Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
OBS: A enumeração das páginas estão na parte superior - PSICOLOGIA e EDUCAÇÃO desafios teórico-praticos Casa do Psicólogo © 2000 Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda. É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade, sem autorização por escrito dos editores. Ia edição 2000 2- edição 2002 Produção Gráfica Renata Vieira Nunes Capa Valquíria Farias dos Santos Revisão Gráfica Míriam Moreira Soares Editoração Eletrônica Heien Winkier Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C1P) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos / Elenita de Rício Tanamachi, Marilene Proença e Marisa Lopes da Rocha (org.). — São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. Vários autores. Bibliografia. ISBN 85-7396-066-3 '" 1. Educação 2. Psicologia 3. Psicologia Educacional I. Tanamachi, Elenta de Rício. 11. Rocha, Marisa Lopes da. III. Proenca, Marilene. 00-0146 CDD-370.15 índices para catálogo sistemático: 1. Psicologia e Educação 370.25 - Impresso no Brasil Printed in Brazü Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à Casa do Psicólogo® Livraria e Editora Ltda. Rua Mourato Coelho, 1059 - Vila Madalena - 05417-011 - São Paulo/SP Tel. (11) 3034-3600 - e-mail: casadopsicologo@casadopsicologo.com.br htLp://w\vw.casadopsicologo@ uol.com.br Sumário Apresentação.................................................................................. 7 As Influências do Barão de Münchhausen na Psicologia da Educação.................................................................11 Ana Mercês Bahia Bock Psicologia Escolar: Pensamento Crítico e Práticas Profissionais................................................................................. 35 Marisa Eugênia Melíllo Meira Mediações Teórico-práticas de uma Visão Crítica em Psicologia Escolar................................73 Elenita de Rício Tanamachi A Queixa Escolar na Formação de Psicólogos: Desafios e Perspectivas.............................................................. 105 Marilene Proença Rebello de Souza Avaliação Psicológica na Educação: Mudanças Necessárias.....143 Adriana Marcondes Machado Professor e Educação: Realidades em Movimento......................................................... 169 Wanda Maria Junqueira Aguiar Educação em Tempos de Tédio: um Desafio à Micropolítica........................................................ 185 Marisa Lopes da Rocha Dos autores.................................................................................209 Apresentação Este livro constitui-se em uma iniciativa de professores e pesquisadores que vêm se dedicando à análise das complexas inter-relações entre dois campos de conhecimento: a Psicologia e a Educação. Tem como finalidade apontar as principais polêmicas que marcam as diferentes concepções teórico-práticas da Psicologia na Educação, evidenciando contribuições e impasses em relação à demanda escolar, assim como refletindo criticamente sobre os limites e possibilidades que a formação do psicólogo tem facultado ao cotidiano educacional. Nossa ação no campo escolar e na universidade, nas atividades de docência e de supervisão, vem se respaldando no reconhecimento da difícil tarefa de preparar jovens que deverão contribuir para a transformação de uma realidade marcada pela injustiça social. Nessa direção, aceitamos o desafio de problematizar coletivamente o processo educacional, potencializando a produção de novos modos de pensar/fazer Psicologia e Educação. "Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos" foi produzido com a perspectiva de redimensionar a formação acadêmica dos profissionais de Psicologia no que tange às ações sócio-institucionais em Educação, na tentativa de construir novas bases teórico-práticas para a Psicologia nas escolas. Além disso, visa contribuir para uma reflexão radical do processo educacional e dos conflitos nele produzidos enquanto fenômenos sociopolíticos e pedagógicos complexos, determinados por uma heterogeneidade de fatores. A importância desse campo de investigação está ligada principalmente ao papel que a escola deveria ocupar no atual contexto social como local de produção da subjetividade e da cidadania. As questões que hoje se colocam para a Educação escolarizada, construídas com 8 Psicologia e Educação: Desafios Teórico-Prátkos o passar dos anos na Educação brasileira, saltam aos olhos: a questão: econômica, que confere um caráter de precariedade às prática educativas, às condições materiais da escola e salariais do professor, o modo como se constituem as relações de trabalho no interior dai escolas nas quais a hierarquia desapropria em cadeia as iniciativas í as lutas coletivas; a dimensão pedagógica marcada por uma dura rotina, em que o desejo de conhecer não se traduz no interesse de aprender - dificuldade que não concerne somente a crianças e jovens. mas igualmente aos educadores. A escola, de um modo geral, não vem se constituindo em um tempo/espaço da construção do conhecimento, mas em ritos de soberania e competitividade, em hábitos e práticas que privilegiam a repetição e a rotina, que levam à sensação de impotência na criação de alternativas para as demandas da comunidade educacional. No que tange à Psicologia, buscamos ressaltar a urgência de análises que permitam afirmar a singularidade dos indivíduos no contexto histórico-cultural da sociedade, possibilitando novos referenciais para as ações escolares, assim como o surgimento de estudos que facultem a construção de instrumentos para garantir um outro lugar ao psicólogo no interior das transformações radicais necessárias à Educação escolar neste final de século. Desse modo, este livro tem como objetivo divulgar a produção acadêmica recente na área de Psicologia Social e Escolar, respaldada por uma perspectiva crítica de análise da Educação, da Psicologia e, mais especificamente, da Psicologia Escolar. Os diversos capítulos pretendem polemizar questões como a concepção do fenômeno psicológico na Educação e na Psicologia, a formação do psicólogo que pretende trabalhar no contexto escolar, a prática profissional na Educação e a avaliação da queixa escolar. O trabalho de Ana Mercês Bahia Bock discute a visão de homem do pensamento liberal (concretizada na figura do Barão de Münchhausen) presente na Psicologia, apontando os efeitos dessa concepção no trabalho dos psicólogos da área educacional/escolar, especialmente quando reforçam a idéia de que o sucesso do processo de aprendizagem está no esforço das crianças para aprender. Bock afirma a condição humana como ponto de partida para que o psicólogo possa "estranhar a realidade" em vez de naturalizá-la. Marisa Eugênia Melillo Meira defende uma concepção crítica de Educação e de Psicologia como caminho possível para fundamentar uma concepção igualmente crítica de Psicologia Escolar. Apresentação 9 Toma como referência parte do conjunto de formulações desenvolvidas por Marx e por autores cujas obras expressam o pensamento marxiano. Nesse contexto, apresenta os elementos do pensamento educacional crítico, as questões teórico-práticas já desenvolvidas no campo da Psicologia que permitem a compreensão da relação dialética entre o indivíduo e o contexto histórico-social e aponta como esses elementos já se fazem presentes em diferentes momentos do pensamento crítico em Psicologia Escolar. Conclui apresentando algumas reflexões que permitem situar o encontro entre o sujeito humano e a Educação como objeto de estudo/atuação da Psicologia Escolar. O texto de Elenita de Rício Tanamachi circunscreve um universo teórico-prático de referência e caracteriza práticas profissionais de Psicologia Escolar, analisando um grupo de trabalhos desenvolvidos em programas de pós-graduação e sua própria experiênciaprofissional. Reforça a necessidade de sistematizar mediações teórico-práticas tanto de Educação quanto de Psicologia, como um momento importante para refletir criticamente a Psicologia em suas relações com a Educação e propõe elementos para pensar/fazer criticamente a Psicologia Escolar ser enquanto área de estudo da Psicologia e de atuação/formação do psicólogo, no interior do movimento de crítica já existente na área. O capítulo de Marilene Proença Rebello de Souza analisa as concepções presentes e as ações que dão sustentação aos atendimentos à queixa escolar na formação de psicólogos. Discute os encaminhamentos por "problemas escolares" ou "distúrbios de comportamento e de aprendizagem", as práticas psicodiagnósticas e psicoterápicas presentes na formação profissional ante a "queixa escolar", analisando suas limitações e apontando suas conseqüências para a escolaridade de crianças e adolescentes. Adriana Marcondes Machado analisa questões relativas à avaliação psicológica de alunos encaminhados por "problemas de aprendizagem". Discute os modos tradicionais de avaliação, em que visão de homem e de mundo estão alicerçadas, e analisa as limitações presentes em tais concepções, bem como propõe outras formas de aproximação psicológica do fenômeno da escolaridade. O trabalho de Wanda Maria Junqueira Aguiar reflete sobre as possibilidades, caminhos e desafios encontrados no trabalho de intervenção com professores, situando o "movimento de consciência" de um grupo de professores por ela acompanhados durante sua pesquisa de doutorado. Sua análise é desenvolvida no interior da abordagem sócio-histórica. 