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1 Objetivos de aprendizagem INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARAÍBA AULA 11 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade � Conhecer algumas formas poéticas tradicionais e seus condicionamentos retóricos e históricos; � Reconhecer a ruptura contemporânea das formas líricas e a proposição modernista de uma poética da liberdade. UNIDADE 03Teoria Literária I 172 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade 2 Começando a história Olá, meu caro estudante. Chegamos ao término de mais uma unidade de estudo com esta aula 11. Desde a aula 8, estamos conversando sobre a abordagem do texto poético, principalmente sobre o aspecto interno da obra. Agora, é hora de conhecermos algumas formas líricas, isto é, vários tipos de poemas definidos a partir de uma estrutura relativamente fixa, como o número de estrofes, certas temáticas ou procedimentos retóricos. Você está pronto para mais uma rodada de leitura? Para começar a história, é importante destacar que a designação genérica de poema, capaz de abarcar uma infinidade de textos escritos em versos, nem sempre foi tomada nesse sentido geral. Valer dizer, por exemplo, que os poetas, até meados do século XVIII, não escreviam poemas, mas escreviam sonetos, odes, elegias..., enfim, uma série de formas poéticas. É claro que hoje, como falamos, todos esses tipos poéticos são genericamente chamados de poemas. Mas não custa nada tentarmos compreender as coisas inserindo-as em seu devido contexto de produção. Aliás, isso é um dever da pesquisa acadêmica, sob pena de se tornar anacrônica, distorcendo os sentidos mais verossímeis de seu objeto de estudo. Essa é a linha defendida, entre outros, por Alcir Pécora no livro Máquina de gêneros. Observe as palavras do autor referindo-se aos propósitos dos textos compilados na referida obra: Os diferentes gêneros retórico-poéticos dos vários textos estudados não são formas em que vazam conteúdos externos a elas, mas determinações convencionais e históricas constitutivas dos sentidos verossímeis de cada um desses textos. [...] Cada um dos trabalhos aqui reunidos procura exatamente isso: descrever os sentidos básicos de alguns escritos importantes, produzidos entre os séculos XVI e XVIII, a partir do exame de procedimentos previstos e aplicados pelas convenções letradas em vigência no período em questão. Isto quer dizer, por exemplo, que o que se tem chamado genericamente de “poema” não se reconhece, numa preceptiva de tradição clássica, como “poema” – termo cômodo pela totalização de objetos de tradições letradas muito distintas e, muitas vezes, impossíveis de justapor ou englobar –, mas, digamos, como soneto, como madrigal, como romance pastoril, como epístola satírica, formas poéticas 173 AULA 11 precisas, com teoria, história e efeitos particulares. (PÉCORA, 2001, p. 11-12). Sem mais delongas, vamos às formas poéticas? 3 Tecendo conhecimento 3.1 Soneto Sem nenhuma dúvida, o soneto é a forma lírica mais conhecida dos estudos literários na tradição ocidental. Trata-se de um poema (lá vem o termo de novo) de forma fixa com catorze versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos (soneto de tradição renascentista) ou três quartetos e um dístico (soneto shakespeariano). O formato renascentista, difundido pelos poetas italianos Dante e Petrarca, foi o que mais encontrou eco nas literaturas portuguesa e brasileira, tendo Luís Vaz de Camões como um dos maiores sonetistas de todos os tempos. Antes de lermos exemplos de sonetos de Camões, Shakespeare, Olavo Bilac e Vinicius de Moraes, observe como Gregório de Matos, poeta brasileiro do século XVII, fez uso da ironia ao compor um suposto soneto elogioso. Na brincadeira, apresentou metalinguisticamente a forma poética do soneto, já que não encontrou nada para louvar a pessoa a qual era destinado o poema: A certa personagem desvanecida Soneto Um soneto começo em vosso gabo; Contemos esta regra por primeira, Já lá vão duas, e esta é a terceira, Já este quartetinho está no cabo. Na quinta torce agora a porca o rabo: A sexta vá também desta maneira, na sétima entro já com grã canseira, E saio dos quartetos muito brabo. 174 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade Agora nos tercetos que direi? Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais, Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei. Nesta vida um soneto já ditei, Se desta agora escapo, nunca mais; Louvado seja Deus, que o acabei. (MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 154). Etimologicamente, é corrente a indicação dos teóricos de que a palavra soneto provém do italiano sonetto, diminutivo de suono, “som”, música, canção (cf. D’ONOFRIO (2007); MOISÉS (2004); MEIRA (1974) e TAVARES (2002)). Agora, vamos ao que interessa: a apreciação de quatro sonetos: Soneto XVIII William Shakespeare Se te comparo a um dia de verão És por certo mais belo e mais ameno O vento espalha as folhas pelo chão E o tempo do verão é bem pequeno. Às vezes brilha o Sol em demasia Outras vezes desmaia com frieza; O que é belo declina num só dia, Na terna mutação da natureza. Mas em ti o verão será eterno, E a beleza que tens não perderás; Nem chegarás da morte ao triste inverno: Nestas linhas com o tempo crescerás. E enquanto nesta terra houver um ser, Meus versos vivos te farão viver. (SHAKESPEARE, William. A melhor poesia do mundo. São Paulo: Ediouro, 2001, p. 18-9) 175 AULA 11 [Busque Amor novas artes, novo engenho] Luís Vaz de Camões Busque Amor novas artes, novo engenho, Para matar-me, e novas esquivanças; Que não pode tirar-me as esperanças, Que mal me tirará o que eu não tenho. Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, Andando em bravo mar, perdido o lenho. Mas, conquanto não pode haver desgosto Onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê; Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei por quê. (CAMÕES, Luís Vaz de. Lírica. São Paulo: Cultrix, s/d, p. 112). Soneto XIII (Via Láctea) Olavo Bilac “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A via láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. 176 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?” E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas.” (BILAC, Olavo. Melhores poemas de Olavo Bilac. 4. ed. São Paulo: Global, 2003, p. 44). Soneto do amor total Vinicius de Moraes Amo-te tanto, meu amor... não cante O humano coração com mais verdade... Amo-te como amigo e como amante Numa sempre diversa realidade. Amo-te afim, de um calmo amor prestante E te amo além, presente na saudade. Amo-te, enfim, com grande liberdade Dentro da eternidade e a cada instante. Amo-te como um bicho, simplesmente De um amor sem mistério e sem virtude Com um desejo maciço e permanente. E de te amar assim, muito e amiúde É que um dia em teu corpo de repente Hei de morrer de amar mais do que pude. (MORAES, Vinicius de. Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 91). O soneto, apesar de ser uma forma poética tipicamente renascentista, não deixou de ser cultivado pelos modernos (românticos) e modernistas. Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, por exemplo, compuseram belíssimos sonetos. 177 AULA 11 Para fecharmos a discussão sobre essa forma poética específica, cumpre ainda ressaltar alguns elementos importantes. No dizer de Antonio Candido, sobre o soneto, trata-se da adoção de um instrumento expressivo italiano (ou fixado e explorado pelos italianos), apto pela suaestrutura a exprimir uma dialética; isto é, no caso, uma forma ordenada e progressiva de argumentação. Há certa analogia entre a marcha do soneto e a de certo tipo de raciocínio lógico em voga ainda ao tempo de Camões: o silogismo. Em geral, contém uma proposição ou uma série de proposições (ou algo que se pode assimilar a ela) e uma conclusão (ou algo que se pode a ela assimilar). (CANDIDO, 1996, p. 20). Essas palavras são corroboradas por Salvatore D’Onofrio, que nos lembra de outros aspectos semânticos e estruturais e, ainda, que o desfecho dos sonetos, via de regra, apresenta o que ficou conhecido como “chave de ouro”. Certamente, você já ouviu falar na expressão “fechar com chave de ouro”, não é verdade? O soneto regular ou petrarquiano é composto de duas quadras e dois tercetos, geralmente de versos decassílabos e com o esquema rímico abba/abba/cde/cde. As duas quadras, portanto, formam um campo fônico homogêneo pelo chamamento entre si dos versos externos e dos versos internos. Já a sonoridade dos tercetos provém de uma diferente combinação de rimas. A essa diferença fônica corresponde também uma diferença semântica: nas duas quadras coloca-se o tema e nos tercetos dá-se a conclusão, que geralmente culmina no último verso com a famosa “chave de ouro”. Como se vê, a forma poemática do soneto tem algo em comum com o silogismo, modo cerrado de raciocínio muito cultivado pelos filósofos da Baixa Idade Média: a uma premissa ou tese sucede uma oposição de pensamento ou antítese, terminando com a síntese, a proposta de resolução do problema. (D’ONOFRIO, 2007, p. 256). Exercitando A partir dos sonetos de Camões e Olavo Bilac, acima transcritos, procure verificar neles as colocações de Salvatore D’Onofrio agora citadas. Observe como o esquema de rimas e a organização semântica correspondem ao que foi dito, como foi expressa a chamada “chave de ouro” nos textos e como a estrutura argumentativa deles condiz com a dialética (apresentação de tese, oposição e síntese). 