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RESENHA: VÍCIOS PRIVADOS, BENEFÍCIOS PÚBLICOS? EDUARDO GIANNETTI A presente obra tem como escopo provocar uma reflexão, em seus leitores, acerca da relação entre a ética e a economia e do papel daquela no desenvolvimento desta, no âmbito de uma sociedade. Para isso, o autor, Eduardo Gianetti, traz à obra o posicionamento dos principais filósofos e estudiosos da economia, questionando suas principais teses. Como destacado em sua Introdução, a obra aborda pelo menos três correntes de pensamento filosófico econômico, na tentativa de se explicar, bem como em busca de se remediar, o famigerado “hiato”, senão abismo - como menciona o próprio autor - entre o mundo “como ele é” e o mundo como “ele deve ser”. Isso porquê, conforme sustenta Gianetti, seja no campo da economia ou da filosofia política, há diversos argumentos que sustentam (i) que referido “hiato” decorre do fato de que as sociedades não atingem a sua plenitude em termos de economia; e (ii) que, as próprias sociedades, possuem, em seu bojo, ferramentas capazes de, ao menos, aproximá-la dessa plenitude econômica almejada. Assim, para elucidar melhor as correntes de pensamento que buscam explicar esse gap entre a sociedade como ela é e como ela deveria seria ser em termos econômicos, o autor divide o livro em cinco partes, todas sob o enfoque da moral, da conduta individual humana e da ética como fatores que contribuem negativamente e/ou positivamente no desempenho econômico das sociedades. No capítulo 1, Gianetti nos introduz a tese do “neolítico moral”, a qual sustenta que o grande desenvolvimento do homem nos campos científico, tecnológico, material e econômico não foi acompanhado, na mesma proporção, do desenvolvimento ético, de maneira que a sociedade ainda vive numa era de constante atraso moral. Daí o termo “neolítico moral”. Contudo, Giannetti afirma que referida tese possui algumas falhas, já que, diferentemente do progresso científico, tecnológico e material, os quais podem se sujeitar à uma escala de mensuração, a ética não é passível de mensuração. Assim, não havendo, critérios objetivos, bem definidos, incontroversos e passíveis de comparação e capazes de estabelecer um parâmetro válido e empiricamente comprovado, não há que se falar em progresso (ou ausência de progresso) ético e moral. Além disso, o autor ressalta o demasiado enfoque na ótica negativa da tese, ou seja, naquilo que “falta”, ao invés de se ater naquilo que, de alguma forma, buscaria solucionar ou, ao menos, atenuar a problemática do hiato. É nessa linha de raciocínio que Gianetti inaugura o segundo capítulo do livro, intitulado “Ética, sobrevivência e coesão social”, onde irá discorrer sobre a ética como um instrumento capaz de fazer a diferença, exercendo um papel de destaque no funcionamento da sociedade. E é nesse espírito de “se fazer a diferença” que Gianetti levanta diversos questionamentos quanto ao papel da ética enquanto fator de coesão social, indagando de que formas a ética (ou a falta dela) poderia causar interferências, positivas ou negativas, no rumo econômico de uma sociedade. Vale dizer que, diferentemente da tese do “neolítico moral”, aqui, a ética tem a função de coordenar e conciliar, na medida do possível, os diferentes interesses existentes na sociedade, garantindo uma coexistência pacífica entre os indivíduos. Para isso, o autor se propõe a desenvolver a discussão sobre as funções sociais e econômicas da ética, bem como quais fatores determinam a maior ou menor adesão dos preceitos e normas éticas pelos membros da sociedade. A ideia de adesão a uma norma pressupõe a existência de um conjunto de regramentos, sistematizado e organizado de modo a disciplinar o comportamento dos indivíduos de uma sociedade, seja para garantir um equilíbrio entre os mais variados e diversos interesses, facilitar a administração de recursos de forma eficaz, ou para aplacar os conflitos e evitar guerras. Entretanto, para que se possa entender como se deu a criação de um arcabouço jurídico, bem como a decisão de adesão e subordinação ao referido sistema normativo por parte dos membros da sociedade, é mister que se dê um passo atrás, mais precisamente nas primeiras páginas do capítulo dois da obra, onde o autor traz o posicionamento dos mais diversos filósofos na tentativa de encontrar qual é o elemento fundamental que garante a coesão de um agrupamento humano. Para Protágoras, o homem só sobreviveu ao longo dos anos por ter sido capaz de se associar aos seus semelhantes e viver em comunidade. E isso só foi possível por meio do desenvolvimento da consciência e justiça. Já na visão de Aristóteles, o discernimento moral e a ética são ferramentas-chave para a convivência do homem em sociedade. Lucrécio, por sua