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ENI PULCINELLI ORLANDl
 PALAVRA 
PODER
Pontes
Coleção: Linguagem/Perspectivas
Direção: Paulo Otoni
Conselho Editorial: Charlotte Calves
Eni Pulcinelli Orlandi (presidente) 
Marilda Cavalcanti 
Paulo Otoni
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Palavra, fé, poder / Eni Pulcinelli Orlandi, org. — Campinas, 
PI 81 SP : Pontes, 1987.
(Linguagem/Perspectivas)
Bibliografia.
1. Análise do discurso 2. Línguas e linguagem — Aspec­
tos religiosos I. Orlandi, Eni Pulcinelli II. Série.
87-1301
CDD-200.14
-401.41
índices para catálogo sistemático:
1. Análise do discurso : Comunicação : Linguagem 401.41
2. Discursos ; Análise ; Comunicação : Linguagem 401.41
3. Discursos religiosos 200.14
4. Linguagem religiosa 200.14
5. Religião : Linguagem 200.14
ISBN 85-7113-001-9
ENI PULCINELLI ORLANDI 
(ORG.)
PALAVRA, 
FÉ, PODER
1987
Copyright © Etii Pulcinelli Orlandi
Capa: João Batista da Costa Aguiar
A partir de Fra Angélico: "Cenas das vidas de Santo Estevão 
e São Lourenço" — 1445
Coordenação Editorial: Ernesto Guimarães
Revisão: Adagoberto Ferreira Baptista 
Ernesto Guimarães
PONTES EDITORES 
R. Dr. Quirino, 1230 
Telefone: (0192) 33-2939 
Campinas — SP
1987
Impresso no Brasil
ÍNDICE
Apresentação ......................................................................................... 7
Os falsos da forma
Eni Pulcinelli Orlandi ................................... 11
O discurso profético: ressacralização do espaço social
Selma Castro .............................................................................. 29
De Deus ao seu povo. . .
Romualdo Dias ............................................................................ 43
"O nome de Jeová é proteção”: uma análise do seu discurso
Manoel G. Corrêa ...................................................................... 53
A fala dos santinhos: pedido, conversão e evangelização
María Augusta Bastos de Mattos ............................................ 65
Credo ou creio
Eduardo Guimarães ................................................................... 81
Os homens estão criando um mundo que Deus não quer: 
contradição e conflito no discurso religioso
Rachel S e tze r ................................................................................ 91
APRESENTAÇÃO
Falando sobre o Discurso Jurídico, Daniele Bourcier (1979) mos­
tra que o propósito da análise discursiva dos textos de Direito é o 
de "renovar o estudo do direito, considerado tradicionalmente como 
discurso sem sujeito (problema de enunciação) e trans-histórico (rela­
ção língua/sociedade)". Além disso, dirá também a autora que a 
finalidade interessante de uma abordagem discursiva dos textos de 
Direito é colocar que "os enunciados jurídicos têm significações sus­
cetíveis de serem decodificadas por outros métodos diferentes dos da 
interpretação jurídica". Postula assim, a possibilidade das diferentes 
análises de textos jurídicos, afirmando que eles têm sentido mesmo 
fora de sua própria ordem. Não são, portanto, só os juristas que po­
dem analisar textos jurídicos.
É desse mesmo modo que, para nós também, o Discurso Reli­
gioso não é objeto de análise somente para teólogos ou "religiosos”, 
e pode, ao ser pensado em outros domínios, receber contribuições im­
portantes para a renovação do estudo da religião.
Há ainda algo que D. Bourcier diz e que nos interessa especial­
mente. É 0 fato de poder tratar, em seu caso, o Direito como insti­
tuição produtora de discurso e que se manifesta em todos os níveis 
de sua prática. Assim, também para nós, nessas análises que incidem 
sobre várias práticas do religioso, a religião nos aparece como espaço 
institucional em que se constitui uma certa discursividade que esta­
mos procurando apreender e caracterizar. Essa discursividade pode 
ser, então, estendida à expressão de suas várias práticas.
Nesse sentido, com nossas análises, prclciidcinos luio estar fa­
lando de nossa crença ou descrença religiosa, mas sim de um objeto 
de conhecimento: O Discurso Religioso.
"Quanta verdade ousa, quanta verdade suporta uin espírito" 
(Nietzsche, Ecce Homo).
Ao utilizar métodos que se inserem no corpo teórico do Aná­
lise de Discurso procuramos — não a verdade mas ultrapassar 
os limites de procedimentos puramente positivistas, pois esses proce­
dimentos já têm inscrita a função social da religião, incluindo-sc aí a 
produção de sua violência simbólica (e outras).
Faz parte de nossa perspectiva de análise considerar a espessura 
histórica, social, teórica e política de nosso objeto de estudo, o que 
nos leva a uma reflexão que não persegue a completude, a exaiis- 
tividade. Para nós, tráta-se antes de evitar as soluções técnico- 
analíticas que levam a uma compreensão fechada e redutora do 
objeto de observação. O que diriamos em poucas palavras do seguin­
te modo: sabemos que a expressão não é a coisa. Não faz, portan- 
,to, parte de nossos propósitos reduzir a complexidade da religião 
à linguagem. Nem por isso deixamos de afirmar que essa análise 
é necessária e contribui de modo fundamental para o conhecimento do 
fenômeno religião.
Na multiplicidade de suas manifestações — há vários discursos 
religiosos e há vários modos pelos quais esses discursos se configuram 
não só no discurso cotidiano como em outros —, a religião é definida 
diferentemente por Nietzsche, por Gramsci, por Marx, por Freud etc..
Do ponto de vista da Análise de Discurso, pode-se dizer que 
Deus é o lugar da onipotência do silêncio. E o homem precisa desse 
lugar para colocar (instituir) uma sua fala específica.
Discursivamente, então, a religião*pode ser vista como o lugar 
em que, na onipotência do silênçio divino, o homem se encontra 
um espaço para preencher com palavras que delineiam o que pode­
mos chamar sua "vida espiritual”. O que, dessa "vida espiritual”, 
pode ser dito (posto) na voz de Deus?
Essa é, então, uma questão relevante: como o homem fala no 
dizer que ele coloca na voz de Deus? A religião, sendo vista enquanto 
discurso, leva a apreender um dos lugares de sua constituição;* o dis-
curso religioso como a territorialização da espiritualidade do homení. 
Ê onde ele a constrói e expressa.
No que diz respeito à constituição do homem moderno, interessa- 
nos procurar compreender nesses estudos, através da reflexão sobre a 
linguagem, não a religião em geral mas, sobretudo, algumas formas 
do cristianismo, uma vez que nossa civilização é preponderantemente 
cristã. A urgência de refletir sobre o cristianismo pode ser vista, por 
exemplo, no fato de que mesmo nas formas agudas de crítica aos 
poderes instituídos, e nas ditas formas de resistência, se reencontram 
os valores e o discurso cristão: o ascetismo, a superação, a ênfase 
no sofrimento, o sacrifício, a humildade, a salvação etc..
Valores estes muitas vezes bastante evidentes, como no prefácio 
feito pelo capuchinho (do século XVII) M. de Nantes à sua Relação 
de uma Missão do Rio São Francisco (edição de 1979), onde ele fala 
dos atrativos das missões no Brasil: "A oportunidade do Martírio hão 
se oferece aos nossos missionários ( . . . ) . Há, todavia, ocasiões de 
sobra para o sofrimento.. Os mesmos valores, talvez,-que levam 
Nietzsche a dizer do cristianismo: "esta negação da vontade de viver 
tornada religião" (Anti-Cristo).
Negação da vontade de viver, código ético de convivência huma­
na, freio dos instintos, ou superação dos limites de nossa estreita 
condição humana. São muitas as funções que se atribuem à religião. 
Sob uma ou outra forma e função, ela é omnipresente em nossa cultu­
ra. Esse atravessamento da religião — eu ousaria dizer sob a forma 
paradigmática do cristianismo — atua em todas as nossas formas 
culturais. Não é por acaso que a primeira obra impressa foi a Bíblia. 
Nem se deve estar indiferente ao fato de que nossa educação, ou seja, 
a ação pedagógica em nossa cultura, está ligada, desde suas origens, 
à esfera do religioso. E é de se notar no Brasil o forte caráterclerical 
que tem a educação, o que se pode observar não só na nossa história 
catequético-jesuítica mas também nas modernas atuações pedagógicas 
que se autodenominam leigas (e até politicamente radicais) e que se 
marcam por enfático, caráter doutrinário, salvacionista, "pastoral".
Dessa perspectiva é interessante notar que, uma vez detectado 
esse caráter religioso atuando em diferentes processos de significação, 
podemos perceber que os vários discursos da cultura ocidental são 
atravessados pelo discurso religioso: o pedagógico, o jurídico, o aca­
dêmico, o das minorias, o das "alternativas" etc.
Partindo, então, dessa idéia de que, no universo discursivo, há 
uma sobredeterminação de diferentes discursos peia ordem do discurso 
religioso, e considerando que o discurso religioso tem, historicamente, 
uma presença irrecusável em nossa cultura, são certas falas, certos 
limites do cristianismo, ou mesmo do religioso, que queremos colocar 
em causa como hiÍJÓtese inicial de estudo.
A Religião tem um sentido; o Discurso Religioso faz sentido, 
mas, indagamos, qual é o seu, ou melhor, os seus sentidos? Como 
ele existe em nossa formação social?
Os trabalhos aqui apresentados não são uma resposta a esta 
questão, mas certamente sugerem vias de reflexão que podem proble- 
matizar de forma interessante o que se pensa e se diz sobre religião.
Eni Pulcinelli Orlandi 
Campinas, maio de 1985.
10
os FALSOS DA FORMA*
Eni Pulcinelli Orlandi
NOTA AO LEITOR
A escolha deste texto como parte da presente publicação tem 
alguns propósitos que passarei a comentar*
1. Trata-se da análise de urna questão prática específica — a 
atuação dos missionários do SIL (Summer Institute of Linguistics) 
entre os indios do Brasil — em que procuro aplicar a capacidade 
crítica, teórica e política da reflexão sobre a linguagem a que temos 
chamado Análise de Discurso. Esta forma de análise procura resti­
tuir à reflexão sobre a linguagem a complexidade que pode advir 
de urna observação em que não se excluem a sua materialidade his­
tórica, o funcionamento da ideologia e a política do significar.
2. Ao falar específicamente do SIL, sem no entanto abrir mão 
da importância da teoria, esse estudo abre-se para a reflexão sobre 
muitas situações discursivas em que a estratégia de poder é embara­
lhar, sob uma mesma fala, diferentes ordens e formas discursivas e, 
logo, misturar diferentes sentidos, para passar sem críticas, por lei­
tores de diferentes identidades ideológicas.