178 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade 3.2 Elegia Diferentemente do soneto, que não provém da tradição greco-latina, a elegia, etimologicamente, vem do latim elegia e do grego elegéia, significando canto fúnebre; élegos = pranto. Na poética grega antiga, a elegia era um canto plangente em honra aos mortos, acompanhado pela flauta e caracterizado pelo emprego de dísticos em hexâmetros, versos de seis pés, e pentâmetros, de cinco pés (confira melhor o significado desses elementos retornando à aula 9 sobre os elementos formais do texto poético). Na verdade, a elegia começou por ser todo poema estruturado dessa maneira, somente mais tarde adquiriu o sentido especial, vinculado à ideia de lamento e pranto (MOISÉS, 2004, p. 137-8). Uma das elegias mais famosas da literatura brasileira é o texto “Cântico do Calvário”, do poeta romântico Fagundes Varela. Veja alguns fragmentos desse poema e o significado dos termos grifados logo abaixo: Cântico do Calvário À memória de meu filho morto a 11 de dezembro de 1863 Eras na vida a pomba predileta Que sobre um mar de angústias conduzia O ramo da esperança. — Eras a estrela Que entre as névoas do inverno cintilava Apontando o caminho ao pegureiro. Eras a messe de um dourado estio. Eras o idílio de um amor sublime. Eras a glória, — a inspiração, — a pátria, O porvir de teu pai! — Ah! no entanto, Pomba, — varou-te a flecha do destino! Astro, — engoliu-te o temporal do norte! Teto, caíste! — Crença, já não vives! (...) Como eras lindo! Nas rosadas faces Tinhas ainda o tépido vestígio Dos beijos divinais, — nos olhos langues Brilhava o brando raio que acendera 179 AULA 11 A bênção do Senhor quando o deixaste! Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos, Filhos do éter e da luz, voavam, Riam-se alegres, das caçoilasníveas Celeste aroma te vertendo ao corpo! E eu dizia comigo: — teu destino Será mais belo que o cantar das fadas Que dançam no arrebol, — mais triunfante Que o sol nascente derribando ao nada Muralhas de negrume!... Irás tão alto Como o pássaro-rei do Novo Mundo! (...) Mas não! Tu dormes no infinito seio Do Criador dos seres! Tu me falas Na voz dos ventos, no chorar das aves, Talvez das ondas no respiro flébil! Tu me contemplas lá do céu, quem sabe, No vulto solitário de uma estrela. E são teus raios que meu estro aquecem! Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho! Brilha e fulgura no azulado manto, Mas não te arrojes, lágrima da noite, Nas ondas nebulosas do ocidente! Brilha e fulgura! Quando a morte fria Sobre mim sacudir o pó das asas, Escada de Jacó serão teus raios Por onde asinha subirá minh’alma. (VARELA, Fagundes. In: Poesia brasileira: romantismo. 10. ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 72-76). Vocabulário: Pegureiro: pastor, guardador de gado. Messe: ceifa, colheita. Estio: verão. Idílio: galanteio; suavidade; sonho. Tépido: morno; fraco. Langues: sem forças; sem energia; frouxos, fracos, abatidos, debilitados. Chusma: grande quantidade; magote. 180 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade Caçoilas: tipos de vaso; caçarolas. Níveas: relativo à neve; branco como a neve. Arrebol: vermelhidão do nascer ou do pôr do sol. Flébil: 1) lacrimoso, choroso; 2) débil , fraco. Estro: engenho poético; imaginação criadora, inspiração, talento. Arrojes: arrastas, lanças. Asinha: depressa, prontamente, em breve. Exercitando Ampliando a noção da referida forma poética, os modernistas, tais como Murilo Mendes, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, compuseram elegias dando-lhes novos formatos, de acordo com a liberdade estilística propugnada pela época dos autores. Leia o texto abaixo de Drummond e responda ao que se pede em seguida: Elegia 1938 Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas e as ações no encerram nenhum exemplo. Praticas laboriosamente os gestos universais, sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual. Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção. À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas. Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer. Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras. Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito. A literatura estragou tuas melhores horas de amor. Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear. 181 AULA 11 Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. (ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova Reunião. 23 livros de poesia. v. 1. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2009, p. 106-7). a) Em que sentido o poema de Drummond rompe com a noção antiga de elegia? Em que sentido se aproxima? b) De que maneira a figura do eu-lírico no texto se diferencia da noção tradicional do lirismo de 1ª pessoa? c) Que elementos históricos podem ajudar na compreensão do poema? Por que são decisivas as referências à Ilha de Manhattan e ao ano de 1938? 3.3 Ode É mais uma forma poética de origem clássica. O termo vem do grego oidê, que, assim como a palavra hino, significa “canto”. Era um poema caracterizado pela voz do cantor que se servia de um instrumento de corda (lira ou harpa) para o acompanhamento musical. Originariamente, era um canto individual que expressava sentimentos pessoais, especialmente o amor. [...] Paralelamente à ode monódica, surgiu também a forma coral da ode, de assunto mais solene, exaltando a religião, a pátria, os heróis de guerra ou de atividades esportivas. A ode, portanto, passou a exercer uma função quase igual à do hino. (D’ONOFRIO, 2007, p. 233-4). Tradicionalmente, a ode ficou sendo um texto de louvor, de homenagem,de exaltação, com um certo tom solene, grave. Mário de Andrade, por sua vez, no modernismo brasileiro, subverteu a lógica de exaltação que a ode tradicionalmente estabeleceu e criou a irônica e sarcástica “Ode ao burguês”, transformando a ode (o louvor, o elogio) em ódio, tanto sonoramente, no título, quanto textualmente, no corpo do poema. Confira: 182 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade Ode ao Burguês Mário de Andrade Eu insulto o burguês! O burguês-níquel o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Eu insulto as aristocracias cautelosas! Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros! Que vivem dentro de muros sem pulos, e gemem sangue de alguns mil-réis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam os “Printemps” com as unhas! Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol! Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguês-mensal! Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi! Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano! “— Ai, filha, que te darei pelos teus anos? — Um colar... — Conto e quinhentos!!! Más nós morremos de fome!” Come! Come-te a ti mesmo, oh! Gelatina pasma! Oh! Purée de batatas morais! Oh! Cabelos nas ventas! Oh! Carecas! 183 AULA 11 Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, sempiternamente as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Todos para a Central do meu rancor inebriante! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos, cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês!... (ANDRADE, Mário de. Poesias completas. São Paulo: Círculo do Livro, s/d). 3.4 Poemas bucólicos No dizer de Hênio Tavares (2002, p. 297-8), são poemas que dizem respeito à vida no campo, daí se chamarem também pastoris ou campestres. Apresentam como variantes: a) Idílio: uma composição em monólogo que celebra os encantos da vida bucólica, impregnada quase sempre de sentimento amoroso. É uma espécie muito ao gosto dos poetas árcades; b) Écloga (ou égloga): difere do idílio por nele intervirem os diálogos. São poemas dialogados nos quais o poeta cede a palavra a interlocutores. 184 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade 3.5 Outras formas líricas Há uma infinidade de formas poéticas que o espaço de nosso material didático não permite pormenorizar. De qualquer forma, você, meu caro estudante, não precisa se preocupar com tanta nomenclatura. Os dicionários especializados e os manuais de teoria literária oferecerão as informações necessárias quando você se deparar com tais formas poéticas. O Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés, chega a historicizar desde as origens do vocábulo até quem cultivou determinado tipo de poema ao longo do tempo. Vale a pena consultá-lo sempre. Abaixo, uma minilista de formas poéticas com seus respectivos significados, compilada a partir de Salvatore D’Onofrio (2007, p. 228-270) e Hênio Tavares (2002, p. 269-312): a) Hino: do grego hymnos, que significa “canto”, o hino é uma das primeiras manifestações poéticas do homem, cujo sentimento de religiosidade o leva a exaltar suas divindades. b) Canção: no sentido genérico, a palavra portuguesa canção corresponde à francesa chanson e à italiana canzone, as três derivadas do termo latino cantionem, indica toda poesia relacionada com a música e o canto. c) Cantiga: da mesma origem etimológica de canção, o termo cantiga designa as primeiras manifestações poéticas em língua vernácula, ainda do tempo em que a poesia não era separada da música, do canto e da dança. Entre os vários tipos de cantiga, os três mais cultivados na Idade Média portuguesa foram a cantiga de amigo, a cantiga de amor