vez, divide a evolução da sociedade humana em três fases: (i) homem primitivo; (ii) sociedade pré-política, marcada por um curto período de estabilidade e relativa harmonia; e (iii) sociedade política, onde vigora um código de leis de compulsório, cuja obediência se dá através do medo da punição. Já na filosofia moderna, destaca-se Hobbes, com o argumento do relativismo moral. Para o filósofo, os julgamentos éticos e morais, bem como os conceitos de bem e mal, certo e errado, são subjetivos e, a partir daí, decorreria uma falta de padrão e aceitação universal pelos membros da sociedade. Sendo assim, é mister que tais noções de certo/errado, justo/injusto venham “de cima para baixo”, ou seja, tal valoração depende da constituição de um poder soberano, apto a determinar e uniformizar esses conceitos. Hobbes afirma que o medo da morte violenta foi o principal fator motivador que compeliu o homem a abdicar de sua liberdade de autojulgamento moral, conferindo-a a um poder soberano. Em sua visão, nunca houve no passado da história da humanidade qualquer sociedade que vivesse de forma harmoniosa, sob um acordo moral que viesse “de baixo para cima”. Partindo-se dessa premissa, o código de leis e sanções compulsórias surgiram na tentativa de se minimizar os conflitos e a violência, conferindo uma maior segurança a todos os indivíduos da sociedade. É nesse ponto que somos capazes de entender quais são as razões que levaram os homens a abrir mão de uma parcela de suas liberdades, conferindo essa prerrogativa de decisão a um ente soberano. Todavia, a existência de um poder soberano, legitimado para criar as normas e assegurar o seu cumprimento mediante sanções, não garante que todos os membros de uma sociedade irão se sujeitar a elas em sua integralidade. Mas quais seriam os fatores que levaram os homens à adesão e subordinação a estas normas? Gianetti elenca três fatores como os principais: (i) a submissão, onde a adesão às normas é pautada em um cálculo racional por parte do indivíduo; (ii) a identificação, que consiste numa adesão baseada no desejo de se conquistar ou manter a boa opinião dos demais membros da sociedade; e (iii) a internalização, que é a decisão de obedecer à determinado regramento, baseando-se em uma reflexão ética. Apresentando ao leitor os três fatores, o autor encerra o capítulo concluindo que a adesão das normas não é tão somente norteada por um único fator isolado, mas sim pela combinação de todos eles. O terceiro capítulo dá prosseguimento ao debate da questão da moralidade cívica como fator de coesão social e sobrevivência comunitária, desenvolvida ao longo do segundo capítulo. Todavia, conforme o próprio autor menciona na Introdução, o enfoque recai sobre os “limites da autoridade política e da moralidade cívica enquanto princípios de organização da vida comunitária e econômica em sociedades complexas”. Nesse capítulo, o autor traz o exemplo de um incêndio em uma sala de cinema, sob o enfoque do instinto de sobrevivência humano, buscando encontrar soluções que possam conter, ou ao menos contornar, os impulsos selvagens de sobrevivência dos indivíduos na convivência em comunidade. Diante de uma situação de perigo real, o autor acredita que dois são os caminhos possíveis: (i) a adesão de todos às normas preestabelecidas de incêndio (submissãoimpessoal) ou; (ii) o surgimento de uma liderança capaz de coordenar e compelir os demais a respeitar as normas preestabelecidas, evitando um desastre (submissão pessoal). E é por meio desse exemplo que Gianetti desenvolve a ideia central do capítulo, que é a outorga do poder e da liberdade de decisão de cada um dos indivíduos da sociedade a um poder soberano e quais seriam os limites de atuação desse ente para garantir a sobrevivência e a ordem social. É nesse momento que o autor parece incitar em seus leitores a provocação acerca de qual seria a dose ideal de autoridade para assegurar uma convivência harmoniosa entre os membros de uma sociedade. Nas palavras do autor: “o excesso de autoridade é uma ameaça tão real quanto a sua ausência”. Nesse cenário, o autor reforça a tese de que situações de perigo iminente e emergência coletiva evidenciam os benefícios da autoridade política e da moralidade cívica enquanto fatores de coesão social e facilitadores da convivência dos homens em comunidade, mas faz um alerta para os riscos decorrentes da extrapolação desses limites pela autoridade, na medida em que a atuação desta começar a prejudicar a autonomia e a moralidade pessoal de cada um dos indivíduos da coletividade. A questão levantada pelo autor é como se encontrar um equilíbrio entre essa tensão, garantindo-se o máximo de liberdade e autonomia individual, bem como o máximo de respeito aos regramentos e exigências impostos aos indivíduos no