaviorismo (ou, como dizemos, à epistemologia do comportamento). Para Colinvaux (2014), o behaviorismo define a aprendizagem como processo de modificação do comportamento a partir de intervenções externas. Trata-se, em síntese, de um sistema de estímulo, resposta e recompensa. Nessa perspectiva, a aprendizagem assume a condição de modeladora dos comportamentos desejáveis à formação do homem e organização da sociedade. Por outro lado, a perspectiva sociocultural conceitua a aprendizagem como um processo de significação individual e coletiva em torno dos sistemas de signos histórico e culturalmente situados. A integração fundamental entre pensamento, sentimento e ação ganha destaque neste contexto, e a aprendizagem passa a ser vista como “[...] possibilidade de compreensão do mundo e de si mesmo e, ainda, do reconhecimento das estreitas relações existentes entre conhecimento, linguagem e cultura.” (COLINVAUX, 2014, p. 16). É, pois, nesse sentido, que as teorias da aprendizagem prezam pelo reconhecimento da dinâmica que envolve os processos de aquisição dos 24 UNIUBE saberes que permitem ao homem desenvolver-se. A seguir, destacamos algumas das principais teorias que orientam as reflexões sobre a aprendizagem. • Inatismo. Do ponto de vista filosófico, o inatismo afirma o caráter inato das ideias, sustentando que a produção dessas ideias independe das experimentações e vivências realizadas pelo homem após o seu nascimento e ao longo de sua vida. Caracteriza-se, desse modo, como uma teoria formulada acerca do psiquismo humano. De acordo com Bock (2001), os teóricos do inatismo valorizam sobremaneira os fatores endógenos (ou seja, inerentes ao organismo humano e que estabelecem a relação de reciprocidade do indivíduo com o mundo). A propósito do inatismo, o desenvolvimento humano é um desdobramento das informações inscritas nas características genéticas do indivíduo, uma vez que as suas competências e habilidades já se encontram definidas desde o seu nascimento, carecendo apenas, ao longo do tempo, sofrerem o processo de maturação. Ora, se conforme notam os teóricos inatistas, as formas de pensar, os hábitos, valores e comportamentos são considerados dados inatos, ou seja, trazidos pelo homem desde seu nascimento como um dado natural, então, a inteligência e as aptidões individuais são herdadas e já estão presentes desde o nascimento da criança – o que justificaria o fato de que algumas pessoas são mais inteligentes que as outras em razão de sua herança genética. No entanto, assim compreendido, o desenvolvimento e a aprendizagem se caracterizam por uma série de limitações que terminam por limitar também o papel que a educação assume na formação integral do ser humano. Parece-nos claro o perigo de que, admitidos tais fundamentos, os processos educativos sejam abalizados com o propósito de selecionar, segregar e marginalizar os indivíduos com base no determinismo biológico. UNIUBE 25 • Ambientalismo. Ao contrário do inatismo, as teorias ambientalistas valorizam os fatores exógenos (determinados pelo ambiente biológico, físico e natural) que cercam o ser humano. Nesse sentido, assume-se como premissa a importância dos fatores ambientais para a aprendizagem, ou seja, das diferentes referências que, encontrando-se fora do indivíduo, estimulam o seu desenvolvimento em diferentes condições de existência. Desse modo, não são as modificações hereditárias que determinam o desenvolvimento sócio-histórico do homem e da humanidade. Estas dão-lhe apenas sustentação. Conforme Bock et. al. (2001, p. 170), “as condições biológicas permitem ao homem apropriar-se da cultura e formar as capacidades e funções psíquicas. A única aptidão inata do homem é a aptidão para a formação de outras aptidões.” Na perspectiva do ambientalismo, o homem é um ser biológico e social, com características herdades e adquiridas, com aspectos individuais e sociais, com elementos da natureza e da cultura. Ao que nos parece, é justamente este o mérito da teoria ambientalista: de nos chamar atenção para a plasticidade do ser humano, para a capacidade que ele possui de adaptar‑se às diferentes condições de existência, aprendendo novos comportamentos e desenvolvendo novas habilidades. • Interacionismo. Na expectativa de superar o extremismo entre inatistas e ambientalistas, a teoria interacionista explica que o desenvolvimento humano e a aprendizagem resultam da interação sujeito-cultura. Trata-se, portanto, de um processo que envolve os fatores hereditários, genético-maturacionais, bioquímicos e de estimulação ambiental e da aprendizagem. Nesse âmbito, o ser humano deixa de ser um sujeito passivo (diante dos