10 Psicologia e Educação: Desafios Tc&iico-Práticos O texto de Marisa Lopes da Rocha apresenta discussões sobre o tédio instituído no processo educacional, polemizando a escola disciplinaria que se organiza ao longo da era moderna, os conflitos da subjetividade contemporânea no tempo/espaço das instituições pedagógicas e os desafios das transformações da lógica institucionalizada na dinâmica escolar, por meio da abordagem micropolítica que vem facultando ao psicólogo a construção coletiva de novos referenciais de análise e de ação para a comunidade educativa. Finalmente, esperamos que a multiplicidade de questões aqui anunciadas possa potencializar a discussão sobre o sentido e a finalidade da Psicologia, da Educação e da relação entre ambas, quando é preciso enfrentar os desafios teórico-práticos postos à ciência psicológica pela nova ordem mundial. É nesse contexto que, inserimos a coletânea dos textos apresentados. - Elenita de Rício Tanamachi, Marüene Proença Rebello de Souza e Marisa Lopes da Rocha São Paulo, 19 de outubro de 1999. As Influências do Barão de Münchhausen na Psicologia da Educação Ana Mercês Bahia Bock De início, gostaria de esclarecer que este trabalho está guiado pelo princípio de que é preciso transformar a Psicologia, seus saberes e seus fazeres, possibilitando um compromisso maior dos psicólogos com as reais necessidades de nossa população, e com a melhoria fundamental das condições de vida. Esta não é uma tarefa para poucos e menos ainda para pessoas isoladas que se pensam capazes desse esforço individual. É trabalho para muitos e deve ser resultante de um esforço coletivo na construção de um novo projeto de profissão. Nesse sentido, a reflexão aqui apresentada pretende ser uma contribuição nesse campo, orientada pelo objetivo de olhar criticamente a Psicologia, para retirar dessa reflexão novas possibilidades científicas e profissionais. Não é, portanto, uma reflexão que se apresente pronta e acabada, mas é uma síntese possível para o momento. Em meu trabalho de doutorado, tive a oportunidade de refletir sobre o significado atribuído, pelos psicólogos, ao fenômeno psicológico. Acreditava estar aí, nesse aspecto, um dos maiores problemas da Psicologia. A naturalização do psicológico, operada na Psicologia, enquanto ciência e enquanto profissão, seria o mecanismo mais eficiente para deslocar a Psicologia da possibilidade real de contribuir 12 Psicologia e Educação: Desafios Teárico-Prdtkos para a transformação social. Entendíamos como urgente fazer a crítica a esse processo de naturalização, para que a visão do fenômeno psicológico surgisse a partir da perspectiva histórica e, com ele. viessem novas possibilidades para a Psicologia. Assim, dispusemo-nos a estudar o significado que psicólogos atribuíam ao fenômeno psicológico e a visão de homem subjacente a esses significados, assim como as concepções que possuíam de saúde e do trabalho do psicólogo; além disso, buscamos também estudar o significado do fenômeno psicológico presente em publicações dos órgãos da categoria, no período de 1980 a 1995, que se constituíam como referência para os psicólogos em São Paulo. "Compreender o significado atribuído ao fenômeno psicológico por uma amostra de psicólogos em São Paulo, relacionando-o às alterações do conceito decorrentes do movimento da profissão na sociedade e da própria história da Psicologia no Brasil e às concepções liberais de homem presentes na Psicologia... " (Bock, 1997, p. 7), foi como apresentamos, no texto da tese de doutorado e depois na sua publicação*, a finalidade de nosso trabalho. O estudo foi realizado entre 1992 e 1997. Mil questionários foram enviados a uma amostra extraída pelo procedimento de amostragem probabilístico sistemática entre os psicólogos registrados no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e residentes na Cidade de São Paulo. Dos mil questionários enviados recebemos de volta 47, dos quais três estavam em branco, com a justificativa de que não trabalhavam como psicólogos. Apesar do número muito pequeno de retorno, a dispersão dos dados, que obtivemos com o conjunto dos questionários, permitiu-nos considerar a pequena amostra rica e suficiente para nossos objetivos. Assim, trabalhamos com os 44 questionários que retornaram. As perguntas do instrumento eram abertas e referiam-se a "como você define o objeto da Psicologia: o fenômeno psicológico?", "como você trabalha esse fenômeno na sua prática profissional?", "quais os fatores fundamentais para o desenvolvimento desse fenômeno no Homem?", "quem é o homem na Psicologia" e finalmente a "qual a sua concepção de saúde psicológica?". O trabalho, no seu conjunto, procurou articular as concepções encontradas nesses questionários com: • as visões encontradas nas publicações das entidades representativas da categoria (publicações do CRP-6a região - São Paulo, do As Influências do Barão de Miinchhauscn na Psicologia da Educação 13 Conselho Federal de Psicologia, do Sindicato de Psicólogos no Estado de São Paulo e da Federação Nacional dos Psicólogos); • a história vivida pelos psicólogos enquanto categoria profissional entre 1980e 1995; • a história da Psicologia no Brasil; e • as concepções de ciência, de homem e de sociedade presentes no liberalismo e a perspectiva do positivismo e do idealismo, consideradas concepções dominantes em nossa sociedade. Entendemos que o objeto em estudo está em permanente movimento e compreendê- lo significa captá-lo nesse movimento. Os dados históricos e conjunturais são fundamentais nessa leitura, pois são eles que permitem compreender o objeto. São eles que dão sentido às significações que são captadas através dos discursos e artigos publicados pelos psicólogos. Acompanhar o movimento de nossa categoria profissional na sociedade, sua inserção, suas propostas de trabalho, seus problemas e seus desafios tornaram-se elementos fundamentais para que nossa análise dos dados coletados não ficasse míope. "O trabalho com os dados e as leituras e reflexões teóricas aconteceram, em nosso trabalho, num mesmo processo: a busca de dados iniciou-se a partir de algumas questões teóricas e, ao trabalhar os dados empíricos, surgiram novas questões ou aspectos teóricospara os quais íamos imediatamente em busca de resposta; voltávamos aos dados em seguida à teoria, num caminho que permitiu que nos apropriássemos do objeto de estudo, transformando-o com nossa ação/pensamento e compreendendo-o. Nossa questão apontou, então, para as múltiplas determinações do objeto e a. totalidade na qual ele se insere. E as respostas de nossos 44 colaboradores tornaram-se expressão de sujeitos que fazem parte da história da Psicologia no Brasil. Suas respostas não são apenas individuais, pois são produzidas coletivamente, socialmente, no decorrer da história de nossa sociedade, de nossa profissão e de nossa ciência. As concepções presentes nas publicações também são produzidas na história dessa categoria. São expressões que se tornam públicas, podendo ser apropriadas por todos. São discursos das lideranças da categoria; são discursos dos psicólogos que analisam a Psicologia, que ousam criar formas alternativas de trabalho, que respondem, de alguma forma, a algum anseio presente entre os psicólogos" (Bock, 1997, p. 14). 14 Psicologia e Educação: Desafios Teórico-Prátkos Um pouco de teoria É importante também que se introduza aqui, mesmo que de forma resumida, algumas considerações sobre a teoria que fundamentou todo o trabalho e a partir da qual fizemos toda a leitura e análise dos dados obtidos: a teoria sócio-histórica. A teoria sócio-histórica em Psicologia tem como seu fundamento o postulado marxista de que "não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência " (Marx e Engels, 1980, p.26). Esta afirmação de Marx e Engels tem sido traduzida na abordagem teórica por algumas considerações, as quais sistematizamos a seguir. Para a psicologia sócio-histórica não existe natureza humana, existe a condição humana. Essa idéia, que pode parecer banal a princípio, gera, na verdade, grandes diferenças nas concepções em Psicologia. O homem tem sido pensado, na ciência do século XX, a partir da idéia de natureza humana, concebido como uma essência universal e eterna que o caracteriza desde sua origem. Os homens seriam dotados dessa essência, que os faz homens, e o seu desenvolvimento, ou melhor, a atualização dessa essência dar-se-ia conforme o homem vai sendo cultivado em nosso meio social. A idéia é de que haveria em nós uma "semente de homem" que vai "desabrochando", conforme vamos sendo estimulados "adequadamente" pelo meio cultural e social. Há um homem apriorístico em cada um de nós; um homem que pode ou não revelar-se na sua integralidade. A idéia de uma natureza humana em cada um de nós é uma das idéias mais camufladoras que produzimos no conjunto de nossas concepções. Pensar o homem a partir da natureza humana é encobrir toda história social da constituição do humano. E pensar o homem como naturalmente humano. Ocultar a determinação social do homem e descolá-lo da realidade social que o constitui e lhe dá sentido é um trabalho ideológico que a Psicologia precisa superar, pois esse trabalho de ocultamento permite que a Psicologia se alinhe às construções ideológicas mais perversas em nossa sociedade, tornando aquilo que é social e histórico em algo natural e universal, no qual não se pode mexer e não se pode mudar. A teoria sócio-histórica, ao contrário, está interessada em conceber o homem como um ser em movimento, em permanente construção no decorrer do tempo histórico. Um As Influências do Barão de Miinchhausm na Psicologia da Educação 15 homem que, ao transformar sua realidade para poder garantir sua sobrevivência, vai também construindo seu mundo psicológico que estaria assim diretamente ligado, enquanto características, possibilidades e limites, à sociedade na qual ele se insere e se constitui. Tenho achado útil introduzir aqui um exercício de ficção para deixar mais claro o que poderíamos chamar de caráter histórico do fenômeno psicológico e do conhecimento que