3. Essa análise permite apreciar, de forma bastante direta, os 
acordos entre religião, ciência e política.
Resta-nos, finalmente, observar que o tom expressamente com­
bativo do texto deve-se ao fato de que foi apresentado em um grupo
* Esse título propõe um jogo de sentidos com o título de um livro de 
Walnice N .Gaivão (As formas do falso, 1974) onde ela analisa o Grande 
Sertão Veredas de G. Rosa. A metáfora que inspira o título é a do demônio, 
no meio do redemoinho, no meio da rua. Um dentro do outro.
11
de trabalho intitulado "Pesquisa Lingüística e. Missões de Fé", cujo 
objetivo era esclarecer e criticar a atuação das associações missioná­
rias entre os indios, e apontar formas de solução para os problemas 
levantados.
INTRODUÇÃO: DE ONDE FALAMOS
Para falar do SIL, de urna certa perspectiva e a partir de urna 
análise que tem como objeto tanto a sua prática de linguagem (seu 
discurso) quanto sua prática como lingüistas (seus métodos), vou 
proceder a algumas distinções:
1° — A perspectiva da qual falo não é a de simpada pelo SIL. 
Ao contrário, do interior do clamor de vozes da América Latina — 
e aqui penso sobretudo no que li em jornais, livros e documentos 
publicados principalmente no México, Equador, Panamá e Colômbia ̂
— a minha voz, se procurando um mínimo de solidariedade, só po- 
deria ser a do total repúdio à atuação de tal entidade, na América 
Latina e em outras partes do chamado "Terceiro Mundo".
2° — Embora essa reflexão, dada a natureza do SIL, possa se 
inscrever no dominio específico da questão religiosa, isso não me­
recerá urna atenção maior em nossa abordagem. Nessa nossa expo­
sição estaremos nos ocupando das formas de representação do SIL, 
de suas transmutações, de suas funções, tudo isso em relação às nos­
sas próprias representações e funções.
3.° — Assim, dentre as muitas denúncias que tanto poderíam 
ter um caráter científico, religioso, econômico, cultural, etc, procura­
remos visar as denúncias de alcance político.
Logo, através de algumas questões de discurso, será uma questão 
política que estaremos procurando situar, com nossa reflexão,
Nem é preciso dizer que incorporamos, como ponto de partida, 
as denúncias feitas em outros países, como os que acabamos de citar, 
que expulsaram o SIL.
Em resumo, essas denúncias são as seguintes:
01. Agradeço a colaboração e eficiência do CEDI que generosamente colocou 
à minha disposição todo o material que analisei.
12
o SIL é urna instituição político-ideológica encoberta: é urna 
entidade com finalidades evangelizadoras que se apresenta como so­
ciedade civil, de caráter assistencial e filantrópico; é um instrumento 
que oferece apoio à expansão do capitalismo em áreas ricas de re­
cursos naturais, as quais abre ao mercado, e integra os índios no 
mercado como trabalhadores domesticados e despolitizados; o SIL tem 
sua função comprometida com a desmobilização dos movimentos de 
libertação indo-americanos e a partir do ideológico penetra até os 
níveis organizacionais de base das sociedades indígenas; controla 
vastas áreas que constituem pontos estratégicos para o domínio geo- 
político do continente, reforça o individualismo, o voluntarismo; aca­
ba com a solidariedade racial, inculca a passividade e a submissão, 
acaba com o protesto e a ação política, mistifica as relações de tra­
balho, apóia e idealiza os aparatos políticos, administrativos e repres­
sivos do Estado, apresenta os USA como o povo eleito por Deus, e etc.
Como está dito em um documento mexicano: "O SIL, ideologi­
camente, é uma filial da Sociedade de Tradutores da Bíblia Wycliffe 
(versão fundamentalista), e surge como uma expressão messiânica do 
sentido religioso exacerbado entre os batistas do sul, como mais uma 
manifestação do destino manifesto".
O que nos importa é que eles combinam muito bem negócios 
temporais e espirituais, expandem áreas de exploração capitalista, 
freiam reivindicações, introduzem pautas de comportamento orienta­
dos por uma atividade econômica capitalista que leva ao individua­
lismo, ao mercantilismo e que propala a crença no êxito pessoal de­
terminado por Deus.
A responsabilidade e onipotência divinas são evocadas, aliás, 
ironicamente, como justificativas, em textos como o que segue: “Nós 
só levamos a palavra de Deus. Se eles (índios) se desestruturam, é 
obra de Deus. Nós não transformamos nada. Só Deus tem essa ca­
pacidade”.
Segundo o que se lê, em seus propósitos, tudo é legítimo para 
levar adiante a idéia de que salvarão os que crêem: sejam missioná­
rios ou estrategistas do Pentágono.. . Pregam as desigualdades natu­
rais e o respeito cego à autoridade. Aproveitam-se de três caracterís­
ticas que imputam ao índio: orgulho de sua própria língua, desejo 
de melhorar economicamente e, dizem, curiosidade insaciável. Exer­
cem, enfim, o etnocídio espiritual: não deixam existir as diferenças 
culturais, submetem a vontade.
13
Incorrem, assim, em dois tipos de ingerência: a) a de estrangei­
ros em assuntos de competência nacional e b) atentam contra a liber­
dade de culto.
Enquanto na transamazónica são acusados de terem relação com 
a expansão das multinacionais (recursos de subsolo e exportações), no 
Equador foram acusados de cumprir um papel indigno: prover de 
dados as companhias petrolíferas, dividir os índios para impedir seus 
protestos autônomos, ensinar a resignação como um valor purificador 
de suas almas, revelar-lhes tudo o que, para Deus, é pecado. Os aucas 
foram catequizados para aceitar dar suas terras à Shell.De acordo 
com um volante do SIL, aparecido em 1971, no Equador: "A Shell 
perdeu várias vidas nas mãos dos índios. Quando voltaram, os mem­
bros do SIL foram na frente e os persuadiram de que deviam deixar 
caminho. Isto foi feito através de índios cristianizados em gravações 
emitidas por um alto-falante montado num avião. Como resultado 
dessa atividade coordenada por rádio e telefone, através da base em 
Quito, não se perdeu nenhuma vida até o momento. Bendito seja 
Deus!” (Documento do Equador, p. 136, CEDI).
Segundo a opinião de autores como Soren Hualkof e Peter Aaly 
(1975), o frabalho do SIL debilita a habilidade dos grupos de repro­
duzirem-se em si mesmos, e aprofunda sua integração no sistema ca­
pitalista.
yj
Uma tarefa, nessa exposição, é mostrar como essa entidade faz
isso.
1. o ÍNDIO COMO INTÉRPRETE: QUEM HÁ DE QUERÊ-LO?
Silêncio, obscuridade, dominação, posse da palavra, resistência. 
Tudo isso já sobejamente tematizado e devidamente relativizado por 
aqueles que têm produzido uma reflexão, tanto sobre a produção da 
linguagem como a respeito das diferenças sociais ou culturais na sua 
relação com o poder; não é menos verdade que persistem os segre­
dos (e os poderes) da Palavra; tanto mais, se ela é divina.
Uma forma de tratar desses segredos é observar a relação do 
sujeito com seu discurso.
Em relação ao discurso missionário, a primeira coisa a se per­
guntar seria: como é o sujeito-índio como sujeito-religioso, em sua
14
própria cultura? No caso do SIL, essa questão resultaria em outra: 
o que significa considerar a necessidade de transformar esse sujeito 
considerado por eles não-religioso em um sujeito-religioso? Qual é o 
modo de relação que o SIL propõe para a constituição desse sujeito 
(índio)-religioso?
Nas religiões ocidentais esse sujeito-religioso se marca pela sub­
missão, isto é, ele se constitui como aquele que é falado por Deus. 
O discurso divino — eterno, já-sempre-lá — se realiza no sujeito pela 
sua total adesão. Ele reflete em si a palavra divina no sentido do 
espelho, da repetição. Ele não reflete sobre, nem sequer pode tomar 
distância.
Como, na ordem do discurso religioso, o sujeito se marca pela 
submissão, isto propicia múltiplas espécies de manipulação. Mesmo 
porque podemos ver a religião como forma de controlar a agressivi­
dade desconhecida. E, nesse caso, converter é "pacificar".
No entanto, não vamos deixar de considerar, como bem o mos­
tra Gramsci (1966), que a religião pode ter uma duplicidade: ser 
útil ou ser "o ópio do povo”, dependendo do momento histórico.
A esse respeito gostaria de repetir aqui o que diz Manoel G. 
Corrêa em sua dissertação de mestrado (1985), quando analisa dis­
cursos da Congregação Cristã do Brasil: "Forma de resistência ou 
pura alienação, a verdade é que essa representação que faz da vida 
diária recria para o fiel, à maneira de um teatro, os temas centrais 
de sua existência. Entre explodir para a reação no mundo ou implo- 
dir pela submissão pura e simples, o fiel constrói seu equilíbrio, mais 
uma vez representando para si mesmo a sua própria reação: sujeitando- 
se a Deus e rejeitando o homem. Não o homem dos sistemas econô­
micos, ou das ideologias, mas o homem por inteiro. Rejeitá-lo dessa 
maneira pode significar a única forma de continuar vivo — forma 
de resistência — ou então essa delegação de poderes pode funcionar 
simplesmente como fuga — forma de alienação”. No meu entender, 
dado o contexto histórico, o SIL não produz um sujeito-religioso 
que resiste. As formas de resistência do índio certamente não derivam 
da religiosidade apreendida com o SIL.
Não vou me alongar, entretanto, no que eu chamaria de questão 
interna ao problema do discurso religioso. Isto que dissemos é sufi­
ciente, creio, para mostrar que esta é uma conversa demorada e que 
merece uma reflexão bem mais ampla.
15
Importa-nos, para nossos objetivos, não a análise aprofundada 
do próprio fato do SIL, na sua atuação entre os índios do Brasil, 
produzir um sujeito-religioso mas, como dissemos, interessa-nos de 
que modo ele o produz.
É claro, de toda forma, que ao se colocar como mediador, o SIL 
impede que o próprio índio seja intérprete (do mundo, da relação 
com o branco, da relação com a religião).
O SIL se erige pois em intérprete do indio com a população 
envolvente, do indio com o Estado, do indio com o outro indio, e 
do indio consigo mesmo, na medida que trata da questão religiosa 
e media a relação do indio com a Onipotência (Deus).