fatores biológicos, genéticos, hereditários e ambientais) para assumir o papel de um sujeito que atua de forma ativa na interação com os objetos da cultura construindo as significações para conhecer, 26 UNIUBE aprender e consecutivamente, se desenvolver. Nesta abordagem, aprendizagem e desenvolvimento constituem-se como dimensões que se inter-relacionam, misturam-se e se completam, proporcionando ao indivíduo a responsabilidade de sua aprendizagem. Segundo Davis (1990, p. 36): A concepção interacionista de desenvolvimento apoia-se na ideia de interação entre organismo e meio e vê a aquisição de conhecimento como um processo construído pelo indivíduo durante toda a sua vida, não estando pronto ao nascer nem sendo adquirido passivamente graças às pressões do meio. Os principais teóricos do interacionismo são Jean Piaget (1896-1990) e Lev S. Vygotsky (1896-1934). Adiantando-se nas investigações de Piaget – para quem os conhecimentos são construídos na interação homem-mundo –, Vygotsky afirmava que o conhecimento é, antes de tudo, impulsionado pela linguagem. Ou seja: é pela relação com os mais experientes e pela força da linguagem que o sujeito se apropria ativamente do conhecimento social e cultural do meio em que está inserido. Assim, as influências e mudanças são recíprocas ao sujeito e ao meio onde se encontra. Linguagem é o instrumento que permite ao ser humano pensar e comunicar o pensamento, estabelecer diálogos com seus semelhantes e dar sentido à realidade que o cerca. A linguagem se exprime de diferentes formas: pode ser verbal ou não verbal, escrita ou oral, pode ser também visual e corpórea. Isso porque toda linguagem é um sistema de signos. Para Peirce (1977), o signo é uma coisa que está no lugar de outra sob algum aspecto. Por exemplo: o choro de uma criança pode estar no lugar do aviso de desconforto, de fome, de frio ou de dor; ou pode estar no lugar da frustração por não ter conseguido o que desejava. O choro pode ser signo de todas essas coisas, e para SAIBA MAIS UNIUBE 27 decifrá-lo adequadamente, é imprescindível compreender o contexto em que ele ocorre. Os números e as palavras também são signos, isto é, encontram-se no lugar das quantidades reais de objetos (números) ou do próprio objeto (palavra). Nesse sentido, o signo é objeto de um encontro, e é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar o seu sentido, aquilo que ele expressa como representação (PEIRCE, 1977). Essa representação é a relação arbitrária entre o significado (o conceito, a ideia transmitida pelo signo, a parte abstrata do signo) e o significante (a imagem sonora, a forma, a parte concreta do signo, suas letras e seus fonemas). Somente o ser humano é capaz de estabelecer signos arbitrários, regidos por convenções sociais. Precisamente por isso, o mundo humano é simbólico. A esse respeito, corroboramos em Bondía a definição aristotélica zôon lógon échon. Para o pensador espanhol, o sentido do “vivente com palavra” não quer dizer que o homem tenha domínio da palavra como um instrumento, ou uma faculdade da razão, mas, antes, “[...] que o homem é palavra, que o homemé enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra” (BONDÍA, 2002, p. 21). A palavra é, portanto, condição que encarna a experiência como tradição compartilhada: sempre uma outra experiência à medida que recobra algo que interessa, que se passa entre pessoas e, precisamente por isso, permite a criação de sentidos. Em síntese: língua: é um código e faz parte do legado científico e cultural da humanidade; é um conjunto de sinais baseado em palavras que obedecem às regras gramaticais; signo: é o elemento representativo que possui duas partes indissolúveis: significado e significante; linguagem: mecanismo de significação do mundo; capacidade que os seres humanos têm para produzir, desenvolver e compreender a língua e comunicar o pensamento; fala: diz respeito ao uso individual da língua, aberto à criatividade e ao desenvolvimento da liberdade de expressão e compreensão. SINTETIZANDO... 