o conceitua. "Em 2200, nossa sociedade terá se transformado e estaremos vivendo em uma sociedade feminista. Na perspectiva da 'teoria da envergadura da vara', na qual se acredita necessário envergar a vara para seu outro extremo, podendo obter então uma vara reta, a sociedade terá extinguido o machismo, substituindo-o por um feminismo radicalizado. As mulheres ocuparão cargos de poder, tomarão as decisões básicas em nossa sociedade, exercerão um poder sobre os homens submetendo-os e impedindo seu desenvolvimento pleno. Os homens estarão nos lugares sociais de pouco prestígio, de baixa remuneração e de pequeno poder de decisão. Pobres homens! Em casa, cuidando muitas vezes da limpeza do lar, das crianças, dos animais de estimação, operando as máquinas (máquinas que eles mesmos criaram enquanto estavam no poder), terão poucas oportunidades de se engrandecerem. Nesse momento histórico, uma psicóloga, em algum lugar central do mundo, postulará uma teoria que ajudará as pessoas a compreenderem a dinâmica psicológica e o desenvolvimento psíquico dos meninos com idade por volta de 3 ou 4 anos. Os meninos, explicará ela, passam por um período no desenvolvimento, na dinâmica familiar, no qual vivem, o que denominará de "complexo do vazio abdominal", quando se percebem sem útero para procriar, vendo-se incompletos, na medida em que o poder está com as mulheres e que o que lhes falta para serem iguais a elas é exatamente o útero. Essa etapa do desenvolvimento psico- lógico poderá ser superada facilmente, através da descoberta e da identificação com aquele outro ser que com ele convive e que também não tem útero. Mas caso necessite de algum acompanhamento psicológico, um profissional poderá traba- lhar utilizando mitos, como recurso técnico... todos os mitos serão do Spilberg." 16 Psicologia e Educação: Dcsajws icónco-Práticos Uma brincadeira, obviamente, para poder dizer da concepção histórica da ciência e do fenômeno psicológico. Pensar a partir dessa perspectiva não significa apenas entender que conforme o tempo vai passando e nossa sociedade modificando-se, nossas concepções científicas também vão sofrendo modificações. Não, é mais do que isto. É acreditar que, conforme vamos mudando nossas formas de vida, vamos transformando nossas formas de ser. Vamos transformando nosso mundo psíquico, em sua estrutura, em seus conteúdos, em sua dinâmica, em suas possibilidades e em suas funções... Vamos constituindo um novo fenômeno psicológico dentro de nós que merecerá ser estudado e conceituado. A ciência do homem muda não só porque são realizadas novas descobertas sobre o homem, mas também porque o próprio homem muda. Assim, voltando ao nosso eixo de pensamento, a natureza humana é uma concepção que em nada nos ajuda, pois empobrece nossas leituras, atribuindo ao homem um conteúdo natural que deve ter todas as possibilidades de desenvolvimento. Nas visões mais críticas, a sociedade deverá ser então observada e julgada enquanto facilitadora ou não do desenvolvimento dessa natureza humana em potencial. A idéia de condição humana A idéia de condição humana torna-se muito mais rica. O homem passa a ser visto como um ser que constrói as formas de satisfação de suas necessidades e faz isto com os outros homens. Essa é a sua condição. A cada momento histórico é preciso que se compreenda como isto está se dando, que necessidades estão colocadas e quais as formas de satisfação delas que foram construídas: como o homem tem feito isto com os outros homens. Só assim poderá compreender-se qual homem (e que psiquismo) se tem naquele momento histórico e naquela sociedade. As vantagens dessa concepção, para quem quer colocar a Psicologia, na sociedade, como instrumento de transformação, são inigualáveis. Pois agora, a partir dessa concepção, pode pensar-se a sociedade como algo em movimento e que pode ser transformado, para que se possa ter melhores condições de vida, incluídas as melhores condições de"ser". Caberá ao psicólogo um trabalho de crítica às condições sociais, sem que precise recorrer ao mecanismo da naturalização do homem para justificar porque se quer mais isto As Influências do Barão de Aliinchhausen na Psicologia da Educação 17 do que aquilo. A naturalização do humano só tem servido para justificar que as formas dominantes sejam as formas certas, naturais e verdadeiras, isto é, as formas dominantes de "ser" têm sido tomadas como as formas naturais do homem e não como as formas que historicamente interessaram que se tornassem modelo e referência para a construção dos critérios de normalidade. O homem precisa ser visto como um ser ativo, social e histórico. O homem precisa ser visto como um ser criado pelo homem. Ao nascermos somos candidatos a humanidade e à inserção na sociedade; o contato com a cultura, contato esse mediado pelos outros homens, nos fará humanos. "No conjunto das relações sociais, mediadas pela linguagem, o indivíduo vai desenvolvendo sua consciência. Com o desenvolvimento da consciência, o homem sabe seu mundo, sabe-se no mundo, antecede as coisas do seu mundo, partilha-as com os outros, troca, constrói e reproduz significados. Quando atua sobre o mundo, relacionando-se, apropria-se da cultura e adquire linguagem; apropria-se dos significados e constrói um sentido pessoal para suas vivências. Tem, assim, todas as condições para atuar com os outros, criar cultura e elaborar significados. O homem se faz homem ao mesmo tempo que constrói seu mundo " (Bock, 1997, p.26). A Psicologia, a nosso ver, tem descolado o homem de sua realidade social e cultural, "...aPsicologia tem naturalizado o homem, em vez de torná-lo histórico; a Psicologia tem feito ideologia, na medida em que 'explica', 'compreende' o homem sem contextualizá-lo, sem desvendar, com suas teorias, as determinações sociais do psiquismo humano. O psiquismo acaba sendo tomado como algo já existente no homem, que se realiza, desabrocha, atualiza-se; o psiquismo é tomado como um a priori no homem. A realidade social aparece apenas como 'canteiro', onde a semente de homem, com sua natureza psíquica, pode desenvolver-se. As condições materiais de vida não são tomadas, pela Psicologia, como constitutivas do psiquismo " (Bock, 1997, p.27/28). 18 Psicologia e Educação: Desafios Temico-Práticos O Barão de Münchhausen como símbolo Aqui parece-nos o momento de introduzirmos as explicações p o título de nosso trabalho: as influências do Barão de Münchhausen na Psicologia da Educação. A figura do Barão, que vem das histórias infantis alemãs, é utilizada como expressão das idéias liberais em nossas concepções, como fez Michael Lõwy. O Barão conta-nos entre suas histórias que , "Uma outra vez quis saltar um brejo mas, quando me encontrava a meio caminho, percebi que era maior do que imaginara antes. Puxei as rédeas no meio de meu salto e retornei à margem que acabara de deixar, para tomar mais impulso. Outra vez me saí mal e afundei no brejo até o pescoço. Eu certamente teria perecido se, pela força de meu próprio braço, não tivesse puxado pelo meu próprio cabelo preso em rabicho, a mim e a meu cavalo que segurava fortemente entre os joelhos" (Raspe, p.40). A idéia da autonomia individual, do homem descolado condições sociais e da possibilidade de autodeterminação de c um de nós, movidos por uma força interior dada pela semente está dentro de nós e que nos empurra (natureza humana), é algo m forte em nossas concepções liberais e positivistas. São essas concepções que se pretende representar na imagem do Barão Münchhausen. O liberalismo, como visão de mundo, está fundamentado na idéia de que cada homem é um ser moral, possuidor de direitos inalienáveis que lhe são dados pela sua própria condição de homem. Dotado potencialidades, o homem deve ser livre para desenvolvê-las. Daí a decorrência da valorização do individualismo em detrimento do reconhecimento da totalidade social. "Pensar o homem como possuidor de direitos naturais, pensar o homem como livre e igual pressupõe a idéia de que existe uma natureza humana, a mesma em todos os tempos e lugares. Isso é o mesmo que dizer serem alguns elementos caracterizadores do homem, necessários e universais, efeitos de uma causa também necessária e universal: a Natureza. Ficam subestimadas as determinações sociais " (Bock, 1997, p.32). As Influências do Barão de Miinchhausen na Psicologia da Educação 19 "O individualismo, enquanto valor subjacente à doutrina liberal, acredita terem os homens propriedades universais t? e os indivíduos, em sua particularidade, características e ,., atributos diversos e é de acordo com eles que ficam determinados seus lugares sociais. O indivíduo escolhe, dedica-se e responsabiliza-se pelo desenvolvimento desses atributos, que são, na verdade, seu potencial, potencial este que deve encontrar condições ideais para seu desenvolvimento. Dadas as condições sociais adequadas, o indivíduo torna-se o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso" (Bock, 1997, p.32). A noção de indivíduo é algo tão comum que chegamos a pensá-la como natural. Mas, na verdade, a noção de indivíduo é algo construído no decorrer da história. "Indivíduo é uma noção associada às noções de liberdade, autonomia, igualdade enquanto direitos naturais, dotado de características e potencialidades próprias, particulares; dotado de consciência individual e de emoções particulares. A noção de indivíduo carrega consigo a idéia de um sentimento profundo de identidade, que o iguala a todos os outros homens e, ao mesmo tempo, carrega a idéia da posse de algo absolutamente único e irrepetível, que o distingue dos outros. Para que tal noção se desenvolvesse, foram necessárias várias condições sociais "(Bock 1997, p.33/34). O momento histórico em que essas concepções surgem está