âmbito de uma vida em comunidade. Com o intuito de comprovar que seria este equilíbrio o melhor caminho a ser trilhado por uma nação e reforçando o alerta acerca dos excessos da autoridade política para a economia de uma sociedade, Gianetti desenvolve dois argumentos: o filosófico e o econômico. No argumento filosófico contra os excessos da autoridade política, como destaca o autor, há “uma objeção ao princípio do coletivismo”, que “independe de uma avaliação das consequências práticas (mais ou menos vantajosas) da sua adoção”. No que tange o argumento econômico, o autor defende a ideia de que o dirigismo estatal é prejudicial à criação da riqueza e sustenta que a prosperidade material de uma sociedade se dá através de uma combinação entre o que ele denomina de “as regras do jogo” e a “qualidade dos jogadores”, cujos conceitos serão desenvolvidos ao longo dos capítulos quatro e cinco. O capítulo quatro tem como pano de fundo a Fábula das Abelhas de Mandeville, onde o autor compara a sociedade inglesa a uma colmeia, cuja economia era movida graças aos vícios de suas abelhas. A Fábula evidencia o argumento de que os vícios humanos, como o egoísmo, a ganância, inveja, vaidade, lascívia, cupidez e avareza, são o combustível da prosperidade econômica e, que, uma vez removidos, levariam a economia de toda uma sociedade ao declínio. Gianetti aproveita o ensejo para estabelecer um paralelo entre o egoísmo ético e o excesso de moralidade cívica, demonstrando que ambos em doses desmedidas são capazes de arruinar a economia de uma sociedade. Para o autor, é a qualidade dos jogadores (aqui entendida como o conjunto de valores morais dos indivíduos de um sistema econômico) é que afeta a natureza e a robustez do mercado. Em complemento, o autor afirma que jogadores motivados por um autointeresse crasso distorcem as regras do jogo, manipulando-as conforme os seus interesses pessoais, prejudicando a economia de mercado. Aqui, Gianetti ainda chama atenção para um fato imensamente pior, quando é a autoridade política adota o autointeresse como princípio de ação, deturpando todo o sistema econômico e causando a sua ruína. Já no capítulo cinco, denominado “A ética como fator de produção”, o autor irá trabalhar as “regras do jogo” e “qualidade dos jogadores” como elementos indispensáveis para o funcionamento de um sistema econômico. Nessa oportunidade, o autor investiga “até que ponto os valores morais dos indivíduos e a adesão a normas sociais de conduta ajudam (ou atrapalham) a atividade produtiva”, ou seja, quais seriam os tipos de atributos morais e éticos que os indivíduos devem possuir para que a sociedade alcance um melhor resultado econômico. O autor encerra o capítulo cinco observando que as regras do jogo dependem da qualidade dos jogadores, ou seja, ainda que embasadas em um sistema normativo revestido de cunho moral ou por melhores e mais brilhantes que sejam as regras do jogo, estas não necessariamente irão determinar um resultado satisfatório em termos de economia. Isso porquê, para o autor, a ética é o elemento essencial na qualidade dos jogadores, tratando-se de uma condição sine qua non para o desenvolvimento econômico e o alcance da chamada prosperidade econômica. A ética, portanto, é um princípio norteador, um atributo intrínseco na qualidade dos jogadores, que os permite seguir as regras do jogo e extrair delas os melhores resultados possíveis. Por fim, Gianetti conclui a obra sintetizando os seus argumentos em quatro premissas afirmativas e quatro negativas, as quais correspondem aos temas discorridos ao longo dos cinco capítulos. Primeiramente, o autor elenca as proposições negativas: (i) rejeitando o cientificismo como instrumento na mensuração da ética; (ii) reforçando a crítica da tese (falha) do neolítico moral como explicação do hiato entre “ mundo como ele” é o “mundo como ele deveria ser”; (iii) fazendo oposição aos excessos da moralidade cívica e da autoridade política, na medida em que estas extrapolam os limites da liberdade dos indivíduos da sociedade; (iv) ressaltando sua crítica sobre o egoísmo ético e o funcionamento do mercado sem a ética como princípio norteador das relações econômicas. No que se refere às proposições afirmativas, o autor destaca: (i) que a capacidade de escolha e a liberdade falível são valores irrenunciáveis do homem no âmbito da sociedade; (ii) a ética como fator de sobrevivência e coesão social e a adesão dos indivíduos às normas de conduta para uma convivência mais harmoniosa e equilibrada; (iii) um ideal de equilíbrio entre a moralidade cívica e a autonomia pessoal dos membros da sociedade; e (iv) a ética como elemento indispensável na qualidade dos jogadores e na observação das regras do jogo, de forma a se determinar um melhor desempenho econômico.