Assim, enquanto mediador, o SIL conta a história do seu ponto 
de vista, realiza funções próprias ao Estado (como a promoção eco­
nômica, de saúde pública e educação). Enquanto lingüistas, fixam-se 
como interlocutores privilegiados (de língua para língua, de cultura 
para cultura), instituindo-se assim como intérpretes — filtro das co­
munidades indígenas (principalmente das áreas de difícil acesso). 
Ocupam dessa forma o lugar-chave das relações entre minorias sócio- 
lingüísticas e o conjunto da sociedade nacional. Na assistência, em 
contrapartida, o que chamam de melhoramento moral é doutrinação 
religiosa protestante.
Como o SIL faz isso?
2. UMA IDEOLOGIA E VÁRIOS PAPÉIS: O EFEITO 
MIMÉTICO DO CAMALEÃO
Podemos dizer que o SIL, desde sua origem, se beneficia do 
jogo entre diversas identidades.
São três organismos básicos que articulam sua sustentação: a) a 
Wycliffe Bible Translators, que lhe dá representatividade no interior 
da Sociedade Americana; b) legaliza-se, por outro lado, enquanto 
Summer Instituto of Linguistics, por se conseguir desse modo uma 
apresentação (uma "cara”) para os necessários contatos e acordos com 
os governos, que permitem encarar os trabalhos de campo; e, c) a Jaars 
(Serviço de Rádio e Aviação) que lhe proporciona apoio logístico.
Nesses três organismos está configurada a capacidade de mobi­
lização (convenhamos, ágil) e auto-reprodução do SIL.
16
Sua agilidade facilita a sua estratégia de se mostrar necessário 
e manter sua permanência.
No jogo entre esses organismos, o SIL se beneficia ainda do 
fato de que, não se apresentando como uma expansão da Igreja Ba­
tista, evita a necessidade de se confrontar com a Igreja Católica nes­
ses países que são, em geral, de maioria católica.
Além disso, há um outro benefício, o de jogar com a relação 
entre Ciência (lingüística descritiva, antropologia, educação) e Reli­
gião. Para se garantir seriedade, é imperativo basear-se em métodos 
científicos. Daí a instrumentalização desses conhecimentos, ou seja, a 
ciência é um instrumento e a finalidade é religiosa. Para ilustrar isso, 
basta lembrar que eles sempre fazem valer sua eficácia como lingüis­
tas, com formação científica etc. A partir daí podem aumentar sua 
credibilidade quando, por exemplo, explicam a história em termos 
religiosos, ou defendem sua permanência entre os índios.
Em meio a essas formas de representação variadas, o SIL produz 
a sua existência e reproduz a sua necessidade com tal eficiência, que 
se passa a defender süa permanência já que seus membros são os úni­
cos a atingirem certas regiões inacessíveis (dado o apoio logístico) ou 
a terem condições de descrever as línguas indígenas, em quantidade.
Nesse jogo de formas e identidade, vejamos como o SIL se auto- 
define: "Sociedade civil de caráter assistencial e filantrópico”.
Dada essa definição, o SIL pode estabelecer no texto do Con­
vênio com a FUNAI — e a cada compromisso eles se movem nas 
múltiplas possibilidades de suas representações — seus objetivos: 
"manter atividades assistenciais de lingüística, educação, saúde e de­
senvolvimento comunitário junto aos grupos indígenas. . . ”
Para um lingüista, soa certamente bastante estranha a expressão 
"atividades assistenciais de lingüística”. O que seriam essas ativi­
dades?
A falta de um discurso específico, que se observa através de 
uma expressão como esta, pode ser entendida se nos reportarmos ao 
conceito de "formação discursiva”. A formação discursiva dispõe so­
bre o que o sujeito pode e deve dizerem uma situação dada numa 
conjuntura dada, de tal forma que, remetendo seu discurso à ideo­
logia, essa formação fará que suas palavras tenham um sentido e não
17
outros possíveis. É pela remissão à formação discursiva que se iden­
tifica uma fala.
Para simplificar, diriamos que, no caso do SIL, coexistem for­
mações discursivas que podem ser entendidas como "dicionários” 
diferentes que remetem a ordens de discurso (e, portanto, sentidos) 
diferentes.
Nesse caso, podemos confrontar expressões que ocultam sua 
origem e funcionamento jogando com "dicionários" diferentes, uma 
vez que o SIL usa um pelo outro:
Onde falam de "melhoramento moral", leia-se doutrinação;
Onde falam de "educação”, leia-se desculturaçãç;
Onde falam de "formação do indivíduo”, leia-se capitalismo etc.
A característica fundamental do discurso do SIL, e que se assenta 
na trucagem de suas representações, é justamente o de sobrepor for­
mações discursivas, isto é, usar um dicionário pelo outro. Porque ele 
joga, com pelo menos, três identidades: a de cientistas, a de assis­
tentes sociais e a de religiosos. A de religiosos, aliás, é a que eles 
nunca colocam, mas pressupõem. Não a discutem. É a que permanece 
assim sempre em negociação, como uma ameaça (ou promessa?).
Desse modo, deve-se entender sempre de outra forma o que 
dizem, em referência a essa característica de sobreposição que é domi­
nante na formação discursiva do SIL.
E é desse modo que também podemos entender suas tarefas 
lingüísticas:
"Levar a escrita às línguas desconhecidas dos grupos isolados”, 
que é o objetivo lingüístico explícito que eles mostram, deve ser 
entendido, enquanto objetivo evangélico, como "levar a bíblia aos po­
vos ainda não atingidos pela (conhecida) Palavra de Deus”.
Isto, aliás, aparece grosseiramente em Certos documentos do SIL: 
"incentivá-lo a desenvolver, no máximo, o seu potencial, em ambas 
as sociedades, através da educação bilingüe e da tradução bíblica” 
(O que há de melhor em dois mundos, textos do SIL, Brasília, janeiro 
de 1981).
18
E aí chegamos a um ponto fundamental da discussão que junta 
lingüistas e educadores. No discurso do SIL, onde se fala em "edu­
cação bilíngue”, leia-se catequese (conversão). Não é uma passagem 
linguística, é uma passagem teológico-étnica.
Nessa perspectiva, a atividade filantrópica — que é a tônica do 
SIL no comércio com os povos do Terceiro Mundo — também tem 
uma direção de sentido: o que se apresenta como assistencial é for­
ma de colonização, isto é, onde se diz "ajudar” deve ser compreen­
dido "institutir dependência" (mediador). Desvirar esse discurso é 
denunciar que, nessa formação discursiva, não há solidariedade, há 
opressão, não há auxílio, há dominação.
Decorre daí um fato discursivo importante: o discurso filantró­
pico do SIL é o silenciamento do discurso político. Embora isso seja 
uma função comum do discurso religioso em geral, agrava-se no SIL 
pelo jogo de suas representações em que o religioso, o político e o 
científico estão abertamente confundidos.
Dissemos em outro trabalho (Orlandi, 1985), que o SIL tem tido, 
no Brasil, uma função que consegue aliar as três formas de apaga- 
mento — a de ciência (que amansa o conceito "índio”), a do indi­
genismo (que amansa o índio enquanto corpo) e a da catequese (que 
amansa o índio enquanto alma) — com exemplar eficácia e sem ônus 
palpáveis para o país.
Gostaríamos de acrescentar que além de propiciar esses três 
modos de apagamento do índio, também aqui o agravante dessa atua­
ção está em fazer isso insidiosamente, usando um pelo outro, emba­
ralhando práticas.
Isso permite-lhes, nos convênios, não mencionarem o trabalho de 
proselitismo religioso (referem-se genericamente a atividades assisten- 
ciais) nem tampouco se apresentarem com clareza em relação a essas 
suas atividades assistenciais. Realizam, assim, sem discutir, funções 
próprias ao Estado Nacional: promoção econômica, saúde e educação,
Como o SIL joga com seus modos de atuação, apaga o lugar 
específico do qual se poderiam discutir essas suas atuações.
Nós, que caímos no truque das múltiplas representações, quando 
queremos criticá-los, cobramos os resultados de seu trabalho conjo 
lingüistas, ou como educadores. O correto nessa, conjuntura é cobrar-
19
lhes os resultados de seus trabalhos enquanto missionários. Isto é 
que está silenciado.
Enquanto isso, eles ocupam, como dissemos, o lugar de media­
dores entre o índio e a sociedade nacional. Assim legitimados, nego­
ciam com o Estado, seu poder e influência. Completam dessa forma 
a assunção de um poder que lhes é outorgado pelo Estado e que, iro­
nicamente, em um efeito circular de sua ação, eles acabam por impor 
ao Estado. Tornam-se úteis.
3. A DISPUTA PELA PRÁTICA: O EFEITO-HYDRA,
DO RESSURGIMENTO INCESSANTE
O poder de negociação que essa entidade adquire em relação ao 
Estado, nasce da sua estratégia de, enquanto mediador, mais do que 
mediar, ela se dar a posição de estar no lugar de: está no lugar, ou 
melhor, ocupa o lugar do lingüista, ocupa o lugar do assistente social, 
ocupa o lugar do educador.
Para ocupar esses lugares, sua prática é instituída por um dis­
curso que, estancado em um lugar, renasce de outro, com todas as 
qualidades retóricas da adequação.
Analisando alguns “caderninhos" de apresentação, sucessivos em 
suas datas, pudemos observar o processo pelo qual, para ir-se adap­
tando às nuances contemporâneas da ideologia do Estado, eles obe­
decem a um mesmo modelo que vai sofrendo pequenas, oportunas e 
progressivas alterações. Pudemos então verificar esse movimento: em 
um, tem-se a palavra integração, no outro, ela é substituída por par­
ticipação (o índio "integrado” à sociedade nacional é substituído por 
índio "participante” da sociedade nacional); em um, há referência à 
adaptação do índio à agricultura, no outro, isso desaparece (negocia­
ção da Reforma Agrária?); em um, se fala do índio em relação à 
sua Pátria, no outro, Pátria não tem possessivo, é geral é a Pátria etc.
Por outro lado, quando esse discurso antropológico-assistencial 
torna-se incômodo, produz-se o discurso pedagógico-lingüístico. E 
assim por diante, indefinidamente.
Chegamos, então, a uma outra característica do SIL, relativa a 
suas várias formas e seu constante ressurgimento.
Dado 0 fato de que, para se exercer, ele não precisa de uma 
identidade fixa (muito pelo contrário), isso facilita a reprodução de
20
sua prática sob outras aparências ("fachadas”). O que eles precisam 
é, pois, de sua permanência mesmo sob outras formas de repre­
sentação.