associado à ascensão da burguesia e das revoluções burguesas (século XVIII). O modo de produção, que até então era o modo de produção feudal: produção para subsistência, a terra como fonte de produção de riqueza e sobrevivência; a economia era fechada; as relações de produção se faziam entre senhor e servo, com uma hierarquia clara e estável sem que houvesse possibilidade de mobilidade social; o domínio era da aristocracia e do clero. A essa realidade econômica correspondiam idéias: o universo era visto como estático, tendo a terra em seu centro; o mundo era visto como organizado, hierarquizado; a verdade era dada aos homens por revelação. Quanto ao conhecimento, a razão estava completamente submetida à fé e aos dogmas da Igreja; o homem era visto como predeterminado. Seu lugar social estava definido a partir de seu nascimento, e as explicações para essa definição estavam dadas em um plano divino. O mundo fechado 20 Psicologia c Educação: Desajws Temico-Prdticos e o universo finito combinavam com o feudo e com a economia de subsistência. A hierarquia no universo era a principal justificativa para a hierarquia social. O capitalismo traz grandes modificações nesse quadro. Traz consigo a mercadoria e a produção, não mais para a subsistência, mas para o mercado. "As relações de produção também se modificam e a burguesia, como dona dos meios de produção, relaciona-se com o proletariado, como dona que é da força de trabalho. Há uma quebra no poder centralizado da Igreja e uma substituição do poder da aristocracia pelo da burguesia. A visão de mundo é revolucionada: o universo está agora em movimento e é infinito; o sol é centro desse universo e não há hierarquia nele. Quanto ao conhecimento, já não se aceitam os dogmas da Igreja como inquestionáveis, e a razão se torna independente da fé. O homem é livre para poder definir seu lugar na sociedade e já é possível a mobilidade social. O homem não é mais o centro do universo ejá pode ser estudado e compreendido. Essa transformação é processual, isto é,vai se engendrando: conforme novas formas de produção vão sendo conquistadas, novas idéias vão se tornando possíveis e essas novas idéias, por sua vez, vão permitindo novos avanços na produção" (Bock, 1997, p. 34/35). A burguesia, que disputava o poder, necessitava de todas essas transformações. Precisava delas para emancipar-se e para poder transformar o universo em fonte de riquezas para a produção de mercadorias. Era preciso defender a visão de homem como alguém que transforma o mundo em que vive, como alguém livre e como alguém dotado de razão. A nova forma social enfatizava a razão humana, a liberdade, a possibilidade da transformação e o homem. "Toda essa revolução na base material da sociedade e nas idéias tirava do homem sua segurança dada por referências seguras e imutáveis. Era necessário escolher e decidir entre possibilidades, já que as referências se multiplicavam. Além disso, a fragmentação da vida social e a especialização crescente do trabalho colocavam-se como elementos decisivos para o surgimento de um novo sentimento e sua idéia correspondente: a individualidade ou o sentimento do ser único e irrepetível. Estavam dadas as condições para o As Influências do Barão de Miinchhausen na Psicologia da Educação 21 surgimento do indivíduo como ser dotado de direitos naturais, inalienáveis, derivados de sua própria humanidade. Um ser dotado de potencialidades, que deve ser livre para desenvolvê- las. A submissão dos indivíduos a condições opressivas de vida e a vontades arbitrárias era incompatível com a dignidade humana e com a idéia de autonomia do ser humano " (Bock, 1997, p.35/36). O individualismo vai então se tornando valor central e referência básica para as produções científicas e culturais. O indivíduo, que foi uma construção da sociedade burguesa, tornou-se a referência central. Paralelamente a esse desenvolvimento, veremos crescer, em nossa sociedade, a noção de privacidade. O sentimento de identidade individual acentua-se no decorrer desse processo. Sinais do crescimento desse sentimento encontramos em toda parte: na dispersão dos prenomes, que até então eram atribuídos seguindo-se regras de transmissão familiar; a identificação na argola dos guardanapos e no copo, os monogramas bordados nos enxovais e nas roupas mostram a nova relação que o indivíduo mantém com seu nome; os cartões de apresentação, a democratização do retrato, o epitáfio personalizado, os diários íntimos e o desejo de decifrar a personalidade que se oculta. "Conhecer-se a si mesmo tornou-se, então, uma finalidade. A psique é tratada como se tivesse uma vida interior própria. Deve ser cuidada, conhecida; busca-se saber o que é a própria psique e o que é autêntico nos próprios sentimentos " (Bock, 1997, p.39). Acreditamos que podemos agora falar um pouco dos resultados de nosso trabalho de investigação e sintetizá-los no que denominamos de visão liberal de homem, pois a grande maioria das respostas está dentro dessa categoria. Poucas respostas encaixam-se no que denominamos de "visão sócio-histórica". Poderíamos mesmo afirmar que nenhuma resposta é tipicamente sócio-histórica. Há algumas intermediárias, mas é inegável que a grande maioria fica localizada na visão liberal. 22 Psicologia e Edmação: Desafies Teárico-Práticos A visão liberal de homem Podemos resumir essa visão nos seguintes aspectos: • O fenômeno psicológico é visto de forma abstrata e naturalizante. O fenômeno é visto como algo da espécie humana, característica universal da espécie. Designado por uma quantidade enorme de palavras. "O fenômeno psicológico, a nosso ver, está pensado, na maioria das respostas, como algo descolado, independente do indivíduo. Ele está transformado, no discurso desses psicólogos, em uma entidade que atormenta, restringe, possibilita, enriquece, movimenta-se, desenvolve-se; uma entidade que tem uma vocação, um destino, um percurso, uma realização a cumprir. Mecanismos universais caracterizam, assim, esse fenômeno" (Bock, 1997, p.270). • Aparece também nas respostas a idéia de um MEIO. Um meio genérico, que às vezes é social, às vezes é físico. Esse meio influencia o indivíduo, mas essa influência também é genérica. Recheia, preenche, molda, constitui. Possibilita, impede, bloqueia, estimula. "O Homem não está conceituado a partir de uma perspectiva histórica. E pensado a partir de uma perspectiva de natureza humana... O homem aparece como um ser que possui em si sua essência, seu vir-a-ser e que essa essência se atualiza, se manifesta graças às possibilidades do meio e à relação com os outros. Há um homem apriorístico. Além disso, a noção de homem carrega uma visão de que é um ser dotado da possibilidade de controlar, garantir, responsabilizar-se pelo seu próprio processo de individualização " • - (Bock, 1997, p.270/271). É interessante que se ressalte aqui um aspecto que chama a atenção na visão de homem que é a existência de um "eu verdadeiro" que habita o indivíduo. Aparece a noção de que há um eu cheio de potencialidades, de habilidades, referenciadas na idéia de natureza humana, que não se manifestam de imediato, mas que, no decorrer da vida, dependendo das experiências vividas, podem realizar-se, presentificar-se, atualizar-se. As condições sociais aparecem aqui como impeditivas dessa tarefa. As Influências do Barão de Miinchhcmsen na Psicologia da Educação 23 "A relação do indivíduo com a sociedade é uma relação praticamente inexistente nas respostas. As relações apontadas como necessárias e importantes para o desenvolvimento do homem dizem respeito, fundamentalmente, às relações com os outros homens. Não são, no entanto, relações situadas no tempo histórico, em condições determinadas de vida, permeadas de significações e linguagens específicas, com condições concretas de trabalho e formas de produção da sobrevivência. Não há a visão de um conjunto de homens compartilhando esses elementos históricos e sendo determinados por esses elementos. O termo social refere-se, assim, apenas à existência de outros homens" (Bock, 1997, p.271/272). A prática profissional "é apresentada na maioria absoluta das respostas como uma prática técnica, isto é, uma prática que contém um saber (métodos, técnicas e teorias) que auxilia o desenvolvimento do homem. Auxilia a retomada de um 'caminho desviado', auxilia a redução do sofrimento, o autoconhecimento necessário para o equilíbrio e a adaptação ao meio social. O trabalho também, na maioria das respostas, busca esclarecer, permitira compreensão, favorecer a escuta, conhecimento de aspectos desconhecidos, explicitar aspectos do indivíduo que ele desconhece etc. Não se coloca uma finalidade social ou política para essa prática. As finalidades estão ligadas apenas ao indivíduo e a um movimento que lhe é próprio, natural, e que deve ser conservado ou reconduzido " (Bock, 1997, p.272/273). Aparecem também, relacionados à prática, conteúdos morais de ajuda ao próximo e de compreensão absoluta. Os psicólogos evidenciam, em seus discursos, principalmente quando relatam seus trabalhos, uma noção onipotente da profissão e de si próprios como profissionais, acreditando que têm em suas mãos a possibilidade de fazer do outro um homem feliz, de colocá-lo em movimento. A idéia de ajuda incondicional ao outro é também presente nos discursos. Ajuda na busca da adaptação e da felicidade. "No entanto, esse discurso vem acompanhado da fala: 'mas o psicólogo não muda o homem, apenas contribui para que 24 Psicologia e Educação: Desafios Teàrico-Prdticos ele próprio se modifique'. E a onipotência se traveste de humildade absoluta e o psicólogo nega o seu próprio trabalho. Nega a sua intervenção como um trabalho, isto é, como uma intervenção dirigida para uma finalidade na qual