e a cantiga de escárnio. Estas serão objeto de estudo de Literatura Portuguesa I no próximo período. d) Balada: em suas origens, durante a Baixa Idade Média, a balada era uma forma poemática narrada composta para ser musicada e cantada com acompanhamento coreográfico nas festas de vindima e de outras colheitas do campo. Existe ainda a balada de forma fixa que apresenta as seguintes Figura 1 185 AULA 11 características: 3 oitavas e uma quadra (às vezes, uma quintilha), versos octossílabos, 3 rimas cruzadas (ou variáveis) e a repetição de um mesmo conceito ou ideia ao fim de cada estrofe. e) Rondó e rondel: são formas poéticas que, como a balada, estão relacionadas com a dança. A diferença consiste no aspecto circular: do termo latino rotundum (“redondo”) derivaram as palavras francesas ronde e rondeau, nomes de bailados populares medievais. A circularidade coreográfica transfere-se para o poema composto de estrofes e de versos que se chamam mutuamente, repetindo-se. O rondel é composto de duas quadras e uma quintilha, com uma certa repetição de versos (os dois primeiros versos da 1ª quadra serão os dois últimos da 2ª quadra; e o primeiro verso da 1ª quadra será o último verso da quintilha. O rondó, por sua vez, apresenta vários formatos. f) Vilancete e redondilha: vilancete deriva de vila, lugarejo habitado por camponeses (vilões). É uma forma poemática da península ibérica, de origem popular. O vilancete é composto de uma estrofe-matriz, chamada vilancico, mote ou cabeça, seguida de várias estrofes denominadas voltas ou glosas. Semelhante ao vilancete é a redondilha, composição poética em que cada verso tem sete sílabas (redondilha maior) ou cinco sílabas (redondilha menor). g) Haicai: composição poética de origem japonesa, de forma fixa, em estrofes de três versos. A estrofe deve conter 17 sílabas métricas, na seguinte ordem: 1º verso: 5 sílabas; 2º verso: 7 sílabas; 3º verso: 5 sílabas (5-7-5). Exercitando Você deve ter verificado que existem muitas formas poéticas. A lista anterior é apenas uma amostra das várias possibilidades de composição lírica. Agora é sua vez de pesquisar: procure saber o que são os seguintes poemas: madrigal, epigrama, epitalâmio, acróstico, barcarola, décima, lira, oitava, parlenda, sextina, terça-rima. 186 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade 3.6 A poesia na contemporaneidade: formas livres A poesia na contemporaneidade não costuma mais ser escrita seguindo os padrões retóricos que nortearam a tradição poética ao longo do tempo. Como vimos, no início desta aula, até de forma mais cômoda chamamos de poema toda construção poética em versos, termo que acaba envolvendo um sem- número de composições, sem a necessidade de se seguir um padrão estrófico, rímico ou temático. Certamente, o modernismo contribuiu de forma decisiva para uma poética da liberdade. É emblemático o texto de Manuel Bandeira, publicado inicialmente no livro Libertinagem, de 1930: Poética Manuel Bandeira Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc 187AULA 11 Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. (BANDEIRA, Manuel. Antologia poética. 12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 70-71). Observe que o autor propõe a fuga de todos os modelos enrijecedores da arte poética, enaltecendo o lirismo espontâneo e pungente. O lirismo comedido e regrado dos parnasianos ou o lirismo cheio de modelos dos “secretários”, que eram manuais (muito em voga até o século XIX) destinados a ensinar como escrever cartas de todos os tipos, inclusive de amor, textos poéticos e outras formas textuais, deveriam ser esquecidos para dar lugar à expansão subjetiva do poeta. Nessa esteira, a produção modernista e contemporânea libertou-se da preocupação excessiva com a forma e com o purismo gramatical, recriando as formas poéticas tradicionais ou inventando novas. 188 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade 4 Aprofundando seu conhecimento Livro: Lírica Autor: Luís Vaz de Camões Editora: Cultrix A obra contempla a produção lírica do grande autor português – Camões. Nela, é possível identificar composições de várias formas poéticas: soneto, écloga, oitava, sextina, ode, elegia, canção, redondilhas. Vale a pena conhecer tais tipos líricos por meio de uma das mais poderosas vozes da literatura de língua portuguesa. É deleite, na certa, a leitura dos célebres sonetos: “Amor é fogo que arde sem se ver”, “Sete anos de pastor Jacó servia”, “Busque Amor novas artes, novo engenho”, “O dia em que nasci morra e pereça”, “Alma minha gentil que te partiste”, “Eu cantarei de amor tão docemente”, “Um mover de olhos, brando e piedoso”, “Transforma-se o amador na coisa amada”, “Tanto do meu estado