Assim é que podemos ler, no jornal Palavra da Fé, de nov/dez. 
1984, ano III, nP 18:
"Preocupados com os constantes problemas que o SIL enfrenta 
com as autoridades brasileiras na execução do trabalho lingüístico-mis- 
sionário, alguns irmãos organizaram a Associação Lingüística Evangé­
lica Missionária (ALEM) sediada em Brasília, DF, que tem os mesmos 
propósitos e metodologia do SIL. A ALEM é presidida pelo Pastor Ri- 
naldo de Matos, e em seus cursos já conta com vários alunos brasi­
leiros. O curso de lingüística e missionologia em 1985 já tem 10 alu­
nos matriculados e a diretoria espera 30 alunos para o curso. A ALEM 
possui um acampamento destinado ao Treinamento Missionário junto 
à reserva dos índios Krahô, em Itacajá, norte de G oiás.. . ”
Tendo, depois, analisado a ata da Assembléia Constituinte da 
ALEM e, em seguida, uma apresentação dessa Associação à FUNAI, 
pude detectar três deslocamentos estratégicos que refletem o contexto 
histórico-ideológíco da criação dessa entidade, em termos da absorção 
que faz do SIL:
1. " — Explicita o objetivo: promover a tradução da bíblia e 
a divulgação do Evangelho de Jesus Cristo, junto aos povos indígenas 
do Brasil e do mundo (na Ata). Ou seja, nesse momento histórico a 
explicitação do objetivo religioso é possível e, diriamos, até desejável.
2. “ — Explicita, na definição da entidade, seu "caráter científico 
e objetivo religioso”, "visando a tradução da bíblia e a assistênciaao 
índio brasileiro”. Quer dizer, corrige, em sua rota, o que já não é 
operacional.
3. ° — Coloca um item específico (o 4° da Apresentação) no 
enfoque nacional: "A ALEM é uma entidade nacional, autôno­
ma, sem nenhum vínculo administrativo ou de dependência econô­
mica com qualquer outra entidade nacional ou estrangeira. Ainda que 
nascida sob a inspiração da tarefa realizada pelo pessoal (por que 
não missionários?) do Summer Institute of Linguistics, a ALEM segue 
a mentalidade de dirigentes brasileiros (todos os membros da Dire­
toria são brasileiros)”.
21
Este parêntese vem bem a propósito pois o secretário é nada 
mais nada menos que o Dr. Wilbur Norman Pickering, um conhecido 
membro do SIL que, pelo que pude me informar, é naturalizado * 
brasileiro.
Basta uma espiada no Conselho Consultivo e no Conselho Fiscal 
para se ter uma longa lista de membros do SIL (e da New Tribes).
Portanto, onde se lia SIL leia-se ALEM, e assim por diante. Nem 
é preciso gastar muita análise sobre isso, O SIL se reproduz em sua 
divisão de trabalho com a ALEM. Articulam-se e se reforçam.
Não nos alongaremos, pois, na descrição desse processo em que: 
l.°, como observamos, o SIL é várias coisas ao mesmo tempo e, 2.® 
ele se transforma em várias outras sucessivamente, nos momentos 
oportunos.
Com a possibilidade de tantas metamorfoses, estaremos sempre 
um pouco atrás na tentativa de desvendar as representações do SIL 
e as suas metáforas.
Mas não sejamos pessimistas.
Observando tudo isso, chegamos à uma questão, que acreditamos 
útil, das práticas do SIL, questão esta que está configurada, como 
segue.
Quando se está discutindo a atuação do SIL: a) ou já se está 
discutindo algo que eles mesmos já ultrapassaram, dada sua ágil capa­
cidade de se refazerem em suas diferentes formas e, então, sua vul­
nerabilidade é ilusória (tardia); ou b) essa discussão é uma armadilha.
Nesse caso, o de ser uma armadilha, ela o é no sentido seguinte: 
O que não estamos discutindo enquanto estamos discutindo o SIL?
Nossa estratégia foi, então, desdobrarmos isso: a) Devemos obser­
var não o que o SIL diz (ou faz), mas o que ele nos faz dizer e nos 
faz (não) fazer; b) Naquilo que dizemos, o que se esconde?
A partir dessa estratégia, a forma mais adequadamente crítica de 
encararmos essa questão é observarmos o SIL como lugar (pretexto) 
em que se originam, em que se produzem, vários discursos que
Em tempo. Durante a exposição, fui informada que não é naturalizado, 
nasceu aqui, de . pais missionários.
22
tratam da questão indígena: discursos políticos, acadêmicos, adminis­
trativos etc.
Vejamos, então, nesse conjunto, que sentido têm os discursos 
acadêmicos que aí se formam, já que este é o nosso caso específico.
4. DE LINGÜISTA PARA LINGÜISTA
No domínio da Linguística, algumas críticas específicas podem 
ser feitas.
Os membros do SIL adotam uma metodologia de análise e um 
estilo de pesquisa de campo que refletem seu jogo de identidades, e 
que são adequados à articulação de seus organismos de sustentação: 
a tradução da Bíblia e a descrição de línguas desconhecidas, con­
tando com suas possibilidades de deslocamento e permanência em 
área indígena.
Com isso, impuseram um modelo de l in g ü is ta que tem muito 
a ver com suas finalidades missionárias e muito pouco com as neces­
sidades do trabalho lingüístico. Resultam, desta distorção, conseqüên- 
cias graves.
Com seu modelo, o SIL cria uma dependência de um método de 
análise — no interior do descritivismo estruturalista — que deriva 
de sua visão pragmática (utilitária) da cultura e da ideologia. Assim 
como produzem uma visão utilitária da religião (adaptativa), produ­
zem uma visão utilitarista da lingüística (de caráter assistencial) e 
metodológicamente estreita.
Além disso, como sua permanência em campo é imprescindível 
para seus objetivos missionários, mistificam também o tempo de per­
manência no campo para a descrição de uma língua. Na verdade, 
para a descrição que fazem, com o método que usam, seria preciso 
muito menos tempo do que propalam.
Com o argumento da descrição, justificam sua permanência e 
desqualificam o trabalho do pesquisador lingüista (leigo, profissional) 
que vai ao campo durante menos tempo.
02. E comum os índios pedirem cartilhas no modelo do SIL, dada sua fami­
liaridade com esse produto e sua necessidade (dos índios) de documen­
tarem suas línguas.
23
Assim, acabam por impor, a nós lingüistas, também um modelo 
de pesquisa de campo que, na realidade, justifica seus fins evange- 
lizadores e não os de lingüistas. Por isso, onde dizem "não há lin­
güistas suficientes no país para substituir o SIL” deve-se perguntar 
"substitutos em que tarefa”? Na descrição da língua ou na sua 
atuação missionária?
Iludidos por esta falsa questão, os lingüistas não procuram criar 
condições favoráveis para a regularidade de seu trabalho de campo.
Por outro lado, o SIL —̂ fundado no discurso da competência 
científica: eles usam métodos científicos para . . . catequizar(?) — 
criou um consenso de eficácia com respeito a seu método (predomi­
nantemente estruturalista e incorporando cada vez mais o transfor- 
macionalismo) de descrição, que, no entanto, como sabemos, é bas­
tante criticável, no interior da própria lingüística descritiva, e ainda 
mais da perspectiva de uma concepção mais moderna de língua, que 
incorpore o histórico como constitutivo.
Além disso, todos sabemos que o compromisso com o behavio- 
rismo de que se carrega a metodologia estruturalista chama para si 
uma larga discussão.
Seria oportuno, ainda, lembrar que temos, na linha da descrição 
clássica de língua, lingüistas brasileiros absolutamente capacitados, 
com ampla tradição de descrição, documentação e conhecimento das 
línguas indígenas. Podemos acrescentar, atualmente, trabalhos em no­
vas tendências que já se adiantam ao que se produz nos grandes cen­
tros de pesquisa mesmo fora do Brasil.
O que estou tentando dizer é que não precisamos de.modelos 
como os do SIL. Temos nosso know-how, nossa tradição de estudos e 
projetos avançados. Devemos, isso sim, reivindicar condições, infra- 
estrutura para realizar esse trabalho, se o consideramos necessário.
Voltando ao que o SIL"’ produz, enquanto modelo de pesquisa 
de línguas indígenas, devemos dizer que com essa metodologia ele 
cria uma noção fragmentária das línguas, no domínio da cultura indí­
gena, que tem conseqüências muito graves. Repetindo o que diz o 
documento de Barbados II sobre a Política Colonialista do SIL:
"El Instituto linguístico de Verano en relación a las lenguas en 
si opera con dos objetivos políticos claves: a) presenta un quadro de
24
extremada fragmentación dialectal y lingüistica, tratando de demos­
trar la inviabilidad de la formación de unidades lingüisticas estan­
dardizadas, esenciales para el despegue de proyectos politices de libe­
ración de los pueblos indios, e b) sustentar la ideologia del caracter 
ahistórico estático y regresivo de las lenguas indígenas, según la cual 
estas serian incapaces de absorber, dinamicamente las nuevas expe­
riencias colectivas que confrontan los pueblos oprimidos. En otros 
términos, se les niega la posibilidad de una interpretation propria, 
tanto conceptual como lingüistica de la dinámica social y de la na­
turaleza.”
Nesse conjunto de conseqüências do modelo de trabalho lingüís­
tico está implicada a educação bi-lingue. A educação bi-lingue — 
termo criado pelo SIL e assumido pela FUNAI em 1972, quando 
criou o estudo bilíngue nas aldeias xavante, guajajara, kaingang e 
karajá — é uma forma de intervenção do SIL nas culturas indígenas.
É bom ressaltar que não queremos generalizar, ou cair em dis­
cussões academicistas. Na conjuntura que o SIL produz para atuar, 
a educação bi-lingue — com seus monitores indígenas, a produção 
da literatura indígena etc ̂ — tem o sentido da intervenção. Em ou­
tros contextos a educação bi-lingue poderá ter outros sentidos. Não é 
isso que nos interessa aqui. Interessa-nos que a literaturaindígena 
produzida terá a "cara” do SIL e estará marcada pelos efeitos missio­
nários (tradução do Gênesis) que eles visam.
No âmbito da assistência, a educação bi-lingue é o atestado que 
o SIL quer passar de sua eficiência e da sua excelência lingüística, 
de sua capacidade.
Segundo nossas prerrogativas, a educação é leiga e deve ser pro­
piciada por órgão governamental nacional. Terá então a “cara” que 
conseguirmos estabelecer com nossos projetos e discussões. O que não 
podemos permitir é que em nome de técnicas lingüístico-educacionais 
mal digeridas essa entidade desenvolva sua ação predatória da civi­
lização indígena.