emprega sua energia para transformar o que se apresenta naquilo que surge em seu pensamentocomo o fim desejado" (Bock, 1997, p.273). A saúde psicológica é vista como um conjunto de condições apresentadas pelo indivíduo que lhe permite a adaptação ao seu meio social e físico. São características do seu comportament ou são capacidades, ou estado em que o indivíduo se encontra ou ainda condições de seu aparelho psíquico, que lhe permitem comportar-se e estar no mundo social de forma adaptada. São visões morais e médicas da saúde. A visão sócio-histórica de homem Para completar nossa exposição, colocamos, aqui, uma peque síntese da visão sócio-histórica, que se encontra no outro extremo da linha. • Visão de homem histórico, isto é, um ser constituído no s movimento; constituído ao longo do tempo, pelas relações sociais, pelas condições sociais e culturais engendradas pela humanidade. Um ser que tem características forjadas pelo tempo, p sociedade e pelas relações. • O homem é visto a partir da idéia de condição humana: o homem é um ser que constrói suas formas de satisfação das necessidade faz isso com os outros homens. • A relação indivíduo/sociedade é vista como uma relação dial tica, na qual um constitui o outro. O homem constrói-se ao co~ trair sua realidade. • O fenômeno psicológico é também histórico. Surge e constitui-se a partir das relações do homem com o mundo físico e soei Todos os elementos internos, do mundo psicológico, são forjados nessas relações. • A prática psicológica é vista da perspectiva da saúde. Reflexões sobre a realidade e ações e projetos coletivos são condições básicas para a saúde do indivíduo. As Influências do Barão de Miinchhanscn na Psicologia da Educação 25 Saúde psicológica é vista como possibilidade de transformação da realidade; saúde é capacidade de enfrentamento da realidade e suas possibilidades estão diretamente relacionadas ao meio social, às condições oferecidas pelo meio social. O percurso dos psicólogos A revisão das publicações - revistas e periódicos - de algumas entidades da categoria dos psicólogos foi também algo extremamente interessante, pois deixou claro um percurso da categoria em nossa sociedade e as mudanças dos termos que vão sendo empregados para fazer referência ao fenômeno. Os psicólogos vão se inserindo, a partir de 1980, nas lutas da sociedade civil: lutas por melhores condições de trabalho, por melhores condições de saúde e Educação para a população e lutas políticas da sociedade. Essa inserção e participação da categoria são feitas via entidades representativas: sindicatos, conselhos regionais, federação e CFP. Podemos voltar um pouco atrás (1970-75) e vamos ver a categoria crescer assustadoramente, a partir de uma política de incentivo à abertura de escolas particulares e da busca de ascensão das camadas médias através da formação no 3o grau. Há um crescimento muito grande de nossa categoria, que encontra pouco espaço no mercado de trabalho. Paralelamente, há um desenvolvimento das lutas da sociedade civil por melhores condições de vida. E lá estão os psicólogos ocupando suas entidades e utilizando esses espaços para buscar uma ampliação no mercado de trabalho da profissão. O fenômeno psicológico, que até 1980 aparecia nas publicações de forma "pobre", designado por poucas palavras que pareciam até então consensuais, como comportamento, desenvolvimento intelectual, cognitivo e afetivo, autoconceito e auto-afirmação, passa a ser paulatinamente designado por um conjunto cada vez maior de palavras. E não só um conjunto da palavras cada vez maior, como um conjunto que passa a incluir palavras que fazem referência a uma relação desse fenômeno com a realidade social, onde ele acontece e se desenvolve. A partir de 1980, psicólogos pertencentes ao que poderíamos denominar de resistência a uma Psicologia dominante vão ocupar as entidades representativas da categoria e colocar seus discursos críticos nas publicações dessas entidades, fazendo circular em nosso país uma 26 Psicologia e Educação: Desafios Tcóiico-Pmticos _ visão histórica e crítica de homem e de fenômeno psicológico. É período de reorganização social e política da sociedade brasileira. Os psicólogos vão avançar. Avançam em suas preocupações e construir uma Psicologia a serviço das necessidades da maioria população; avançam porque passam a participar com outros trabalhadores da saúde nas lutas e organizações sociais; avançam porque buscam novas práticas para a profissão. Debates, publicações, ousadia nas práticas profissionais, ousadia nas formas de organização da categoria (congressos, eleições diretas para seus representantes etc) caracterizam os anos 80. Nesse trajeto todo há um aumento surpreendente do número de termos para designar o fenômeno psicológico. A década de 90 começa com toda essa diversidade. O psicólogo está definido como um profissional de saúde e poucos questionam essa afirmação. Aprofundam-se as tendências da década de 80. Talvez possamos dizer que nesse período os psicólogos buscaram sistematizar toda a produção dos anos 80 e responder às questões colocadas naquele período. Vale lembrar que é uma história na qual a resistência ocupa as entidades e faz circular seu pensamento, mas não queremos dizer com isso que essa resistência tenha conseguido se impor como pensamento dominante. A Psicologia tradicional, com sua visão liberal de homem, continuou existindo. E é exatamente isso que os dados dos questionários, que aplicamos, vieram demonstrar. Assim, o trabalho permitiu concluir que, a partir de 1980, os psicólogos, através de suas entidades, acumularam uma reformulação significativa do conceito de fenômeno psicológico. Este passa a incluir aspectos sociais em sua constituição e a prática que o acompanha, busca formular-se a partir da realidade concreta, brasileira. Os psicólogos preocupam-se com o engajamento da profissão; questionam as teorias e os métodos da Psicologia e buscam reformular o conhecimento, a prática. Um modelo mais crítico de atuação acompanhado de uma visão centrada na saúde parece vir substituindo o modelo médico de intervenção. Essas mudanças tomaram-se possíveis dado o avanço da organização da sociedade civil em prol da obtenção de melhores condições de vida e saúde para a população e ainda dado o ingresso dos psicólogos em serviços públicos de atendimento à saúde e à Educação. Isso leva os psicólogos ao movimento dos servidores públicos e à luta da saúde e da Educação. As Influências do Barão de Aíiincbhausen na Psicologia da Educação 27 O conjunto dos questionários evidenciou, no entanto, a presença de uma visão liberal forte. Uma visão de um homem que pode sair do pântano puxando pelos seus próprios cabelos. Ou seja, ainda não superamos o modelo tradicional de profissão, a visão liberal, positivista e idealista de homem, as noções individualistas que isolam o indivíduo de seu mundo social, mundo este que lhe constitui e lhe dá sentido. A Psicologia ainda tem forte papel ideológico em nossa sociedade. As influências do Barão na Psicologia da Educação Com esses dados e reflexões colocadas podemos agora partir para uma reflexão sobre as influências do Barão de Münchhausen na Psicologia da Educação, o que significa dizer que vamos refletir a naturalização do fenômeno psicológico como gerador de concepções na Psicologia da Educação que têm informado práticas que precisam ser criticadas e superadas. Vamos desenvolver quatro idéias básicas que estão colocadas originalmente na produção de Charlot e que têm sido fundamentais para o desenvolvimento de nossas posições na área. • A criança e o jovem têm sido vistos da perspectiva da natureza humana. • A Escola tem sido definida como um espaço de proteção aos educandos. • A Educação tem sido concebida exclusivamente como processo cultural. • O trabalho na Educação concebido como missão quase divina. A CRIANÇA/JOVEM: as características do desenvolvimento de nossascrianças e de nossos jovens têm sido tributadas à natureza humana, isto é, têm sido naturalizadas como características do desenvolvimento humano. A infância e a adolescência são pensadas como fases de um desenvolvimento esperado, previsto e natural. A dependência da criança em relação ao adulto, por exemplo, é vista como algo natural. Não se pensa essa dependência como uma interpretação feita pelo adulto, a partir das relações vividas com a criança, interpretação esta retirada da relação entre as condições fisiológicas da criança e as possibilidades sociais de satisfação das necessidades. Ou seja, a criança não é naturalmente dependente; ela torna-se dependente em uma sociedade na qual as suas condições fisiológicas estão distantes 28 Psicologia c Educação: Desafios Temico-Práticos das possibilidades sociais de satisfação das necessidades. Assim, criança é dependente dos adultos para se alimentar, matar a sede _ se agasalhar porque as formas de nos alimentarmos, de matarmos nossa sede ou de nos agasalharmos é sofisticada para as condições da criança. Claro que nossas crianças não podem sobreviver sozinhas por mais simples que sejam nossas formas de satisfação das necessidades. Mas tornam-se mais tempo dependentes dos adultos pelas formas sofisticadas que construímos. A história social e o desenvolvimento da humanidade e de sua cultura tornaram a criança dependente. O interessante é que com a naturalização dessa dependência o adulto ficou autorizado à intervenção e sua autoridade sobre a criança ficou também, de certa forma, naturalizada. Processo de certa forma semelhante acontece com o jovem. Ele não é naturalmente rebelde, ou vive naturalmente um conflito de gerações. O que se passa, de maneira simplificada, é que as condições físicas e intelectuais dos jovens já lhes permitem uma participação muito maior na