me acho incerto”, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Livro: Forma e sentido do texto literário Autor: Salvatore D’Onofrio Editora: Ática Obra que apresenta modelos de análise de textos dos três gêneros literários basilares (o lírico, o narrativo e o dramático). Contos, poemas, peças e um número considerável de formas literárias são explicados e analisados, numa feliz junção de informações teórico- críticas com exemplos práticos. Os modelos de análise apresentados fornecem dados importantes para o estudante que precisa aprender a analisar um texto literário a partir de vários níveis: fônico, sintático, semântico, gráfico e lexical. Figura 3 Figura 2 189 AULA 11 5 Trocando em miúdos Há um número muito grande de formas poéticas, constituindo um vasto campo de leitura. Até meados do século XVIII, a escrita de poesia era muito regrada, ou seja, cheia de regras definidas por uma tradição retórico-poética. Com o advento da modernidade na literatura a partir dos românticos e com o aprofundamento dos modernistas, a poesia lírica passou a ser mais livre na construção formal e nas temáticas, resultando numa literatura contemporânea cada vez mais inovadora, questionadora e capaz de revitalizar os modelos poéticos de outrora. O termo poema, nos moldes como o entendemos hoje, é relativamente recente, apesar de ter sua origem no grego antigo como “algo criado”, produto da poiesis, a ação de criar. Atualmente, a expressão engloba, de forma cômoda, como disse Alcir Pécora (2001, p. 12), toda manifestação literária em verso, desconsiderando os condicionamentos históricos que forjaram a escrita literária ao longo do tempo. Como pesquisadores da área de Letras, entretanto, não devemos deixar de considerar as condições de produção dos textos para que possamos nos aproximar o máximo possível da leitura mais verossímil das composições poéticas. 6 Autoavaliando As grandes perguntas autoavaliativas para você responder sobre esta aula são as seguintes: a) Consigo analisar um poema a partir de sua estrutura, reconhecendo os condicionamentos históricos e retóricos que determinam não só a forma do texto, mas também seu conteúdo? b) Sou capaz de perceber as razões para determinado poeta ter intitulado seu texto de soneto, ode, elegia, écloga ou outra forma poética? O reconhecimento do significado das formas líricas certamente ajudará no pontapé inicial para a análise de qualquer texto poético. 190 Formas líricas: do clássico à contemporaneidade Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Elegia 1938. In: Nova Reunião. 23 livros de poesia. v. 1. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2009, p. 106-7. ANDRADE, Mário de. Ode ao burguês. In: Poesias completas. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. BANDEIRA, Manuel. Poética. In: Antologia poética.12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 70-1. BILAC, Olavo.Via Láctea: Soneto XIII. In: Melhores poemas de Olavo Bilac. 4. ed. Seleção de Marisa Lajolo. São Paulo: Global, 2003, p. 44 (Coleção Melhores Poemas; 16). CAMÕES, Luís Vaz de. Busque Amor novas artes, novo engenho. In: Lírica. Seleção, prefácio e notas de Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, s/d, p. 112. CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 3. ed. São Paulo: Humanitas; FFLCH/USP, 1996. D’ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007 (Ática Universidade). MATOS, Gregório de. Soneto: A certa personagem desvanecida. In: Poemas escolhidos. Seleção, introdução e notas de José Miguel Wisnik. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 154. MEIRA, Cécil. Introdução ao estudo da literatura. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1974. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. MORAES, Vinicius de. Soneto do amor total. In: Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 91. PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros. São Paulo: Edusp, 2001. SHAKESPEARE, William. Soneto XVIII. In: VÁRIOS AUTORES. A melhor poesia do mundo: poetas estrangeiros. São Paulo: Ediouro, 2001, p. 18-9. TAVARES, Hênio. Teoria literária. 12. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. VARELA, Fagundes. Cântico do Calvário. In: VÁRIOS AUTORES. Poesia brasileira: romantismo. 10. ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 72-76. 191 AULA 11 _GoBack Formas líricas: do clássico à contemporaneidade 2 Começando a história 3 Tecendo conhecimento 3.1 Soneto 3.2 Elegia 3.3 Ode 3.4 Poemas bucólicos 3.5 Outras formas líricas 3.6 A poesia na contemporaneidade: formas livres 4 Aprofundando seu conhecimento 5 Trocando em miúdos 6 Autoavaliando Referências
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