03. o lance modernoso do índio participante, nesse contexto, só leva — no 
reducionismo do pragmatismo americano — à utilização do índio e não 
à sua autodeterminação.
25
5. O QUE SE ESCONDE É O QUE MAIS SE MOSTRA:
ATIRANDO FLECHAS NO AVIAO DO SIL
Chegamos afinal a urna questão muito relevante, dado o 
que chamamos de processo de silenciamento.
Esse processo — que acompanha todas as formas de exercício 
de poder, qualquer que seja sua natureza — faz com que falemos 
de algumas coisas para silenciar outras. Nossa questão, então, é a 
seguinte: O que não estamos discutindo enquanto discutimos o SIL?
Creio que podemos alinhar uma série de questões que se silen­
ciam atrás dessa discussão: qual é a relação entre o Brasil e os USA?^ 
Qual é a relação entre o branco e o índio? Frente à nossa história 
específica, qual é a relação do brasileiro com o índio? Como está 
sendo assumida nossa identidade cultural? Qual seria a forma ade­
quada de nós estarmos' em contato? Como a universidade tem enca­
rado a questão indígena? Etc.
Nesse silêncio que se faz sobre nossa atuação, queremos ressal­
tar algo que tem a ver de perto com esse contexto da nossa discussão.
Essas críticas em direção ao SIL — que tem, como vimos, suas 
fortes razões e merecem certamente nossa atenção e uma proposta de 
solução — absorvidas pelo discurso acadêmico, servem para dar ao 
lingüista a impressão de que ele é engajado, isto é, de que ele está 
discutindo algo politicamente muito relevante no próprio âmbito de 
sua ciência, quando, na realidade, isto é uma forma de, iludindo-o, 
isentá-lo da discussão política e teórica mais conseqüente em relação 
à sua prática científica. Critica-se o SIL e se continua a reproduzir, 
no interior da lingüística, a mesma ideologia científica opressiva. In­
cluo aí o fascínio pelos modelos e pela pretensa "autoridade” de 
estrangeiros — só porque são estrangeiros — sobre nossos trabalhos. 
"Autoridade” que lhes outorgamos quando não somos críticos e
04. Quando falo da relaçãò com os USA, penso em vários níveis. Aqui, ínte- 
ressa-nos o da produção científica e ideológica. Refiro-me à exploração do 
nosso trabalho intelectual que nos é alienado; refiro-me ao fato de que 
estamos ideologicamente submetidos, em termos científicos, de tal forma 
que nossas razões científicas só são razões quando eles as legitimam (re­
conhecem). E, evidentemente, eles legitimam o que lhes interessa como 
e quando lheç interessa. Ou seja, a relação é de dominação. É no interior 
dessa relação que se move o SIL coni suas práticas.
26
reproducimos a "eterna” relação entre colonizadores e colonizados. 
Nesse caso, muito mais grave porque se trata do colonialismo político- 
científico. Sob esse fascínio dos seus modelos, negamos nossa capaci­
dade de reflexão, um dos redutos fundamentais de resistência cultural, 
política e ideológica. Esse é um dos efeitos da ideologia científica 
contra o qual devemos nos alertar. Há muitos outros.
O mesmo, creio, deve-se passar com o antropólogo, no âmbito 
acadêmico. Mas não tenho conhecimentos para falar sobre isso.
O discurso sobre o SIL, nos meios acadêmicos, tem, pois, esse 
lado de mistificação. Mistificação do lingüista, a respeito de questões 
de língua, de escola, na relação com a cultura, com a ciência etc. 
Do lado do antropólogo, o correspondente jogo de mistificação é o 
que incide sobre o contato interétnico, a questão da identidade cul­
tural, a assistência, os modos de vida etc.
6. QUANTAS SÃO AS FRENTES DE CONFRONTO?
São muitas as frentes de confronto, e ao contrário do que pro­
move o SIL, essas frentes não podem ser embaralhadas.
Como o SIL utiliza a sobreposição de falas para silenciar o que 
podería atingi-lo, aí está uma primeira frente; pedir-lhes contas de 
sua atuação como missionários, e através de canais competentes. Ques­
tionar assim, através de organismos oficiais, o exercício de poder do 
SIL pela sua prática missionária.
Além das denúncias amplas para o esclarecimento acerca do 
funcionamento dessa entidade, é preciso uma ação que atinja decisão 
oficial e específica. Ou seja, a crítica deve ser feita no lugar certo 
e por quem tem poder de decisão. Já passamos da fase da conscien­
tização.
Por outro lado, e creio que esta é a frente de confronto mais 
importante, é preciso que consigamos condições para a formação e 
desenvolvimento de quadros de atuação regular, ou seja, precisamos 
de condições materiais de base para estarmos lá onde eles estão, com 
nossas práticas específicas e abertas.
No caso dos lingüistas, precisamos ter condições para formar 
pesquisadores em línguas indígenas, dar-lhes condições de pesquisa e 
continuidade; obter dos órgãos responsáveis o apoio financeiro a pro-
27
jetos de pesquisa de média duração no campo; obter da FUNAI con­
dições para desenvolver os projetos ñas áreas programadas; conse­
guir das instituições de ensino e pesquisa que déem lugar relevante 
para o ensino, a aprendizagem e a pesquisa no dominio da cultura 
indígena; abrir espaço institucional para estagiários etc.
No caso das questões educacionais, promover a formação de 
seminários de estudos conjunto e de debate entre antropólogos, lin­
güistas e educadores, com suas propostas e projetos.
Enfím, propiciar urna prática racional e regular no conhecimento 
da cultura indígena para criarmos uma tradição de estudos e pesquisa, 
críticos, nesse dominio, e do qual possam fazer parte, inclusive e 
sobretudo, os próprios indios.
BIBLIOGRAFIA
CORRÊA, Manoel G. — O discurso religioso da Congregação Cristã do Brasil, 
tese de mestrado, UNICAMP, 1986.
Documentos, jornais, livros sobre' o SIL, que fazem parte do acervo do CEDI, 
São Paulo.
GALVÃO, Walnice N. — A s formas do falso, Perspectiva, São Paulo, 1972.
GRAMSCI, B. — II materialismo storico e la filosofía di B. Croce, Einaudi, 
Turim, 1966.
ORLANDI, Eni P. — “Pátria e terra: o indio e a identidade nacional”, Pre~ 
edição, n.® 1, R.G., Campinas, 1985.
HUALKOF, S. & AALV', P. — Introducing God in Devil’s Paradise, Gran 
Pajonal, Perú, 1975.
28
o DISCURSO PROFÉTICO: 
RESSACRALIZAÇAO DO ESPAÇO SOCIAL
(Considerações sobre o relacionamento 
jurídico-religioso nos seus aspectos 
discursivos e antropológicos)
Selma Castro
"E se disseres no tea coração: como conhece­
remos a palavra que o Senhor não falou?
E quando tal profeta falar em nome do Senhor 
e tal palavra não se cum prir.. . esta é a pala­
vra que 0 Senhor não falou..
(Deuteronômio 18:21,22)
I. A HISTORICIDADE DA FÉ E O DISCURSO PROFÉTICO:
A DIMENSÃO FUGIDIA
Quando tomamos o discurso profético como objeto de reflexão, 
somos imediatamente alertados para a difícil situação-limite de ter 
que aprofundar as dimensões de espaço e tempo como condição de 
apreensão de uma outra dimensão-, a da fé, que, paradoxalmente, 
parece não se encontrar diretamente ligada à experiência histórica 
deste discurso.
Trata-se, portanto, de pensar a relação- entre o apocalipse e a 
história, ou melhor, a historicidade específica do discurso apocalípti­
co; a história como representação e não como'acúmulo.
A fé existe nas pessoas que acreditam no mistério de uma Reve­
lação divina. Esta Revelação, por sua vez, não prescinde de palavras 
e atos, ou melhor, de palavras-atos. Pelo contrário, são elas que,
29
através dos tempos, têm conservado, diriamos até constituído, o que 
se apresenta como a característicafundamenta] do discurso profético; 
a dissimulação da sua relação com o momento histórico como possi­
bilidade mesma de constituir-se.
Esta dissimulação, sem dúvida alguma, dá-se através do seu esti­
lo e forma específicos (por exemplo, o perfeito profético, que dá 
como realizado um fato futuro), assim como pelo seu conteúdo mes­
siânico (cf. Ballarini e Bressan, 1978).
Contudo, tanto a ciência da linguagem (através dos conceitos da 
Análise do Discurso) como a Antropologia (através de uma visão 
mais penetrante e dialética da produção do mundo simbólico) mos­
tram-nos a possibilidade de apreender esta forma e este conteúdo 
sob um outro ângulo: aquele que, acercando-se das condições de pro­
dução deste discurso é capaz de percebê-lo como forma em processo.
Encarando a profecia, manifestação e revelação deste mistério, 
como um conjunto de símbolos e um ato que atravessa o véu do 
tempo, reinaugurando a cada instante sua verdade, reatamos não 
apenas com as dimensões espaciais e temporais, entendidas dentro de 
uma geometria euclidiana, vividas há séculos e séculos, mas, funda­
mentalmente, dentro de uma concepção espacial inspirada na Física 
moderna. Reinserimos a quarta dimensão, o Tempo (esclarecendo, 
simultaneamente, o presente pelo passado e vice-versa, simplesmente 
tomando o futuro como força cotidiana.
II. O "DÉPASSEMENT" PROFÉTICO E SUA REPRESENTAÇÃO
NA E PELA LINGUAGEM
Nosso objetivo aqui é tentar uma reflexão conjunta, reunindo 
algumas noções da Análise do Discurso e uma visão antropológica, 
que seja capaz de pensar esta diluição dos limites espaciais e tempo­
rais e, ao mesmo tempo, esta geração de uma temporalidade con- 
substanciadora tanto de um certo profetismo bíblico, datado e loca­
lizado, quanto de outro, atual, cuja prática assenta-se sobre os mes­
mos textos.
Aproximadamente no ano de 608 a.C. veio a Palavra do Senhor 
a Jeremias ordenando-lhe que se postasse às portas do Templo de 
Jerusalém, exortando o povo com promessas e ameaças para que se 
arrependesse: " . . . Porque os filhos de Judá fizeram o que parece
30
mal aos meus olhos. . . puseram as suas abominaçôes na casa que se 
chama pelo meu nome, para a contaminarem..." "E farei cessar 
nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém, a voz de folguedo, a voz 
de alegria, a voz de esposo e a voz de esposa; porque a terra se 
tornará em desolação" (Jeremias 7:30 e 7:34).