sociedade do que a autorização que têm para essa participação. Na relação condições/permissão social, os jovens ficam prejudicados, porque são impedidos de realizar muitas atividades para as quais já têm condições. A rebeldia é a interpretação que a sociedade adulta faz da forma de o jovem responder à sociedade adulta que o impede. A impotência, a fragilidade e a dependência da criança, assim como a rebeldia dos jovens, têm a ver com o meio criado pelo homem e não com a sua natureza. A naturalização da criança e do jovem vem seguida da idéia de que esse ser, naturalmente frágil ou rebelde, precisa ser "corrigido", posto no caminho certo, educado. E a escola surgirá como o lugar ideal para esse trabalho de "cultivo". E ESCOLA: a escola passa então a ser pensada como um lugar privilegiado para o "cultivo" de nossas crianças e de nossos jovens. Torna-se uma fortaleza que os protegerá da vida social, vista como fonte de corrupção e de modelos inadequados. Na escola pode desenvolver-se um trabalho, através do ensino de uma cultura purificada, de Educação, como contribuição para c desenvolvimento pleno das potencialidades de cada um. A realidade escolar substitui a realidade social e a escola volta definitivamente as costas para a sociedade. Desarticula-se a vida cotidiana da vida escolar; desvaloriza-se a vida social; nega-se qualquer saber que nasça no âmbito da vida As Influências do Barão de Münchhausen na Psicologia da Educação 29 cotidiana. Impõe-se modelos de desenvolvimento moral para as crianças e os jovens, modelos estes corporificados em pessoas que, por terem tido um contato tão estreito com a cultura e o saber acumulados pela humanidade, se tornaram modelos perfeitos, a serem seguidos. O preparo para se viver em sociedade é feito fora dela, de costas para ela, negando o que se possa ter construído nela que não seja purificado pelo saber escolar. A escola sobe seus muros para que os alunos não vejam a vida cotidiana acontecendo lá fora. Empurra da porta para fora qualquer assunto que possa vir a perturbar a vida escolar. Não permite a entrada da "sociedade" em seu espaço purificado. Não sejamos ingênuos em achar que apenas as escolas tradicionais funcionaram assim. Infelizmente não. Talvez as escolas tradicionais tenham levado essas idéias às últimas conseqüências, mas as escolas mais modernas, como as partidárias da Pedagogia da Escola Nova, também fizeram isto. Também acreditaram que a realidade escolar deveria ser algo tão puro, que se assemelhasse à natureza, para que as crianças pudessem ser ali mantidas e preservadas em tudo de bom que a infância carrega. A escola desvalorizou a vida social. Não entendeu em nenhum momento que devesse articular- se com a vida social e injetar realidade nas tarefas e reflexões escolares. O saber a ser transmitido não poderia jamais ser qualquer um. O saber deveria ser aquele capaz de purificar, capaz de fazer surgir as potencialidade naturais do homem. A EDUCAÇÃO: a Educação passou então a ser pensada como um trabalho exclusivamente cultural de preparo para a vida em sociedade. Uma tarefa de muita responsabilidade: afastar as crianças e os jovens das fontes de corrupção para cultivar as potencialidades humanas contidas em cada um, fazendo desabrochar a natureza humana de que somos dotados. O saber escolar não é portanto visto como um saber social. A cultura ensinada na escola não é vista como produto social. Tudo fica naturalizado e aquilo que "está sendo" passa a ser considerado o que "deve ser", porque é visto como verdadeiro e natural. O TRABALHO nas escolas passa a ser visto como uma missão quase divina. Fazer desabrochar a natureza contida em cada aluno é, sem dúvida, um trabalho divino. As crianças deverão ter as oportunidades adequadas para que a tarefa se complete. Serão dadas a elas as oportunidades e elas deverão 30 Psicologia e Educação: Desafios Teàiico-Prátkos saber aproveitá-las. Serão, assim, responsabilizadas pelo processo de aprendizagem. O trabalho incidirá sobre elas. Técnicas corretiva serão construídas. Os educadores estarão vigilantes, cuidando para que o desenvolvimento moral e psicológico se dê adequadamente. As saídas e soluções para qualquer dificuldade serão individualizadas e individualizantes. A contribuição dos psicólogos Os psicólogos têm contribuído bastante nessas construções teóricas e nessas práticas escolares. Temos, por exemplo, construído '-idéia de que as crianças podem ter "dificuldades de aprendizagem" Ora, como podemos pensar que em um processo de ensino-aprendizagem uma das partes pode ser responsabilizada pelo fracasso? Com: podemos pensar que as crianças tenham, apenas elas, dificuldade no processo? Por que não pensar que há dificuldades no processo <k ensino-aprendizagem e que professores, alunos e todos os aspectos e pessoas envolvidas devem ser incluídos na busca da solução? Ma> não tivemos dúvidas... Construímos uma série de conhecimentos c saberes para ajudar a criança a se "puxar pelos seus próprios cabelos e sair do pântano". Além disso, temos construído muitas teorias sobre o desenvolvimento das crianças, teorias estas descoladas da realidade social m qual esse desenvolvimento toma sentido, ou melhor, na qual, de nossi perspectiva, ele se constitui. Mas temos feito isto sem qualquer dificuldade. E nossos saberes vão então instruir práticas, de profissionais da Educação, que se tornam, com elas em mãos, verdadeira vigias do desenvolvimento "normal", isto é, se tornam vigias o: desenvolvimento desejado, dominante na sociedade, tomado então como natural. A realidade social tem sido reduzida à realidade individual eco. a ajuda da Psicologia. Problemas econômicos têm sido analisados como problemas de cultura individual e o desemprego, por exemplo tem sido lido como falta de escolarização. Temos contribuído para a leitura de que o que falta para nossas crianças em situação de apenas a escola. Problemas sociais são pensados como problemas de cultura individual, incompreensão, falta de esforço etc.O domínio social e político da sociedade é reduzido a questões de aptidões individuais ou problemas morais de cada um. Escândalos em nossa As Influências do Barão de Münchhausen na Psicologia da Educação 31 sociedade, envolvendo políticos, têm sido freqüentemente lidos como falta de escrúpulos e falta de uma moral rigorosa. Temos contribuído para que a Educação escolar apareça como a grande redentora de nossos problemas sociais, deixando definitivamente ocultados os determinantes econômicos e os interesses políticos desses problemas. É preciso que se deixe claro que os psicólogos não têm maior responsabilidade do que outros profissionais e de que não estão atuando dessa forma e construindo esses saberes porque escolheram esse caminho. Estaríamos assim reforçando a idéia do Barão de Münchhausen de que nos puxamos sozinhos do pântano. Os psicólogos têm sido formados sob as perspectivas liberal e positivista de conhecimento; têm aprendido que o valor do indivíduo é supremo; têm aprendido a partir da dicotomia interno/externo e psicológico/ social. A possibilidade de superação desses saberes também não se dá por um esforço de puxar os cabelos para sair do pântano. O esforço deverá ser coletivo, a partir da construção de projetos coletivos. O exercício crítico de abandonar formas individualizantes de atuação e de abandonar formas naturalizantes de conhecimento torna-se exigência para esse esforço coletivo. Entender que nosso saber jamais deverá servir para ocultar processos sociais determinantes de processos educacionais já é um bom começo. Injetar realidade social em nossos saberes e fazeres; estranhar a realidade da forma como se apresenta e jamais naturalizá-la; tomar a realidade como histórica, entendendo que ela está em movimento e que nossa ação contribui na direção desse movimento, são tarefas necessárias à expulsão do Barão de Münchhausen do âmbito da Psicologia da Educação. 32 Psicologia e Educação: Desafios Temico-Práticos Referências Bibliográficas: BOCK, A.M.B. As Aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologia: um estudo sobre o significado do fenômeno psicológi- co na categoria dos psicólogos. São Paulo: 1997, Tese de doutorado - PUCSP. MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. Coleção Síntese, Ed. Presença e Livraria Martins Fontes, vol. I, 4'edição. Portugal Brasil: 1980. RASPE, R.E. As aventuras do Barão de Münchhausen. Tradução de Norberto de Paula Lima, Hemus Ed. São Paulo: s/data. Bibliografia Básica: BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Ed. Hucitec. São Paulo: 1992. BEZERRA JR., B.A Noção de indivíduo: reflexão sobre um implícito pouco pensado. Rio de Janeiro: 1982. Dissertação de mestrado -UERJ. BOCK, A.M.B.; GONÇALVES, M.G.M. et ai. A Psicologia Sócio-Histórica, mimeo. São Paulo: 1996. CARVALHO, A.M.A. 'Atuação Psicológica " - alguns elementos para uma reflexão sobre os rumos da profissão e da formação. em Conselho Federal de Psicologia - Revista Psicologia: Ciência e Profissão, ano 4, número 2, 1984, p.7/9. CHARLOT, B. A Mistificação Pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da Educação. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. DUMONT, L. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1993. FIGUEIREDO, L.C.M. Psicologia - uma introdução. São Paulo, EDUC, 1992. LANE, S.T.M.; CODO, W. (Orgs.) Psicologia Social - o homem em movimento. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984. LOWY, M. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. São Paulo: Ed. Busca Vida, 1987. As Influências do liarão de Münchhausen na Psicologia da Educação 33 . Ideologias e Ciências Sociais: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Ed. Cortez, 1988. MACHADO, A.M. A queixa escolar e seus encaminhamentos, em Jornal do CRP-6a região, ano 14, n° 87, maio/junho 1994, p. 16. MELLO, S.L. Currículo: quais mudanças ocorreram desde 1962? em Conselho Federal de Psicologia. Revista Psicologia: Ciência e Profissão, ano 9, n° 1/1989, p. 16/18. SCHAFF, A. O Marxismo e o Indivíduo. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1967. SENNETT, R. O Declínio do Homem Público — as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. VIGOTSKI, L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1987. . A Formação social da Mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1984. VIGOTSKI, L.S; LURIA, A.R; LEONTIEV, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ed. ícone, 1981. WARDE, M.J. Liberalismo e Educação. São Paulo: 1984. Tese de doutorado - PUCSP. Psicologia Escolar: Pensamento Crítico e Praticas Profissionais* Marisa Eugênia Melillo Meira A Psicologia Educacional constituiu-se, no início do século, como uma área de conhecimentos que se propunha a estudar questões importantes que interessavam à educação escolar, e só na década de 40 tornou-se uma prática profissional, o que propiciou o surgimento do psicólogo escolar, cuja função seria a de resolver problemas escolares (Maluf, 1992). Em decorrência dessas origens, historicamente os termos Psicologia Escolar e Psicologia da Educação, ou Psicologia Educacional, têm sido utilizados para designar aspectos diferenciados, sendo o primeiro referido mais diretamente a questões de ordem prática, e o segundo a aspectos teóricos. Assim, tomando-se essa definição, a Psicologia da Educação ou Educacional deveria ocupar-se da construção de conhecimentos que possam ser úteis ao processo educacional, enquanto a Psicologia Escolar circunscrever-se-ia ao âmbito do exercício direto do profissional na Educação. Do nosso ponto de vista, a distinção entre os termos colocada desse modo expressa uma visão distorcida que comporta a possibilidade de pensarmos em prática e teoria como elementos que se auto- * Este texto foi elaborado a partir da tese de doutorado "Psicologia Escolar: Pensamento Crítico e Práticas Profissionais", sob a orientação da Profa. Dra. Maria Regina Maluf, no IPUSP, em 1997. 36 Psicologia e Educação: Desafios Teórico-Práticos sustentam, bastando-se a si mesmas. Se considerarmos, por um 1 que é fundamental a articulação permanente entre prática e reflexão teórica, seja no processo de construção de novas elaborações, s na busca de elementos teóricos importantes já desenvolvidos e, outro lado, independentemente do espaço social que a Psicologia Escolar possa estar ocupando no campo educacional, é possível concretização de pressupostos e finalidades transformadoras, c~ raiz é o compromisso efetivo com a Educação, torna-se evidente exigência de rediscutirmos essa distinção. O exame da literatura atual sobre Psicologia e Educação indica que a utilização dessas denominações em geral não se fundamenta em definições suficientemente precisas. Mas, mesmo que a terminologia utilizada não tenha uma importância em si mesma, ela pode tr~~ implicações de ordem teórica e prática e por esse motivo consideramos importante esclarecer o sentido que o termo Psicologia Escolar assume neste trabalho. Ao utilizarmos esse termo estamos referindo-nos a uma área atuação da Psicologia e ao exercício profissional do psicólogo q atua no campo educacional e que, para dar conta de inserir-criticamente na educação, deve apropriar-se de diferentes elaboraçoes teóricas construídas não apenas no interior da ciência psicológica mas ainda da Pedagogia, Filosofia e Filosofia da Educação, entre outras, de forma a assumir um compromisso teórico e prático com questões da escola já que, independentemente do espaço profissional que possa estar ocupando (diretamente na escola, em serviços públicos de Educação e saúde, em universidades, clínicas, equi de assessoria ou de pesquisas etc), ela deve constituir-se em foco principal de reflexão. Isto significa que é do trabalho que desenvolve no interior das escolasque emergem as grandes quest; para as quais se deve buscar os recursos explicativos e metodológi que possam orientar a ação do psicólogo escolar. Ao examinar as raízes históricas da introdução da Psicologia... Brasil, buscando contextualizá-la enquanto área de conhecimento prática profissional, particularmente na Educação, Patto (1984) identifica três momentos principais de sua trajetória no Brasil: o período da Ia República (1906 a 1930) que, inspirado por influências européias, se caracterizou pelo desenvolvimento de estudos em laboratórios, realizados por um número reduzido de profissionais e que provocaram pouca ou nenhuma interferência no contexto social da época o período de consolidação do modo de produção capitalista (1930 a Psicologia Escolar: Pensamento Crítico e Práticas Profissionais 37 1960) no qual, sob influência preponderante dos estudos e tendências norte-americanas, a Psicologia assume nitidamente um perfil psicométrico, experimental e tecnicista; e o último período, de 1960 em diante, quando passa a ser praticada nas escolas de modo mais sistemático e direto, a partir de objetivos marcadamente adaptacionistas. Desde então, a Educação tem se constituído no campo profissional para uma parcela considerável de psicólogos e, de acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia em 1992, depois da clínica (37,2%) e organizacional (29,6%), ela já é a área de atuação no Brasil que mais absorve profissionais (24,4%). No entanto, isto não significa que já tenhamos reunido elementos teórico-metodológicos suficientes e adequados à consolidação de práticas profissionais competentes. Ao contrário, a análise da literatura disponível indica que, no Brasil, a maneira como se conduziu o processo de atuação e produção de conhecimentos na área tem sido alvo de sérias críticas que, principalmente a partir da década de 80, têm se tornado cada vez mais contundentes. Todo esse movimento de crítica, gerado pela reflexão sobre a insuficiência das práticas desenvolvidas em nossos meios, bem como dos quadros conceituais sobre os quais elas vêm se sustentando historicamente, tem oferecido importantes subsídios tanto no sentido de desvelar os determinantes sociais e históricos que conformam o (des)encontro entre a Psicologia e a Educação quanto no sentido de reafirmar a possibilidade da construção de perspectivas mais adequadas. Embora vários autores venham apontando a necessidade de mudanças, o tratamento teórico, bem como as direções de análise, são não apenas diversos, como também algumas vezes conflitantes. A complexidade do tema, bem como a freqüente ausência de diálogo entre os que defendem as mais diferentes posições, tem dificultado o avanço do debate e propiciado terreno fértil para o apelo a soluções fáceis e aos discursos que nada dizem. Essa intenção de buscar a construção de uma Psicologia mais crítica e comprometida com a finalidade de transformação, por si só não é suficiente, já que atualmente, se tornou lugar comum a afirmação da necessidade de se compreender o homem enquanto um ser histórico e social, o que, muitas vezes, não passa de uma adesão sem maiores significados e conseqüências a uma tendência que tem sido considerada como atual, ou mesmo "moderna". 38 Psicologia e Educação: Desafios Temico-Práticos Na tentativa de situarmo-nos nesse processo de construção coletiva e considerando que a existência de diferentes concepções demanda uma postura de análise e reflexão cuidadosa, já que não basta apenas apontarmos a necessidade de buscar alternativas, neste trabalhe apresentamos e discutimos a premissa de que um caminho possível para uma fundamentação mais consistente de uma concepção crítica de Psicologia Escolar pode ser buscado no recurso a concepções críticas de Educação e Psicologia. Considerando a necessidade de não banalizarmos o conceito de crítica, e ao mesmo tempo reconhecendo que este pode assumir múltiplos sentidos em virtude das orientações teórico- filosóficas adotadas, buscaremos em um primeiro momento apontar alguns elementos constitutivos mais fundamentais do pensamento crítico. Para tanto, tomaremos como referência principal parte do conjunto de formulações desenvolvidas por Karl Marx e algumas obras de autores que se fundamentaram nessa mesma fonte. Em seguida, partindo da delimitação das expressões mais elaboradas do pensamento educacional crítico, apresentaremos alguns elementos fundamentais de uma concepção crítica de Educação que possa constituir-se em um dos fundamentos tanto para a proposição de finalidades quanto para a construção de práticas contextualizadas de Psicologia Escolar. Em um terceiro momento indicamos algumas reflexões teórico-críticas importantes já desenvolvidas no campo da Psicologia que nos permitem compreender dialeticamente a relação entre o indivíduo e o contexto histórico. Tomando como referência os elementos constitutivos do pensamento crítico e suas expressões em concepções críticas de Educação e Psicologia, no quarto item discutimos alguns elementos de uma perspectiva teórica crítica de Psicologia Escolar que já se fazem presentes em diferentes produções teóricas. No final apresentamos algumas reflexões que podem contribuir em alguma medida para a construção de um corpo de conhecimentos teórico-críticos que possa constituir-se em uma mediação fundamental entre as finalidades transformadoras e as práticas de Psicologia Escolar. Psicologia Escolar: Pensamento Crítico e Práticas Profissionais 39 O pensamento crítico Diante das múltiplas possibilidades de encaminhamento de análise, optamos pela discussão de quatro elementos que nos parecem ser imprescindíveis a um pensamento que se pretende crítico e que seriam os seguintes: reflexão dialética, crítica do