28 UNIUBE A linguagem constitui o próprio movimento do conhecer e, por isso mesmo, designa-se como elemento essencial para a formação da consciência do homem, e pelo modo como ele representa a realidade e enfrenta os problemas do mundo: por meio da linguagem, o homem significa as coisas, conferindo-lhe valores. Por isso, em sentido vygotskyano, a aprendizagem tem sua origem nas relações sociais, sendo produzida nas relações entre-pessoas e marcada pelas condições históricas, sociais e culturais que aí se inscrevem. É por meio da interação com outras pessoas, adultos e crianças que, desde o nascimento, o indivíduo constrói a suas características: modos de agir, pensar, sentir e perceber o mundo. Conforme Oliveira (1997, p. 38): A interação face a face entre indivíduos particulares desempenha um papel fundamental na construção do ser humano: é através da relação interpessoal concreta com outros homens que o indivíduo vai chegar a interiorizar as formas culturalmente estabelecidas de funcionamento psicológico. Portanto, a interação social, seja diretamente com outros membros da cultura, seja através dos diversos elementos do ambiente culturalmente estruturado, fornece a matéria-prima para o desenvolvimento psicológico do indivíduo. Nesse sentido, a educação escolar recobra um importante e fundamental papel: o de valorizar os diferentes elementos que permeiam o ambiente social e educativo do sujeito, tendo em conta a forma plural com que suas experiências pessoais e de aprendizagem são tecidas. Na escola, a cultura se manifesta como dinâmica própria do relacionamento que o indivíduo tem com o trabalho e a história. Segundo Rezende (1990, p. 59): “a cultura é o significante desse significado que é a existência. Ela é a existência significativa do homem através da história”. Com efeito, o sentido cultural, político e coletivo da existência humana faz da escola o espaço das dinâmicas interativas que corroboram a elaboração e a circulação de sentidos através das práticas discursivas como práticas significativas. UNIUBE 29 O ser humano: sujeito e objeto do conhecimento1.4 Do latim cognoscere, que significa ato de conhecer, a palavra conhecimento designa o modo pelo qual o sujeito cognoscente (que conhece) se apropria de um objeto cognoscível (o que pode ser conhecido) e o representa mentalmente (LALANDE, 1999). Desse modo, o ato do conhecimento diz respeito à relação que se estabelece entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido, isto é, diz-se de um processo que envolve o sujeito conhecedor, com sua consciência, e um objeto, que pode ser a realidade, o mundo, os inúmeros fenômenos. O objeto é algo fora da mente, mas é também a própria mente quando percebida como espaço de reconhecimento dos afetos, dos desejos e das ideias. Nesse sentido, ao tempo em que o homem é sujeito do conhecimento, ele é também objeto, pois é capaz de pensar o mundo que o rodeia, sendo, dessa maneira, o mundo, o chão de sua criação. Conforme Nagel (1978), o produto do conhecimento é o que resulta do ato de conhecer, isto é, a forma representada do objeto conhecido. Trata-se, em últia análise, do conjunto dos saberes produzidos e acumulados pela cultura bem como os saberes que cada um de nós acrescenta à tradição: as crenças, os valores, as ciências, as religiões, as técnicas, as artes, a filosofia etc. Na história da humanidade, os mitos representam a primeira forma de produção do conhecimento para apropriação e explicação da realidade. Segundo Vernant (2000, p. 12), o mito “[...] se apresenta como um relato vindo do fim dos tempo e que já existiria antes que um contador iniciasse sua narração. Nesse sentido, o relato mítico não resulta da invenção individual nem da fantasia criadora, mas da transmissão e da memória.” Por meio dos mitos, o homem procurou explicar não só a origem do Universo e dos deuses, mas também sua própria existência e os fenômenos físicos e humanos que lhe cercam. Designando um gênero 30 UNIUBE narrativo, os mitos eram ensinados por tradição oral e tinham como objetivo a formação ética, moral e religiosa dos membros de uma determinada comunidade (VERNANT, 2000). No entanto, como sabemos, os mitos não foram suficientes para suprir o desejo humano de conhecer, explicar e dominar os fenômenos de sua realidade. A busca pela compreensão do mundo como expressão complexa fez, em determinado momento e por conjectura da história, que o homem questionasse o mito como única forma de conhecimento. O movimento de ruptura com a mitologia, como marco da origem histórica da filosofia entre os gregos antigos, nos permite apontar um duplo e importante registro: primeiro, que ao longo de toda a sua história, o fazer filosófico como atividade do pensamento primou pela autenticidade do saber como o resultado de um movimento de superação da realidade aparente e busca do entendimento do que as coisas são em sua essência; segundo, que o pensamento filosófico possui uma característica que excede o consenso de que pensar filosoficamente é pensar de modo radical, rigoroso e de conjunto. O pensamento filosófico é também, fundamentalmente, criativo (ALMEIDA, 2016). Cumpre, entretanto, registrar que esse movimento não ilustra o rompimento radical de uma forma de saber pela outra, mas da criação