Esta profecia pertence ao segundo período do seu ministério, no 
qual o profeta envolveu-se em sérios conflitos por atacar o Templo 
e o culto, símbolos máximos da religiosidade e nacionalidade do 
povo hebreu. Era um tempo de desagregação nacional.
Jeremias gritava contra a apostasia, contra o rompimento do 
acordo entre Deus e aqueles homens: " . . . (Assim disse Javé) Eu 
me lembro, em teu favor, do amor da tua juventude, do teu tempo 
de noivado, quando me seguias pelo deserto, por uma terra não cul­
tivada" (Jeremias 2:2).
Jeremias também anunciava a responsabilidade individual, a rela­
ção pessoal com Deus, noções que o povo havia perdido sob o impacto 
do paganismo.
Por volta do ano de 1888 surge o livro "The Great Controversy", 
da escritora norte-americana Ellen G. White, considerada até hoje 
uma profetiza da Igreja Adventista, onde o episódio da destruição 
do Templo e de Jerusalém, narrados dramaticamente a partir de 
dados históricos romanos e do próprio texto bíblico ... "constitui 
solene advertência a todos os que estão tratando levianamente os 
oferecimentos da graça divina".. . "profecia que há de ter outro 
cumprimento, do qual aquela terrível desolação não foi senão tênue 
sombra" (cf. White, E., pg. 33).
Acreditamos que o movimento entre estes dois momentos de 
fala profética possa ser caracterizado como resultado de um "dépasse- 
ment" profético, forma específica de relação com o sagrado onde a 
passagem do religioso para o jurídico e vice-versa é privilegiada, in­
termitente, e encontra-se representada na e pela linguagem.
Se estamos corretos em nossa reflexão, seremos capazes de de­
monstrar que este "dépassement" só é possível porque é a especifi­
cidade desta relação com o sagrado que possibilita a intertextualida- 
de ̂ do profetismo de E. G. White.
01. Todo discurso religioso (pela sua natureza) tem a ver com outro dis­
curso religioso. Ex: o discurso da cura remetido à Bíblia.
51
E qual seria esta especificidade? Seria exatamente a interlocução 
que se estabelece entre Deus e os profetas, que aponta para a exis­
tência de um acordo entre Deus e aqueles homens. Acordo que expõe 
a vontade divina e implica numa obrigação (berít), num comprome­
timento por parte do povo escolhido (cf. Fohrer, G., 1982). Acordo 
que hoje, recolocado, implica numa reavaliação destes aspectos jurí­
dicos e religiosos.
Como lidar com os conflitos da experiência humana senão com 
a "ilusão da reversibilidade" (cf. Orlandi, E., 1983), aquela que 
justamente vai possibilitar esta passagem intermitente do religioso 
• para o jurídico e vice-versa, permitindo ao profeta falar como se 
fosse Deus, em lugar de Deus?
Este acordo remete às próprias condições de produção deste dis­
curso e esclarece a natureza histórica e sociológica da voz do pro­
feta: a própria instituição do profetismo bíblico (Deuteronômio 
18: 15-22) aponta para o poder desta fala. Mas, ao mesmo tempo, esta­
belece a relação de Deus com a história, deixando ao profeta, inclu­
sive a possibilidade de ter que vir a sacrificar-se: se aquilo que o 
profeta anunciou não acontece, ou a predição era falsa (e o profeta 
perde seu poder), ou Deus quis provar o amor do seu povo.
III. O PROFETISMO COMO DISCURSO DA MEDIAÇÃO
E SUAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
À necessidade prática do profetismo (paralelo com a instituição 
monárquica), junta-se o critério empírico de avaliação dos aconteci­
mentos, ou seja, da história.
Como bem o mostram Ballarini e Bressan.'.. “pode acontecer 
que sob a realização ou não da palavra de Javé se esconda um signi­
ficado mais profundo e relativo a um conteúdo doutrinai e moral” 
(pg. 28). Sem discordar dos autores, gostaríamos, contudo, de salien­
tar um outro nível da questão, que é exatamente a necessidade que 
este discurso tem de deixar em aberto sua relação com a história 
como possibilidade mesma de constituir-se. Nesse sentido, os conteú­
dos doutrinai e moral seriam a própria expressão dos aspectos jurídi­
cos e políticos deste discurso.
Citando ainda Henry Meschonnic.. . “C’est ce qui se joue . . . 
qüand des discours privilégient le religieux contre Fhistoire, dans
32
rhistoire même. Effet politíque que c’est une légitimation de l’ordre, 
à travers une resacralization de Tespace social” (cf., 1980)
Acreditamos que as relações entre o jurídico e o religioso acham- 
se ai formuladas na medida em que a constituição daquele povo como 
nação está em relação direta ao cumprimento da sua observância 
religiosa.
A articulação entre o religioso (a proposta de Deus), o político 
(os conflitos da experiência humana) e o jurídico (ou o acordo, aquele 
que, instituído pela intermediação do profeta, permite uma “econo­
mia do sagrado", onde a vontade de Deus e a vontade dos homens 
buscam constantemente um precário equilíbrio) dá-se através do dis­
curso profético, 0 discurso da mediação, o discurso das ameaças e 
promessas.
Ora, este acordo acha-se fundamentado a partir de Abrão. Com 
ele instaurou-se uma nova “economia do sagrado”. Não mais a pere­
grinação, mas a terra da promissão, em perpétua possessão; não mais 
0 sacrifício do primogênito, mas a dádiva de um filho na velhice; 
não mais qualquer deus, mas o único, o seu Deus, aquele que impõe 
uma “nova ordem cosmogónica, um novo início, um novo sentido à 
vida, marcado não mais pela consumação do corpo do primogênito, 
gesto coletivo que significava a circulação da energia entre a divin­
dade, a natureza e o homem” (Eliade, M., 1984), mas pela circunci­
são, marca no corpo de cada macho desta nova nação. O corpo como 
expressão desta individualidade, desta identidade.
SegundoRubem Alves, na conversão "repete-se o momento cos­
mogónico”, instaura-se um "novo universo significativo” (cf. Alves, 
R., 1984, pp. 131/175).
A experiência de conversão (de fé) vivida por Abraão significou 
H mudança do seu próprio nome (de Abrão para Abraão), e a aceita­
ção do mistério de ter que concordar em sacrificar o filho que lhe 
havia sido dado pelo próprio Deus como condição fundamental do 
acordo: como vir a ser o pai de nações sem ter um filho que espa­
lhasse sua semente?
02. E isto que está em jogo. . , quando os diseiírsos privilegiam o religioso 
contra a história, na própria história. Efeito político que é uma legiti­
mação da ordem, através de uma ressacralizaçao do espaço social.
33
A partir desta experiencia (é claro que não apenas desta, mas 
fazemos esta escolha em função do ángulo que queremos abordar), 
surge urna nova realidade religiosa, de urna assimetria radical entre 
a dimensão divina e a temporal, ou seja, se para as tribos que habi­
tavam aquela região, da qual provinha o próprio Abraão, sacrificar 
o primogênito significava controlar a esfera do sagrado, para ele, sa­
crificá-lo significaria * submeter-se ao seu Deus, de identidade única, 
"que ordena, gratifica, exige, sem qualquer justificativa racional (ou 
seja, geral e previsível)" (Eliade, M., 1984).
A partir dela tem também início a constituição simultânea das 
identidades Deus/povo: " . . . Eu sou o Senhor que te tirei de Ur 
dos Caldeus para dar-te a ti esta terra, para herdares" (Gênesis 
15;7), condição fundamental do discurso discordante, aquele que terá 
que lidar com rupturas e acertos, abrindo espaço para o discurso 
profético. O discurso de uma religião "de natureza ética e política” 
(cf, Alves, R., 1984, ,pg. 103).
Interessante observar que esse acordo, que passa a fazer-se simul­
taneamente à experiência de fé e conversão, implica na emergência 
desse povo como unidade étnico-jurídico-política: "Ora, disse o Se­
nhor a Abraão: sai da tua terra, da tua parentela e da casa do teu 
pai, e vai para a terra que te mostrarei, de ti farei uma grande na­
ç ã o . . ." (Gênesis 12:1,2).
A emergência desse povo como unidade étnico-jurídico-política 
através do religioso implica também no aparecimento de um código 
de leis dado, primeiramente a Moisés e escrito pela própria mão do 
Senhor, e, desenvolvido através dos profetas ao longo do processo 
histórico. A constituição deste corpus religioso e jurídico (que é o 
acordo em processo), sob a forma de texto escrito,* é a própria his­
tória submetida à linguagem profética, a única capaz de dar signi­
ficado aos acontecimentos, contemporâneos ou passados, situando-os 
simultaneamente no presente (porque a revelação acontece numa de­
terminada data, inscreve-se na história e está em relação à situação 
vivida pelo profeta no seu papel de mediador^ entre a vontade de
03. O sacrifício não chegou a ser consumado. Ver Gênesis 22.
04. Chamamos a atenção para a especificidade desta mediação: se por um 
Jado ela “mostra interesses religiosos e morais, ainda quando a sua ativi­
dade assumia coloridos políticos” (cf. Ballarini e Bressan, 1978), por 
outro, “eles (os profetas) entendiam que o sagrado, a que davam o nome
54
Deus e a vontade dos homens), mas também num illud tempus, que 
é este tempo em aberto, à espera de uma realização profética.
Na medida em que os acontecimentos são interpretados à luz de 
uma fé religiosa, os dois atos proféticos (de predição e interpretação 
dos acontecimentos) tornam-se a contrapartida um do outro, fazendo 
com que a história assuma um sentido único, realizando-se como a 
própria manifestação/intervenção de Javé, para o bem e/ou para 
o mal.
No entanto, apesar da palavra tender, neste sentido, para uma 
monossemia — na medida em que o significado dos fatos é sempre 
referido à atuação (discurso) de Javé que fala através dos profetas 
— por outro lado, a própria condição de existência da palavra pro­
fética é que ela seja sempre uma possibilidade virtual de predição e 
interpretação dos fatos. Neste sentido, tornam-se importantes para 
caracterizar o discurso profético, não só as noções de polissemia e 
obscuridade, mas também a de "ilusão da reversibilidade” capazes 
de confudirem profundamente as ordens religiosa e jurídica.
Partindo destas considerações, poderiamos concluir que a dia- 
logia, no caso' deste profetismo bíblico, dá-se entre o profeta (que 
através da "ilusão da reversibilidade" fala como se fosse Deus) e a 
história. Não a constituída, mas a que vai constituir-se.