conhecimento, denúncia da degradação humana e possibilidade de ser utilizado como um instrumento de transformação social. Consideramos que uma reflexão pode ser considerada dialética quando busca apreender o movimento e as contradições dos fenômenos, compreendendo-os como fatos sociais concretos, sínteses de múltiplas determinações e, nesse sentido, como realidades históricas que podem ser transformadas pela ação humana. Para tornar claros alguns dos suportes teóricos necessários a uma melhor compreensão do significado e dos possíveis desdobramentos dessa definição para a discussão do pensamento crítico, destacaremos três questões fundamentais que se intercruzam e complementam e que, entre outras, se constituíram em objetos centrais das elaborações desenvolvidas por Marx: a crítica da economia política, a crítica filosófica e a crítica metodológica. Partindo da crítica da economia política, Marx buscou o conhecimento sobre as leis fundamentais da produção capitalista, desvendando suas contradições a partir da apreensão da gênese categorial do capital, delimitando dessa forma os fundamentos de uma concepção materialista de história, na medida em que tornou claro que o fator determinante das formas de organização social é o modo pelo qual se realiza a produção material de uma dada sociedade. Do ponto de vista da concepção filosófica que fundamenta as formulações marxianas, é possível depreender ao mesmo tempo um movimento de crítica filosófica que se dirige fundamentalmente, embora não exclusivamente, ao idealismo, ao materialismo mecanicista e aos pressupostos da auto-inteligibilidade do empírico, já que todos acabam por negar o caráter histórico da sociedade e das relações sociais, e ainda a proposição de uma nova concepção de método científico. Ao defender a necessidade de se conceber as idéias como produtos situados em relações sociais que se desenvolvem historicamente, evidenciando a História como um processo ordenado que se constitui em produto da atividade humana, Marx não apenas fez a crítica às principais correntes filosóficas de seu tempo, como ainda40 Psicologia c Educação: Desafios Tcáiico-Prâticos buscou organizar os princípios fundamentais de um método científico que fosse adequado à compreensão da vida social como uma realidade que está em processo contínuo de transformação do qual todos os homens participam, quer tenham consciência disto ou não. Para Marx, a tarefa da ciência seria o desvelamento das estruturas subjacentes à historicidade do social, o que não seria possível apenas com o recurso aos dados empíricos que, embora necessários, não garantem a apreensão da essência mesma dos fenômenos. Nesse sentido, a atividade científica não pode ser limitada a uma classificação meramente descritiva do que aparece fenomenicamente; é preciso situar os dados no quadro histórico articulando os dois momentos fundamentais da atividade de conhecer: o momento da aparência, trazido pelos dados, e o da essência, construído através do pensamento teórico. Em suas palavras: "O concreto é o concreto, porque é a concentração de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo da concentração, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação... o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder o pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo espiritualmente como coisa concreta" (Marx, 1989, p.412). Para finalizar, poderíamos dizer, em síntese, que uma concepção ou teoria é crítica à medida que tem condições de transformar o imediato em mediato; negar as aparências sociais e as ilusões ideológicas; apanhar a totalidade do concreto em suas múltiplas determinações e articular essência/aparência, parte/todo, singular/universal e passado/presente, compreendendo a sociedade como um movimento de vir a ser. No que se refere ao segundo elemento constitutivo do pensamento crítico, concordamos com Martins (Forachi e Martins, 1983, p.2) que fazer a crítica do conhecimento não pode ter o significado vulgar de recusa de uma modalidade de conhecimento em nome de outra. É preciso alcançar o rigor suficiente para situar o conhecimento indo até a sua raiz, o que significa "definir os seus compromissos sociais e históricos, localizar a perspectiva que o construiu, descobrir Psicologia Escolar: Pensamento Crítico e- Práticas Profissionais 41 a maneira de pensar e interpretar a vida social da classe que apresenta esse conhecimento como universal ". Nesse sentido, o desvelamento ideológico da produção científica deve levar-nos à compreensão de que a produção do conhecimento é uma força de ação humana que se integra na prática social global de uma sociedade determinada, que condiciona não só seus objetivos, como também a forma através da qual se organiza, o que significa que o conhecimento é necessariamente produzido, ainda que não intencionalmente, a partir de uma perspectiva de classe social e das relações sociais de produção a que corresponde. Conforme apontam Lukács (1981) e Lõwy (1987), esse desvelamento é condição fundamental para o conhecimento aprofundado de qualquer fenômeno, o que eqüivale a dizer, ao conhecimento de seu caráter histórico e de sua função real na totalidade histórica. Assim, não é eliminando todos os elementos históricos e sociais dos fatos que se poderá garantir a objetividade científica. Ao contrário, ela só se torna possível à medida que se compreender a realidade enquanto processo que se constrói na trama complexa das relações sociais, que se buscar captar os fenômenos não como fatos em si, nem tampouco como idéias sobre os fatos, mas sim como concretudes históricas, sínteses de múltiplas determinações. Além de uma crítica econômica, filosófica e metodológica, o conjunto das formulações marxistas aponta ainda para uma crítica humanista (em um sentido revolucionário), que denuncia a degradação e a heteronomia do homem nas condições postas pelo capitalismo. No primeiro manuscrito filosófico, Marx (1962) aponta com clareza o conceito de alienação enquanto um processo por meio do qual a essência humana se objetiva nos produtos de trabalho e se contrapõe aos homens por serem produtos alienados e convertidos em capital. Na medida em que a realidade do trabalho social fica oculta por trás dos valores das mercadorias, não só o produto não pertence mais ao homem que o produziu, mas ainda assume uma "existência externa, existe independentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, que com ele se defronta como uma força autônoma... a vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil" (Marx, 1962, p.95 - grifas no original). Nesse processo o trabalho alienado aliena não só a natureza do homem, mas o homem de si mesmo e de sua espécie, já que converte a vida do homem como membro da espécie em um meio para sua existência individual. ,42 Psicologia c Educação: Desafios Temico-Práticos O fato de o trabalhador relacionar-se com o produto de seu trabalho como um objeto estranho faz com que ele próprio seja convertido em mercadoria que se torna cada vez mais barata à medida que produz mais riqueza. Na sociedade moderna há muitas formas através das quais o homem se aliena de si mesmo os produtos de sua atividade, mas todas expressam a mesma coisa: uma clivagem entre o homem e sua humanidade e a transformação da vida e da atividade vital do trabalhe em simples meio de existência. Portanto, uma teoria crítica deve contribuir para a desmistificação do fetichismo da mercadoria e do capital, desvendando o caráter alienado de um mundo em que as coisas se movem como pessoas e as pessoas são dominadas pelas coisas que elas próprias criaram, e. ao mesmo tempo, constituir-se em um caminho possível para a defesa radical da dignidade da vida, da justiça e da liberdade para todos os homens. Finalmente, o pensamento crítico deve trazer circunscrita e seu interior a possibilidade de ser utilizado como um instrumento no processo de transformação social já que, além de desvelar a realidade. por estar atento às potencialidades, permite apontar as possibilidades de transcendência. Na tese XI sobre Feuerbach, Marx forneceu os elementos para se discutir a conexão histórica entre a filosofia e a ação. Ele considerava que as filosofias poderiam ser divididas em dois grupos: aquelas que se limitam a tentar explicar o que existe (filosofia como aceitação do mundo) e aquelas que, por sua vinculação consciente com uma práxis revolucionária, servem à transformação do mundo (filosofia como instrumento teórico ou guia de uma transformação humana radical). Nessa direção de reflexão, Vazquez (1977) evidenciou que é preciso ter claro que a teoria em si não transforma o mundo, mas só pode contribuir para transformá-lo exatamente como teoria. A condição de possibilidade, necessária embora insuficiente, para transitar conscientemente da teoria à prática, é que seja propriamente uma atividade teórica na qual os ingredientes cognoscitivos e teleológicos sejam intimamente vinculados e mutuamente considerados. Assim, uma teoria crítica constitui-se em um instrumento fecundo tanto para a reflexão quanto para a prática, não para que seja tomada como dogma, como bíblia depositária inconteste de verdades prontas e acabadas, mas como uma visão de conjunto do homem e Psicologia Escolar: Pensamento Crítico e Práticas Profissionais 43 da sociedade, que nos permite apreender o movimento de conjunto da totalidade histórica e nos propicia clareza sobre a finalidade social de nossa ação profissional que não se esgota na mera construção e aplicação de princípios teóricos. Embora sob influência do ideário positivista tenha-se historicamente buscado uma espécie de liberação de toda ingerência filosófica, não se pode pretender eliminar esse conteúdo, já que toda e qualquer teoria
Compartilhar