de uma nova postura intelectual. Assim, enquanto admiração pelo desconhecido, amizade pelo saber e busca pela verdade, a Filosofia surge como expressão de um conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de suas transformações, da origem e das causas das ações humanas e do próprio pensamento. No âmbito da filosofia, o conhecimento assume a forma de uma produção mediada pelo juízo (ou seja, pela capacidade de julgar e elaborar valores sobre determinadas questões). Para Nagel (1978), esse tipo de produção UNIUBE 31 de conhecimento, chamado de discursivo (do latim dircursus: ação de correr para diversas partes, de tomar várias direções), opera pelo encadeamento de conceitos e ideias e, diferentemente do conhecimento chamado de intuitivo (da ordem empírica), carece da linguagem como suporte fundamenal ao processo da abstração. A abstração permite que o homem passe da natureza sensível, concreta e particular de um objeto à representação mental que dele se faz. É este processo que torna possível a generalização dos enunciados, a nomeação, a significação e a valoração dos produtos da existência humana. Sobre o papel da linguagem na produção do conhecimento, encontramos em Freire (1996, p. 57) uma importante consideração. Conforme o autor: No momento em que os seres humanos, intervindo no suporte, foram criando o mundo, inventando a linguagem com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a ação sobre o mundo, na medida em que foram se habilitando a inteligir o mundo e criaram por consequência a necessária comunicabilidadedo inteligido, já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e a indignidade, entre a decência e o despudor, entre a boniteza e a feiura do mundo. A propósito desta nota, observamos: se por um lado, afastar-se do vivido permite que a razão enriqueça o conhecimento através das noções abstratas que conduzem a interpretação e a crítica da realidade; por outro, esse movimento pode representar o empobrecimento da experiência intuitiva que o homem tem com o mundo e consigo mesmo. Do senso comum ao conhecimento científico1.4.1 Em sua origem, o termo senso comum é deveridado do latim sensus comunnis (LALANDE, 1999). Diz respeito à maneira comum de sentir e agir do homem no tocante às suas experiências cotidianas, e não implica qualquer ideia de juízo teórico. Trata-se, portanto, de um conjunto de opiniões construídas no âmbito das experiências e das percepções 32 UNIUBE cotidianas. Assim designado, o senso comum “[...] é aquele pelo qual se sente que se vê, que se ouve etc.; ele recolhe todas as outras sensações e coordena-as entre si.” (BLANC apud LALANDE, 1999, p. 997). O senso comum situa as mesmas noções que todos os homens têm precisamente das mesmas coisas. É sempre o mesmo em toda parte, e vem sempre antes de qualquer exame teórico sobre os fenômenos que cercam e afetam os sentidos humanos. Assim sendo, referencia o conjunto das crenças espontaneamente construídas e transmitidas pela tradição de modo não crítico. Embora o senso comum represente uma relevante forma de constituição dos saberes que mantêm coesos sujeitos e comunidades ao longo da história humana, seu escopo carece ser continuamente criticado em razão do movimento de assimilação pelo qual novas proposições obtêm, sucessivamente, o valor intrínseco do conhecimento como produto da razão, isto é: “uma vez que o homem é um ser racional, há possibilidades para que aquilo que toda a gente pensa (sobre as matérias que estão ao alcance de toda gente) não seja irracional.” (LALANDE, 1999, p. 997). Nesse sentido, e tendo em conta a necessidade de aprofundar um tanto mais essa discussão, destacamos em Deleuze (2006) a crítica ao ideal do senso comum como pressuposto de uma imagem ortodoxa, dogmática, natural e moral do pensamento. Ao criticar o ideal do senso comum, Deleuze (2006, p. 193) ironiza os pressupostos de que “pensar seja o exercício natural de uma faculdade, que esta faculdade tenha uma boa natureza e uma boa vontade”. Ao partir da crítica formulada a Descartes e ao bom senso como o que está melhor repartido entre os homens, Deleuze assinala a falsa imagem do pensamento como algo direito, ou seja, como aquilo que naturalmente pertencendo ao homem torna possível o acesso à verdade, qualquer que seja a relação entre aquele que conhece e aquilo que é conhecido. Nesse UNIUBE 33 sentido, afirma que “o bom senso ou o senso comum naturais são, pois, tomados com a determinação do pensamento puro. É próprio do sentido pré-julgar sua própria universalidade e postular-se como universal de direito, comunicável de direito” (DELEUZE, 2006, p. 194). Assim, supor que o pensar