IV. O CULTO DO TEMPLO COMO LEGITIMAÇÃO POLÍTICA: 
DESTINO E ARQUÉTIPO. JUSTIÇA E MISERICÓRDIA.
Por outro lado, a emergência deste povo como nação envolve 
uma observância religiosa que, ao passar pela experiência da fé, não 
apenas acentua seus aspectos rituais e doutrinários, mas enquanto
de vontade de Deus, tinha a ver fundamentalmente com a justiça e a 
misericórdia” (cf. Alves, R., 1984).
Neste aspecto, ligava-se profundamente à dimensão temporal, com 
nítido caráter de ruptura com a tradição dos nabi, por exemplo, ou os 
profetas institucionais.
0.5. No seu trabalho “O Discurso Religioso”, Eni P. Orlandi mostra como a 
polissemia e a obscuridade da profecia são condições para que as vozes 
deste discurso sejam articuladas, sem romper com Deus nem com os acon­
tecimentos reais, através da “ilusão da reversibilidade”: . . . “A ilusão da 
passagem de um plano a outro, de um mundo a outro” (cf. Orlandi, £., 
1983, pg. 226).
35
hierofania ®, "transfigura o lugar que lhe serve de te a tro (c f . Élíade, 
M., 1984): da mesma maneira como Deus diz a Abraão que parta 
da sua terra em direção não apenas à terra prometida, mas ao des- 
tino que lhe fora reservado após o longo cativeiro no Egito e após 
a escritura dos dèz mandamentos, ordena que Moisés construa um 
santuário definitivo, segundo o modelo que lhe forneceu (Êxodo 
25,26, 27). Isto significa que ao mesmo tempo em que esta lingua­
gem profética passa a engendrar um novo corpus religioso/jurídico 
para o povo judeu, também récontextualiza os antigos arquétipos do 
mundo páleo-semita relativos ao lugar sagrado, transcendendo-os, reves­
tindo-os de uma qualidade única, operando a legitimação política.
Assim, se para o mundo páleo-semita em geral os mitos e os 
símbolos "têm um significado que revela uma tomada de consciência 
de uma determinada situação no cosmos” Eliade, M., 1984, pp. 17, 
18), a ordenação da construção do Templo de Jerusalém por Deus 
acrescenta a esta simbologia um sentido que só a Revelação e a pro­
fecia podem conferir, isto é, o sentido da localização espacial da 
experiência da unidade política.
Se para o mundo arcaico a simbologia do centro (casas, tem­
plos, cidades dos deuses) consubstancializa um posicionamento no 
cosmos, para os judeus, a partir de Abraão, esta simbologia concen­
tra-se na construção do Templo (o de Jerusalém) que permitiría a 
realização simultânea da ordem jurídica e religiosa na medida em 
que passaria a concretizar ali esta identidade, através das práticas 
rituais daquele povo. Esta conçretude, por sua vez, não tem o sen­
tido de algo feito a partir de sua realização apenas material, mas 
enquanto representação: construção conjunta de uma prática e de 
uma significação que se definem mútua e continuamente. O culto do 
Templo afirma-se ao longo do processo histórico, tornando-se símbolo 
político.
Talvez possamos dizer que a especificidade política introduzida 
pelos hebreus nessa recontextualização da simbologia (espacial) do 
sagrado seja esclarecida pela relação com a história: enquanto para
06. Representações do sagrado, baseadas na natureza. 
36
o mundo arcaico a relação Ser/Cosmos, traduzida numa economia do 
simbólico que se caracterizava por um movimento cíclico de retorno 
ao centro — em termos temporais (gesto criador) e espaciais (umbigo 
do mundo, pedra fundamental) — com os hebreus, a partir dos pro­
fetas, o arquétipo tradicional do centro como repetição é articulado 
como urna concepção histórica,mas história como linearidade, cujo 
sentido único, religioso, é conferido através da revelação profética.
Este sentido religioso emerge do acordo entre Deus e Moisés com 
as exposições da lei mosaica onde a instituição do sacerdócio, as pres­
crições rituais e o culto do Templo compõem um todo articulado 
(Exodo 5: Lei da Restituição; 6: Lei do Nazireado; Exodo 20: os 
dez mandamentos; Exodo 25: modelo para a construção do taber­
náculo).
Porém, após a experiência da primeira diáspora, ou seja, do 
exilio na Babilônia, o povo judeu se vê diante de condições de vida 
que impõem modificações nessa "economia do sagrado”: com a des­
truição do Templo, com a impossibilidade de realizar a prática do 
ritual do sacrifício (cf. Drane, J., 1985, pg. 18), viram-se forçados 
a modificações rituais e doutrinárias. A partir daí, desenvolve-se a 
multiplicação de sinagogas que, ao mesmo tempo em que preservam 
a identidade do povo através da fidelidade a uma fonte bíblica textual, 
operam uma reelaboração interpretativa simultaneamente adequada às 
condições concretas de existência e metafórica em relação a esta rea­
lidade.
Com o fim do cativeiro e a volta a Jerusalém, o povo empenhou- 
se novamente, desta vez na reconstrução do Templo.
Contudo, embora este tenha retomado o papel aglutinador que 
sempre lhe coubera, não pôde impedir o processo de cisão interpre­
tativa que teve início durante o cativeiro na Babilônia: da prática de 
visitas periódicas ao Templo, com o oferecimento de sacrifícios, pas- 
sou-se a dar ênfase àquelas "que os judeus podiam fazer em qual­
quer lugar: oração, leitura da Torá, observância do sábado, circun­
cisão e observância das leis alimentares do Antigo Testamento” (cf. 
Drane, J., 1985).
A partir deste momento tomam-se mais nítidos os contornos de 
facções político-ideológicas:
37
FARISEUS SADUCEUS
— O Estado deveria continuar — A Torá deveria continuar
a ser governado estritamen- como Constituição político-
te pela Torá religiosa, mas os interesses '
— O "texto escrito" já conteria econômicos e os expedieil-
a tradição oral (revista, in- tes políticos deveríam ser o
terpretada e adaptada pelos juiz final das decisões
Escribas) — Texto escrito sem incluir a
— Ênfase maior na Torá tradição oral
— Deus universal — Ênfase maior no Estado
— Deus nacional
Na realidade, os dois partidos disputavam o poder, mas a pala­
vra profética continua a situar-se num outro nível, através de um 
discurso cuja ética transcendental tudo vê, tudo pode, tudo concilia 
mesmo quando ameaça, porque não é uma conciliação das partes, 
mas uma subsunção a uma instância superior.
Fariseus e Saduceus divergiam sobre o privilegiamento da lei 
escrita ou da tradição oral, mas Jesus divergia dos dois exortando o 
homem a ter uma relação mais direta e pessoal, em oculto, com Deus. 
(Mateus, 6;1;6:5 etc).
A hegemonia política e ideológica dos fariseus é sustentada por 
um discurso no qual se dizem portadores do sentido literal do texto 
bíblico.
Era primeiro lugar, o que significava para os fariseus o que cha­
mamos de literalidade?
Fundamentalmente, executar exatamente o que o texto bíblico 
ensinava, em público, ou seja, em qualquer lugar (Mateus, 6;1; 6:5; 
6:7; 6:16; 17, 18), ou dar mais valor aos aspectos externos do ritual 
(Mateus 5:20; 16:6, II, 12; 25:1 a 39), e isso, conforme vimos, foi 
uma adaptação ocorrida ao longo do tempo a partir do exílio na 
Babilônia.
Os fariseus alegavam conhecer e cumprir a lei, acusando Jesus 
de não observá-la (por exemplo, o sábado e o culto ao Templo; 
Mateus 12:1 a 8).
38
Jesus acusava os. fariseus de ‘̂sepulcros caiados" (Mateus 23:27), 
ou seja, de atentarem apenas para os aspectos exteriores da religião.. . 
"dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e tendes negli­
genciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericór­
dia, a f é . . . ” (Mateus 23:23).
Às acusações que lhe faziam, Jesus respondia: "Não vim revogar 
a lei, mas cumpri-la” (Mateus 5:17).
Qual seria a especificidade dessa oposição quando observamos 
que ambos os discursos afirmam "cumprir a lei”?
As relações entre o jurídico e o religioso no discurso dos fariseus 
apontam para um privilégio do temporal sobre o divino, espe­
cialmente quando levamos em consideração a relação que nele há 
entre ortodoxia e legitimação política.
O discurso de Jesus, por outro lado, dialoga com o dos fariseus 
remetendo ao divino, à ordem da graça.
Contudo, não devemos esquecer as implicações temporais dos 
conceitos fundamentais do discurso de Jesus: justiça e misericórdia.
Ao que nos parece, a palavra de Jesus sobrepõe-se às variações 
interpretativas tanto dos escribas e dos fariseus como dos saduceus, 
na medida em que retoma a ética religiosa transcendentalista, recolo­
cando-a numa relação homem-Deus muito mais pessoal, embora não 
inédita, como vimos.
Ela revela, simplesmente, a possibilidade de um novo acordo. 
Um acordo que valoriza a experiência do povo, por certo desejoso de 
justiça e misericórdia, mas que também faz tuna nítida distinção entre 
o temporal e o espiritual: "Dai a César o que é de César, e a Deus 
o que é de Deus” (Mateus 22:21). A este aspecto nos referimos quan­
do salientamos o caráter da mediação profética: notas 4 e 5.
Além disso, e este aspecto é importante para a abordagem con­
junta que procuramos realizar, reinterpreta a simbologia do Templo, 
transformando o corpo num templo do Espírito Santo, instaurando 
)1uma nova "economia do sagrado” centrada na relação direta do 
indivíduo com Deus. O acordo para a salvação de cada um estabe­
lecer-se agora, não mais pela estrita observância ritual, mas depen­
dendo da experiência da fé e da conversão.
39
VELHO TESTAM ENTO NO VO TESTAM ENTO
Texto: íeofania — conta a his­
tória do povo de Israel como 
manifestação de Javé, interpre- 
tando-a profeticamente 
Templo; centro aglutinador das 
práticas rituais prescritas pelo 
texto; prática sacerdotal 
Aliança com Abraão: incondi­
cional
Acordo com Moisés: condicio­
nal: construção do Templo e 
obediência às leis.
Texto: os evangelhos — con­
tam a vida e os ensinamentos 
de Jesus, inclusive suas profe­
cias relativas ao fim dos tempos 
Templo: corpo 
Prática missionária 
Ordem da graça: a salvação 
pela fé e conversão. .
V. CORPO: LOCUS.RESSACRALIZADO
Na continuidade deste processo, o Cristianismo passa a respon­
der às necessidades criadas por uma intensa e progressiva comple- 
xificação do social. A este social deve corresponder um mercado mais 
diversificado de opções religiosas, na medida em que a religião ca­
racteriza-se como forma privilegiada de expressão dç social.
Como diz J.P. V ernan t... "por mais diversas que elas sejáhi, 
respondem sempre a esta vocação dupla e solidária: para além das 
coisas, atingir um sentido que lhe dê uma plenitude das quais elas 
mesmas parecem privadas; e arrancar cada ser humano de seu isola­
mento, enraizando-o numa comunidade que o conforte e o ultrapasse" 
(in Berger, P., 1985).
A significação do profetismo de E.G. White está justamente 
nesta ultrapassageni que é, ao mesmo tempo, de sentido (a destruição 
de Jerusalém e do Templo, a punição pelo rompimento do acordo 
entre Deus e aqueles homens passa a significar a punição virtual para 
toda a humanidade, a realizar-se no final dos tempos) e de fato, 
pois é uma experiência emocional e subjetiva inegável: a profecia 
motiva, sensibiliza e até desperta o temor. Mas é fortalecida, testemu­
nhada e pregada pela fé (conversão).
Interessante observar agora como o processo de constituição da 
nação judaica relaciona-se a um processo de mudança ritual, de reela- 
boração de arquétipos que culminam na emergência do homem como 
indivíduo: de uma prática ritual de consumação do corpo social
40
(sacrifício do primogênito), ao sacrifício do corpo simbólico (o cordei-, 
ro), chegando a um privilegiamento da observância da circuncisão e 
das restrições alimentares que, embora sejam preceitos coletivos, têm 
como suporte o corpo individual, o qual devetrazer em si mesmo e 
em cada um a marca do cumprimento da Torá.
Mas 0 profetismo de E.G. White não interpela mais aquele indi­
víduo cristão cujo corpo é o espaço sagrado do embate entre a von­
tade de Deus e a vontade do homem.
Não há mais marca alguma. Há apenas a vida deste homem e 
sua vontade que deve ser subjugada.
Não mais o Templo, o sacrifício, o acordo incondicional, mas 
a escolha, a liberdade, a responsabilidade pessoal pela sua salvação.
Não mais a intermediação do profeta pela constituição política 
daquele povo que precisava do seu Deus para ter consciência de si 
mesmo, mas a interpelação do indivíduo em sujeito, constituição jurí­
dica que precisa entender-se livre e dona da sua vontade para fazer 
exatamente o que dela se espera: que se sujeite à ordem estabelecida, 
a este modelo político que organiza o espaço social da exploração e 
desumanidade a partir da manipulação ideológica do “corpo seu de 
cada dia".
Um corpo desmerecido, bagagem provisória, peso. da corrupção, 
guarida do germe da morte e do pecado mas que, apesar de tudo, é 
0 templo do Espírito Santo.
E que, acima de tudo, é o único bem que os (alguns) homens 
podem ainda negociar.
Mas é preciso crer.
E o espírito é a palavra. O ato de potência que cria e recria 
todas as dimensões do (des) conhecimento humano.
JUBLIOGRAFIA
ALVES, R. — O Enigma da Religião, Papirus, Carhpinas, 1984.
UALLARINI, T. & BRESSAN, G. — O Profetismo Bíblico, Vozes, Petrópolis 
1978.
4
ELI ADE, M. — O Mito do Eterno Retorno, Ed. 70, 1984.
--------------- . Tratado da História das Religiões, Cosmos, Lisboa, 1977.
FOHRER, G. — História da Religião de Israel, Paulinas, 1982.
MESCHONIC, H. — Religión, Maintien de VOrdre, n.® 325, NRF, 1980,
ORLANDI, Eni P. — “O Discurso Religioso”, A linguagem e seu Funciona- 
mento, Brasiliense, São Paulo, 1983.
WHÍTE, E.G. — O Grande Conflito, 21.® edição, Casa Publicadora Brasileira, 
São Paulo, 1978.
Obs.: Todas as citações bíblicas foram extraídas da tradução de João Ferreira 
D ’Almeida, Sociedade Bíblica do Brasil, Rio de Janeiro, 1955.
42
DE DEUS AO SEU POVO...
(Análise de uma Carta Pastoral da Arquidiocese 
de Vitória — ES)
Romualdo Dias
APRESENTAÇÃO
Este trabalho faz parte de uma pesquisa, intitulada "A metodo­
logia na educação popular: o projeto educativo da Igreja Católica na 
Arquidiocese de Vitória no Espírito Santo" *.
O desenvolvimento de minha investigação consta de duas etapas: 
na primeira me dediquei à coleta de documentos nos arquivos da 
Arquidiocese de Vitória e arquivos públicos. Na segunda etapa, reco- 
Ihi depoimentos de membros da Igreja, através de gravações de entre­
vistas com roteiro básico, incluindo adeptos das comunidades ecle- 
siais de base, agentes pastorais leigos, religiosos e padres. De posse 
dos depoimentos, passei à análise do discurso desses indivíduos em­
penhados nas atividades pastorais religiosas no âmbito daquela Ar­
quidiocese.
A análise dos depoimentos levou-me a indagar pelas relações 
entre o discurso dos militantes e o discurso institucional. Por isso, 
analisei um dos funcionamentos do discurso da Igreja Católica, através, 
da fala dos bispos da Arquidiocese de Vitória. Essa fala se instancia 
na Carta Pastoral usada como objeto de análise neste trabalho.
O texto em estudo foi publicado pela gráfica da Arquidiocese 
de Vitória, em outubro de 1984, assinado pelos bispos Dom Silvestre
Desenvolvo esta pesquisa no programa de pós-graduação do Departamento 
de Ciências Sociais Aplicadas à Educação, na FE, UNICAMP.
43
Luis Scandian (Arcetispo Metropolitano) e Dom Geraldo Lyrio Ro­
cha (Bispo Auxiliar). Está intitulada "Carta Pastoral sobre a Avalia­
ção, Aprofundamento e Reflexão da Pastoral da Igreja de Vitória". 
Trata-se, portanto, de um documento elaborado com a finalidade de 
oficializar "os encaminhamentos para a GRANDE AVALIAÇAO, 
REFLEXÃO E APROFUNDAMENTO DA AÇÃO PASTORAL DA 
IGREJA DE VITÓRIA".
Como esclarecimento inicial, devo ressaltar que no próprio texto 
oficial, tomado para a análise cujo resultado parcial apresento neste 
artigo, encontram-se explicadas “( . . . ) as justificativas que motiva­
ram a GRANDE AVALIAÇÃO: Queremos perguntar-nos: o que é 
feito da Igreja de Vitoria, passados vinte anos do final do Concilio 
e dez anos da publicação das Pistas Pastorais?" As "Pistas Pastorais” 
foram publicadas pela Arquidiocese em 1974, como forma de melhor 
sistematizar um processo organizativo pastoral, fundamentado prin­
cipalmente nos docurñentos do Concilio Vaticano II e ñas Conclu­
sões da Conferência Episcopal Latino-Americana em Medellín (1968).
O processo renovador na Arquidiocese de Vitória orientou as 
atividades pastorais evidenciando a problemática social, propiciando 
urna releitura bíblica, estimulando novas vivências religiosas, confor­
me podemos observar na expressão, muito comum naquela Arquidio­
cese: "ligar Fé e Vida”.
Portanto, a "Grande Avaliação" se propõe a uma análise do pro­
cesso pastoral, através da aplicação de questionários e debates nas 
diversas instâncias da estrutura eclesiástica, com inicio em 1984 e 
prevista para terminar no final do corrente ano.
1. MAIS UMA VEZ, CONVOCAMOS TODOS. . .
Toda a carta pastoral mantém uma forte e constante coerência 
entre o estilo empregado e a finalidade a que se propõe. Podemos 
dizer que essa coerência se realiza na forma de uma carta convoca­
tória. Enquanto podemos observá-la como "ato de linguagem".
O processo de efetivação desse ato se dá em duas etapas.
a. Numa primeira etapa há o pedido e a valorização.
Quem pede (exige) é Deus através de seus representantes legí­
timos, os bispos, que são os signatários do texto em análise. A voz 
de Deus rege a voz dos bispos, e isto aparece sob a forma de citação:
44
" ( . . . ) Deus, mesmo podendo, não faz as coisas sozinho: péde e 
valoriza a colaboração dos seus filhos. Ele exige nosso esforço e 
nossa corresponsabilidade."
Mais adiante, está colocado diretamente o pedido dos bispos. No 
entanto, mais do que um pedido podemos observar que já se trata de 
outra espécie de ato de linguagem, a convocação: "Através desta 
nossa Carta, CONVOCAMOS, mais uma vez toda a Arquidiocese de 
Vitória a participar desta iniciativa Nesse passo, estamos já
na segunda etapa.
b. A segunda etapa, do ato de linguagem que procuramos carac­
terizar, consiste na exigência do cumprimento de deveres. Já foi 
visto que Deus pede a colaboração e exige o esforço e a correspon­
sabilidade na tarefa evangelizadora. Sustentada no primeiro pedido, 
a Igreja, então, exige: "A partir do Concilio Vaticano II, sobretudo, 
essa colaboração na renovação da Igreja é pedida a todos os fiéis: 
sacerdotes, religiosos e leigos, e exige que trabalhemos juntos, refle­
tindo, planejando, executando e avaliando nosso serviço eclesial."
Essa exigência, por sua vez, é argumento a favor da Grande 
Avaliação já que avaliar é uma tarefa exigida para a renovação 
du Igreja.
Como ato de linguagem, o discurso convocatório não é produ­
zido, segundo se sabe, apenas para transmitir informações, mas se 
constrói já estruturando uma ação que envolve os seus adeptos. A 
corresponsabilidade é atribuída a todos, pretendendo alcançar o maior 
lulmero possível de fiéis.
Observando atentamente o sumário da Carta, podemos notar 
que as etapas acima descritas parecem orientar o desenvolvimento 
(Io texto.
O pedido e a valorização são fundamentados por um conjunto 
(Io motivações e justificativas, composto por toda uma história da 
Igreja, rememorada por uma breve descrição da conjuntura social, 
econômica e política.
Para completar, os prelados apresentam a estrutura organiza­
cional que já fora construída até então, ficando bem claro que se 
chegou a isto com a "colaboração" de todos. Em seguida, são colo­
cados os motivos e objetivos da tarefa solicitada; a "Grande Ava­
liação".
45
As duas últimas partes e a conclusão formam as exigências. Se 
todos já colaboraram até então, as razões são suficientes para exigir- 
desempenho favorável para

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