faz parte da natureza humana parece dar, por direito, uma afinidade natural com a verdade. Destarte, o pensamento constitui um movimento de intensidade entre o saber e o não saber e, por isso, não pode ocorrer como algo que seja espontâneo, pelo menos não no sentido de que não exista aí um notável esforço de “aplicar o espírito” em objetar seus contrassensos. A crítica formulada por Deleuze com relação ao ideal do senso comum não se refere ao pensamento como condição natural do homem, mas, antes, pelo desinteresse com os métodos e o rigor argumentativo que nos permite justificadamente alcançar o conhecimento daquilo que nos mobiliza na direção do saber. Feita estas considerações, sublinhamos, a seguir, as distinções fundamentais entre o conhecimento do senso comum e o conhecimento científico, conforme Nagel (1978, p. 15-26). 34 UNIUBE SENSO COMUM CIÊNCIA Particular: restringe-se a uma pequena amostra da realidade com base na qual são feitas generalizações apressadas e imprecisas. Desse modo, o que vale para um ou para um grupo de objetos observados, é atribuído a todos os demais objetos. Geral: as leis científicas são gerais, ou seja, postulações que não valem apenas para os casos observados, mas para todos os que a eles se assemelham. As explicações da ciência são sistemáticas e controláveis pela experiência, o que permite a produção de conclusões gerais. Fragmentário: não estabelece conexões com situações e/ ou fenômenos cujas relações poderiam ser verificadas. Unificador: estabelece relações entre os fenômenos de modo que sejam evidenciadas as aproximações de causa e efeito. Subjetivo: depende do ponto de vista individual e pessoal, podendo, por isso, ser condicionado aos sentimentos ou afirmações arbitrárias do sujeito da experiência. Objetivo: chama-se objetivo o conhecimento imparcial, que independe das referências individuais e que permite o confronto com outros pontos de vista. Suas conclusões podem ser testadas, confrontadas e reelaboradas. Ambiguidade: nomeia não só a falta de clareza na produção de suas explicações, como também a propriedade subjetiva que encaminha um ou mais sentidos ao mesmo fenômeno. Rigor: a ciência dispõe de uma linguagem rigorosa (aqui se inclui a questão do método científico) capaz de formular enunciados gerais através do exame das diferenças e semalhanças entre os fenômenos, o que, por seu lado, evita ambiguidades de compreensão e interpretação do fenômeno. UNIUBE 35 As características que definem o conhecimento científico não fazem da ciência um saber neutro, desinteressado, puramente intelectual e à margem do questionamento social e político que cerca suas pesquisas. O fazer científico encontra-se diretamente relacionado às questões da ordem moral e política que se arranjam no âmbito da sociedade e das concepções que ela produz de homem e humanidade. Há, portanto, que compreender a ciência como suporte fundamental para a construção de uma sociedade que tenha como fim a fundação de um estado de bem-estar intelectual, social e moral capaz de assegurar ao homem o acesso aos valores que lhe permitam o reconhecimento consciente de seu tempo e lugar, sobremaneira, do lugar para onde deseja ir. PONTO-CHAVE O ser humano: um ser histórico, político e social1.5 As dimensões da história, da política e da sociedade encontram-se implicadas na grande trama que entretece o humano no homem. São dimensões indissociáveis que atravessam todas as expressões e formas da vida humana. Para compreender melhor o modo como essas dimensões se articulam e se implicam, organizamos, didaticamente, dois arranjos téoricos: o primeiro, concernente ao problema histórico; o segundo, ao problema político e social. No primeiro caso, o problema que nos reporta diz respeito ao sentido da história. Segundo Mondin (1980), há dois sentidos que nos permitem compreender a dimensão histórica do homem: o primeiro, sendo objetivo, compreende a marcha do homem no decorrer do tempo; o segundo, de caráter subjetivo, coloca a questão dos acontecimentos humanos que se sucedem no tempo. 36 UNIUBE O agente histórico é o homem, e não o tempo. O homem é situado no tempo: nasce, vive e morre em determinado tempo da hitória; participa em diferentes medidas e de diferentes modos dos processos históricos que atravessam e sustentam o tempo de sua experiência humana. O homem é consciente de sua existência, de sua temporalidade, da con- dição de sua finitude. “O homem existe — existere — no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se.” (FREIRE, 1967, p. 40). PARADA PARA REFLEXÃO É precisamente a tomada de consciência
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